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Anais do Encontro da Bahia 2012

ISBN: 978-85-8292-005-3 ÍNDICE ANAIS DO I ENCONTRO DE ESTUDOS CLÁSSICOS DA BAHIA Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 2 ÍNDICE RAUL OLIVEIRA MOREIRA JOSÉ AMARANTE LUCIENE LAGES [orgs.] ANAIS DO I ENCONTRO DE ESTUDOS CLÁSSICOS DA BAHIA Salvador 2012 Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 3 ÍNDICE Copyright © 2012, UFBA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitora: Dora Leal Rosa Vice-reitora: Luiz Rogério Bastos Leal Editora: Flávia M. Garcia Rosa Endereço: Rua Barão de Jeremoabo, s/n Ondina, Salvador-BA CEP: 40170-115 Email: edufba@ufba.br Telefone: 3283-6160/6164/6162 | Fax: 3283-6160 www.edufba.ufba.br Organizadores dos Anais: Raul Oliveira Moreira, José Amarante Santos Sobrinho e Luciene Lages Silva Arte final da capa: Fábio Ramon Rego da Silva Imagens: Pugile a riposo o Pugile del Quirinale (100 a.C). Museo Nazionale Romano Palazzo Massimo alle Terme Projeto gráfico e diagramação: Raul Oliveira Moreira As opiniões expressas nos textos dos anais são de inteira responsabilidade de seus autores. Salvo pela correção de problemas mais evidentes de digitação, os textos foram editados tal como submetidos pelos autores. Sistema de Bibliotecas – UFBA Encontro de Estudos Clássicos da Bahia (1. : 2012 : Salvador, BA). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia, Salvador, BA, 14 a 16 de junho de 2012 / Raul Oliveira Moreira, José Amarante, Luciene Lages, (orgs.) ; Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras. - Salvador : UFBA, 2012. 332 p. Endereço eletrônico: www.classicas.ufba.br ISBN 978-85-8292-005-3 1. Literatura clássica - Congressos. 2. Literatura grega - Congressos. 3. Literatura latina - Congressos. 4. Língua latina - Congressos. 5. Literatura brasileira - Congressos. I. Moreira, Raul Oliveira. II. Amarante, José. III. Lages, Luciene. IV. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. V. Título. CDD - 880 Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 4 ÍNDICE I ENCONTRO DE ESTUDOS CLÁSSICOS DA BAHIA ORGANIZAÇÃO GERAL: NALPE – Núcleo de Antiguidade, Literatura e Performance INSTITUTO DE LETRAS DA UFBA PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO UFBA: Língua e Cultura e Literatura e Cultura UNEB/DCHT/Seabra COMISSÃO ORGANIZADORA Profª Drª Luciene Lages − ILUFBA (NALPE) Prof. Ms. José Amarante – ILUFBA (NALPE) Profª Drª Marina Regis Cavicchioli – FFCH/UFBA Profª Ms. Pascásia Coelho da Costa Reis – DCHT/UNEB COMISSÃO CIENTÍFICA Profª Drª Luciene Lages − ILUFBA (NALPE) Prof. Ms. José Amarante – ILUFBA (NALPE) Profª Drª Sílvia Faustino de Assis Saes – FFCH/UFBA (NALPE) Profª Drª Marina Regis Cavicchioli − FFHC/UFBA (Grupo: Cultura Material, Antiguidade e Cotidiano) Profª Ms. Pascásia Coelho da Costa Reis – DCHT/UNEB Profª Drª Rosana Baptista dos Santos – UFLA (NALPE) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 5 ÍNDICE Todo mundo gosta de abará Ninguém quer saber o trabalho que dá [Dorival Caymmi, A preta do acarajé] Nossos agradecimentos: A Flávia Garcia Rosa, editora da Edufba, e à sua equipe, pelo apoio incondicional à produção dos materiais gráficos do evento e dos produtos dele decorrentes: o livro Mosaico Clássico: variações acerca do mundo antigo e estes Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia. À equipe GERE/UFBA: Erik Vinícius Gomes Almeida, Mariana Uaquim, Renata de Gino e Carla Bahia, pela assistência na publicação dos materiais do evento no site www.classicas.ufba.br Aos alunos da comissão de monitoria do I Encontro: Alexandra dos Santos Maia, Caleb Macedo, Camila Borges da Silva Ferreiro, Cíntia Roberto de Sena Lopes, Daniele Leitão, Daniele Castro de Jesus, Elba Santana de Souza, Eliana Souza d’Anunciação, Fernanda Patrício Mariano, Flávia Vasconcelos dos Santos, Jarbas Oliveira (in memoriam), Jorge Luis, Jozianne Camatte V. Andrade, Michel Silva Guimarães, Naiara Santana Pita, Nelson Rodrigues, Raul Oliveira Moreira, Sara Bernardo, Saryne Aquino, Shirlei Patrícia Neves Almeida, Sílvio Rezende Bernal e Yasmin Menezes Silva Lima. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 6 ÍNDICE SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................10 LITERATURA GREGA ..................................................................................................... 14 O resgate do conceito aristotélico de praxís teleía como chave para a unificação entre o déon e o télos nos estudos ontológicos Daniel Oitaven Pamponet Miguel.....................................................................15 O pioneirismo aristotélico acerca do risível Éverton de Jesus Santos, Jacqueline Ramos (orientadora).............................31 Uma análise linguístico-literária de A leoa e a raposa, de Esopo Danniele Silva do Nascimento, Alcione Lucena de Albertim (orientadora) ......................................................46 As representações do Eros em Hesíodo e Apuleio Naiara Santana Pita, Luciene Lages (orientadora)..........................................52 Entre Poesia e Filosofia: O Caso de Heráclito de Éfeso Martim Reyes........................................................................................................59 LÍNGUA E LITERATURA LATINAS .............................................................................. 71 O site www.latinitasbrasil.org como complementar à abordagem da coleção “Latinitas: leitura de textos em língua latina” José Amarante.......................................................................................................72 As sentenças causativas no latim Johnnatan Nascimento, Fábio Bonfim (orientador)........................................88 A formação de palavras via prefixação na língua latina Mailson dos Santos Lopes.................................................................................101 Indícios da evolução do latim na obra Fabulae, de Gaius Iulius Hyginus Darla Gonçalves Monteiro da Silva, Antônio Martinez de Rezende (orientador)...................................................114 Processos de gramaticalização de conjunções e preposições em obras de São Boaventura Zélia Gonçalves dos Santos...............................................................................123 Figuratividade na poesia bucólica de Virgílio: um estudo da poética da expressão Thalita Morato Ferreira, Márcio Thamos (orientador).................................136 Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 7 ÍNDICE Elementos cívicos da sociedade romana: o mos maiorum na lírica de Horácio Prisciane Pinto Fabrício Ribeiro, Alcione Lucena de Albertim (orientadora).....................................................146 O mito das raças humanas nas Metamorfoses de Ovídio Emmanuela Nogueira Diniz.............................................................................157 Os espetáculos públicos sob a ótica de Marcial: poesia e propaganda Raul Oliveira Moreira........................................................................................168 HISTÓRIA SOCIAL DO LATIM NO BRASIL .............................................................174 O latim e o vernáculo no século XVI: o caso da Grammatica de João de Barros Sara Bernardo, José Amarante (orientador) ...................................................175 O latim no Brasil do Século XIX: entre silabadas, sátiras e puristas Camila Ferreiro, José Amarante (orientador).................................................183 Análise dos usos e influências do latim na construção dos contos e romances de Machado de Assis Sílvio Wesley Rezende Bernal, José Amarante (orientador) ........................192 A LDB 4.024, de 1961, e sua influência nas representações da importância e da utilizade do latim em livros didáticos Shirlei Patrícia Silva Neves Almeida, José Amarante (orientador).............199 ESTUDOS DE TRADUÇÃO ...........................................................................................206 Reverberação do mito: as abordagens do mito de Páris em José Feliciano de Castilho Joana Junqueira Borges......................................................................................207 José Feliciano de Castilho, tradutor de Lucano: da prática à teoria tradutória Débora Cristina de Moraes, Brunno V. G. Vieira (orientador) ....................217 A ANTIGUIDADE CLÁSSICA E A LITERATURA BRASILEIRA ............................225 Uma cena clássica no Brasil central Alberon Machado Menezes ..............................................................................226 Ridendo castigat mores: comicidade em Martins Pena Ana Paula Rocha Vital Pereira .........................................................................236 A ironia cômica nas narrativas de José Cândido de Carvalho Danielle da Silva Andrade, Jacqueline Ramos (orientadora) ......................246 Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 8 ÍNDICE A constituição da linguagem em A maçã no escuro Malane Apolônio da Silva, Pollyana Correia Lima, Maria Aurinívea Souza de Assis (orientadora)..............................................254 INTERLOCUÇÕES COM A ANTIGUIDADE ...............................................................264 Circuito Cine-Mito: por uma investigação das apropriações mitológicas pela sétima arte Luciene Lages......................................................................................................265 O mito de Ulisses na tradução da Odisseia de Theo Angelopoulos em Um olhar a cada dia Ricardo José Maciel Lemos ...............................................................................273 Sêneca: ponte entre o teatro antigo e o contemporâneo Renata Cazarini de Freitas................................................................................280 Antiguidade e modernidade nas piazze de Giorgio de Chirico Juan Müller Fernandez ......................................................................................293 “Trimalchio in west egg” ou The Great Gatsby Jassyara Conrado Lira da Fonseca ...................................................................307 Liber ad usum cisterciensium: a presença do latim em um manuscrito quatrocentista Lisana Rodrigues Trindade Sampaio, Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orientador) ................................320 Nota dos organizadores ....................................................................................331 Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 9 ÍNDICE INTRODUÇÃO Realizado nos dias de 14 a 16 de junho de 2012, o I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia não contou com um tema específico, visto que nosso objetivo principal era uma primeira interlocução entre vários pesquisadores que se encontram, muitas vezes, isolados nas muitas instituições universitárias do estado da Bahia. No entanto, ao fim das inscrições, percebemos que esse primeiro Encontro recebeu adesão significativa de outros profissionais de instituições nordestinas e de outras regiões do Brasil. Nos três dias do evento, tivemos a oportunidade de conhecer os resultados alcançados pelos projetos de pesquisa de 14 instituições espalhadas pelo país, projetos desenvolvidos por vários grupos de pesquisas cadastrados no CNPQ, e por projetos individuais, todos eles com seus trabalhos difundidos por meio de conferências, mesas-redondas, comunicações e pôsteres. Para a realização deste primeiro evento, que agora publica seus Anais, os primeiros passos começaram há exatos cincos anos, quando a Universidade Federal da Bahia, através de editais de concursos públicos, resolveu revigorar os estudos clássicos no Instituto de Letras, que contava com apenas três professores de latim, Profª. Rosauta Poggio, Prof. Ivan Calazans e Prof. Gilson Magno. É a partir daí que passam a incorporar o quadro de docentes da área os professores Luciene Lages e Leonardo Medeiros Vieira, ambos Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 10 ÍNDICE para assumirem as cadeiras de Língua e Literatura Gregas, sem docentes por um longo tempo. Três anos mais tarde, ampliam-se as vagas para docentes de Língua e Literatura Latinas cujo resultado foi a contratação, também por concurso público, dos professores José Amarante e Zélia Gonçalves. Há dois anos, foi realizado outro concurso para Língua e Literatura Gregas e o professor Júlio Lopes Rego foi incorporado ao grupo. Dessa forma, o Instituto hoje conta com oito professores para atuarem no curso de Letras Clássicas, ampliando para mais do que o dobro o número existente até o início dos anos 2000. Evidentemente, até chegarmos aqui, muitos passos foram necessários. Como a redescoberta do curso de Letras Clássicas, empoeirado nas gavetas secretas dos computadores dos colegiados. Nesse sentido, os professores Leonardo Vieira e Luciene Lages deram os primeiros passos. Assumindo estrategicamente a função de coordenadores de colegiados puderam, pouco a pouco, mostrar, aos alunos que optam por línguas estrangeiras, a existência do latim e do grego como línguas estrangeiras clássicas, não modernas, como as demais línguas costumeiramente escolhidas pelos iniciantes no curso. Após a divulgação do curso aos alunos, a professora Luciene Lages, ciente de que o fortalecimento da área iria se dar a partir do fortalecimento da pesquisa, e já contando com a parceria do professor José Amarante, e com o apoio e adesão da professora do curso de filosofia Silvia Faustino, dos Professores do Ilufba Antônio Marcos Pereira e Leonardo Medeiros Vieira, funda o Grupo de Pesquisa NALPE (Núcleo de Antiguidade, Literatura e Performance), registrado no CNPQ, que conta atualmente também com a Professora Rosana Baptista dos Santos (UFLA). Nesse período, foi possível receber o Prof. William Dominik, da Universidade de Otago, Nova Zelândia, para ministrar aulas num curso da Pós-Graduação em 2010. O Prof. Dominik foi o primeiro convidado a fazer uma conferência sobre estudos clássicos para os nossos alunos em 2007. Foi possível também organizar o I Colóquio Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 11 ÍNDICE Clássicas UFBA (2010), com a participação do Prof. William e dos demais membros do NALPE. O movimento inicial foi mesmo este: o de divulgar o mundo clássico numa instituição tão carente de pesquisas e de publicações na área. Para isso, através do NALPE, alguns projetos tiveram lugar: o Circuito CineMito, com exibição de filmes de temática clássica, apresentados e discutidos por algum especialista; o Circuito de Conferências: interlocuções com a Antiguidade, com palestras proferidas por especialistas em estudos clássicos da própria universidade e de outras partes da Federação; o Curso de extensão em língua latina, para professores de diversas áreas do Instituto de Letras que, tendo estudado latim em tempos de memorização gramatical, aceitaram o convite para uma experiência didática com o objetivo de leitura de textos em latim, através do método Latinitas, em processo de elaboração pelo Prof. José Amarante. Com a frequência assídua de muitos alunos a esses projetos, o natural foi começarmos a ver alunos se interessando pela área, inquirindo sobre a existência de projetos de pesquisa e voltando-se para outras possibilidades acadêmicas. Hoje, o NALPE já conta com alunos de Iniciação Científica, mestrandos e bolsistas Permanecer, que atuam com o Projeto Circuito Cine-Mito em escolas públicas de Salvador. Foi nesse contexto que, em parceria com o DCHT/UNEB-Seabra e com os Programas de Pós-Graduação da UFBA em Língua e Cultura e em Literatura e Cultura, tivemos a oportunidade de receber profissionais de várias regiões do Brasil para a apresentação de mais de uma centena de trabalhos. Nestes Anais, reunimos os trabalhos submetidos à comissão científica do evento, os quais foram organizados em diferentes seções: Literatura Grega, Língua e Literatura Latinas, História Social do Latim no Brasil, Estudos de Tradução, A Antiguidade Clássica e a Literatura Brasileira, Interlocuções com a Antiguidade. Além dos trabalhos aqui apresentados, o evento oportunizou a publicação de vinte textos na edição do livro Mosaico Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 12 ÍNDICE Clássico: variações acerca do mundo antigo, organizado pelos professores José Amarante e Luciene Lages, também disponível no site do evento: www.classicas.ufba.br. Raul Oliveira Moreira Luciene Lages José Amarante Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 13 ÍNDICE LITERATURA GREGA Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 14 ÍNDICE O resgate do conceito aristotélico de praxís teleía como chave para a unificação entre o déon e o télos nos estudos ontológicos. Daniel Oitaven Pamponet Miguel* Introdução Este trabalho buscou investigar a influência do conceito aristotélico de praxís teleía no campo da ontologia. Adotamos como referencial teórico a tese de Adela Cortina, autora que, inspirada em Cubells, identifica na ontologia de Aristóteles a existência de um elemento deontológico teleológico, o qual seria refletido nos paradigmas ontológicos posteriores. Na filosofia do ser aristotélica, as ações humanas são dirigidas para um télos, mas a constituição da práxis diante da poíesis consubstancia um momento deontológico. Diferentemente do fim da produção, que é diferente dela própria, o fim da ação é, em si, um fim. O primeiro caso diz respeito à chamada práxis atelés (kínesis). Por sua vez, o segundo caso diz respeito à práxis teleía, na qual tendência e fim se identificam em uma simultaneidade temporal. Segundo Cortina, essa distinção viria a ser espelhada pelo paradigma ontológico da filosofia da consciência, de modo a constituir o seguinte paralelismo entre os pensamentos aristotélico e kantiano: a práxis atelés estaria para o imperativo hipotético, assim como a práxis teleía estaria para o imperativo categórico. Igualmente, a pragmática universal habermasiana seria constituída por uma convergência entre o déon e o télos, encontrada no acordo como finalidade inerente à linguagem humana. * Aluno especial do Doutorado em Direito Público da Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito Público (Limites da validade do discurso jurídico) pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Ex-professor substituto de Teoria do Direito/Filosofia do Direito/Hermenêutica Jurídica/Lógica e Argumentação Jurídica, Direito Civil e Direito Empresarial da Universidade Federal da Bahia. Professor de Hermenêutica Jurídica/ Filosofia do Direito/Lógica e Argumentação Jurídica da Faculdade Baiana de Direito. Aprovado em concurso para professor auxiliar de Teoria do Direito e Direito Civil da Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Advogado. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 15 ÍNDICE Nossa hipótese é a seguinte: uma compreensão adequada da práxis teleía proporciona a superação da oposição entre deontologismo e teleologismo. Testemos, então, sua validade. 1 As leituras de Cortina e Müller sobre a ideia de práxis no pensamento aristótelico Cortina (2010, p.225-6), inspirada em Cubells, recorre a Aristóteles para demonstrar que um elemento deontológico teleológico sempre esteve presente desde a filosofia do ser, passou pela filosofia da consciência e chegou à filosofia da linguagem1. Na leitura do filósofo espanhol sobre Aristóteles, as ações humanas são dirigidas para um télos, mas a constituição da práxis diante da poíesis consubstancia um momento deontológico. Enquanto o fim da produção é diferente dela própria, o fim da ação é, em si, um fim. No primeiro caso, trata-se de práxis atelés (kínesis). Por sua vez, o segundo caso diz respeito à práxis teleía, na qual tendência e fim se identificam em uma simultaneidade temporal. Isso é o que acontece na práxis do homem enquanto homem, isto é, na contemplação: o conhecimento move a vontade, que, por sua vez, desperta um novo desejo. A sucessão entre desejo e felicidade não tem por que ser interrompida, por isso nos encontramos diante de uma atividade contínua. Ao contrário, na atividade em que tendência e fim se dão sucessivamente, alcançar o fim supõe o desaparecimento da tendência. Por isso, aqui, o fim é perfeição e limite da ação. […]. O conceito de práxis teleía ilumina, portanto, o campo prático em toda a sua amplitude: na ética teleológica de Aristóteles, o momento constitutivo da racionalidade do prático é deontológico. (CORTINA, 2008, p.226) 1 “Se Aristóteles supunha uma ordem teleológica do ser, que fazia o fim e o bem coincidirem, Kant supõe uma ordem teleológica das faculdades do ânimo que lhe permite confiar que todas terão um uso correto. Por isso, a Crítica tem por tarefa descobrir, em cada caso, qual é esse uso e impedir excessos. Essa confiança básica na ordenação teleológica das faculdades do ânimo reproduz, a teleologia aristotélica do ser, mas no nível da consciência; enquanto a pragmática formal a reproduzirá por meio da linguagem, porque a linguagem também terá um uso originário e usos derivados. O uso originário será determinado pelo télos da linguagem, e ater-se a ele, em caso de conflito, suporá ater-se à razão prática, entendida como racionalidade comunicativa. Um mesmo modelo telológico, uma confiança na ordem do ser, da consciência e da linguagem, constitui o pano de fundo de alguns modelos filosóficos, cuja única alternativa total possível é o caos.” (CORTINA, 2010, p.230) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 16 ÍNDICE Poiesis e práxis, segundo lição de A. W. Müller (2011, p. 1-3), estão relacionadas em uma estrutura teleológica, na qual: 1) a produção é focada na existência de resultados; e 2) a ação tem por alvo uma vida virtuosa e a felicidade que lhe é nuclear. Enquanto a eupraxia, ação virtuosa, é uma forma de prática que já satisfaz seu próprio fim, a finalidade da poiesis não é a própria poiesis, mas sim o seu produto. A poiesis não se esgota na techné, entendida como aplicação de uma técnica estabelecida, mas sim em qualquer tipo de produção. Entretanto, de uma perspectiva mais ampla, a atividade produtiva também é orientada pela eupraxia, o que é notável, por exemplo, na afirmação de Aristóteles sobre a hierarquia de profissões, determinada pela hierarquia de fins buscados por cada tipo de trabalho. Aristóteles, na “Política” (I, 4, 1253b-1256b), afirma que os seres humanos teriam a peculiaridade de, em certos casos, gerar alguns produtos instrumentais em relação a outros produtos (organa poietika). No primeiro caso, ainda se pode dizer que a produção tem por fim uma nova produção, mas, na segunda hipótese, continua pendente a pergunta sobre a finalidade da produção. Entende-se, neste último caso, que tais produtos (organa praktika), são meios da eupraxia – elemento central da forma prática de eudaimonia que manifesta a virtude ética – utilizados na ação. (MÜLLER, 2011, p. 4) Aristóteles chega a mencionar a existência de bens que seriam necessários ao exercício de dadas virtudes. Entretanto, como mostra A. W. Müller (p.4), tal afirmação não é suficiente para explicar a existência de uma conexão teleológica entre a produção e a eupraxia, motivo pelo qual o intérprete rejeita a ideia de que a vida virtuosa possa requerer instrumento práticos e, portanto, atribuir à produção e seus produtos um fim prático geral. Seria inviável, inclusive, distinguir entre produtos em serviço da ação em geral e produtos em serviço da ação virtuosa, pois nenhum produto pode ser um instrumento para o agir virtuoso sem que possa também, em tese, ser utilizado de forma eticamente neutra, o que pode ser traduzido também como eticamente ambivalente. Müller diz, portanto, que as organa praktika são coisas definidas por um propósito prático, mas sem um propósito ético definido previamente à ação. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 17 ÍNDICE A. W. Müller (2011, p. 14-7) vê em Aristóteles uma tendência a amalgamar duas noções de práxis, as quais podem ser identificadas tendo como referência a distinção entre conduta e ação, entendida como uma aplicação da distinção entre praxis teleía (energeia) e praxis ateles (kinesis), encontrada na Metafísica. A primeira noção de praxis seria caracterizada por uma teleologia não-intencional e imanente, ou seja, pela busca de um telos que não pode ser definido como a práxis em si mesma, mas sim como uma qualificação da práxis, a qual assumiria certa forma ou estrutura. Tal noção de práxis seria completamente definida por sua teleologia. A palavra praxis não classificaria as ações, mas sim as submeteria a um padrão ético particular de avaliação articulado com a eupraxia (o telos da praxis), permitindo a qualificação das condutas como justas/injustas, boas/ruins, etc. O uso do termo praxis estaria atrelado a um dever de conformação da conduta às virtudes, sem que o telos da praxis precise estar intentado, ser o propósito de alguém. Por outro lado, a teleologia intencional tem seu melhor equivalente na noção de ato. Tal ideia de praxis também pode ser submetida ao padrão ético de avaliação. O que há de peculiar, entretanto, é que a noção intencional consiste no modo de concretizar a ação não-intencional. Ora, a estrutura teleológica da ação distingue tal concepção de praxis em relação à anterior, porque o telos que define as ações é o tipo de resultado a que levarão, de modo que a intenção de praticar a ação necessariamente implicará a intenção de alcançar o resultado. As acões concretas dependem, para a sua qualificação teleológica, da intenção do agente. O seu telos é distinto da ação em si mesma, no que percebemos uma distinção quanto à praxis em sentido nãointencional. Müller (2011, p. 18) considera que quando você está agindo bem você também já agiu bem, não havendo diferença entre o momento de continuidade e o momento de completude do ato. Mais ainda: o autor entende que não importa se a praxis é orientada por si própria ou pelo alcance de uma boa praxis, pois a teleologia da praxis não é neutra quanto ao valor da conduta que se performatiza. Ora, a ação ruim é possível, mas a disposição natural de um animal para agir não está separada de uma tendência natural para agir bem. Em outros termos, o telos característico da Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 18 ÍNDICE praxis humana (a conduta) é alcançado completamente não em qualquer tipo de praxis, mas na “praxis qualificada”, ou seja, na eupraxia. Existe, portanto, uma assimetria entre o bom e o ruim no reino da conduta, visto que uma ação que não é boa é “completa” em sentido metafísico, visto não deixar de ser um comportamento, mas não é completa em sentido avaliativo; tal praxis seria energeia, oposta à kinesis. Esse raciocínio fica mais claro ao pensarmos na aplicação de um padrão de “teleologia qualificadora” às ações descritas por um verbo que significam uma energeia (praxis teleía) cujo telos só se completa (em sentido avaliativo, e não puramente metafísico) quando a ação está de acordo com um padrão englobado pelo próprio significado verbal. Os dois exemplos mencionados por Müller são “tentar ver” e “julgar”. Quem tenta ver, necessariamente tenta ver bem, assim como quem julga objetiva julgar corretamente. O direcionamento à eupraxia já está contido nas próprias atividades, não sendo a elas conferidos por uma intenção correspondente, cuja existência é, aí, irrelevante. Müller encontra fundamento para tal interpretação em “Ética a Nicômaco” (1979), e conclui que a satisfação do télos da ação consiste em agir bem. A completude, em sentido avaliativo, do agir é mais do que apenas a constatação de que o início da ação já a faz completa, mas é menos do que dizer que o sujeito frui o agir quando está agindo bem. Müller ressalta que o trecho de “Ética a nicômaco” que lhe serve de inspiração para a descoberta da “teleologia qualificadora” em Aristóteles não deve ser lido com a ênfase na orientação ao prazer, mas sim no “modo como a disposição do sujeito completa a ação”. Esta disposição que permite à praxis ser completa em sentido avaliativo é a combinação entre sabedoria e virtude ética, elementos que definem o padrão de julgamento da bondade da ação. Müller não diz que Arisóteteles, em Ética a Nicômaco, usa duas noções de praxis, mas sim que ele utiliza a palavra de uma forma a misturar duas noções distintas. Ora, quando o filósofo usa a palavra como ação ou ato, e não propriamente como conduta, ele ainda está deixando implícita a ideia de uma teleologia prática (ética). A ação seria, portanto, uma produção vista como a satisfação ou não do telos estabelecido pelo padrão da eupraxia. Entretanto, não Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 19 ÍNDICE podemos ser simplistas e dizer que a praxis como ação é igual à poiesis. A noção liberal de produção de Aristóteles não é liberal o suficiente para ser aplicável a todos os casos de “ação incompleta” (em oposição à energeia/práxis teleía). Müller afirma que a praxis não apenas não pode ser evitada, mas também não há, por seu próprio modo de ser, como deixar de ser orientada pela eupraxia, independentemente de qualquer escolha por parte do sujeito. Outro trecho utilizado como fundamento por Müller é o referente à coragem, em que o filósofo estagirita diz que “em todo caso, o fim de uma atividade é aquele que está de acordo com a correspondente disposição”, entendida aí, segundo o intérprete, “correspondente disposição” como sinônimo de virtude. Ademais, o próprio trecho-chave eleito por Müller, presente em “Ética a Nicômaco” (VI 2, 1139b) também expressa a relação entre o agir e o bem-agir. Nesse ponto, visualizamos a ideia de complementaridade entre déon e télos, o que pode ser relacionado à comparação realizada por Müller entre os pensamentos aristótelico e kantiano. Senão, vejamos. A. W. Müller (2011, p. 22-3) entende que a identificação de duas noções de praxis em Aristóteles permite um diálogo com Kant no que se refere à questão ética. Sem a realização da distinção introduzida por Müller, a eupraxia poderia ser entendida como um propósito geral que deve ser intencionado, o que lhe mantém um tanto próximo a Kant, para quem a moralidade depende do respeito pela lei moral com um motivo próprio. Entretanto, a distinção de Müller, de certa forma, aumentaria a distância entre Kant e Aristóteles ao considerarmos que a bondade de caráter não depende de o agente estar motivado por um telos compartilhado por todos os tipos de boa conduta, visto que os padrões motivacionais do bem-fazer seriam variados. A única unidade que deveria ser propriamente buscada diria respeito a um padrão de bondade da vida humana, consubstanciada na unidade das virtudes, de modo que os vários padrões suportem e delimitem uns aos outros. Por outro lado, percebemos que, enquanto a leitura não-revisional de Aristóteles implica a atribuição à razão prática da tarefa de descobrir os meios de caminhos de implementar propósitos, a interpretação revisional de Müller permite o entendimento de que o bem agir é uma questão de fazer ou não as coisas por elas Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 20 ÍNDICE serem propriamente devidas, e não pela busca de algo a ser alcançado, o que evoca a ideia kantiana de que a ação pode encontrar substrato que não seja um objeto de desejo e que não deve ser um telos se a ação tiver valor moral. Cortina, por sua vez, vê na razão prática kantiana um momento teleológico-deontológico semelhante ao do intelecto prático aristótelico, visto que os imperativos categóricos têm o fim englobado pela própria ação ordenada, enquanto os imperativos hipotéticos submeteriam o preceito a um fim diferente da ação. O imperativo categórico entrelaça o preceito e a vontade de todo ser racional, o que exige a ampliação da concepção dessa vontade como universalmente legisladora, autotélica, um fim em si mesma. Em Kant, há uma convicção de que a razão nos foi dada para produzir uma vontade boa, motivo pelo qual um ser que é um fim em si, absolutamente valioso, tem dignidade e, dotado de capacidade autolegisladora, não deve se submeter a leis alheias. Estabelece-se uma ponte entre uma ética procedimentalista e o sentimento, o que exige o cultivo de uma atitude correspondente ao princípio de moralidade, representável pela forma da universalidade; pelo reconhecimento do fim em si mesmo; e pela concordância das máximas em um reino dos fins. Naquilo que se refere à proximidade com o sentimento moral, existe entre eles uma gradação: a representação que um homem tem a respeito de si mesmo, ou como fim em si, ou como membro de uma comunidade de seres que são fim em si, está mais próxima do sentimento que a representação da lei em sua universalidade. Talvez seja essa a razão pela qual os termos-ponte entre o princípio e a atitude, os termos “valor absoluto” e “dignidade”, introduzemse mediante o reconhecimento do fim em si e do reinos dos fins. (CORTINA, 2010, p.231) É próprio da estrutura da ação racional tender a um fim, sem o qual não se poderia falar de sentido subjetivo da ação. Porém, no caso da razão prática, a ação por ela regulada não pode ser considerada um meio a serviço de um fim situado fora dela. Ao contrário, a ação inclui o télos em si mesma, e é esse momento incluso na própria ação que faz dela um tipo de ação maximamente valiosa e realizável por si mesma. Não se chega a uma ética de bens, mas sim a uma ética de valores, Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 21 ÍNDICE atitudes e virtudes (CORTINA, 2010, p. 222-4). “O télos, para aqueles que desejem se comportar racionalmente, leva ao déon. O momento é deontológico por ser teleológico. […]. Não têm por que ser opções disjuntivas, já que a percepção de um procedimento como valioso gera um éthos correspondente”. (CORTINA, 2010, p. 224) Já em uma aproximação às éticas procedimentais, devemos levar em conta que estas podem fazer afirmações de valor, as quais possibilitam aos indivíduos e aos grupos se interessarem por esses elementos valiosos. Nesse particular, a ética dialógica habermasiana, caracterizada pela entrada do princípio dialógico no lugar do princípio moral, também é constituída por um momento deôntico-teleológico, o qual não se encontra mais na consciência, mas sim na linguagem, entendida esta como estrutura do ato de fala. Se o bem moral em Habermas (1987) é a capacidade de preservar a competência interativa em situações de conflito, a bondade moral, agora entendida como uma atitude de disponibilidade para a solução dialogada de conflitos, pode, assim como em Kant, ser predicada da vontade. Boa vontade e formação discursiva da vontade estão em uma relação estreita. Esta aproximação entre a ontologia aristotélica, com destaque para o conceito de práxis teleía, e a filosofia da linguagem emergente no século XX precisa ser mais bem verificada em tópico próprio. 2 O rhetor é gnóstico: praxis, linguagem e fala em Aristóteles e Wittgenstein II Karl Palonen (2003), embora afirme desconhecer debates específicos a respeito da relação entre a retórica antiga ou moderna e a obra de Wittgenstein, nota que Perelman, seus alunos e alguns retóricos americanos das ciências humanas – como exemplo, poderíamos mencionar Stephen Toulmin (1958) – recorrem a Wittgenstein em diversos momentos de suas construções filosóficas, mormente mediante a adoção da idéia de jogo de linguagem. Poderíamos, pois, vislumbrar uma relação entre a retórica aristotélica, inspiração do pensamento perelmaniano, e a filosofia da linguagem ordinária do segundo Wittgenstein? Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 22 ÍNDICE Uma interação desse tipo pode ser encontrada no artigo “The Rhetor and the Knower: Wittgenstein and Achilles", cujo autor responde pelo pseudônimo de Kvond (2010). O filósofo parte da premissa de que a rejeição, pelo segundo Wittgenstein, da epistemologia verificacionista, com o reconhecimento do discurso como um ato, reunifica os reinos do conhecimento e da persuasão, separados pela filosofia grega. Os gregos entendiam, segundo Cícero, que havia, de um lado, o emitente do discurso (rhetor do mythos), metonimizado na língua, e, de outro, o praticante de atos racionais (praktēr de ergon), consubstanciado na imagem do cérebro. Cícero, ao denunciar a divisão, acusa-a de atrofiar as dimensões pública e prática (pragmática) do conhecimento. Kvond estabelece uma analogia entre Wittgenstein e Aquiles, quem, na Ilíada de Homero, ainda criança, foi ensinado por Fênix, seu tutor, a fundir as habilidades da fala e do conhecimento, resultando em sua grande performance, ao mesmo tempo, como guerreiro e como político. Tratando Cambridge como a nova Tróia, Kvond afirma que Wittgenstein, mediante as noções de jogo de linguagem e modo de significar (uso da linguagem), transmuda o discurso em ato (praktēr do mythos); o uso da linguagem é rhetor de ergon. Assim, usar a linguagem é um modo de fazer; saber como usar as palavras e como seguir as regras é aptidão de conhecimento, mediante a produção do significado (significado como prática). Segundo a definição aristotélica de retórica (1998), esta é a capacidade, entendida como poder, de cada sujeito compreender-se como persuasivo (ethos) perante outrem (pathos) por meio do logos; consiste em uma dupla interpretação imersa no poder de convencer os outros na esfera social. O exercício dessa arte possui como elemento intrínseco a habilidade de discernimento como um poder que proporciona, mediante a identificação e eleição de topoi, premissas de entimemas, com o fulcro de criar uma adesão no auditório resultante em consenso com o orador, ou, na linguagem wittgensteiniana, uma união entre seus jogos de linguagem. Correspondem, pois, os topoi na argumentação aristotélica às regras do jogo de linguagem wittgensteiniano; com o segundo Wittgenstein, a retórica, ou seja, o efetivo uso das palavras, torna-se o horizonte do conhecimento e coloca todo Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 23 ÍNDICE significado no horizonte do poder por meio de um processo lingüísticocomunicativo. A retórica trata do poder da linguagem, do uso da palavra e do discurso pela racionalidade humana. (KVOND, 2010) A essa concepção, seria possível objetar que Palonen vislumbra em Investigações Filosóficas um tom similar às críticas que os sofistas faziam sobre as filosofias de Platão e Aristóteles. Wittgenstein II rejeita a ideia realista de que as coisas e os fenômenos são, de alguma forma, independentes da linguagem mediante a qual são faladas. Essa idéia atribui, no entanto, a Aristóteles, apenas a noção de linguagem como elemento secundário, designativo das coisas. Mas não percebe a dupla mão do pensamento aristotélico: se a linguagem pressupõe uma ontologia, a significação dessa ontologia também pressupõe a linguagem. Um dos motes da filosofia aristotélica é a apresentação de um discurso racional fundamentado como uma resposta aos sofistas, perigosos para o pensamento por força de sua indiferença em relação à verdade e pela sua ênfase na eficácia persuasiva do discurso, arma capaz de fazer o falso parecer verdadeiro ou verossímil2. A concepção lingüística dos sofistas é retratada por Platão em “Crátilo” (1980), obra na qual Hermógenes representa o convencionalismo e seu fechamento da linguagem em si, deixando o espaço outrora respectivo à intencionalidade essencial que apontava para as coisas e substituindo essas próprias coisas (OLIVEIRA, 2001, p.27). A tal respeito, explica Streck (2004, p.115) Crátilo é um tratado acerca da linguagem e, fundamentalmente, uma discussão crítica sobre a linguagem. São contrapostas duas teses/posições sobre a semântica: o naturalismo, pela qual cada coisa tem nome por natureza (o logos está na physis), tese defendida no diálogo por Crátilo; e o convencionalismo, posição sofística defendida por Hermógenes, pela qual a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional. Platão, em seu embate contra os sofistas, atribui a Sócrates uma posição intermediária no conflito entre Hermógenes e Crátilo, a qual consiste no 2 “A palavra, para os sofistas, era pura convenção e não obedecia nem à lei da natureza e tampouco às leis divinas (sobrenatural). Como era uma invenção humana, podia ser reinventada e, conseqüentemente, as verdades estabelecidas podiam ser questionadas.” (STRECK, 2004, p.117) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 24 ÍNDICE entendimento de que os nomes são convencionais, mas a sua escolha não é completamente arbitrária, e sim orientada por um modelo ideal (inato) que funciona como referencial comum entre nome e coisa e coloca-os em uma relação de adequação natural. Essa concepção acarreta a atribuição de um papel instrumental, secundário, à linguagem: a palavra é tomada como mera representação, desprovida de caráter constitutivo, da coisa, cuja realidade (mundo das idéias) só é verdadeiramente conhecida sem o uso da linguagem. (STRECK, 2004, pp. 118-9) Aristóteles não aceitava que a linguagem pudesse ter uma autonomia em relação às coisas, mas tampouco aceitava que esta fazia parte da physis pré-socrática (STRECK, 2004, p. 120). Aristóteles busca elaborar uma teoria da significação que, simultaneamente, afirme a distância entre linguagem e ser e tematize a relação entre ambos. Aprimora, assim, a crítica contra os sofistas, contrapondo-se a sua visão da linguagem como simples ente entre os outros, instrumento dos relacionamentos intersubjetivos (OLIVEIRA, 2001, p.27). O filósofo preocupa-se com a relação da linguagem com o ser na base da significação, o que pressupõe a negação da linguagem como coisa entre as coisas. Afasta, assim, a aderência entre palavra e ser e aponta o caráter significativo, e não meramente manifestativo, da linguagem. Oliveira (2001, pp. 29 e ss.) aponta duas dimensões da linguagem em Aristóteles. A primeira delas diz respeito à acentuação da distância entre linguagem e ser e ao aprofundamento, por meio de sua teoria do juízo, da concepção designativa da linguagem elaborada por Platão, que termina concebendo a linguagem como algo secundário em relação ao conhecimento do real. Não há relação imediata entre palavra e ser, pois há a mediação necessária dos estados psíquicos; a palavra não tem significação em si mesma. Em verdade, a linguagem é símbolo do real, instrumento convencional, e não natural, da designação; aproximase das coisas apenas caso seja verdadeira, assemelhada ao real. O símbolo (linguagem) não toma o lugar da coisa, mas sim exprime, simultaneamente, ligação e distância. Essa concepção permite a Oliveira afirmar que, como em Aristóteles, a essência das proposições lingüísticas não está em seus termos, mas no ato compositivo do estado de alma, a função judicativa não é função da linguagem, mas Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 25 ÍNDICE sim da alma, cabendo ao discurso apenas significar o ato judicante, não substituindo a verdade do julgamento, mas sendo seu substituto necessário e imperfeito, já que as coisas são singulares e o homem fala sempre no universal. A outra dimensão da linguagem em Aristóteles preleciona, a despeito da distância entre linguagem e ser, a inacessibilidade imediata ao ser pelo homem sem a mediação lingüística, posicionamento que remonta aos filósofos gregos e sua noção de unidade entre logos e ón e antecipou a principal tese da filosofia contemporânea da linguagem: toda reflexão é sempre reflexão mediada lingüisticamente. Essa linguagem pressupõe uma ontologia como condição de possibilidade da comunicação humana; embora seu discurso não seja imediato sobre o ser, a linguagem só é compreensível a partir de seu fundamento, o ser, e vice-versa. Uma pré-compreensão das coisas já se mostra na maneira como falamos das coisas, e a tarefa da filosofia consiste exatamente na explicitação, mediada lingüisticamente, dessa pré-compreensão do real. Por isso, a mais adequada leitura de Aristóteles não é no sentido de um estudo sobre uma linguagem que aponta para uma coisa externa a ela, mas sim para o modo complexo de como falamos das coisas, ponto em que convergem a retórica aristotélica e os modos de significar da dimensão pragmática wittgensteiniana. Michel Meyer (1993, apud Palonen, 2003, p.135) estabelece uma relação entre Austin, autor que desenvolve a filosofia da linguagem ordinária de Wittgenstein, e Aristóteles. Em termos retóricos, os atos de fala referem-se a diferentes dimensões da retórica: se os topoi funcionam como as regras do jogo de linguagem, a dimensão ilocucionária da linguagem corresponde ao ethos, a locucionária, ao logos e a perlocucionária, ao pathos. Para Wittgenstein, como não há regras estritas para o uso apropriado da linguagem, nós temos um leque de escolhas por vários modos de usar a linguagem (na terminologia de Austin, podemos falar em usos performativos e constatativos da linguagem). Essa contingência da linguagem pode ser detectada na metáfora dos jogos de linguagem; a diferenciação entre os jogos, sua maleabilidade e a interpretabilidade nos casos concretos expressam essa contingência. Kvond (2010) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 26 ÍNDICE vai explicar que esse leque de escolhas está dado comunicativamente assim como os topoi aristotélicos, lugares-comuns passíveis de figurar como premissas (regras) escolhidas pelo utente da linguagem, de forma a buscar uma convergência entre o jogo de linguagem em que se sente inserido e aquele do receptor da mensagem, permitindo a união de ethos e pathos no logos. Nesse contexto, é pertinente a remissão à noção de conceito wittgensteiniana, cuja condição de compreensão é a multidimensionalidade do significado, o qual pode ser modificado dependendo do contexto dos jogos de linguagem em que eles são usados, assim como os conceitos aristotélicos são as diferentes funções da linguagem enquanto presentificação dos diferentes aspectos do real. No bojo do discurso em um dado jogo de linguagem, essa multidimensionalidade semântico-funcional pode ser manejada pelo utente a fim de alcançar a adesão do auditório, ponto em que voltamos à remissão dos perelmanianos à obra wittgensteiniana, podendo, ainda, incluirmos aqui o pensamento de Stephen Toulmin (1958), cuja teoria da argumentação busca uma concepção retórica a partir da filosofia de Wittgenstein II. Wittgenstein e Austin introduziram uma perspectiva de ação à linguagem que criticava a concepção contemplativa da filosofia, assim como faziam os sofistas e a crítica retórica antigas. Segundo Palonen (2003, pp. 136-7), embora Wittgenstein não demonstre muito interesse nas dimensões histórica e política do uso dos conceitos e do jogar os jogos de linguagem (sofistas), a perspectiva da filosofia da linguagem ordinária proporciona uma inteligibilidade da contigência política sem redundar em abordagens reducionistas como as sociológicas e colocando a retórica como conhecimento prático de atos de poder significativos. Como diria Kvond (2010), o rhetor é gnóstico. Conclusão Retornemos para os influxos da práxis teleía nas éticas deontológicas, de modo a estabelecer a ponte entre estas e a filosofia da linguagem de Wittgenstein no contexto da suposta tensão entre telos e déon. A reconstrução de uma ética procedimental a partir de uma teoria substancial da vida boa não é admissível Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 27 ÍNDICE justamente porque as éticas procedimentais estão ocupadas com o universalizável no fenômeno moral, e não com os bens relativos a determinados indivíduos, grupos ou sociedades. Mas a assunção de um elemento valioso pelas éticas deontológicas é necessária para fins de entrelaçamento entre princípios e atitudes, justamente porque o interesse por um valor motiva determinadas atitudes, as quais são idôneas a estimular o hábito e a virtude. Isso significa que a ética procedimental pode contar com um ethos universalizável. A identificação de uma origem para este valor exige a reconstrução do que se entende por razão prática. A ética kantiana, como uma ética de princípios (enunciados prescritivos universalizados), costuma ser considerada por alguns como oposta a uma ética de atitudes (virtudes). Este último tipo de ética é aquele que pode dar lugar ao hábito, ao caráter, ao ethos. Cortina (2010, p. 222-4) não chega a admitir a reconstrução das éticas procedimentais a partir de uma teoria substancial da vida boa, como quer Taylor. Entretanto, dá razão a este em outro ponto: as éticas procedimentais são baseadas em uma valoração forte. Só se pode responder à pergunta “por que tenho de seguir determinado procedimento” com valorações fortes como “dignidade do homem” (Kant), “acordo racional” (Habermas) ou “conceito kantiano de pessoa” (Rawls). Ora, o princípio da ética discursiva pode ser rechaçado, ainda que tendo em vista as dimensões pragmáticas dos atos de fala, em favor de uma alternativa solipsista. O próprio Habermas (1987) admite que são tidos como “moralmente bons” aqueles que, em situações de conflito, mantém a competência interativa, em vez de rejeitar inconscientemente o conflito. Trata-se, como diz Apel, de um compromisso com a razão impossível de ser demonstrado, cujo sentido, na visão de Cortina, pressupõe a percepção de um valor. A necessidade de assunção de um elemento virtuoso, teleológico, pela filosofia da linguagem do século XX parece ter sido corretamente compreendida por Aulis Aarnio, autor que, em sua obra Lo racional como razonable (1991), busca uma combinação entre a Nova Retórica de Perelman, a Filosofia da linguagem ordinária wittgensteiniana e, como novo aporte na equação, o racionalismo discursivo habermasiano, resultando numa concepção de interpretação como soma dos jogos Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 28 ÍNDICE de linguagem. Como explica Écio Oto Ramos Duarte (2003, pp. 90-104), Aarnio, após colher de Wittgenstein a possibilidade de interpretar o conceito de auditório com a ajuda do conceito de forma de vida e assumir que expressões só têm sentido no contexto de um jogo de linguagem, busca as teorias da coerência e do consenso como critérios interpretativos. Assumindo o ergon como praxis comunicativa, considera que seus jogos possibilitam o processo de comunicação, entendido este como o processo em que as pessoas alcançam o conteúdo mediante uma racionalidade comunicativa, no sentido habermasiano; a linguagem é concebida como o resultado dessa ação comunicativa. A necessidade desse processo fica muito clara ante a ambigüidade e vagueza da língua. O resultado da interpretação não seria a “verdade” como correspondência com o real, mas uma verdade intersubjetiva criada por meio do debate no processo argumentativo, neutralizando eventual arbitrariedade da inventio e floreios manipuladores da elocutio, ou, em outros termos, respeitando o telos da linguagem por meio da obediência aos pressupostos deontológicos da razão comunicativa. Conclui-se que o elemento deontológico-teleológico presente na filosofia do ser aristotélica influenciou os paradigmas ontológicos posteriores e proporciona a superação da oposição entre deontologismo e teleologismo com base no conceito (injustamente esquecido) de praxis teleía. Referências AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable - un tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. ARISTÓTELES. Arte Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda (Incm), 1998. ____________. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1979. ____________. Metafísica. 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Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 30 ÍNDICE O pioneirismo aristotélico acerca do risível Éverton de Jesus Santos∗ Introdução Apesar de os pré-socráticos e de Platão também terem produzido estudos relacionados ao risível, tomamos como suporte a declaração de Oliva Neto (2003) no tocante ao pioneirismo de Aristóteles, que “quanto aos gêneros risíveis de poesia e ao próprio riso não só apresenta em âmbito grego a mais antiga abordagem teórica, como faz da oposição “sério”/”baixo” o critério mais antigo segundo o qual se separam os gêneros da poesia” (p. 78). É, pois, acerca desse vanguardismo aristotélico - tomado aqui não como o primeiro filósofo a falar sobre o cômico, mas como o mais antigo estudioso grego a discutir a existência dos gêneros derrisórios e do riso - que trataremos no nosso estudo. No âmbito da arte poética (literária), Aristóteles nos legou um texto que seria, como observa Costa, o “fundador da teoria da literatura do Ocidente”. (1992, p. 6) Ainda segundo a mesma autora, a obra aristotélica denominada de Poética trata principalmente da tragédia e da epopeia, “oferecendo apenas como promessa o estudo posterior de outras espécies de ‘poesia’, como é o caso da comédia.” (1992, p. 7) Contudo, ainda não há consenso sobre se houve ou não um segundo tomo da Poética que tratava do risível e não é nosso objetivo aqui fomentar essa discussão. Porém, o inglês Richard Janko tentou reconstruir essa suposta segunda parte da Poética, tomando como base o Tractatus Coislinianus, a Retórica, a Ética a Nicômaco e os Prolegômenos de Aristófanes, e construiu a obra Aristotle on comedy: Towards a reconstruction of Poetics II (1984). Trata-se de uma audaciosa pesquisa que supõe conter as possíveis conjecturas de Aristóteles no que concerne à comédia e que ∗ Graduando do curso de Letras Português Licenciatura da Universidade Federal de Sergipe, campus Prof. Alberto Carvalho, em Itabaiana-SE, e bolsista PIBIC/FAPITEC, vinculado ao projeto “O Cômico na Literatura Brasileira”, orientado pela Profa. Dra. Jacqueline Ramos. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 31 ÍNDICE permite observar tópicos sobre os quais outros teóricos parecem ter embasado seus estudos. Na Poética, observa-se que, para o filósofo grego, “aprender é sumamente agradável não só aos filósofos, mas igualmente a todos os homens” (ARISTÓTELES, 2005, p. 22) e que a mímese proporciona o conhecimento. Assim, através da mímese (tomada como imitação ou representação), o homem obtém prazer tanto ao produzir as representações como ao recebê-las, pois por meio da imitação ocorre também a aprendizagem e esta é uma tendência natural ao homem e lhe é satisfatória. Portanto, ao classificar a comédia e a tragédia como artes miméticas, Aristóteles demonstrava as funções desses gêneros: a catarse e o conhecimento, visto que a partir da purgação da dor e da piedade - na tragédia -, o que perpassa o conceito aristotélico de catarse, e da sensação de prazer proporcionada pelo riso - no caso da comédia-, seria possível que o espectador chegasse à depuração das emoções que o arrebatem. Afinal, a representação das ações baseava-se na verossimilhança e, como tal, pretendia mostrar aquilo que estava no âmbito do possível e do necessário no seio da sociedade. (COSTA, 1992) Assim, como ensina Alberti (1999), a partir da perspectiva platônica assistese à condenação ética e filosófica da comédia: Platão vê o riso como digno de rebaixamento por tomá-lo como uma mistura de dor e prazer, por ser também o risível um vício que deveria ser evitado por quem quisesse ser respeitado, por apresentar uma espécie de fraqueza da alma e o desconhecimento de si mesmo, além de mostrar o riso como um falso prazer e de distanciá-lo do belo. Em contrapartida, Aristóteles salienta que a comédia e o riso estavam ligados ao prazer, à catarse das emoções, além de que, para esse filósofo, proporcionava conhecimento ao homem (valorização do riso/risível). Então, a partir do que se encontra na Poética e do que estaria supostamente na Poética II, tentaremos focalizar a descrição que Aristóteles faz dos principais aspectos da comédia, mormente sua natureza e os procedimentos textuais pelos quais se provoca o riso nos espectadores. Objetivamos também demonstrar como alguns teóricos como Bergson, Freud, Propp, dentre outros, desenvolveram noções Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 32 ÍNDICE já presentificadas no possível tratado aristotélico sobre o cômico. Percebemos, assim, que a perpetuação do ideário do filósofo grego, o seu pioneirismo e a recorrência de temas e de mecanismos da comicidade em obras de arte como a literatura ratifica a atualidade da teoria clássica do riso. Portanto, neste trabalho, tentaremos vislumbrar ao menos panoramicamente algumas questões que tratam da comicidade a partir da possível contribuição aristotélica. Através de estudos como o de Janko (1984), o de Costa (1992), o de Duarte (2003), os de Santoro (2003; 2006) e o de Possebon (2006), buscaremos observar o pioneirismo do estagirita que após séculos ainda se encontra no centro de polêmicas e de estudos. 1 Uma abordagem historiográfica Segundo Alberti (1999), no Filebo de Platão está a mais antiga formulação teórica acerca do risível, porém o assunto não é o riso nem o ridículo e, sim, o que esse filósofo chama de “afecções mistas puramente espirituais” (p. 41), ou seja, as misturas de dor e prazer exclusivas da alma como a cólera, o amor, o ciúme, o luto, a inveja. Já no tocante a Aristóteles, percebe-se o que seria uma teoria sistemática e descritiva acerca da comédia como gênero dramático, daí considerarmos a noção de vanguardismo relacionada ao filósofo. Minois (2003), em sua historiografia do riso e do escárnio, revisita a fórmula aristotélica “o homem é o único animal que ri” ou, em certo sentido, “nenhum animal ri, exceto o homem”. Na primeira, o riso é tomado como pertencente à essência humana; na segunda, o riso é exclusivamente humano, mas se pode ser homem sem nunca rir. O filósofo, portanto, não teria utilizado a fórmula “o riso é próprio do homem” como nega Minois, mas essa expressão ainda é destacada por Alberti como tendo sido enunciada por Aristóteles. Porém, tanto Minois quanto Alberti ressaltam a negatividade da teoria aristotélica. Para os autores, esse filósofo coloca a comédia em escala inferior à tragédia e diz que aquela representa homens não nobres, inferiores moralmente, enquanto esta trata de homens superiores e engrandecidos. Minois ainda diz que Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 33 ÍNDICE relacionar o risível como um “defeito e uma feiúra sem dor nem dano” é uma declaração igualmente negativa”. (2003, p. 73) Então, enquanto a partir do trágico tratava- se das virtudes dos nobres, a partir do cômico os defeitos causariam o riso e não teriam grandes consequências. Esses preceitos já estão esboçados na Poética, texto que focaliza especialmente a tragédia e a arte mimética e que também traz referências sobre o risível. Mas, apesar dessa visão negativa dos dois teóricos, destacamos o acesso ao conhecimento através do cômico, além do prazer alcançado pela imitação. Aristóteles (2005, p. 21) diz que a comédia é uma arte imitativa cujos objetos são homens “inferiores [...] aos da atualidade”. Assim, percebe-se que os homens “se caracterizavam eticamente como bons ou maus, uma vez admitindo o princípio de que o vício e a virtude distinguem as pessoas em matéria de caráter”. (COSTA, 1992, p. 12) Nesse sentido, desde o início, o risível ocupou lugar menos prestigiado do que a tragédia e a epopeia - que representavam ações graves e homens superiores. Com origem nos cantos fálicos, a comédia atingiu, através de improvisações a princípio, sua natureza própria, visando sempre à verossimilhança, mas o cômico é situado pelo filósofo no estatuto do feio que não causa dor nem destruição, como é o caso da máscara cômica. Ademais, como a imitação é prazerosa ao homem, também é possível se obter aprendizagem através dessa imitação, o que configura uma função positiva da comicidade. Assim, na Poética aristotélica, somos levados a observar o esqueleto da tragédia, seus meios, seus objetos, seus aspectos estruturais mais relevantes, enquanto são esparsos e módicos os trechos relacionados à comédia. Como Janko e outros estudiosos perceberam, há referências do próprio Aristóteles acerca de um segundo livro que versava sobre a comédia, mas essa obra - denominada de Poética II - se realmente houve, não chegou até nós. Então, tomando como base a hipotética reconstrução de Janko, observaremos de modo panorâmico o que seria a teoria grega mais antiga sobre a comédia. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 34 ÍNDICE 2 As bases para uma reconstrução hipotética Resultado de intensa pesquisa, a reconstrução de Janko suscitou polêmicas também devido ao fato de ser não apenas um estudo sobre a Poética quiçá perdida de Aristóteles, mas também por apresentar acréscimos e intervenções que preenchem hipoteticamente as lacunas encontradas no Tractatus Coislinianus. Tratase, pois, de um importante material para os que adentram os estudos clássicos e que se remetem às antigas teorias literárias de Aristóteles. Janko (1984) ressalta o fato de haver estudiosos que negam a existência da Poética II por ser uma parte da produção aristotélica de que não se tem vestígios materiais. Além disso, enquanto uns concordam com a existência da análise do risível (baseados em referências de outras obras), outros defendem a mistura do pensamento aristotélico com outras fontes ou ainda uma compilação de variados materiais do filósofo grego e outros autores. Contudo, para Janko, a Poética II não é uma ilusão, mas um fato incontestável: “That a second book of the Poetics was not only planned by Aristotle, but also written, is clear beyond doubt.” [“Que um segundo livro da Poética não foi apenas planejado por Aristóteles, mas também escrito, está claro sem dúvida” (tradução nossa)]. (1984, p. 63) Janko diz que, na própria Poética, Aristóteles afirma que “he intends to give a fuller treatment of comedy later in the same work” [“ele pretende dar um tratamento mais completo da comédia mais tarde no mesmo trabalho” (tradução nossa)]. (1984, p. 63) Além disso, aponta Janko, “Aristotle twice states in the Rethoric that he has already discussed the types of the laughable in the Poetics” [“Aristóteles expõe duas vezes na Retórica que ele já discutiu os tipos de risível na Poética” (tradução nossa)]. (1984, p. 63) Essas são algumas das pistas arroladas por Janko para a sua tentativa de comprovação da existência da Poética II, bem como para defender a autoria aristotélica, visto que o autor inglês percebe que em mais de uma obra do filósofo grego é citado um tema a ser discutido posteriormente num outro trabalho que parece não ter chegado à posteridade. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 35 ÍNDICE Acerca da perda, Janko (1984) elenca e toma para si algumas possíveis justificativas também elencadas em outros autores: Bywater diz que a Poética II pode ter pertencido a um rolo de papiro separado; pode também ter sido considerada uma obra de menor valor entre a produção de Aristóteles, por isso ficou vulnerável à perda; já para Rostagni, na época em que Aristóteles supostamente escreveu essa obra, a tragédia estava em seu auge e a comédia ocupava lugar marginal. Só na Renascença Bizantina é que se aumenta o interesse pelas peças de Aristófanes e, consequentemente, pelo livro II da Poética. Para a reconstrução, a principal fonte de Janko é o Tractatus Coislinianus, espécie de resumo do que teriam sido as ideias de Aristóteles. Mas, já esse texto parece ser originado do tratado de Andronicus Rhodius, dos Prolegômenos de Aristófanes, do Anonymus Crameri e do Iambi on Comedy, de John Tzetzes. Todos esses documentos, por apresentarem fragmentos ou ecos de outras obras, fazem pensar na existência de um ancestral comum. E esse ancestral é o arquétipo que Janko persegue em sua reconstrução. 3 A Reconstrução e outros estudos Janko inicia sua reconstrução situando a comédia no âmbito da poesia dramática, que visa a imitar pessoas agindo e estas devem ser boas ou más. Aqui, percebe-se a conformidade com o que há na Poética em relação ao objeto da imitação (os homens) e ao modo (a imitação das ações), além da distinção entre bons e maus caracteres. Em seguida, é mostrada a definição de tragédia como sendo a representação de eventos dolorosos e amedrontadores com o intuito de causar a catarse das emoções de dor e piedade nos espectadores. Na definição de comédia, Janko assim restaura o que pode ter sido dito por Aristóteles: A comedy is a representation of an absurd, complete action, one that lacks magnitude, with embellished language, the several kinds of embellishment being found separately in the several parts of the play: directly represented by persons acting, and not by means of narration: through pleasure and laughter achieving the purgation of the like emotions. It has laughter […] for its mother. (JANKO, 1984, p. 93) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 36 ÍNDICE [A comédia é a representação de um absurdo, ação completa, a única que necessita de magnitude, com linguagem ornamentada, tendo os vários tipos de ornamentação sendo encontrados nas várias partes da peça: diretamente representada por pessoas agindo, e não por meio de narração: através do prazer e do riso obtém-se a purgação de iguais emoções. O riso é a sua mãe (tradução nossa)]. A partir daí, depreendemos o fato de o riso ocupar um papel central na definição, pois se observa que ele seria um dos meios pelos quais se chega à catarse na comédia, sendo considerado a mãe desta. Na sequência, o estudo parte para um esquema sintético acerca dos elementos qualitativos e quantitativos da comédia - a análise do humor -, o elemento iâmbico, discute-se sobre os caracteres cômicos, falase sucintamente sobre a catarse (que será estudada posteriormente) e sobre as fases históricas da comédia. Santoro (2003; 2006) e Possebon (2003) também fizeram traduções diretamente do grego do Tractatus Coislinianus, epítome que provavelmente possui a síntese do pensamento aristotélico acerca da comédia. Os esquemas dos dois estudiosos mantêm as lacunas que o resumo contém, enquanto Janko (1984) além de complementar as brechas com materiais de outras fontes como a Poética, a Retórica e os Prolegômenos de Aristófanes, também faz correções e adendos, buscando restaurar o que tenha sido a Poética II, objetivo esse que não é traçado pelos dois estudiosos brasileiros. Enquanto Santoro (2006) traz alguns exemplos de comicidade de ações e da fala (causas do riso), Possebon (2003) apenas elenca os procedimentos e as particularidades da comédia sem exemplificá-las nem comentá-las. Este autor também se preocupa em esquematizar desde a questão da arte mimética e da não mimética até as principais fases da comédia, o que também faz o inglês Richard Janko. Já Santoro (2006) inicia seu esquema a partir da definição de comédia e segue até as fases desta, talvez por ter publicado uma versão mais ampla da sua tradução em outro momento (2003). Entre os dois teóricos brasileiros há também questões de terminologia que os difere: enquanto Santoro (2003; 2006) fala em “purgação”, “bufão”, “mito Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 37 ÍNDICE cômico”, “iconoclastas”, “irônicos”, para os mesmos termos Possebon (2003) fala, respectivamente, em “catarse”, “zombeteiro”, “enredo cômico”, “vulgaridades”, “dissimulações”. Também em relação aos procedimentos cômicos há algumas diferenças nas duas traduções: Santoro não fala em paródia nem em metáfora, enquanto Possebon cita os dois mecanismos. Quando focalizamos a questão dos gêneros literários, em especial as diferenças de objeto, percebemos que Janko (1984), Santoro (2003; 2006) e Possebon (2003) elencam quatro tipos de literatura mimética: a comédia, a tragédia, a mímica e a sátira. Nesse sentido, depreende-se que Aristóteles considerava não apenas um tipo de cômico, mas dois, pois ele via a sátira como um gênero diferente da comédia. Enquanto esta visava à representação de ações de pessoas inferiores moralmente e tinha como objetivos a catarse e o conhecimento pela mímese, aquela se ligava à injúria, à zombaria, ao rebaixamento. Portanto, seria mais plausível a tradução de Possebon para o termo “joker”, já que esse autor a traduz como “zombeteiro” e não como “bufão” como o faz Santoro. O bufão estaria mais ligado à ideia de bobo da corte, que é aquele que ri de si e do rei, enquanto o zombeteiro é aquele que rebaixa, que escarnece das falhas alheias, e isso não caracterizaria a comédia, e sim a sátira. Em relação ao que Janko chama de análise do humor (que seria a parte relacionada ao estudo descritivo dos elementos da comédia), aparecem nos dois estudiosos brasileiros e em Janko procedimentos como a “homonímia”, a “sinonímia”, a “paronímia”, a “repetição”, a “forma de falar” (riso gerado pela fala); o “engano”, a “decepção”; a “assimilação” (comparar uma pessoa pior com uma melhor ou vice-versa), o “impossível”, a “quebra de expectativa”, a “caracterização chula das personagens”, a “dança vulgar” (no caso do riso provocado pelas ações). Aparecem ainda as partes da comédia, quais sejam, o “prólogo”, o “coro”, o “episódio” e o “êxodo”, há também a descrição dos caracteres cômicos, que são os “bufões”, os “irônicos” e os “presunçosos”, além de citarem os seguintes aspectos da comédia: “enredo”, “caráter” (das personagens), “pensamento”, “elocução”, “canto” e “espetáculo”. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 38 ÍNDICE No que concerne à catarse, termo que suscita polêmicas pela indefinição aristotélica acerca dele, Janko (1984) faz algumas considerações. Diz que “Aristotle promises to supply in the Politics a more detailed account of catharsis” [“Aristóteles promete fornecer na Política um estudo mais detalhado da catarse” (tradução nossa)]. (JANKO, 1984, p. 64) Para o estudioso inglês, “catarse” seria mais um termo médico (purgação) do que religioso (purificação), e a catarse não teria apenas efeitos físicos, mas também psicológicos sobre os espectadores, os quais são, preferencialmente, melancólicos e/ou neuróticos, isto é, pessoas com maior disponibilidade emocional. Além disso, é dito que, para Aristóteles, é importante que um homem sinta piedade e terror nas circunstâncias apropriadas, já que a restauração do balanço das emoções e dos sentimentos causa prazer. Portanto, nota-se que a catarse seria uma espécie de supressão da emoção demasiada (da piedade e do terror, no caso da tragédia), de forma que se restabeleça o equilíbrio normal nos espectadores. E, Duarte, em seu estudo sobre a catarse cômica, lança hipóteses que fundamentam a percepção de quais seriam as emoções envolvidas no processo catártico. Baseada num estudo de Golden e também na Retórica, Duarte sustenta a suposição de o oposto da piedade ser a indignação, pois “é natural pensar que essa indignação comunique-se de alguma forma à plateia tornando-se imprescindível para que haja aquela explosão de riso decorrente do castigo dos desonestos”. (2003, p. 18) Já no que se refere ao oposto do terror, Duarte situa a confiança em função do sentimento de superioridade: há uma pessoa que se considera superior e outra que ri, sendo que esta, pelo riso e pelo prazer, destitui aquela do seu poder e autoridade. (DUARTE, 2003) E a autora acrescenta: “Por fim, não posso deixar de notar a relação de reciprocidade que o par indignação e confiança mantém entre si, pois só se pode expressar livremente a indignação quando se está confiante de que se está a salvo da reação dos que são alvos dela”. (2003, p. 21) Assim, adentrando o pensamento aristotélico sobre um ponto que ele parece não ter desenvolvido - a catarse -, os estudiosos tentam reconstruir suas conjecturas. A partir do jogo de oposição (dor e piedade vs. indignação e confiança) e mantendo a coesão da teoria do filósofo, é Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 39 ÍNDICE possível depreender quais emoções seriam atingidas pelo riso durante o processo catártico. É uma análise que se faz imprescindível por demonstrar com clareza as afecções que podem ser purgadas/purificadas a partir do riso, mas que não são desenvolvidas no texto aristotélico sobre a arte mimética. Assim, a Poética II é identificada como uma parte importante do material que Aristóteles teria produzido no campo da estilística e uma significativa fonte para os estudiosos que se interessam pela comédia. Defender a existência desse estudo aristotélico parece ser o maior objetivo de Janko, que vê com tamanha certeza o pioneirismo desse filósofo no âmbito da comicidade. Afora isso, o estudioso inglês conclui a respeito do Tractatus Coislinianus que “Whether or not it represents Poetics II, the analysis is closer to Aristotle than anything else we have. It ought to occupy a prominent place in ancient literary criticism and the history of writing about comedy and humour” [“Se representa ou não a Poética II, a análise está mais próxima de Aristóteles do que qualquer coisa que nós temos. Deve ocupar um lugar proeminente na antiga crítica literária e na história dos escritos sobre a comédia e o humor” (tradução nossa)]. (JANKO, 1984, p. 104) Dessa forma, percebemos que Janko vê o Tractatus como um possível epítome do que deve ter sido o pensamento aristotélico acerca do risível. O inglês também argumenta sobre a importância que deve ser dada ao documento no âmbito dos estudos clássicos que lidam com as proposições do filósofo grego no que concerne à comédia, apesar de manter as dúvidas sobre a autoria do Tractatus: “[...] it remains to elucidate the details of the Treatise, and to see whether Aristotle was indeed its author, in fulfilment of his promises to discuss catharsis, comedy and humour in the Poetics” [“permanece para elucidar os detalhes do Tratado, e para ver se Aristóteles foi realmente seu autor, no cumprimento de suas promessas de discutir a catarse, a comédia e o humor na Poética” (tradução nossa)]. (JANKO, 1984, p. 104) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 40 ÍNDICE 4 Teorias da comicidade Apresentaremos, brevemente, algumas teorias que desenvolvem tópicos que, de alguma forma, retomam a teoria de Aristóteles acerca da comédia e da análise do humor (se também tomarmos o Tractatus como de autoria aristotélica). Sejam temas ou procedimentos, é possível perceber certa identificação entre postulados pós-aristotélicos que parecem ampliar preceitos enunciados pelo estagirita. Por exemplo, Schopenhauer fala sobre a teoria da incongruência, que seria, para Aristóteles, o possível e incoerente, que ocorre quando há contradição entre aquilo que pensamos e aquilo que se é na realidade. Já para Kant, o riso provém de uma quebra de expectativa e este também é um dos procedimentos elencados no Tractatus Coislinianus, que parece ser uma súmula do pensamento aristotélico. Dentre os postulados que analisaremos, iniciamos com os de Bergson (2007) para quem a comicidade está presente na vida humana e é inseparável dela. Esse estudioso trabalha a noção de rigidez mecânica e de falta de flexibilidade relacionada ao risível quando a sociedade espera a maleabilidade e a atenção dos indivíduos. Portanto, nessa teoria, o riso é dado como um castigo à distração para a vida a fim de que a repressão corrija os comportamentos desviantes e, ao mesmo tempo, promove a identificação do grupo que ri por oposição a quem é ridicularizado. Além disso, para Bergson, a comicidade existe senão no homem, o que lembra a ideia aristotélica de que o homem é o único animal que ri e que ele também sente prazer em imitar e conhecer. Há, ainda, na obra bergsoniana, a apresentação de procedimentos como a repetição (de palavras, de gestos, de movimentos), o absurdo e também, sobre os defeitos risíveis, a presença da vaidade. Esse defeito é tomado por Aristóteles como digno de reprovação e condenação apenas quando tiver caráter indolor e não destrutivo, caso este que a faria cair no trágico. (JANKO, 1984) Em relação ao cômico da dicção, por sua vez, alguns teóricos elencaram o chiste como uma forma de cômico relacionado à fala. Freud (1977) e Jolles (1976) penetraram nesse ambiente e desenvolveram aquilo que em Aristóteles está Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 41 ÍNDICE relacionado à zombaria na comédia: o wit (traduzido, dentre outras formas, como gracejo, piada, dito espirituoso) está ligado à censura indolor das faltas da mente e do corpo de suas vítimas, enquanto a zombaria teria um efeito destrutivo e embaraçoso para quem lhe fosse vítima. (JANKO, 1984) Nas teorias que se desenvolveram, o chiste serve para ridicularizar, para humilhar, para fazer rir, para desafogar uma tensão, mas serve, principalmente, para criar a sensação de alívio e diminuir as inibições sociais. Seja adoçado com o wit ou com a mordacidade da zombaria, ou através de trocadilho, de duplo sentido, da metáfora ou de outro procedimento cômico, os princípios do chiste já parecem ter sido representados pelo filósofo grego quando ele trata da questão dos caracteres cômicos, que são aqueles que servem para provocar o riso ou que servem como alvo deste. (JANKO, 1984, p. 97) Como últimos exemplos aqui citados de teorias que parecem ser respaldadas em Aristóteles, trazemos a de Propp (1992) e a de Hobbes. Para aquele, a comicidade está intrinsecamente ligada aos defeitos humanos, manifestos ou secretos e isso provocaria o riso. Ademais, o teórico diz que a exteriorização das falhas através da atuação e da vivência do homem obscurece, durante a curta duração do riso, os princípios positivos da nossa humanidade, visto que aquilo que é revelado repentinamente nos torna superiores ao objeto de derrisão. Acerca da teoria da superioridade, Skinner, ao tratar dos ensinamentos de Hobbes, consegue atar bem a questão dos defeitos risíveis que o filósofo grego já enunciara: A comédia trata do que é risível, e o risível é um aspecto do vergonhoso, do feio ou do baixo. Chegamos a rir de outras pessoas, porque elas exibem alguma falta ou marca constrangedora que, enquanto não dolorosa, as torna ridículas. Dessa forma, são essencialmente risíveis os inferiores em algum sentido, sobretudo os moralmente inferiores, embora não os completamente depravados. (SKINNER, 2002, p. 16-7) Percebe-se aqui que tanto Skinner - que trabalha a teoria hobbesiana quanto Propp desenvolvem o que diz Aristóteles sobre a comicidade, que seria, para este, “um defeito e uma feiúra sem dor nem destruição”. (ARISTÓTELES, 2005, p. 24) E esse aspecto do vergonhoso e do feio seria o que torna as pessoas ridículas, ou Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 42 ÍNDICE melhor, essa particularidade faz com que se possa explorar o viés do “baixo” com o intuito de fornecer material para a literatura cômica. Ademais, trata-se do objeto da comédia, que elabora sua trama a partir de caracteres inferiores moralmente, ou seja, homens menos engrandecidos e não nobres. Então, a partir da observação da análise do humor contida no Tractatus, é possível notar que os procedimentos, os objetos e certos temas esboçados em tal documento são desenvolvidos em outros estudos. Não se pode afirmar que os teóricos realmente buscaram em Aristóteles o ponto de apoio de suas teorias, mas se percebe certa identificação. Portanto, tentamos demonstrar questões relativas ao risível em alguns estudos e pretendemos perceber em que elas parecem ser seguidoras das ideias aristotélicas. Assim, a partir dessas constatações, corroboramos o vanguardismo desse filósofo grego que nos legou proposições imprescindíveis para a compreensão da comicidade. Considerações finais A partir da análise do risível em Aristóteles, somos impulsionados a pensar a influência desse filósofo no âmbito dos estudos de gênero. Não pretendemos aqui fazer um estudo de fontes e influências, mas não podemos deixar de perceber que variadas teorias desenvolveram tópicos e aspectos do cômico que já apareciam em obras como a Poética e a Retórica e, supostamente, na Poética II, obra esta que pudemos observar tanto através da reconstrução de Janko como da tradução de estudiosos como Santoro e Possebon. Além das inúmeras discussões que versam sobre a inferioridade da comédia em relação à tragédia, sobre a catarse, sobre a especificidade humana de poder rir, Aristóteles parece estar presente em diferentes teorias acerca da comicidade. O filósofo foi também um dos primeiros a valorizar a comédia enquanto gênero através do qual é possível se chegar ao conhecimento e à catarse das emoções. Então, além da quantidade de ensinamentos esboçados em suas obras, o pioneirismo aristotélico também se justifica pela aguçada capacidade de síntese e de agrupamento de informações que lhe é perceptível. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 43 ÍNDICE Assim, passamos em revista trabalhos polêmicos como o de Janko, que tenta reconstruir a parte provavelmente perdida da Poética, duas traduções do Tractatus Coislinianus - a de Santoro e a de Possebon -, a análise da catarse cômica, de Duarte, teorias do cômico como a de Freud, de Bergson, de Propp e de Skinner, e as historiografias de Minois e de Alberti. Tudo isso para mostrar quão essencial é a presença de Aristóteles no cenário da comicidade e como os estudos acerca do risível já ressoam desde o período clássico da história humana. Referências ALBERTI, Verena. 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Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 45 ÍNDICE Uma análise linguístico-literária de “A leoa e a raposa”, de Esopo Danniele Silva do Nascimento∗ Profª Drª Alcione Lucena de Albertim∗∗ Introdução A origem da fábula é desconhecida. Não se pode determinar em que época surgiu. Uma das hipóteses é que, assim como o mito, ela seja uma espécie de conto primitivo. O mito e a fábula são as primeiras formas literárias narrativas que se tem história. A fábula é uma breve narrativa alegórica, de caráter moralizante e didático. Nela, as personagens são, em sua grande maioria, animais. Elas se apresentam em situações cotidianas, transmitindo algum ensinamento útil através de alegorias, com o intuito de instruir. Ao final, elas trazem uma espécie de interpretação: a moral da fábula. Segundo a tradição, Esopo, o “pai da fábula”, teve primazia no gênero. O primeiro a usá-lo com sucesso para advertir e ensinar. 1 Tradução para a Língua Portuguesa Λέαινα καὶ ἈλώXηξ 1 Λέαινα, ὀνειδιζοµένη ὑyὸ ἀλώyεκος ἐyὶ τῶ διὰ yαντὸς ἕνα τίκτειν: “ἕνα, ἔφη, ἀλλὰ λέοντα.” ὅτι τὸ καλὸν οὐκ ἐν yλήθει δεῖ µετρεῖν, ἀλλὰ yρὸς ἀρετὴν ἀφορᾶν. A Leoa e a Raposa 2 A Leoa sendo censurada pela raposa sobre o parir sempre um: “Um só” dizia “mas leão”. Porque é preciso medir o belo não em quantidade, mas [é preciso] olhar para a virtude. ∗ ∗∗ 1 2 Graduanda em Letras Português pela Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Letras pela Universidade Federal da Paraíba e orientadora do trabalho. Texto retirado de ESOPO. As fábulas de Esopo. Texto bilíngue: grego-português/tradução direta do grego, prefácio, introdução e notas de Manuel Aveleza. 2ª ed, Rio de Janeiro: Thex Ed., 2002. Tradução operacional nossa. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 46 ÍNDICE 2 Análise linguístico-literária do texto grego A fábula A Leoa e a Raposa inicia-se com o período “Λέαινα, ὀνειδιζοµένη ὑyὸ ἀλώyεκος ἐyὶ τῶ διὰ yαντὸς ἕνα τίκτειν”, constituído pelo verbo ὀνειδίζω, cuja forma nominal de particípio presente - justamente por ser um nome concorda em gênero e caso com o substantivo a que se refere - caracteriza o sujeito Λέαινα, que sofre a ação, haja vista a voz passiva do verbo na referida oração, indicada pela desinência µένη, própria da voz passiva ou da voz média. Entretanto, a presença do agente da passiva denota a passividade do verbo. A leoa é quem recebe a censura da raposa. Trata-se de um sujeito paciente. Neste sentido, o agente da passiva, cuja estrutura em grego é formada pela preposição ὑyὸ + genitivo, é a raposa, ὑyὸ ἀλώyεκος. Ainda em relação ao verbo, por estar na forma de particípio presente, indica uma ação que está acontecendo e ainda não acabou. Por ser construído com o tema do infectum, indica simultaneidade em ralação ao verbo da oração principal (ἔφη), cujo sujeito agente, e não mais paciente, é também a leoa (Λέαινα). Este particípio recebe com complemento o sintagma nominal ἐyὶ τῶ τίκτειν, que tem função locativa, formado pela preposição ἐyὶ mais o substantivo verbal no infinitivo, τίκτειν. Percebe-se que o infinitivo está declinado no dativo graças ao artigo τῶ, visto que a declinação do infinitivo se dá declinando apenas o artigo e mantendo a forma nominal do verbo. O verbo, mesmo estando em uma forma nominal, necessita de um complemento. Este complemento é ἕνα, numeral acusativo masculino. O gênero masculino justifica-se pelo fato da raposa estar se referindo ao substantivo leão. A expressão διὰ yαντὸς, denota a ideia de constância, por isso, na tradução, optamos pelo advérbio sempre. O questionamento da raposa à leoa acerca da capacidade da felina de parir apenas um filhote é feito através e um discurso indireto. Já a resposta sagaz da leoa é colocada em discurso direto. Em “ἕνα, ἔφη, ἀλλὰ λέοντα.” “ἕνα” é objeto direto do infinitivo τίκτειν, cujo sujeito é a leoa, Λέαινα. O verbo ἔφη interrompe o discurso indireto para marcar a ação que está acontecendo. Esta forma verbal é a terceira pessoa do singular do verbo φηµί no imperfeito do indicativo, este tempo expressa uma ação que é passada em relação ao presente, mas que não estando acabada, é simultânea a um processo verbal. Na fábula, o ato de falar da leoa é simultâneo ao ato de censurar da raposa. A retomada do discurso direto é feita pela conjunção adversativa “ἀλλὰ”. O substantivo λέων, -oντος , no acusativo, concorda com Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 47 ÍNDICE "ἕνα", exercendo função objeto direto. Na oração “ἕνα ἀλλὰ λέοντα” está presente uma figura de linguagem: a elipse, que é a omissão de um dos termos da oração, nesse caso do verbo τίκτειν. Com essa afirmação, a leoa enaltece a cria “Um só, mas leão”, rebatendo a censura da raposa. A moral da fábula é dada pelas orações que se seguem. No período “ὅτι τὸ καλὸν οὐκ ἐν yλήθει δεῖ µετρεῖν”, temos a presença da partícula ὅτι, que é usada junto a verbos declarativos e pode funcionar como conjunção integrante ou pronome relativo indefinido. No texto, ele marca a objetividade da declaração a ser dada. Nesta análise, optamos por traduzi-lo como “porque”. Dεῖ µετρεῖν é uma locução verbal, sendo δεῖ uma forma verbal impessoal já cristalizada da língua, que significa ‘é preciso”. O infinitivo µετρεῖν compõe a locução verbal juntamente com δεῖ. O objeto direto desta locução é τὸ καλὸν, adjetivo no acusativo neutro, que em função do caso e por não qualificar nenhum nome, encontra-se substantivado. O advérbio de negação οὐκ modifica o sentido do verbo em relação ao sintagma ἐν yλήθει. O dativo singular ἐν yλήθει, em função da preposição ἐν, tem uma noção de locativo. Nesse contexto, ele localiza onde não se deve medir o belo. A seguir, temos a oração coordenada adversativa ἀλλὰ yρὸς ἀρετὴν ἀφορᾶν. A conjunção utilizada para coordenar este período foi ἀλλὰ, já recorrente no texto. Nesta oração, a forma δεῖ está implícita, formando uma locução verbal junto a ἀφορᾶν, que tem a ideia de olhar. O acusativo yρὸς ἀρετὴν, em função da preposição yρὸς, funciona como um acusativo de direção - a direção ao qual se deve olhar. 3 Versão para a língua latina Λέαινα καὶ ἈλώXηξ3 Λέαινα, ὀνειδιζοµένη ὑyὸ ἀλώyεκος ἐyὶ τῶ διὰ yαντὸς ἕνα τίκτειν: “ἕνα, ἔφη, ἀλλὰ λέοντα.” ὅτι τὸ καλὸν οὐκ ἐν yλήθει δεῖ µετρεῖν, ἀλλὰ yρὸς ἀρετὴν ἀφορᾶν. 3 ESOPO. As fábulas de Esopo. Texto bilíngue: grego-português/tradução direta do grego, prefácio, introdução e notas de Manuel Aveleza. 2ª ed, Rio de Janeiro: Thex Ed., 2002. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 48 ÍNDICE Leaena et Vulpis4 Leaena reprehensa a uulpe parire semper unum: “Vnum” inquit “sed leonem” Vt oportet metiri pulchrum non in multo, sed [oportet] aspicere qualitatem. 4 Análise linguístico-literária da versão latina Propomos realizar uma versão da fábula grega acima analisada para o latim. Neste sentido, tentaremos estabelecer uma possível equivalência entre as estruturas gregas e latinas, mostrando a pertinência da escolha de cada uma delas. O primeiro impasse nesse processo de versão foi tentar traduzir o particípio presente passivo grego ὀνειδιζοµένη. O latim não tem uma forma de particípio presente passivo. Então, tivemos que adaptar a forma ao sistema dessa língua. A opção selecionada foi fazer essa voz passiva com o particípio passado do verbo reprehendĕre, que significa repreender. A função de agente da passiva expressa pela preposição ὑyὸ mais o genitivo ἀλώyεκος é vertida para o latim pelo uso da preposição ab + o caso ablativo (a uulpe), que é o caso próprio do agente da passiva e dos adjuntos adverbiais no latim. Enquanto a declinação do infinitivo grego se dá pelo artigo, mantendo-se a forma do verbo, no latim, a forma infinitiva é declinável, visto não haver artigo nessa língua. Tratase, essa declinação, do gerúndio, que não existe em grego. O infinitivo grego, no texto, encontra-se no caso dativo (τῶ τίκτειν), percebe-se isso em função do artigo τῶ. O infinitivo regido pela preposição ἐyὶ tem o sentido de superposição, esta só pode ser expressa pelo dativo locativo. Considerando a função adverbial do infinitivo, uma opção de versão para o Latim é usar a declinação do infinitivo (gerúndio) no caso ablativo do verbo parire, porém optamos por usar a própria forma de infinitivo, que também é cabível. A declinação do infinitivo é pouco usada pelos autores latinos. É mais frequente o uso da forma de infinitivo, em suas várias funções sintáticas correspondentes aos casos latinos, mas, por vezes, o infinitivo ablativo é utilizado. 4 Tradução operacional nossa. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 49 ÍNDICE A expressão διὰ yαντὸς corresponde semanticamente ao advérbio semper, no latim. Diante disso, optamos pelo seu uso na versão proposta. Mantivemos a correspondência sintática e formal em relação ao verbo τίκτειν, fazendo uso do infinitivo parire, que tem como complemento o acusativo unum. Esta forma corresponde ao numeral ἕνα, que também está no acusativo quanto ao texto grego. Em relação ao adjunto adverbial ἐν yλήθει, que designa a ideia de quantidade, utilizamos o adjetivo multus substantivado, em sua forma ablativa, haja vista o sentido adverbial do termo. O caso de unum (acusativo) na resposta da leoa foi mantido visto que ele referencia o unum já expresso anteriormente na fábula. O mesmo aconteceu com texto grego. A interrupção na fala da leoa expressa pela forma do imperfeito ἔφη foi traduzida pela forma inquit, verbo unipessoal que declarativo. Este verbo é comumente usado por Fedro em suas fábulas para exprimir a ação de algum personagem de dizer alguma coisa. O inquit aqui é uma oração intercalada (ou parentética). A adversativa ἀλλὰ λέοντα, foi aqui traduzida como sed leonem. Para que se mantivesse a estrutura grega, optamos por traduzir a estrutura assim como está no texto grego. A conjunção sed do latim é a equivalente da grega ἀλλὰ. Leonem corresponde ao acusativo singular grego λέοντα. A conjunção integrante ὅτι que introduz a oração explicativa “ὅτι τὸ καλὸν οὐκ ἐν yλήθει δεῖ µετρεῖν”, foi vertida para o latim como ut, conjunção integrante latina que exerce a mesma função do ὅτι (partícula grega) na língua latina. Para traduzir a forma cristalizada δεῖ, optamos por usar oportet, que é um verbo impessoal que se conjuga em tempo, mas não em pessoa, mantendo-se apenas na terceira pessoa do singular, assim como δεῖ. O infinitivo µετρεῖν foi traduzido como metiri. O uso da forma infinitiva passiva justifica-se pelo fato desse verbo (metior, -īris, -īri, mensus sum) ser depoente. Como sabemos, embora as formas do verbo depoente sejam passivas, a tradução é ativa. O acusativo τὸ καλὸν foi traduzido pelo seu equivalente pulchrum, adjetivo que, neste contexto, está substantivado. A preposição in do latim é uma preposição própria do ablativo e equivale ao ἐν, preposição própria do dativo grego quando se quer expressar a ideia de locativo. O advérbio οὐκ foi vertido para non, advérbio de negação latino. O advérbio tem função de Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 50 ÍNDICE mudar o sentido de um verbo, adjetivo ou de outro advérbio. Nesse caso o advérbio não modifica o adjunto adverbial, ἐν yλήθει / in multo , em quantidade . A oração coordenada adversativa “ἀλλὰ yρὸς ἀρετὴν ἀφορᾶν” foi traduzida como sed [oportet] aspicere qualitatem. A conjunção adversativa ἀλλὰ foi traduzida por sed, sua equivalente latina. A expressão ‘é preciso’, na segunda oração está elidida, subtendida. O uso do verbo oportet já foi justificado. O infinitivo ἀφορᾶν foi traduzido para o latim pelo infinitivo aspicĕre. Este verbo não denota a ação de ver simplesmente, mas de dirigir o olhar para algo, prestar atenção a algo. O acusativo yρὸς ἀρετὴν foi traduzido pelo acusativo qualitatem, que quer dizer qualidade. Não foi preciso usar nenhuma preposição para auxiliar este acusativo, visto que o sentido de yρὸς já foi suprido pelo verbo latino. A preposição latina de direção, ad, que sempre rege acusativo, prefixa o verbo spicĕre (ad + spicio: aspicĕre), denotando o sentido de direção da preposição yρὸς + acusativo, no grego. A breve narrativa adverte quanto à imprudente concepção de que quanto mais, melhor. Quantidade não significa qualidade. A raposa, tentando sobressair-se à leoa, pergunta, censurando-a, o porquê de a felina ter apenas um filhote por gestação. A leoa, sagaz, contrapõe-se à raposa respondendo que, realmente, ela tem apenas um filhote, mas se trata de um leão. Maior e mais forte do que uma ninhada de raposas, facilmente a abateria. Logo, a perspicácia da leoa vence a falácia da raposa. Referências ESOPO. As fábulas de Esopo. Texto bilíngue: grego-português/tradução direta do grego, prefácio, introdução e notas de Manuel Aveleza. 2ª ed, Rio de Janeiro: Thex Ed., 2002. FARIA, Ernesto (org.). Dicionário latino-português. Rio de Janeiro: Editora Garnier, 2003. _________. Gramática Superior da Língua Latina. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica. 1958. MURACHCO, Henrique. Língua Grega: visão semântica, lógica, orgânica e funcional. Volume 1- Teoria. 3ª ed. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Vozes, 2007. SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. 9ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2006. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 51 ÍNDICE As representações do Eros em Hesíodo e Apuleio Naiara Santana Pita∗ Eros de cabelos dourados com a bola vermelha me acerta outra vez. (Anacreonte) A mitologia grega sempre é revisitada quando tentamos explicar algum fenômeno, ou quando se tenta encontrar inspiração para produções artísticas: seja em pinturas, esculturas, arquitetura, literatura, teatro ou cinema. Muitos mitos e tragédias são recontados ipsis litteris como na antiguidade, ou tentando encaixá-los no tempo e espaço da nova representação. Um dos mitos que serviu e ainda serve de inspiração para os artistas é Eros. Suas representações e significados variaram bastante ao longo dos séculos, e, mesmo na Grécia antiga, seu nascimento e aparições não foi uma unanimidade, o que torna o seu mito ainda mais interessante. No entanto, apesar de estar sempre presente, Eros não teve explanações e elegias como era de se esperar para uma divindade tão importante. Não há uma tragédia (pelo menos não que se tenham notícias) em que o deus Eros tenha sido personificado, a exemplo de outros deuses. O primeiro documento escrito em que Eros aparece é na obra de Hesíodo, Teogonia: a origem dos deuses. Hesíodo foi um dos dois principais poetas gregos do período arcaico, junto a Homero. Segundo sua obras, teria nascido e morrido em Asca, na Beócia, e foi um agricultor injustiçado na partilha das terras herdadas do pai, porque seu irmão teria subornado os juízes. Teria sido inspirado pelas Musas, que lhe apareceram quando pastoreava, a cantar as glórias do deus máximo Zeus e a genealogia dos deuses desde a criação do universo com as forças primordiais. O que o difere de Homero, entre outros aspectos, é por ter produzido a sua obra por meio da escrita e por ter-se mais certeza a respeito de sua existência. Sua poesia épica é o cume do desenvolvimento das tradições orais gregas. ∗ Universidade Federal da Bahia - Graduação Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 52 ÍNDICE O poema começa com um hino às musas, filhas de Zeus e da Memória, as inspiradoras dos poetas, que dão o poder da palavra tanto aos poetas como aos reis, porque, na Grécia Arcaica, possuir o dom de “cantar” e de guardar na mente a memória histórica e as leis é também ter o poder nas mãos: Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar [...] Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto Quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide [...] Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas, Colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto Divino para que eu glorie o futuro e o passado1 Os deuses na mitologia grega são representações diversas da natureza humana. Reúnem características conflitantes e não podem ser definidos unilateralmente. São seres que comportam em si, diversas vezes, características antagônicas. Eles não se apresentam com a mesma natureza nas diversas aparições míticas e trágicas. O Eros é um desses deuses. O deus do amor que é mostrado em sua forma primordial na Teogonia de Hesíodo. A genealogia dos deuses inicia-se com o surgimento de quatro potências primordiais que geraram descendentes que são derivações de suas forças. A Teogonia de Hesíodo é uma das primeiras representações escritas da mitologia grega. Até então os mitos eram apenas cantados e cabia à memória coletiva lembrá-los. Essa função era do poeta, que possuía status social por ser detentor da palavra e da memória. Foi escrito no período arcaico grego, em que a sociedade grega estava voltada para a agricultura e o poeta/bardo tinha a função de deslocar as pessoas (temporal e geograficamente) através do canto. (TORRANO, 1995) Com o poder da palavra que Hesíodo garante ter ganhado das musas ele começa a narrar à origem dos deuses. A cosmogonia grega tem princípio com as quatro divindades primordiais: Kháos, Terra, Eros e Tártaro. Eros é o último dos quatro deuses primordiais a surgir: 1 Ver HESIÓDO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução: Jaar Torrano. 3ªed. São Paulo: Iluminuras, 1995. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 53 ÍNDICE E Eros: o mais belo entre os Deuses imortais, Solta-membros, dos Seudes todos e dos homens todos Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade É o desejo de união amorosa. Preside a união sexual e nem os deuses podem escapar de seus desígnios. Na Grécia arcaica era cultuado pelos agricultores numa cerimônia à fertilidade. Esse desejo de acasalamento que permite que os deuses e homens se unam em cópula. Nesse caso, não está relacionado a uma abstração, o sentimento. É o impulso sexual, o desejo erótico e carnal solta membros. Eros aparece na cosmogonia como a força catalisadora para a procriação. Em outras representações, ele aparece como fonte para a libido. Vários deuses uniram-se em amo para procriação. Na Teogonia existem duas formas de reprodução: por cissiparidade e pelo Eros. Por cissiparidade o Kháos gerou potências do não ser e a Terra gerou o Céu e o Mar para com eles unidos com a força de Eros pudessem gerar a primeira geração divina. Eros, como força da união amorosa, dessa forma, faz oposição ao poder de Kháos que a potência de divisão e do não ser. Eros procura assimilar os seres opostos para criar uma unidade. (BRANDÃO, 2001) O Eros, em Hesíodo, é apresentado como uma deidade imaterial que circunda a Terra assim como Kháos. Eros gera pela união de dois elementos (o feminino e o masculino), não produz nada de si próprio, porque é estéril, embora contribua para a criação e preservação do mundo. A sua união a Afrodite vem para materializá-lo, relacionado a ela, ele tem uma forma alada que pode ser de uma criança com olhos maliciosos, ou como um jovem. As suas representações vêm sendo modificadas ao longo do tempo e deixa de estar apenas envolvido em situações em que é necessário o seu poder para a procriação. De acordo com Mazel (1988) existem nove formas de expressar o Eros nas suas aparições na antiguidade clássica: o amor servil, o amor real, o amor conjugal, o amor abrasador, o amor pedagogo, o amor “rompedor de membros” o amor filósofo, o amor fatal e o amor convival. Outra das mais importantes representações feita de Eros foi escrita por Lucio Apuleio - um poeta latino que nasceu em Madaura, que fica, hoje, na atual Argélia e foi educado em Cartago e Atenas, alegava que pensava em grego e por isso tinha certas dificuldades para em escrever em latim, mas mesmo assim fazia esforço para fazê-lo. Queria casar-se com uma viúva, mas a família era contra, pois alegava que ele era adepto de feitiçaria. Apuleio conseguiu provar que a acusação era infundada, mas sua obra havia Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 54 ÍNDICE sempre bastante interesse por magia. - Essa narrativa que toma cinco capítulos de as Metamorfoses é a única transcrição literária clássica do mito de Eros e Psique2. Na modernidade surgiram várias versões do conto em narrativas da tradição oral inspiradas no mito, ou com elementos bastante significativos, é o exemplo de Maria Gomes e A Bela e a Fera. Na versão do poeta latino Eros está vinculado à deusa Afrodite, como sendo um de seus filhos. Sua figura alada ficou conhecida a partir do século III a.C. associado à deusa do amor e da beleza. A função de Eros fica associada à dupla personalidade se Afrodite Pandêmia, desejo brutal, e Afrodite Urânia, aquela dos amores etéreos. Em a Teogonia, logo a deusa da beleza nasce e Eros resolveu acompanhá-la, porque ele persegue o que é belo: Afrodite Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeréia Apelidam homens e Deuses, porque da espuma Criou-se e Citeréia porque tocou Citera, Cípria porque nasceu na undosa Chipre, E Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz. Eros acompanhou-a, Desejo seguiu-a belo, Tão logo nasceu e foi para a grei dos Deuses. 2 O mito de Eros e Psique pode ser assim resumido: Psique era a mais jovem das três filhas de um rei, era também a mais bela. Por sua beleza era cultuada como sendo a deusa Afrodite na Terra. No entanto, muitos eram o que a admiravam e que lhe prestavam culto, mas nenhum lhe propunha casamento, suas irmãs que também eram belas, mas nem chegavam perto de sua beleza, já haviam se casado. Seu pai temendo que ela não conseguisse desposar consultou um oráculo para saber da sorte da filha e sobre o que fazer para que ela se casasse. Mesmo sem querer Psique havia despertado a ira de Afrodite, pois a deusa não aceitava que uma simples mortal ganhasse o culto e oferendas que lhe seria prestado, pois as pessoas haviam deixado de cultuá-la para homenagear Psique. Dessa forma mandou que Eros fizesse com que a jovem se apaixonasse por um homem muito velho e doente como forma de vingança. O oráculo mandou que o pai deixasse a filha no alto de um rochedo e mesmo receoso assim foi feito. Quando Psique lá foi deixada, Bóreas a buscou e levou para o palácio de Eros sem que ela soubesse onde estava. O seus do amor ia todas as noites ao seu encontro, mas ela nunca podia vê-lo, pois só se encontravam no escuro. Depois de algum tempo ela começou a sentir saudade das irmãs e mesmo com todas as precauções de Eros o reencontro foi permitido. As irmãs com inveja da sorte da Irma tramaram um plano para destruí-la e Psique deixando-se induzir infringiu as regras e com uma luminária de azeite viu o rosto do deus e queimou um dos ombros dele. Ferido, ele abandonou-a, mas antes ela havia se ferido em uma d e suas flechas. Dessa forma, Psique começou a percorrer o mundo em busca do amor e foi atrás de Afrodite que enciumada propôs a jovem mortal quatro trabalhos. No último deles que era pegar um pouco da beleza de Perséfone do Hades, a moça por causa da curiosidade caiu adormecida e foi salvo por Eros que depois de curado ficou sabendo da desdita da amada. Depois de falar com Zeus foi permitido que os dois se casassem e a Psique foi dado o néctar dos deuses para que possuísse a imortalidade. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 55 ÍNDICE Afrodite é a mais bela deusa, dessa forma há uma associação entre os dois: em troca da bela companhia, Eros passa a lhe emprestar seus atributos que é ele mesmo, o despertador de paixões, funestas ou duradouras. Eros é uma dicotomia existente entre o conflito das suas flechas, do mundo terreno e do celeste, do desejo e do sofrimento, de ações e reações que ora se conflitam, roa se harmonizam. (NASCIMENTO, 2006) Apesar de advir de uma divindade, os amores inspirados por Afrodite tendem a não ter boas conclusões, atraem sempre maldições ou guerras (MAZEL, 1988), como o de Helena que foi dado a Paris como prêmio pela escolha de Afrodite como a deusa mais bela e provocou a destruição de Tróia. Em Metamorfoses, Eros tem expressões maiores do que estar voltado estritamente ao âmbito sexual, como quando é discípulo de Afrodite. Apresentado comumente como uma criancinha de cabelos encaracolados e olhar travesso, sendo capaz de transtornar qualquer mortal ou deus. Ele um “jovem mancebo” que é representado como filho da deusa Cípria e vê-se preso em sua própria armadilha quando se apaixona por Psique a mais bela dentre as mortais. Assim, aquele que fez tantos outros sofrerem torna-se sofredor. No início da narrativa, Eros é representado como causador de intrigas e de amores corruptos. No decorrer, ele se transforma de travesso e adepto de “práticas da luxúria” para o bem relacionado e fiel em práticas conjugais. Ocorre, realmente, uma metamorfose, e Eros é completamente metamórfico. Psique era divinizada pelos homens, mas só passa a ter as sensações humanas do amor quando se une a uma divindade. Psique, a alma humana, tem que percorrer uma longa travessia para alcançar o amor depois que descobre quem era o seu raptor. Psique também comete uma desmedida sem que soubesse, por ser lindíssima desperta a ira de Afrodite: Tenho eu de sofrer que tenham em cada parte dúvida se tenho eu de ser adorada ou esta donzela e que tenha que ter comunidade comigo, que uma moça mortal, tem que morrer, tenha meu gesto que pensem que sou eu? Segundo isto, muito me julgou aquele pastor que por minha grande formosura preferiu a tais deusas: cujo julgamento e justiça aprovou aquele grande Júpiter; mas esta, quem quer que seja, que roubou e usurpou minha honra, não haverá prazer disso: eu lhe farei que se arrependa disto e de sua ilícita formosura.3 3 Ver APULEIO, Lucius. O asno de ouro. Introdução, tradução e notas de Ruth Guimarães. São Paulo: Cultrix, 1963. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 56 ÍNDICE A natureza sensual de Afrodite já é predita em seu nascimento: fruto de um membro decepado e jogado ao mar, nascendo, assim, das espumas. A sua natureza marinha é “perversa polimorfa, inapreensível, volúvel, sedutora e perigosa”. (MAZEL, 1988) Por essa desmedida Psique paga através de quatro tarefas: separar sementes de várias espécies; trazer lã dos carneiros do sol; buscar uma urna de água da estígia e descer ao Hades para trazer um pouco da formosura da rainha Perséfone da mesma forma que Perséfone. Acontece com a princesa o mesmo que a Heracles quando precisou realizar os doze trabalhos a mando de Hera. E o mesmo papel da rainha dos deuses assume Afrodite, com a ira da vingança e da inveja. A jovem despertou a ira de Afrodite novamente quando essa fica sabendo que seu filho se apaixonou por ela. A deusa é dona de um amor possessivo que não permite ser dividido e age com violência para alcançar o objeto de seu desejo. Nesse caso o amor é a força da existência humana. E o motivo por possuir várias facetas que não está relacionado, apenas, amor sexual. Eros é então o desejo: “é o motor que queima se não explica a vida e a vitalidade”. Brandão (2001) afirma que: Eros, no entanto, apesar de suas múltiplas genealogias permanecerá sempre, mesmo à época de seus disfarces e novas indumentárias da época de seus disfarces e novas indumentárias da época alexandrina a força fundamental do mundo [...] Assim, longe de ser um deus todo-poderoso Eros é uma força, uma energia, perpetuamente insatisfeito e inquieto: uma carência sempre em busca de uma plenitude. Um sujeito em busca do objeto. Eros (o desejo) não pode se separar da Psique (alma humana), pois o desejo está sempre procurando algo a ser quisto e alma a lama está sempre realizando novos empreendimentos, novas tentativas e conquistas. Por isso que quando se fala que “o homem nunca se contenta com o que tem” pode ser explicado através do mito de Eros e Psique. Ele na Teogonia é a força propulsora para o acasalamento, é o desejo de união e procriação. Assim também o é em outras circunstâncias, portanto, é a força catalisadora para que as coisas sejam feita, para que o mundo se movimente. Preside a união entre o homem e o desejo de criação, de perseguir um ideal e do que é bom e belo, para que a arte e a vida sejam criadas e preservadas. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 57 ÍNDICE Referências ARAÚJO, Orlando Luiz. Eros e Psique ou dos caminhos navegáveis. In:______Revista de Letras. Nº20, vol. 1 / 2 Fortaleza: UFC, 1998. APULEIO, Lucius. O asno de ouro. Introdução, tradução e notas de Ruth Guimarães. São Paulo: Cultrix, 1963. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991. VI. I2ªed. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. (V. 1 e 2) 16ªed. Petrópolis: Vozes, 2001. GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 2ªed. Trad. Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993. HESIÓDO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução: Jaar Torrano.3ªed. São Paulo: Iluminuras, 1995. MAZEL, Jacques. As metamorfoses de Eros: o amor na Grécia Antiga. Tradução: Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. NASCIMENTO, Dulcileide Virginio do. Os diversos conceitos do “amor” na cultura grega antiga. In:_______Intertextualidade e Pensamento Clássico/ Anais da XXV Semana de Estudos Clássicos. Ana Thereza Basílio e Auto Lyra Teixeira (orgs.) Deptº de Letras Clássicas da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro: Serviço de Publicalçoes IFL-UFRJ, 2006. (p.6067). SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário de Mitologia Greco-Romana. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 58 ÍNDICE Entre Poesia e Filosofia: O Caso de Heráclito de Éfeso Martim Reyes da Costa Silva∗ 1 Diálogo e crítica literária (seleção de fragmentos)1 B 35 χρὴ γὰρ εὖ µάλα yολλῶν ἵστορας φιλοσόφους ἄνδρας εἶναι é bem necessário homens amantes da sabedoria serem investigadores de muitas coisas B 104 τίς γὰρ αὐτῶν νόος ἢ φρήν; δήµων ἀοιδοῖσι yείθονται καὶ διδασκάλωι χρείωνται ὁµίλωι οὐκ εἰδότες ὅτι ‘οἱ yολλοὶ κακοί, ὀλίγοι δὲ ἀγαθοί’ qual, então, a inteligência ou senso deles? Confiam nos cantores do povo e tomam como professores a turba, desconhecendo que 'são ruins os muitos, bons os poucos' B 40 πολυµαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει· Ἡσίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ Ἑκαταῖον polimatia (múltiplos estudos) não ensina a ter inteligência, pois teria ensinado a Hesíodo e a Pitágoras, como também a Xenófanes e Hecateu B 42 τόν τε Ὅµηρον ἔφασκεν ἄξιον ἐκ τῶν ἀγώνων ἐκβάλλεσθαι καὶ ῥαπίζεσθαι καὶ Ἀρχίλοχον ὁµοίως sobre Homero dizia: digno de ser expulso dos concursos e bastonado, e Arquíloco igualmente B 56 ἐξηyάτηνται ἄνθρωyοι yρὸς τὴν γνῶσιν τῶν φανερῶν yαραyλησίως Ὁµήρωι, ὃς ἐγένετο τῶν Ἑλλήνων σοφώτερος yάντων. ἐκεῖνόν τε γὰρ yαῖδες φθεῖρας κατα κτείνοντες ἐξηyάτησαν εἰyόντες· ὅσα εἴδοµεν καὶ ἐλάβοµεν, ταῦτα ἀyολείyοµεν, ὅσα δὲ οὔτε εἴδοµεν οὔτ' ἐλάβοµεν, ταῦτα φέροµεν. se enganam os humanos diante do conhecimento das coisas aparentes, assemelhando-se a Homero, que veio a ser de todos os helenos o mais sábio, pois a este enganaram crianças que matavam piolhos, dizendo: os que vimos e capturamos, estes abandonamos, mas os que nem vimos nem capturamos, estes trouxemos. ∗ 1 Mestrando em Estudos Clássicos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Tradução própria, ainda em estágio provisório. Essa seleção representa apenas uma pequena parte dos fragmentos relevantes à reflexão acerca da crítica e diálogo literário em Heráclito. Para todos os fragmentos de Heráclito referidos neste trabalho, utilizei a numeração e a edição tal qual proposta por Diels-Kranz. (Die Fragmente der Vorsokratiker, 1952) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 59 ÍNDICE B 57 διδάσκαλος δὲ yλείστων Ἡσίοδος· τοῦτον ἐyίστανται yλεῖστα εἰδέναι, ὅστις ἡµέρην καὶ εὐφρόνην οὐκ ἐγίνωσκεν· ἔστι γὰρ ἕν. Hesíodo, professor da maioria: a este creditam saber mais coisas, este que não conhecia dia e noite, pois são uma unidade. Entre o final do séc. 6 e início do séc. 5 a.C., quando Heráclito produziu sua obra, nem o termo “poeta” nem o termo “filósofo, segundo Chantraine,” eram usados com os sentidos mais específicos que na época clássica e para além dela se tornariam tão relevantes2. Tal como Homero e Hesíodo, Heráclito usa o termo “aedo” para designar os “cantores”, e embora faça referencia ao que seriam “homens amantes da sabedoria” [φιλοσόφους ἄνδρας], sua acepção neste caso é tida como menos rigorosa, diversamente do sentido que o termo alcançaria nos tempos de Platão3. Se, no entanto, parece certo que esta terminologia não poderia ter sido usada pelos próprios autores da época, e é, neste sentido, anacrônica, por outro lado, estas noções, enquanto categorias válidas e fundamentais na terminologia moderna, não deixam de ser a seu modo centrais para a interpretação de suas obras. Sem embargo, poderíamos dizer, segundo boa parte das acepções de poesia e filosofia praticadas atualmente, o texto de Heráclito, assim como os de Parmênides e Empédocles, podem sem muita dificuldade ser incluídos em ambas.4 As histórias dos termos “poeta”/“poesia” e “filósofo”/“filosofia” estão, em verdade, bastante ligadas. Segundo Andrew Ford, em The Origins of Criticism (2002), a ascensão de uma discursividade crítica sobre a o papel educativo dos cantores, em diferentes contextos entre o 6° e o 5° século a.C. – notadamente em Xenófanes, Heráclito e Heródoto – é um fator importante na construção do vocabulário literário em ambos os sentidos. Em meio a um contexto de introdução da escrita, o uso da terminologia em volta do verbo yοιέω no sentido dos “compositores” [yοιητής] e suas obras [yοίηµατα], aparece ligada à cultura literária em volta das obras de grande referência cultural, quase sempre associada a um 2 3 4 Cf. Chantraine (1999, p. 922, 923). De fato, alguns editores consideram a expressão como espúria. Cf. Marcovich (2001, p. 26) Cf. Por exemplo, a definição de Ezra Pound de poesia a partir do termo alemão 'Dichtung' (1961, p. 36): “I begin with poetry because it is the most concentrated form of verbal expression. Basil Bunting, fumbling about with a German-Italian dictionary, found that this idea of poetry as concentration is as old almost as the German language. 'Dichten' is the German verb corresponding to the noun 'Dichtung' meaning poetry, and the lexicographer has rendered it by the Italian verb meaning 'to condense'”. Cf. Também notas 16 e 26 infra. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 60 ÍNDICE contexto educacional. Por outro lado, a terminologia em volta do termo σοφός (como a há pouco citada, anteriormente associada a contextos artesanais)5, aparece também ligada a este cenário, em contextos talvez mais acentuadamente políticos. Neste processo, em que a cultura literária se desenvolveria tanto a partir da apreciação quanto da crítica das obras dos “poetas”, autores associados à sofística também cumpriram papel determinante, tanto enquanto exegetas capazes de extrair significados das obras quanto propondo esquemas de comparação e contraste entre diferentes autores6. Em Platão, já observamos uma distinção e mesmo uma dita “querela” entre poesia e filosofia (República 607b), que, contudo, parece se voltar a um princípio ligado à práxis da filosofia enquanto modo de vida mais do que a uma distinção categórica segundo princípios “formais”, como demonstra a própria riqueza literária de sua obra. Ainda que a perspectiva crítica de Platão sobre a poesia seja um tópico bastante difícil e controverso, parece sobretudo significativo notar o quanto a tentativa de definição conceitual da poesia e da experiência poética está associada à elaboração de um modelo educacional capaz de rivalizar com aquele representado principalmente pela poesia, neste caso, por Homero e os tragediógrafos. Na República, onde o problema político-educacional é tratado diretamente, culminando na conhecida decisão de expulsar os poetas, Platão caracteriza a poesia a partir da noção de mímesis, enquanto no Íon a inspiração poética é tematizada e explicada segundo a imagem de uma corrente de anéis magnetizados7. 5 6 7 Cf. Chantraine (1999, p. 1031, 1031), Ford (2002, p.47, 93, 134). Cf. Ford (2002, p. 136): “A unitary term for poetry can only arise in a learned context, i.e. within a problematization of poetry. And this occurs, precisely in the fifth century, with the sophists, Antiphon and Gorgias in particular. Durante acutely draws out the enlightened, empirical attitude toward singing implied in this vocabulary. But there is no reason to ascribe these words particularly to Antiphon and Gorgias as rhetorical teachers. It is likely that they already were used by the historians and scientific writers of late sixth-century Ionia since they are well installed among their successors in the fifth. Abstract nouns in -σιν (like poiesis) are a marked feature of Ionian abstract thought, and other words of same type were making their way into discussions of poetry through the fifth century”. Assim como em Heráclito, a crítica de Platão no Íon fornece sinais significativos da relevância cultural dos poetas, de maneira que o debate se dirige, não sem alguma dificuldade, à noção (para um ponto de vista moderno talvez mais do que óbvia) de que um médico, por exemplo, é uma autoridade em questões de saúde antes que O poeta (i.e. Homero). Esta autoridade, notavelmente ligada à função de “enciclopédia tribal” da poesia, reflete de algum modo um dos pontos centrais da crítica heraclítica aos “multi-estudiosos”, especialmente Hesíodo, “professor da maioria, a quem creditam saber maior número de coisas”, enquanto a sabedoria consistiria em uma única coisa, reconhecer a unidade que perpassa o todo. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 61 ÍNDICE Em Aristóteles, por sua vez, encontramos uma preocupação de categorização mais propriamente dita8. Em uma passagem conhecida da Poética, o estagirita afirma que “nada de comum há entre Homero e Empédocles, exceto o metro. Por isso a um costuma-se chamar com justiça poeta e, ao outro, antes naturalista que poeta”.9 (1447a 17-18) Como defende Paula da Cunha Corrêa (1999, p. 177), entretanto, assim como Heráclito, Empédocles também teria utilizado livremente termos de diferentes códigos conceituais disponíveis no seu tempo e, neste sentido, a distinção defendida por Aristóteles não seria tão adequada se aplicada, por exemplo, a Hesíodo. Neste sentido, embora as noções de poesia exploradas pela filosofia clássica apontem para uma diferenciação entre a poesia enquanto pertencendo ao universo que atualmente designamos como “arte” e contrapondo-a à filosofia, tal diferenciação ainda não pode ser plenamente identificada, até porque, a noção de “arte” segundo um ponto de vista exclusivamente estético ainda está muito distante no horizonte histórico. Mais que apenas uma questão terminológica, o questionamento das categorias históricas representa, neste caso, um posicionamento metodológico e hermenêutico. Não por acaso, é possível observar debates de natureza semelhante a respeito da nomenclatura de “gêneros literários” da época arcaica, como, por exemplo, a respeito das noções de “poesia épica” e “poesia lírica”10. Embora a Heráclito e praticamente todos os, assim designados, “filósofos pré-socráticos” estejam definitivamente ligados à recepção e mesmo preservação de suas obras pela filosofia clássica, esta designação (e sua consequente classificação de um certo grupo de autores) é de fato relativamente recente e vem sendo problematizada. Para André Laks, organizador da coletânea “Qu'est-ce que la philosophie présocratique?”, editada em 2002, embora o préfixo “pré” tenha uma conotação ambígua e 8 9 10 Segundo Glenn Most, no artigo A poética da filosofia grega em seus primórdios (2008, p. 414), embora Platão tenha sido um severo crítico dos poetas tradicionais e o primeiro a identificar uma certa “querela entre filosofia e poesia”, uma distinção entre µυθολόγοι e φυσιολόγοι só seria propriamente efetuada por Aristóteles. (1447b17-20) Cf. Tradução de Fernando Gazoni (2006, p.34): “A arte que faz uso da palavra desacompanhada, ou do metro desacompanhado (sejam esses misturados entre si ou de um único gênero), não tem nome até agora. Pois não teríamos um nome comum para nomear os Mimos de Sófron e Xenarco e os diálogos socráticos nem se a mímese fosse feita em trímetros, ou dísticos elegíacos, ou em algum outro esquema métrico, exceto porque os homens, unindo o fazer ao metro, chamam uns de poetas elegíacos, outros de poetas épicos, declarando-os poetas não a partir da mímese realizada, mas de acordo com o metro usado. Pois mesmo se fosse publicada matéria médica ou fisiológica em metro, o costume é chamá-los assim. Mas nada de comum há entre Homero e Empédocles, exceto o metro. Por isso a um costuma-se chamar com justiça poeta e, ao outro, antes naturalista que poeta.” Cf. por exemplo Thalmann (Conventions of Form and Thought in Early Greek Epic Poetry, 1984). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 62 ÍNDICE carregada, a utilização do termo “pré-socrático” se explica por três fatores de natureza heterogênea: 1) A crença na influência definitiva da figura de Sócrates em toda a filosofia posterior; 2) a realidade histórica de não conservação completa das obras, de onde a categoria “fragmentos dos pré-socraticos”, fixada por Diels; 3) a perspectiva, inaugurada por Nietzsche, de uma filosofia radical anterior à socrática/platônica, em meio a um contexto de crítica à modernidade.11 Segundo Laks, a heterogeneidade entre os pré-socráticos não difere fundamentalmente daquela entre os filósofos modernos entre si.12 No mesmo volume, contudo, G.E.R. Lloyd defende que a pluralidade da vida intelectual antes de Platão não apenas consiste em uma não categorização terminológica das atividades tal qual aplicamos atualmente, mas em uma permeabilidade entre os campos de ação de cada autor e cada obra. Para o autor, ainda que um grupo de autores e interesses comuns possam ser encontrados, em vista da própria configuração da vida intelectual da época seria difícil propor uma descrição coerente para isto que seriam os “filósofos présocráticos”13. Assim, não apenas uma unidade artificial entre autores com diferentes focos de interesses pode ser inferida, como, o que é mais problemático, acabam excluídos muitos autores e obras com relevância para as discussões de temas que só mais tardiamente seriam exclusivamente associados ou à filosofia ou à medicina ou à poesia. Citando o fragmento B40 de Heráclito, Lloyd argumenta, com bastante propriedade, que o título aplicável a todas as autoridades criticadas por polimatia e que parece nortear a atmosfera intelectual de seu tempo, tal qual apresentada pelo efésio, seria sobretudo o de “sábio” (σοφός). Nesta “categoria”, extremamente ampla (e, de certa maneira, indefinida), encontrar-se-iam inclusos os mais diversos tipos de atores intelectuais, segundo um vocabulário e uma vida intelectual 11 12 13 Cf. Laks (2002, 23). Segundo o que seriam as fontes mais antigas, esta “filosofia da natureza” se distingue, para Laks (2002, 21), por dois aspectos: “D’une part elle possède un caractère totalisant (elle porte sur “toute chose” ou sur le “tout”). D'autre part, elle adopte une perspective génetique (elle explique l'état de choses existant en retraçant l'historie de son devenir)”. (…) “les grands récits “sur la nature” incluent une explication de la manière dont l'universe, les astres et la terre se sont formés, avec, très tôt, le traitement de problèmes plus techniques ou spécialisés comme la délimitation des zones célestes et terrestres, l'inclination des poles, l'éloignement et la grandeur des astres, la luminosité de la lune, les phénomènes météréologiques et terrestres, pluie et grêles, séismes et marées, l'apparition des êtres vivants et leur reproduction, la différenciation sexuelle des embryons, le mécanisme de la vie physiologique, sommeil et mort, sensation et pensée. Bref, une cosmogonie et une cosmologie, une zoogonie et une zoologie, une anthropologie et une physiologie (au sens modern du terme).” Há de se notar a sutileza terminológica em questão, uma vez que a classificação proposta por Diels se refere aos “pré-socráticos” e não “filósofos pré-socráticos”. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 63 ÍNDICE menos especializadas14. Embora não se caracterize diretamente enquanto “sábio”, Heráclito demonstra claramente uma proposta de re-significação do termo contra as autoridades tradicionalmente consideradas como tal, mantendo o termo enquanto principal referência positiva para um posicionamento intelectual15. Isto não significa, entretanto, que haja uma necessidade de negar os elementos filosóficos presentes nos fragmentos de Heráclito, ou a relação destes para com o desenvolvimento de conceitos importantes para o período clássico e a história da filosofia16. Tendo pertencido a uma época em que não havia um sentido mais técnico do termo “filósofo”, Heráclito certamente compôs – em uma linguagem propriamente poética, embora não em versos – uma obra de grande valor filosófico. A despeito destas caracterizações, Heráclito, como a literatura da época arcaica de uma maneira geral, segundo Hermman Frankel, não parece pensar a literatura, a ciência ou o pensamento especulativo segundo gêneros muito rígidos e distintos. Para Fränkel (1975, p. 4,5), e tal perspectiva é adotada para esta pesquisa enquanto princípio metodológico, a caracterização da literatura arcaica segundo uma harmonização indulgente para com aspectos do período clássico resulta na impossibilidade de reconhecer aquilo que lhe é mais próprio. Isto ocorre porque, de uma maneira geral, os autores de épocas subsequentes tendem a considerar os trabalhos de seus antecessores apenas segundo suas próprias necessidades metodológicas, o que se mostra acentuadamente pertinente na relação entre o pensamento das épocas clássica e arcaica17. 14 15 16 17 Cf. Lloyd (2002, p. 51-51) “Il est vrai que le fait qu'un individu en critique un autre est entièrement compatible avec l'idée que cet autre est fondamentalment engagé dans le même type d'enterprise. Mais cela ne cadre guère avec le cas d'Héraclite condamnant les polymathes. Tout d'abord, leur polymathie, comme il s'en était certainement aperçu était de nature très hétérogène, même si elle partageait la caractéristique négative de ne pas leur enseigner “l'intelligence” (noûs). Nous choisissons de dire positivement que tous prétendaient en quelque façon au titre de “sage”, et c’est cela qui les lie tous les quatre, et peut-être avec Héraclite lui-même, nous retombons sur le problème de l'énorme diversité de sens du terme sophós. Il se disait, après tout, des poètes et autres artisans en géneral, et peut s'appliquer (et pas seulement pour cette raison) aussi bien à Solon, entre beacoup d'autres, qu'aux quatre d'Héraclite. La catégorie de “sage” est utile quand on discute des ambitions intellectuelles pré-platoniciennes, mais ce n'est utile qu'à cela: elle ne correspond pas à une branche particulière du savoir, ni même à un ensemble formé de plusiers d'entre elles.” Cf. Fragmentos B32, B41, B50 e B56. Para uma leitura interessante da importância de Heráclito para a história da filosofia, cf. Enrique Hülsz Piccone, Lógos: Heráclito e las orígenes de la filosofia (2011). Cf. Fraenkel (1975, p. 4): “How an epoch influenced the future, and how it was constituted and understood itself, are very different things. (...) The Early Greek period, as we know it from its writings from Homer to the middle of fifth century, lived it’s own self-sufficient life and Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 64 ÍNDICE Considerando os argumentos apresentados, proponho neste trabalho reconhecer que é possível observar tanto aspectos filosóficos em autores como Hesíodo e Arquíloco quanto aspectos poéticos e literários (e não apenas formais, como propôs Aristóteles) em autores como Anaximandro e Empédocles, por exemplo. Neste sentido, os fragmentos de Heráclito apresentam, como já foi observado,18 um exercício de releitura crítica e síntese da atmosfera de pensamento vigente em seu tempo, sob a forma, assim como Platão, de um exercício literário. Segundo o ponto de vista defendido por Clemence Ramnoux, em sua célebre obra Héraclite ou l´Homme entre les Mots et les Choses, é possível perceber um campo de batalha e, talvez simultaneamente, um terreno de entendimento entre o poeta e o sábio19. As críticas ao “mais sábio entre os gregos”, Homero, e “professor da maioria”, Hesíodo, tanto representam um diálogo filosófico quanto uma via de esclarecimento do próprio discurso heraclítico, como podemos observar nos fragmentos B56 e B57. Ao tratar em seu discurso de figuras célebres, o éfesio marca as diferenças de seu posicionamento intelectual a partir de outros mais amplamente reconhecidos, segundo um princípio de equacionar familiaridade e estranhamento presente na literatura grega desde Homero. Se a assertiva sobre os aedos é diretamente crítica (B104), o fragmento em que aparece a expressão φιλοσόφους ἄνδρας [“homens amantes da sabedoria”] (B35), um tanto ambíguo, também associa-se tematicamente às críticas das autoridades intelectuais, aparentemente indiscriminada, por parte do Efésio. Na edição de Diels-Kranz, os fragmentos apresentam referências nominais a Hesíodo, Homero, Arquíloco, Xenófanes, Pitágoras e Hecateu, além de uma possível referência a Tales de Mileto, todos figuras relevantes, em 18 19 thoughts. It brought to maturity many high values, with perished whit it because classical Greece could no longer cope with them”. Cf., por exemplo, Most (2008, p. 416): "Não é menos supreendente, nesse contexto, o evidente cuidado que Heráclito tem ao formular seus insights em uma linguagem que toma emprestados às formas tradicionais de poesia os meios de expressão, de modo a torná-los mais plausíveis." E mais à frente (442) “Na maioria das vezes, o que torna essas formulações particularmente dignas de nota é uma estrutura poética de paradoxos conceituais ou linguísticos que atrai a nossa atenção mas resiste à compreensão imediata, convidando-nos a refletir sobre o discurso de Heráclito e o mundo que ilustra." Cf. Ramnoux (1968, p. 2-3): “Il existe pourtant une phase intermédiarie de la vie des signes : un champ de bataille posible, sinon un terrain d'entente, entre le poéte et le sage. La Nuit n'y désigne plus l'image maternelle habillée de deuil. Elle n'y désinge pas encore una simple phase de la revolution diurne. Que désigne-t-elle donc? Elle est un nom, et peut être rien qu'un nom! Mais un nom chargé de la puissance de la Mère habillée de deuil. (…) La préciosité du style gnomique serait fille de la précaution du style oraculaire. (…) Entre les hiérarchies de style cosmogonique, et les énigmes héraclitéennes, il y a donc au moins cet élément commun: des noms.” Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 65 ÍNDICE diferentes níveis, das histórias da literatura e da filosofia gregas20. De um lado, Hesíodo, Xenófanes, Pitágoras e Hecateu são acusados de “polimatia” (possivelmente um neologismo), e esta crítica de algum modo ressoa na caracterização dos φιλοσόφους ἄνδρας, que “devem ser investigadores de muitas coisas”. De outro, Homero e Arquíloco são ditos “dignos de serem expulsos dos concursos e bastonados (rápsesthai)”, o que aparentemente os aproxima dos “cantores do povo”, autoridades intelectuais indignas de confiança. Segundo Bruno Snell (2005, p. 263), desde os símiles homéricos, encontramos um modo metafórico de significação a partir de imagens, que, além de um valioso recurso narrativo, se constitui a partir de conteúdos semânticos pensados arquetipicamente. A recorrente comparação de Heitor a um leão na Ilíada, por exemplo, é sempre associada à bravura arquetípica do animal, ao mesmo tempo em que descreve literalmente o modo do herói avançar em meio à cena de batalha. Ainda que passível de críticas relevantes, sobretudo sob o aspecto de uma perspectiva evolucionista das transformações do vocabulário e do pensamento na Grécia (CORRÊA, 1999. p. 175), a abordagem de Snell aponta para uma importante relação entre o uso de símiles, metáforas e analogias na constituição do vocabulário que viria a transformar-se na base da linguagem conceitual da filosofia clássica21. Entre os que Aristóteles denominou φυσιολόγοι, como aponta Most (2008, p. 434, 435), o uso de recursos literários está longe de ser uma exceção: A inclinação de Anaximandro e Anaxímenes pelo uso de comparações e símiles impactantes e inesperados com vistas a explicar diversos fenômenos naturais é a adaptação filosófica de um amor a analogias explicativas cuja origem encontra-se provavelmente nos célebres símiles épicos, tão 20 21 Heráclito cita nominalmente também Bías (B97) e Hermodoro (B98), que, entretanto, não figuram em destaque nas histórias da literatura e da filosofia gregas. Na constituição de substantivos abstratos como ψυχή (“alma”), νοῡς (“inteligência”) ou φύσις (“natureza”), Snell observa a relevância da gradativa inserção do artigo definido, derivado do pronome demonstrativo. Com a substantivação propiciada pelo uso do artigo, noções como ψυχή (literalmente “sopro”) ou νοῡς (literalmente “imaginação”) teriam sido derivadas de conteúdos verbais, adquirindo gradativamente uma significação propriamente substantivada. Assim, diferencia-se gradativamente o agente (ou princípio, e mais tardiamente causa), a ação (ou o processo, no plano cosmológico) e o resultado da ação. Neste sentido verbal, o particípio mantém sua amplitude metafórica ao mesmo tempo em que, ao substantivá-la, unifica-a. Cf. por exemplo, Heidegger (1998, p. 69): [Analisando o fragmento D.16] “na formulação gramatical, a palavra tem o caráter de um particípio. Particípio é a tradução romana da expressão usada pelos gramáticos gregos, - µετοχέ, a “participação”, o “ter parte em”. A palavra δῦνον é especial porque se caracteriza por uma dupla participação, já que, morfologicamente, pode participar tanto da classe de palavras chamada “nome” ou “substantivo”, como também daquela classe donde se deriva a forma particípio, ou seja, o verbo, a palavra temporal.” Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 66 ÍNDICE frequentes em Homero, que explicam o que a audiência desconhece por meio de uma luminosa comparação com o que conhece. Quando Anaximandro afirma que uma esfera de fogo se formara ao redor do ar que circunda a terra "como a casca de uma árvore" (pseudo-Plutarco, Stromateis 2), que a forma da terra "é similar ao fuste de uma coluna" (Aécio III.10.2), que o sol é um circulo de fogo "semelhante à roda de uma carruagem", com um furo "semelhante ao bocal de um fole"(Aécio, II.25.1); ou quando Anaxímenes afirma que a terra flutua sobre o ar "como um tampo" (Aristóteles, De caelo II.13 294b15), que as estrelas estão fixas "como garras" no céu (Aécio II.22.1) ou que os corpos celestes se movem ao redor da terra "como um chapéu de feltro se move em torno de uma cabeça" (Hipólito, Ref.1.7.6), parte da eficiência da analogia deriva da surpresa por meio de que subitamente se revela que os fenômenos mais distantes e estarrecedores possuem importantes e até então inimaginádas semelhanças com os fenômenos mais mundanos e familiares."22 Antes, contudo, que o modo comparativo segundo um modelo matemático fosse propriamente apropriado por Demócrito e Platão para os planos da psicologia e da ética, o pensamento de Heráclito permanece metafórico segundo o conteúdo semântico das raízes verbais das noções “abstratas” como φύσις e λόγος. (SNELL, 2005, p. 239) Desta maneira, encontramos articulados no uso destas palavras tanto os sentidos mais amplos quanto mais específicos, o que não significa um uso impreciso de seu conteúdo semântico, mas pelo contrário, um uso extremamente cuidadoso no sentido de considerar o significado específico da palavra enquanto uma composição articulada de seus diversos sentidos possíveis 23: Como Empédocles, também Heráclito está voltado para algo que não é visível, que deve ser revelado; mas os símiles de Empédocles tendem, de certo modo, a superar a linguagem baseada em imagens (...); ao passo que o que Heráclito quer exprimir só se deixa representar em linha de princípio mediante imagens. Em Heráclito compreendemos em que sentido se pode falar de metáforas "originárias"; e vemos que elas pertencem a uma zona mais profunda que não é a da atividade humana ou animal: à zona da vida universal. Impossível de captar por meio do conceito ou do princípio do "terceiro excluído", esse elemento apresenta-se das mais diferentes formas, mas em cada uma delas está completo, e só através delas pode "falar" ao homem e, portanto, só através dela pode ser representado. (SNELL, 2005, p. 223) Para Charles Kahn, autor de The Art and Thought of Heraclitus (1979), esta relação entre forma linguística e conteúdo intelectual foi negligenciada em sua relevância, mesmo quando de algum modo reconhecida, pela maioria dos autores. Propondo-se a desenvolver 22 23 Grifo não presente no original, comparar com as citações de Kahn e Mackenzie adiante. Cf. Snell. (2005, p. 239) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 67 ÍNDICE seu trabalho neste sentido, Kahn estabeleceu dois princípios interpretativos hoje largamente aceitos entre os estudiosos do efésio: a) densidade linguística (ou semântica), “fenômeno pelo qual uma multiplicidade de ideias é expressa numa única palavra ou frase”, e b) ressonância temática, “a existência de uma relação entre fragmentos pela qual um único tema ou imagem verbal ecoa de um texto para o outro de modo que o significado de cada um dos textos é enriquecido”24. Aplicando-os de maneira complementar, Kahn aponta para uma interpretação dos fragmentos a partir de sua ambiguidade semântica, na qual a equivocidade dos termos se reverte em uma articulação poética dos seus diversos significados possíveis: Do ponto de vista da linguagem significativa no discurso poético, não pode haver uma interpretação que seja a única correta: aqui o significado é, em essência, múltiplo e complexo. (...) A tarefa do intérprete é preservar a riqueza original do significado admitindo a pluralidade de sentidos alternativos – alguns óbvios, outros ocultos, alguns superficiais e outros profundos. (2009, p.114) Em uma direção semelhante, Mary Mackenzie, no artigo Heraclitus and the Art of Paradox (1988, p. 16), afirma que o uso de proposições paradoxais (que levou Aristóteles a supor que Heráclito estaria negando o axioma mais importante da lógica formal, o conhecido “princípio de não-contradição”), aponta para um complexo jogo de significados, que, gradativamente, provoca a reflexão sob horizontes sempre novos. No célebre “paradoxo do rio” (fragmentos B12, B49a e B91), por exemplo, a autora observa que, para além da resolução física do paradoxo já implícita no mesmo (isto é: o rio é e não é o mesmo, segundo diferentes critérios), o jogo de significados antinômicos permanece se desenvolvendo. Ao questionar a possibilidade de o rio ser ou não o mesmo, Heráclito parece condensar, segundo Mackenzie, um questionamento circular no qual somos levados a considerar o problema tanto do ponto de vista material quanto epistêmico: So once the fragments about sensible individuals have show us which are the terms that are crucial to understanding the paradoxes, the fragments that tell us about understanding show us how deeply puzzling those terms are. They leave us, that is, with a question not an answer, and invite us to investigate further the intuition that we do step into the same river, twice, once, or at all. (1988, p. 37) Em um dos volumes da Heraclitea (III.3.A), dedicado exclusivamente à linguagem e à poética dos fragmentos, Mouraviev sustenta proposta de mostrar o texto heraclítico como 24 Cito aqui a edição em português, A arte e o pensamento de Heráclito. (2009, p. 110) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 68 ÍNDICE poético no sentido mais pleno da palavra; uma dimensão do texto à qual, afirma o autor, poucos dos intérpretes modernos ou antigos foram completamente insensíveis, mas que permanece um tópico pouco explorado, principalmente no sentido de uma análise da linguagem poética com finalidade filosófica25. Na obra em questão, Mouraviev, que afirma ter começado este trabalho a partir da prática de ler os fragmentos em voz alta, empreende uma análise minuciosa de estruturas rítmicas, fonéticas, sintáticas e semânticas. Pensado a partir da sua força de expressão literária, o estilo heraclítico se apresenta, portanto, enquanto elemento fundamental de seu pensamento. O mais relevante, contudo, como aponta Fränkel (1975, p. 378), reside em que, quando nos dispomos a fazer os experimentos mentais propostos nos fragmentos, passamos quase que imediatamente a ver o mundo de uma nova perspectiva. Esta parece ser, embora não tenhamos elementos para decidir propriamente isto, a intenção do próprio Heráclito 26. Neste sentido, debruçar-se sobre tal relação oferece ao leitor dos fragmentos um terreno especialmente propício para o exercício hermenêutico. Particularmente para o estudante e o pesquisador em estudos clássicos, mas também para os interessados em literatura e filosofia de uma maneira geral, tal contato se traduz em contato capaz de despertar a atenção para significados muitas vezes ignorados na leitura de textos, e mesmo nas paisagens da vida cotidiana. Referências CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, nouv. ed., 1999. CORRÊA, Paula da cunha. Harmonia: mito e música na Grécia Antiga. In: Revista de Filosofia Antiga - Kleos. Rio de Janeiro - IFCS - UFRJ: v.2-3, n.2-3, p.174 - 217, 1998/1999. DIELS, H., KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Weidmann, 1952. FORD, Andrew. 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Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 70 ÍNDICE LÍNGUA E LITERATURA LATINAS Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 71 ÍNDICE O site www.latinitasbrasil.org como complementar à abordagem da coleção Latinitas: leitura de textos em língua latina∗ José Amarante∗∗ Introdução O espaço virtual criado, e que será apresentado aqui, decorre das demandas de produção de uma abordagem metodológica em material impresso em dois volumes (parte de minha tese de doutorado intitulada “Dois tempos da cultura escrita em latim no Brasil: o tempo da conservação e o tempo da produção”). A inserção de um site no programa Latinitas: leitura de textos em língua latina teve três principais intuitos: i) oferecer um ambiente virtual de aprendizagem tomado como complementar à abordagem da sala de aula, que ocorre através do material impresso; ii) oferecer recursos complementares à aprendizagem em outras mídias; iii) reconhecer as formas de aprender e de interagir dos estudantes de nosso tempo. A partir desses objetivos e desde o início da testagem de todo o material, o site foi elaborado, com domínio próprio, e tem o endereço www.latinitasbrasil.org. Como através do site disponibilizávamos os materiais utilizados em sala e outros recursos complementares, durante todo o período de testes da abordagem e até o momento, algumas de suas seções só estão ativadas para alunos e professores que se cadastram como membros. É uma forma de não colocar na rede materiais provisórios que ainda serão submetidos à avaliação formal das instâncias da pós-graduação em que se insere. Contudo, após a apresentação do Programa Latinitas numa miniconferência por ocasião do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia, realizado em junho de 2012, alunos e outros pesquisadores do país puderam acessar o site cadastrando-se também como membros. Assim, hoje o site conta com mais de 300 membros de diferentes regiões do país e registra mais de 24.000 visitas. ∗ ∗∗ O texto que apresentamos nestes Anais diz respeito a uma parte da miniconferência intitulada Latinitas: Leitura de Textos em Língua Latina - Notícias sobre uma abordagem metodológica, apresentada por ocasião do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia (2012). A parte introdutória, em que são apresentadas as características gerais da abordagem, encontra-se publicada no livro Mosaico Clássico: variações acerca do mundo antigo. (AMARANTE e LAGES, 2012) Professor de Língua e Literatura Latinas na Universidade Federal da Bahia, onde cursa o doutorado em Língua e Cultura. Atualmente desenvolve pesquisas em Didática do Latim e História Social do Latim no Brasil. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 72 ÍNDICE Ilustração 01 – Sequência das páginas do site Para a definição do mapa do site, esboçaram-se algumas seções que pudessem atender a diferentes demandas dos alunos e a diferentes propósitos referentes à abordagem. Para efeito de observação geral da estrutura do site, apresenta-se abaixo o seu mapa, com o detalhamento do funcionamento e da utilidade de cada seção. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 73 ÍNDICE Esquema 01 - Mapa do site Home A seção “Home” é composta de duas partes. Na primeira, alterada periodicamente, noticia-se algum evento importante da área, colocando os alunos em contato com atividades decorrentes de pesquisas em estudos clássicos. Na segunda parte, apresentam-se as seções do site, indicando sua funcionalidade. Ilustração 02 – Print Screen da página Home do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 74 ÍNDICE Membros Como diversas seções do site estão disponíveis apenas para os que se cadastram como membros, a página “Membros” apresenta todos os visitantes que se cadastraram, com vistas a ter acesso livre aos materiais postados. Para ter acesso a todos os conteúdos, o visitante deve acessar a guia "membros" e clicar em "join site". Assim que se cadastra como membro, com seu nome e endereço de e-mail, o visitante recebe uma mensagem em seu correio eletrônico, liberando sua participação ativa no site e o acesso às páginas bloqueadas por senha. Ilustração 03 – Print Screen da página Membros do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 75 ÍNDICE Conteúdos – Latinitas 1 Trata-se de uma das seções bloqueadas por senha, uma vez que nela se encontram as apresentações didatizadas de todas as unidades textuais da abordagem metodológica originalmente estruturada em material impresso. Organizada em duas colunas, na seção há indicações de apresentações das unidades didáticas e de apresentações das atividades finais de cada unidade, com links para download. A vantagem didática dessas apresentações está no fato de fazer o aluno se centrar em certos aspectos do texto, tornando visíveis certas estruturas. A título de exemplo, nas primeiras lições, os casos latinos aparecem nos textos obedecendo a determinadas cores. É uma forma de acostumar os alunos a se centrarem nas terminações das palavras. Depois de algumas lições, essas cores não mais aparecem marcando os casos, a fim de evitar que os alunos se tornem dependentes do recurso para o entendimento do texto. Ilustração 04 – Print Screen da página Conteúdos – Latinitas 1 do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 76 ÍNDICE Conteúdos – Latinitas 2 Da mesma forma que a seção anterior, esta também é uma seção bloqueada. Disponibiliza as apresentações de conteúdos didatizados do volume 2 do Latinitas, com links para download. Ambas as seções disponibilizam as apresentações utilizadas nas aulas, com a tradução dos textos presentes no material impresso (uma tradução de estudo). Através desse meio, dos dois volumes impressos, foram retiradas as traduções comentadas, evitando que, em aula, o aluno acesse frequentemente as alternativas tradutórias propostas pelo material. Em casa, realizando suas atividades, o aluno pode, ao término de seu trabalho, checar se sua versão se aproxima ou se distancia da proposta de tradução apresentada no site. Ilustração 05 – Print Screen da página Conteúdos – Latinitas 2 do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 77 ÍNDICE Chat O chat é um espaço de interação online entre alunos e alunos e entre alunos e professores/monitores. Funciona para encontros de discussão sobre dúvidas ocorridas na resolução de atividades. É também um espaço em que monitores e professor, através de sessões agendadas, discutem a resolução de uma determinada tarefa com os alunos, ajudando-os nas dúvidas e nos problemas que enfrentam nesses momentos. Para os alunos, o chat se mostra bastante recorrente nos dias anteriores a avaliações, nos quais, estrategicamente, se disponibiliza uma atividade extra e se agenda um momento para tiradúvidas. Ilustração 06 – Print Screen do Chat do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 78 ÍNDICE Fale conosco A página Fale conosco é uma página para contatos com a equipe do site, formada pelo professor responsável pelo programa e pelos monitores. Apresenta duas seções: uma com um formulário de envio de mensagem e outra com os contatos dos monitores do curso. Assim que um visitante envia uma mensagem, o professor recebe a mensagem em sua caixa de emails. Ilustração 07 – Print Screen da página Fale conosco do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 79 ÍNDICE Links Na página de links, aos visitantes são disponibilizadas obras de interesse que já se encontram esgotadas e que são oferecidas para download na rede. Há também uma lista de links de sites que disponibilizam textos latinos e curiosidades sobre a língua. Periodicamente links novos são postados, sendo mantidos alguns de interesse frequente. Ilustração 08 – Print Screen da página Links do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 80 ÍNDICE Treinando a pronúncia Trata-se de uma seção dedicada à pronúncia do latim, com arquivos em áudio para o treino a partir de uma lista de expressões cotidianas em latim, palavras com diferentes contextos fônicos. Além de ouvir os arquivos diretamente pelo site, o aluno pode fazer download deles para o seu computador, para ouvir e treinar mesmo quando estiver offline. Esta seção passará a oferecer arquivos em áudio dos textos utilizados no material impresso. Ilustração 09 – Print Screen da página Disce Linguam Latinam do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 81 ÍNDICE Pesquisas Na aba Pesquisas, apresentam-se algumas investigações desenvolvidas pelo pesquisador responsável pelo programa no âmbito dos Grupos de Pesquisa NALPE (Núcleo de Antiguidade, Literatura e Performance) e HisCultE (História da Cultura Escrita), ambos registrados no CNPQ. São pesquisas em torno da produção de materiais didáticos para cursos de latim e sobre História Social do Latim no Brasil. Também se apresentam os trabalhos que estão sendo desenvolvidos pelos bolsistas vinculados ao programa. Ilustração 10 – Print Screen da página Pesquisas do site Latinitas Brasil Curso de extensão A aba Curso de Extensão apresenta um formulário para os interessados em participar dos cursos de extensão em língua latina oferecidos no âmbito do NUPEL/UFBA (Núcleo Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 82 ÍNDICE Permanente de Extensão em Letras). Como frequentemente recebíamos mensagens não só de alunos da instituição como de profissionais de diversas áreas interessados no estudo da língua, a disponibilização do formulário objetivou ter uma noção do perfil dos interessados nesses cursos. Há também, na página, um link para o site do NUPEL. Ilustração 11 – Print Screen da página Curso de Extensão do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 83 ÍNDICE Livro de visitas O livro de visitas é um espaço de registro das considerações do visitante sobre o site. É um espaço aberto a críticas e sugestões com vistas ao aprimoramento do seu funcionamento. Periodicamente, avaliam-se as considerações feitas pelos visitantes e promovem-se, quando necessárias, mudanças na estrutura e no funcionamento do site. Ilustração 12 – Print Screen da página Livro de Visitas do site Latinitas Brasil Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 84 ÍNDICE Webmail A aba de webmail é destinada a quem tem endereço eletrônico com a extensão latinitasbrasil.org, um domínio personalizado que permite a criação de emails para membros com funções específicas no gerenciamento das diversas seções do site. Por enquanto, além do pesquisador responsável pelo domínio, possuem e-mails exclusivos os monitores de latim dos cursos de graduação e extensão da Universidade Federal da Bahia. Ilustração 13 – Print Screen da página Webmail do site Latinitas Brasil A partir dessas seções, podemos considerar o site como complementar à abordagem em sala de aula. Em geral, os métodos costumam apresentar chaves de exercícios no próprio material impresso, além de apresentar alguns exercícios optativos. Para nós, o site cumpre Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 85 ÍNDICE bem esses papeis, mantendo as chaves dos exercícios, de forma que o aluno, em sala, não se seduza a, ao enfrentar alguma dificuldade na realização das tarefas, checar imediatamente as respostas propostas no material. No desenvolvimento do site, em aprimoramentos que estão sendo pensados, outros exercícios complementares serão elaborados oportunamente para ficarem disponíveis aos alunos, permitindo que sejam inseridos exercícios novos periodicamente, sem os custos de reedições e de atualizações de uma obra em papel. É uma forma também de dar liberdade ao professor para selecionar seus exercícios extras ou de escolher no site aqueles que julgar mais necessários para a sua turma. No site, também, conforme vimos, disponibilizam-se apresentações de cada unidade do livro, de forma que quem quer que venha a desejar aprender a língua em contexto extra-acadêmico encontrará material de suporte. Todo o material elaborado foi aplicado a turmas de graduação e à turma especial de professores da própria universidade. Como o material foi elaborado à medida que o curso ia ocorrendo, os professores e os alunos puderam contribuir com suas propostas de melhoramento de um ou outro aspecto. Ao final da aplicação do material, foram feitas entrevistas escritas em que alunos e professores comentavam sobre as características gerais da abordagem. Sobre o uso do site Latinitas, os professores assumem terem feito pouco uso em função das demandas profissionais e da escassez de tempo. Sugerem, contudo, a inserção de novos exercícios para treino em casa. Como os materiais do curso eram também enviados por e-mail, eles não sentiram maiores necessidades de acessar o site. Nesse sentido, avaliamos que poderíamos ter disponibilizado todos os materiais apenas no ambiente virtual, criando a oportunidade de acesso a outras informações e atividades relevantes que o site oferece. Como o material em desenvolvimento ainda seria avaliado por uma banca de doutorado, tivemos algumas precauções antes de disponibilizar na rede materiais ainda em processo de maturação. Após as duas primeiras semanas de aplicação do material, contudo, resolvemos disponibilizar o material no site, bloqueando algumas páginas com senhas que restringiam o acesso apenas a membros cadastrados. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 86 ÍNDICE Referências AMARANTE, José. Latinitas: leitura de textos em língua latina. Notícias sobre uma abordagem metodológica. In: AMARANTE, José e LAGES, Luciene. Mosaico Clássico: variações sobre o mundo antigo. Salvador: UFBA, 2012. SITE: www.latinitasbrasil.org Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 87 ÍNDICE { As sentenças causativas no latim Johnnatan Nascimento∗ Introdução Ao longo do último século, muitas pesquisas envolvendo a estrutura argumental foram desenvolvidas, com grande destaque à construção das chamadas sentenças causativas. O estudo de diferentes famílias linguísticas que não a indo-europeia mostrou existir diferentes estratégias para marcar a causação nas línguas. Não houve, entretanto, trabalhos que sistematizassem a construção de sentenças causativas no latim. Logo, o principal objetivo desse texto é exibir um panorama sobre as estratégias latinas para a causativização, a partir de três tipos de fontes bibliográficas: as descrições sobre a causativização nas diferentes línguas, obras que mencionam o fenômeno no latim e o que a Teoria Gerativa nos informa sobre a formação das sentenças causativas. Desse modo, na seção 1, serão apresentados dados para mostrar o que é e como ocorre a causação numa abordagem interlinguística; na seção 2, serão apresentados os dados do latim; na seção 3, exibo o quadro teórico a partir do qual este trabalho se estrutura; a seção 4 é dedicada à proposta teórica que explica o processo de causativização nas sentenças latinas e, concluindo este texto, as considerações finais. 1 O fenômeno da causativização 1.1 Definição Sentenças causativas são aquelas responsáveis pela ideia de [X causou Y fazer Z], ou seja, denotam dois eventos. O primeiro é denominado evento da causação e abriga um argumento responsável pela ideia de provocar outro evento; o segundo é denominado evento causado e expressa o evento provocado pelo argumento do evento da causação. Em português, temos a oposição de sentenças como (1): ∗ Graduando no bacharelado em Linguística pela Faculdade de Letras da UFMG. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 88 ÍNDICE { (1) a. Ana comprou biscoitos. b. Eu fiz a Ana comprar biscoitos. Em (1a), temos apenas o evento realizado, nucleado pelo verbo [comprar] com seus dois argumentos. Já (1b) apresenta um terceiro elemento, [Ele], a partir do qual toma lugar o evento [Ana comprar biscoitos]. Segundo Comrie (1981), nas construções causativas, há um argumento a mais que sua contraparte não causativa, como se observa em (1b). Denominamos esse tipo de construção sentença causativa. 1.2 Tipos de causativas A tipologia linguística sobre causativização frequentemente retoma a quatro tipos de estratégias para expressá-la: fonológica, morfológica, lexical e sintática. Nas subseções seguintes, serão apresentados e analisados os quatro tipos acima. 1.2.1 A estratégia fonológica Nesse grupo de causativas, observam-se mudanças como: (i) mudança interna na qualidade da vogal (2) hazina hazana ser-triste fazer ser triste (Árabe) (Ford, 2009) (ii) repetição da consoante: (3) xarab xarrab ser-mau fazer-ser mau (Árabe) (Lopes, 2008) (iii) aumento da duração vocálica Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 89 ÍNDICE { (4) (Kashmiri) mar ma:r morrer fazer morrer lit. ‘matar’ (Lopes, 2008) (iv) mudança tonal (5) nô nō acordar fazer acordar (Lahu) (Mei, 2012) Como pode ser observado, nessa estratégia, a causativização se dá pela interface sintaxe-fonologia: é uma alteração vocálica ou consonantal que provoca o sentido causativo. 1.2.2 A estratégia morfológica Alterações morfológicas também são utilizadas pelas línguas naturais no processo de causativização: (i) reduplicação (6) bengok be-bengok gritar fazer gritar (Javanês) (Lopes, 2008) (ii) prefixação (7) gəbba a-gəbba (Amárico) entrar fazer-entrar (Lopes, 2008) (iii) sufixação (8) (K’iche) kam kam-isa morrer morrer-fazer lit. ‘matar’ (Lopes, 2008) Além desses tipos clássicos, acrescento a esse grupo causativas como as do Tenetehára, abaixo. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 90 ÍNDICE { (9) a. u-pirik ʔɨ 3-pingar água ‘A água pinga’ b. u-mu-pirik 1-CAUS-pingar kwaraher ʔɨ menino água ‘O menino faz a água pingar’ lit. ‘O menino borrifa água’ (Castro, 2010) Nesse caso, temos a inserção do morfema mu ao verbo pirik “pingar”, introduzindo o argumento kwaraher ‘menino’ e sendo responsável pelo sentido causativo da frase. Silva (2009), em um estudo sobre as causativas no português brasileiro, apresenta um tipo chamado por ela de causativas sintéticas, que incluo no grupo de causativas morfológicas. Apresento os dados de Silva a seguir: (10) a. A mãe mudou os meninos de escola. b. A mãe fez os meninos mudarem de escola. (10a) pode ser reescrita como (10b). Segundo Silva, ocorre o acréscimo de um morfema causativo ao verbo mudou, o que provoca a inserção do argumento ‘a mãe’ na sentença, porém, é um morfema-zero. Por isso, classifico também esse tipo de ocorrência como causativa morfológica. 1.2.3 A estratégia lexical O terceiro tipo é muito comum nas línguas indo-europeias. A oposição entre causativo e não-causativo pode se realizar por meio de distintos itens lexicais, como pode ser visto no quadro abaixo, adaptado de Lopes: (2008) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 91 ÍNDICE { TABELA I – CAUSATIVAS LEXICAIS Lexemas Verbais Não Causativos Causativos Nascer Parir Morrer Matar Desaparecer, Sumir Esconder Acreditar, Crer Convencer Aprender Ensinar Conhecer Apresentar Ver Mostrar Cair Derrubar Subir Levantar Entrar Colocar, Enfiar Chegar, Vir Trazer Ir Levar Sair Tirar, Expulsar Voltar Devolver 1.2.4 A estratégia sintática A estratégia sintática é frequente dentre as línguas românicas, bem como no latim. Nesse tipo de causativização, outro verbo é introduzido na sentença, de modo a incluir um argumento à construção intransitiva ou transitiva. Abaixo, exemplos do português: (11) a. Os meninos caíram. b. O barulho fez os meninos caírem. (12) a. A empregada lavou a louça. b. O patrão fez a empregada lavar a louça. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 92 ÍNDICE { Em (11), temos a causativização (11b) de uma construção intransitiva (11a). O verbo fazer é cooptado para desempenhar o papel de causativizador e introduzir o argumento [o barulho]. (12) apresenta a causativização (12a) de uma sentença transitiva (12b), em que, como em (11), o verbo fazer é o causativizador. Nesse grupo de estratégia causativa, há um fenômeno abordado por Guasti (1997), chamado pela autora de causativas românicas. A partir dos exemplos em (13) e (14), explicaremos o processo. (13) Elena fa riparare Elena fazer consertar la macchina a Gianni o carro a Gianni ‘Elena faz consertar o carro a Gianni’ lit. ‘Elena faz Gianni consertar o carro’ (Guasti, 1997) (14) Je ferai manger les Eu fazer comer gâteaux à os Jean bolos a Jean ‘Eu farei comer os bolos a Jean’ lit. ‘Eu farei Jean comer os bolos’ (Lopes, 2008) Segundo Guasti (1997), embora se assemelhem às sentenças do tipo (11) e (12), as construções em (13) e (14), respectivamente italiano e francês, apresentam uma particularidade: o verbo fazer [fa e ferai] não entra na sentença como um causativizador, mas ele se incorpora ao verbo a ser causativizado, de modo que nenhum elemento possa se interpor entre eles. Assim, as sentenças em (15) são agramaticais, por não permitirem a incorporação de fazer com o verbo lexical da sentença: (15) a. *Elena fa Elena Gianni lavorare fazer Gianni trabalhar ‘Elena faz Gianni trabalhar’ b. *Je Eu ferai manger Jean fazer comer les gâteaux Jean os bolos ‘Eu farei Jean comer os bolos’ Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 93 ÍNDICE { 2 As causativas no latim A partir do que foi apresentado na seção 1, tratarei dos dados do latim, procurando identificá-los e caracterizá-los de acordo com os tipos discutidos. Em minha pesquisa, foram encontrados três tipos de causativas no latim: fonológicas, lexicais e sintáticas. Seguem os dados e sua descrição. 2.1 As causativas fonológicas Relativo a esse grupo, há uma importante literatura, sobretudo dos comparativistas do século XIX e do século XX. (Bopp, 1842; Meillet, 1934; Bourciez, 1946) Apenas uma obra consultada do século XXI tratava do problema (Baldi & Cuzzolini, 2009), mas comparando a tradução de causativas do hebraico e aramaico para o latim. Bopp (1842) apresenta um capítulo de seu volume sobre verbos dedicado exclusivamente à análise das causativas nas línguas indo-europeias. Partindo do sânscrito, em que há o morfema ay(a), Bopp descreve os verbos causativos no latim. Segundo esse autor, não há morfologia causativa no latim, mas há uma residual alteração fonológica – presente também no grego – herdada do indoeuropeu, normalmente de e para o, mas afirma que o sentido causativo da alternância foi perdido ao longo dos anos. É Ernout (1914) quem apresenta uma descrição mais apurada dessa alternância vocálica. Recorrendo frequentemente ao grego para atestar a ocorrência da alteração vocálica, Ernout (1914) é a principal fonte dessa seção. Segue um quadro comparativo que mostra os verbos causativos e não-causativos: TABELA 2: CAUSATIVAS FONOLÓGICAS Alternância Causativa/Não-causativa Causativos Não-Causativos Doceo disco moneo miniscor (originário de mens) noceo *neceo (forma não atestada derivada de nex) spondeo gr. spendo torqueo gr. trepo torreo gr. tersomai Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 94 ÍNDICE { Assim, embora o processo de causativização fonológica tenha se desgastado ao longo da evolução da língua latina, há resquícios de sua existência. Uma pesquisa nas fontes do latim arcaico pode encontrar as formas não atestadas ou somente encontradas no grego, além de descobrir outras. Interessantemente, Meillet (1943) informa que esse processo persistiu no alemão e cita o exemplo de fuoren ‘conduzir’ em oposição a faran ‘ir’. 2.2 As causativas lexicais Tomando por base a Tabela 1, procuramos as formas correspondentes no latim, de modo a listar alguns exemplos de causativas lexicais nessa língua. TABELA 3: CAUSATIVAS LEXICAIS Lexemas Verbais Não-causativos Causativos nascor pareo morior neco abeo abdeo credo convinceo nosco porrigeo video monstro cado deturbo scando tolleo intro colloco uenio affero eo deferro exeo duceo redeo abnueo Assim como em português, no latim ocorre a estratégia de marcar a causativização no próprio item lexical, gerando uma oposição entre palavras. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 95 ÍNDICE { 2.3 As causativas sintáticas O último tipo de causativa encontrada são as causativas construídas através do acréscimo de um verbo do tipo fazer. No latim, porém, ao contrário do italiano e do francês, não ocorre a incorporação do verbo lexical ao verbo causativizador, restando, portanto, apenas sentenças causativas em que o próprio verbo fazer é utilizado, introduzindo um argumento desencadeador e marcando a causativização na língua. Abaixo, sentenças que ilustram esse processo. (16) a. “... pavere faciam Aelam coram inimicis suis” (Vulgata, Psalm, 15:10) “Farei Elão temer diante de seus inimigos” b. “timere te faciam vultum eorum” (Vulgata, Ieremias, 1:17) “Farei você temer o rosto deles” c. “Obsecremus Deum, qui habitare facit unanimes in domu Patris sui” (Historiam ecclesiasticam gentis anglorum, livro II, 2) “Pediremos a Deus, que faz habitar os harmoniosos na casa do seu Pai” d. “hic futuit multas et se facit esse uenustum,” (Catulo, ad Aemilium) “Este fornicou muitas e se faz ser atraente” Em todas essas sentenças, temos como elemento causativizador o verbo facěre. Com isso, encerra-se a parte descritiva deste trabalho e, na próxima seção, faz-se o tratamento teórico aos dados apresentados. 3 Abordagem teórica da causativização no latim 3.1 A proposta de Hale e Keyser Além de apresentar, sistematizar e descrever o fenômeno da causação no latim, de modo a enquadrar essa língua dentre as tipologias possíveis, uma parte fundamental desse trabalho é o trato teórico que pode ser dado a essa questão. Na Teoria Gerativa, a obra de Hale e Keyser sobre estrutura argumental, incluindo a causativização, é de fundamental importância e amplo uso dentre os linguistas. Segundo esses autores, as sentenças se organizam de modo complexo em dois VPs, um nucleado por Vº, de natureza lexical e outro por vº, de natureza causativa, como mostrado abaixo: Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 96 ÍNDICE { (17) vP wo Spec v’ wo vº (verbo leve) wi Spec VP V’ wi Vº Compl (verbo lexical) Tendo por base essa estrutura, agora é necessário verificar como as sentenças do latim se encaixam nela e suas consequências teóricas. 4 Análise dos dados do latim Como visto, o latim apresenta três tipos de causativas: fonológica, lexical e sintática (também chamada de analítica). A causativa lexical não traz dificuldades em sua representação, visto que o sentido [causar X] faz parte do lexema. Já a causativa fonológica e a sintática merecem atenção, pois ambas, nesse quadro teórico, são realizações do núcleo causativo vº. (Chomsky, 1995) 4.1 Representando as causativas fonológicas Para dar conta dos dados expostos na tabela 2, será proposto, de acordo com a representação em (16), que o verbo é gerado na sua forma não causativa em Vº e move-se para vº, onde ocorre uma operação em interface com PF (Phonetical Form ‘Forma Fonética’) em que a vogal do radical muda para o e, assim, o verbo obtém sua forma final causativa. Abaixo, um exemplo do processo: (18) “Sex. Naevi P. Quinctio noceat” (Cícero, Pro Quinctio), “Sex Nevio prejudique P. Quinctio” lit. “Sex Nevio faça P. Quinctio ser lesado” Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 97 ÍNDICE { (19) (a) vP wo Sex Naevi v’ wo vº VP wi P. Quinctio (b) vP wo Sex Naevi wo vº noceati V’ g Vº neceat v’ VP wi P. Quinctio V’ g Vº ti Logo, através do movimento do verbo lexical (Vº) para o núcleo do verbo leve (vº), a sentença se torna causativa. 4.2 Representando as causativas sintáticas Esse grupo de causativas é caracterizado pela presença de um verbo (geralmente fazer) responsável pela causativização do evento mais um verbo lexical, nucleando o evento causado. Nessa estratégia causativa, o latim se aproxima de línguas como o inglês e o português, em oposição a línguas como o francês e o italiano, em que se encontram as chamadas causativas românicas. Uma sentença como (20a) tem sua representação como (20b), em que o núcleo vº é realizado pelo verbo faciam, e Vº se realiza como timere, o verbo lexical. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 98 ÍNDICE { (20) a. faciam te timere vultum eorum “Farei você temer o vulto deles” (20) b. vP wo v’ wo vº faciam VP wi te V’ wi Vº timere DP 4 vultum eorum Considerações finais A partir do exposto, este trabalho sistematizou como as sentenças causativas no Latim se estruturam , de acordo com a literatura tipológica aqui apresentada. Foram listados três grupos de sentenças causativas no latim: lexical, fonológico e sintático. Além disso, demonstramos, baseados na teoria gerativa, principalmente na proposta de Hale e Keyser (1993, 2002), de que forma essas estruturas são geradas e foi proposta uma explicação sobre as causativas fonológicas, grupo que não se perpetuou nas línguas românicas. Com isso, nosso trabalho cumpriu seu objetivo e ainda abre caminho para estudos futuros que levem em conta a diacronia para a descrição e explicação das causativas nas línguas românicas em geral. Referências BALDI, Phillip; CUZZOLIN, Pierluigi. 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Morphologie historique du latin, avec un avant-propos par A. Meillet. 3. éd., rev. et corr. Paris: Klincksieck. 1914 FORD, David C. The Three Forms of Arabic Causative. 2009. OPAL. <http://www.gial.edu/opal/index.htm> No. 2. GUASTI, Maria Teresa. Romance Causatives. In: Liliane Heageman (org.) The new comparative syntax, Longman, p.124-144, 1997. Hale, K. & Keyser, S. On argument structure and the lexical expression of syntactic relations. In: K. Hale & S. J. Keyser (eds.) The view from building 20. Cambridge, MA: MIT Press, 1993. ________.Aspect and the syntax of argument structure, MIT, 2002, ms HARRISON, Carl. The Interplay of causative and desiderative in Guajajara. Revista dos Cursos de Pós-Graduação em Letras UFPA. Belém, n.4, 1995. LOPES, Mário Alexandre Garcia. Proposta para a Estrutura do Sintagma Verbal Cindido: Concha v-VP. Revista ReVeLe. Belo Horizonte: 2008. MEI, Tsu-Lin. The Causative *s- and Nominalizing *-s in Old Chinese and Related Matters in Proto-Sino-Tibetan. Language and Linguistics 13, 1-28, 2012 MEILLET, Antoine. Introduction à l'étude comparative des langues indo-européennes - University of Alabama Press, 1964, reprint de la 6e ed. 1934. RADFORD, A. Syntax: a Minimalist Introduction. United kingdom: University Press, Cambridge. 1999. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 100 ÍNDICE { A formação de palavras via prefixação na língua latina Mailson dos Santos Lopes∗ Introdução Os processos de formação de palavras da língua portuguesa deixam entrever os da latina. (FURLAN, 2006, p.150) O breve estudo que aqui apresentamos, de caráter preliminar, visa a constituir uma das sessões de nossa dissertação de mestrado, que se debruça sobre a investigação do paradigma prefixal da língua portuguesa em sua primeira fase arcaica (séculos XII a XIV). A ideia de se realizar essa incursão à morfologia latina surgiu em uma das mesas-redondas sobre morfologia histórica do ROSAE — I Congresso Internacional de Linguística Histórica (precisamente, em 28/07/2009), ao ouvirmos da Prof.ª Clarinda Maia que um estudo da morfologia histórica em português que almeje ter uma base metalinguística segura necessitaria recorrer ao estudo da morfologia latina, sobretudo se o escopo for o de perscrutar fenômenos concernentes aos processos de formação de palavras. A análise dos dados referentes à prefixação no português arcaico realizada no âmbito da já mencionada pesquisa de mestrado só veio a corroborar a ideia exposta pela Prof.ª Clarinda Maia, visto que, para muitos aspectos complexos ou obscuros relacionados à natureza, à função, à produtividade ou à caracterização morfossemântico-lexical e morfofonológica da prefixação, a recorrência à língua latina vem sendo de fundamental importância para a compreensão da morfologia derivacional do português arcaico, propiciando o desenvolvimento de um olhar descritivo-analítico mais atilado sobre a constituição e funcionamento do paradigma prefixal da língua portuguesa em sua primeira fase de expressão documental escrita remanescente. ∗ Mestrando em Linguística Histórica pelo Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da UFBA, com pesquisa vinculada ao Programa para a História da Língua Portuguesa (PROHPOR). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 101 ÍNDICE { Da constatação irrefutável da primazia do estrato latino na lexicogênese da língua portuguesa, assim como da necessidade do desenvolvimento de uma incidência minuciosa nos processos morfológicos de formação de palavras no latim para a consecução de um estudo significativo sobre a morfologia derivacional do vernáculo, pretendemos apresentar alguns comentários à prefixação na língua latina, tomando-se como lastro primordial as observações e ilações presentes em um rol não-exaustivo de gramáticas latinas, gramáticas históricas (do português ou de outras línguas românicas) e outros estudos de natureza histórico-diacrônica. Almejamos, destarte, constituir um breve conjunto de observações sobre o processo de prefixação no latim, sob a forma de considerações críticas que estabeleçam uma maior aproximação ao mencionado fenômeno, tão importante e vigoroso na formação de itens lexicais, quer no sistema intralinguístico latino, quer no de suas línguas descendentes. 1 Perscrutando a prefixação na língua latina 1.1 Definição e caracterização Através da leitura das gramáticas latinas tomadas como lastro descritivo para este estudo, observamos que, quando há uma definição do item prefixal, esta geralmente apenas se pauta no aspecto da ubicação do formativo na estrutura interna do vocábulo. É o que ocorre, e.g., nos manuais de Almeida (2000), Almendra & Figueiredo (1996) e Riemann & Goelzer (1947). Obviamente, o critério de ubicação da partícula na cadeia sintagmática interna do vocábulo é uma característica importante para qualquer proposta de definição do item prefixal, mas não se constitui sozinho um critério suficientemente sólido para determinar a prefixação, pois também partículas compositivas (formas livres) regularmente conseguem encaixar-se na mesma posição esperada de um prefixo. A prefixação pode ser definida como a inserção de uma partícula afixal à periferia esquerda de uma base lexical (geralmente verbal ou nominal) a que se coaduna, fornecendolhe, ordinariamente, uma carga semântica subsidiária e, não engatilhando, na maior parte das vezes, um processo heterocategorial. A operação prefixal pode ser formalizada no esquema [X]y → [prefixo [X]y] y, em que X representa a base, e Y a categoria sintática desta. Ex.: [ponĕre] verbo → [re- [ponĕre] verbo] verbo. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 102 ÍNDICE { Quanto à superposição de prefixos, pelo que pudemos entrever, parece não ter sido um processo muito recorrente em latim, restringindo-se a alguns poucos casos, com alguns prefixos específicos. Parecem apenas atuar nessa concatenação os prefixos de-, dis-, e re-, ao se acoplarem a palavras em que já havia se agregado um morfema lexical subsidiário (*decomponēre1; disconvenĭō, -īs, -īre2; recompōnō, -is, -ĕre3). Como já afirmamos, a prefixação ocupou um lugar de destaque entre os processos de formação e ampliação do arcabouço lexical do latim, situação que foi transmitida desde o início às línguas novilatinas. Corroboram essa ilação os dados do próprio latim e os dados extraídos da documentação escrita dos primórdios do português (sécs. XII-XIV). Exemplificando: tinha-se no latim o verbo primitivo pōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum, do qual, via prefixação, derivaram-se diversos outros, constituindo uma espécie de família léxica derivacional, o que pode ser observado no esquema abaixo: PŌNŌ, -IS, -ĔRE, POSŬĪ, POSĬTUM4 ↓ 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 antepōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum5 compōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum6 contrapōnō, -is, -ĕre7 depōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum8 dispōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum9 expōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum10 impōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum11 interpōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum12 Cunha (2010, p. 201) propõe hipoteticamente esse verbo como forma existente no latim. Segundo Faria (1994, p. 178), registrado nos trechos 1, 1, 99 e 1, 14, 18 das Epístolas, de Horácio. Segundo Faria (1994, p. 466), registrado no trecho 50, 6 do texto Epistulae ad Lucilium, de Sêneca. Verbo identificável em muitos textos como, e.g., no Bellum Gallicum, de César (4, 37); no Tusculanae, de Cícero (5, 60) e nas Metamorfoses, de Ovídio (8, 452), segundo Faria. (1994, p. 423) Nos Anais, de Tácito (15, 32) e em Brutus, de Cícero (68), segundo Faria. (1994, p. 52) Em Pro Dejotaro, de Cícero (17); na Eneida, de Virgílio (8, 317); na Bellum Jugurthinum, de Salústio (18, 3); nas Metamorfoses, de Ovídio (4, 157); nas Epístolas, de Horácio (2, 1, 251), entre outros, segundo Faria. (1994, p. 123) Presente em Quintiliano (9, 3, 84), segundo Faria. (1994, p. 139) Em Pro Sulla, de Cícero (65); em Bellum Gallicum, de César (4, 32, 5); em Catulo 34, 8; entre outros, segundo Faria. (1994, p. 123) Em Orator, de Cícero (65); em Bellum Gallicum, de César (7, 34, 1) e em Lucrécio (1, 52), segundo Faria. (1994, p. 179) Em Cícero (De Republica, 2, 4; Epistulae ad Atticum, 5, 4, 3), em César (Bellum Gallicum, 5, 9, 1) e em outros escritores, segundo Faria. (1994, p. 211) Em Cícero (Tusculanae, 1, 85; Filípicas, 3, 12; Pro Murena, 38) e outros autores, segundo Faria. (1994, p. 266) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 103 ÍNDICE { oppōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum13 postpōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum14 praepōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum15 repōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum16 superpōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum17 suppōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum18 trānspōnō, -is, -ĕre, -posŭī, -posĭtum19 recompōnō, -is, -ĕre20 *decompōnĕre21 TABELA 01: Exemplo de uma família léxica derivacional de matiz prefixal na língua latina. Através do esquema acima podemos vislumbrar a função das operações prefixais no âmbito da língua: derivar de um termo primitivo novos vocábulos, sem com isso propiciar uma transcategorização gramatical22, acrescentando, na maioria absoluta dos casos, um conteúdo semântico explícito ao morfema lexical básico a que se concatena, modificando ou matizando a significação primeva do vocábulo23. 12 13 14 15 16 17 18 19 21 22 23 Em César (Bellum Civile, 2, 15, 2), em Cícero (Brutus, 287; De Divinatione, 2, 150), entre outros, segundo Faria. (1994, p. 289) Em Fastos, de Ovídio (4, 178); em Pro Sestio, de Cícero (42); em Bellum Civile, de César (3, 75, 5); entre outros, segundo Faria. (1994, p. 378) Em Bellum Gallicum, de César (5, 7, 2) e nas Epístolas, de Horácio (1, 18, 34), segundo Faria. (1994, p. 426) Em Cícero (Pro Lege Manilia, 63; De Inventione, 1, 58), em Lucrécio (6, 997), entre outros, segundo Faria. (1994, p. 433) Nos Anais, de Tácito (1, 63); em Verrinas, de Cícero (1, 147); na Arte Poética, de Horácio (190); em Quintiliano (10, 4, 2); entre vários outros, segundo Faria. (1994, p. 474) Em Tito Lívio (1, 34, 9); no texto Epistulae ad Lucilium, de Sêneca (58, 13) e em Petrônio (56); segundo Faria. (1994, p. 530) Em Cícero (De Natura Deorum, 2, 124; Paradoxa, 43), em Ovídio (Metamorfoses, 7, 118), entre vários outros, segundo Faria. (1994, p. 532) Nos Anais, de Tácito (2, 8), segundo Faria. (1994, p. 530) 20Cf. nota nº 3. Cf. nota nº 1. São esporádicos, mas existentes, os casos em que os prefixos operam processos heterocategoriais. Ocorre, e.g., em anti-FHC (classe fonte: subst.; classe-alvo: adj.) ou em sem-terra (classe fonte: subst.; classe-alvo: adj.). Atendo-se às operações mais prototípicas e generalizadas da prefixação e da sufixação, podemos dizer que o primeiro fenômeno ordinariamente atribui uma carga semântica lexical à base, sem normalmente mudar-lhe sua classe gramatical original, enquanto o segundo, normalmente, provoca uma mudança categorial, geralmente oferecendo também um novo matiz semântico ao morfema lexical básico a que se une. Contudo, há casos em que a inserção do prefixo em dada base não oferece qualquer carga semântica adicional àquela, configurando-se, assim, numa espécie de afixação expletiva, o que ocorre já no latim. É o caso, por exemplo, do que ocorre nos vocábulos deambŭlāre, denĕgāre, denōmĭnāre, ementior, effercio, illuceo. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 104 ÍNDICE { 1.2 A prefixação: um processo compositivo ou derivativo? Na maioria dos manuais de latim ou de linguística histórica consultados, a prefixação é caracterizada como processo de composição, em consonância com a tradição gramatical. Para Goulart & Silva (1975, p. 137), isso se dá porque a maioria dos gramáticos opta por partir do princípio de que, por serem os prefixos, em sua maioria, formas de existência independente (coincidentes com preposições ou advérbios), são imbuídos de um matiz compositivo. Outro fator que, segundo alguns linguistas, aproxima os prefixos da composição é o de não propiciarem mudanças na categoria gramatical da base a que se agregam. Em contrapartida, a postura que defendemos é a que a prefixação é um processo derivativo, juntamente com a sufixação. Antes de passarmos a delinear nossa perspectiva, mostramos a seguir uma tabela em que é exposto o julgamento dos principais autores consultados em relação à natureza compositiva ou derivativa dos prefixos. AUTORES COMPOSIÇÃO ALMEIDA (2000) X ALMENDRA & FIGUEIREDO (1996) DERIVAÇÃO X BASSETO (2010) X CÂMARA JR. (1975) X COELHO (1999) X COMBA (2004) X FARIA (1958) X FERREIRO (1997) X FERRO et al. (1989) X FREIRE (1998) X FURLAN (2006) X GOULART & SILVA (1975) X MATTOS E SILVA (2008) X MAURER JR. (1959) X RIEMANN & GOELZER (1947) X RIO-TORTO (1998) ROMANELLI (1964) SAID ALI (1971) X X X TABELA 02: Juízo de alguns autores sobre o caráter derivativo ou compositivo da prefixação. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 105 ÍNDICE { De um cômputo de 18 obras que constam da tabela acima, em 10 delas a prefixação é tomada como um processo de composição. Nas demais é concebida como processo derivativo, sobretudo nas mais modernas, pois entre os gramáticos mais antigos (excetuando-se Said Ali) era consensual a inserção da prefixação no rol dos fenômenos compositivos. Tomamos aqui a prefixação como processo derivativo, juntamente com a sufixação. Para tanto, refutamos os argumentos da autonomia lexical e separabilidade dos prefixos, visto que nem todos apresentam essas características, pois alguns elementos prefixais, como dis-, re-, in-1, ne-, ob- e ve-, não ocorrem como formas autônomas. Refutamos também a ilação de que, por não propiciar mudanças heterocategoriais à base a que se liga, a prefixação figura como processo compositivo. Ora, se fosse assim, a sufixação também não constituiria um processo derivativo (o que é impensável), pois há casos em que não viabiliza mudança de classe gramatical da base, como nos pares balanço (subst.) > balancete (subst.) e açougue (subst.) > açougueiro (subst.). E, além disso, como já dissemos, há casos em que prefixos produzem alterações na classe morfossintática do vocábulo. Por o prefixo derivar novos vocábulos, ou seja, servir ao processo de formação de novos itens lexicais na língua, fornecendo, ordinariamente, uma significação complementar ao núcleo mórfico do vocábulo primitivo, pensamos ser apropriado inserir a prefixação no rol da derivação. Além do mais, concordando in totum com a argumentação exposta por Coelho (1999), ponderamos que encaixar a prefixação e a sufixação em categorias totalmente diferentes de processos formativos não parece corresponder à realidade do sistema linguístico, em que tais processos demonstram ter uma proximidade funcional patente, compartilhando diversas características. 2 Traçando uma rota para a prefixação na língua latina O processo de prefixação inexistia no indo-europeu, língua que não possuía prefixos nem preposições, tal como afirmam Bassetto (2010, p. 167) e Romanelli (1964, p. 15). Segundo este último, em seu magistral estudo intitulado Os prefixos latinos, essa língua não admitia qualquer forma de adjunção de partículas à periferia esquerda do elemento radical, a não ser o redobro verbal ou nominal, sendo a prefixação um processo tardio, um fenômeno inovador, apenas atuante no sistema das línguas descendentes do indo-europeu. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 106 ÍNDICE { O latim, descendente do indo-europeu, passou a adotar um sistema de prefixos, ao lado de um sistema de preposições, sendo tais sistemas paralelos, coincidentes, somente rompido no latim vulgar, em que o sistema prepositivo sofreu grande redução quantitativa, enquanto o rol de prefixos se mantinha praticamente intocável. Um percurso de gramaticalização pode ser vislumbrado no processo de formação dos prefixos latinos, visto que, como se pode observar em Romanelli (1964, p. 15-16), a princípio, no próprio indo-europeu, existiam formas casuais (de valor locativo e instrumental) que, nessa mesma língua, acabaram fixando-se como advérbios de sentido concreto — de lugar e de tempo, segundo Bassetto (2010, p. 147) —, vindo a transformar-se, já no latim, em preposições e, em seguida, em prefixos (verbais ou nominais). Tal como afirma Bassetto (2010, p. 168), o sistema de preposições e prefixos constitui um inventário fechado, sendo muito raro o surgimento de novas partículas. O funcionamento desse inventário fechado, por sua vez, não se configurou uniformemente na história da língua latina. Podemos, assim, tomando como lastro teórico fundamental os estudos de Bassetto (2010), Romanelli (1964) e Maurer Jr. (1959), propor uma espécie de divisão da produtividade prefixal na língua latina, pautada em três registros distintos: a) a prefixação no latim clássico; b) a prefixação no latim vulgar; c) a prefixação no latim medieval (eclesiástico). Discorreremos a seguir, de forma concisa, sobre cada uma dessas três rotas. Pelas informações histórico-diacrônicas apontadas por Romanelli (1964), bem como pela nossa própria leitura de textos latinos, verificamos um alto índice da produtividade prefixal no latim clássico (81 a.C. — 68 d.C.), o que nos faz concordar plenamente com Câmara Jr. (1975, p. 229), ao assinalar que constituía então “[...] um processo fundamental para a criação de novas palavras [...]”, ou seja, era uma fonte pujante para a ampliação e o encorpamento do léxico latino. Almendra & Figueiredo (1996, p. 220) chegam a afirmar que a derivação (prefixal e sufixal) constituiu em latim o processo mais importante de formação de novos vocábulos, o que, certamente, não é um exagero. Basseto (2010, p. 169) deixa explícito que a maioria dos vocábulos prefixados correntes nas línguas românicas ocidentais originase no latim culto, clássico. Exemplos de vocábulos formados via prefixação e presentes nessa esfera do latim: abstēmĭus, -a, -um24; bicŏlor, -ōris25; contrādĭco, -is, -ĕre, -dīxī, -dīctum26; 24 Conforme Faria (1994, p. 17), presente nas Epístolas, de Horácio (1, 12, 6 e 1, 12, 7). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 107 ÍNDICE { dēclāmātor, -ōris27; imprudentĭa, -ae28; retrōcēdō, -is, -ĕre, -cēssi29; sēmivīvus, -a, -um30; além dos que apontamos no esquema da sub-seção 1.1., constituindo a família derivacional do verbo pôr em latim. Como segundo domínio da classificação da prefixação na história do latim, consideramos o latim vulgar (essencialmente falado, simplificado, analítico e mais permeável a elementos estrangeiros), de longa duração, vigente desde as origens de Roma (século VII a. C.) e se estendendo até o séc. VI d.C., quando, após a queda do Império Romano, a língua passou por fragmentação e diferenciação mais profundas, que dariam origem à formação de diversos romances e, posteriormente (séculos XI e XII), ao surgimento das línguas românicas. Por se tratar de um latim bastante peculiar e diferenciado em relação à língua clássica, consideramos metodologicamente viável acomodá-lo como um domínio distinto na formatação da prefixação latina. Em contraposição ao que ocorria no latim clássico, no latim vulgar a prefixação não era producente, segundo Maurer Jr. (1959, p. 242) e Bassetto (2010, p. 168-169).31 Ainda conforme estes, apenas os prefixos ad-, in-, ex- (ou e-), dis- e re- mostravam um uso recorrente e vivaz na criação vocabular, sobretudo verbal, já que a nominal tinha um emprego ainda mais restrito. O primeiro autor chega a afirmar que além de bem pobres, a composição e derivação no latim vulgar eram bastante peculiares. Já para o último, tal declínio na produtividade prefixal no latim vulgar ocorreu por ser esta língua predominantemente analítica, enquanto a prefixação é um processo de síntese. As formas adunare, addormire, *allongare, collocare, confortare, demorare, discooperire, dispenděre, excadēre, *excambiare, excurrěre, inflare, *impennare, repausare, reducěre, *reimitare, submittěre, supplicare, retiradas de Bassetto (2010) e de Maurer Jr. (1959), exemplificam a prefixação nessa segunda circunscrição da língua latina. 25 26 27 28 29 30 31 Conforme Faria (1994, p. 80), presente na Eneida, de Virgílio (5, 566). Conforme Faria (1994, p. 139), presente em De Inventione, de Cícero (2, 151) e em Quintiliano (5, 10, 13). Conforme Faria (1994, p. 159), presente em Orator, de Cícero (47). Conforme Faria (1994, p. 267), presente em Tito Lívio (4, 39, 6); em Orator, de Cícero (189) e em em Bellum Gallicum, de César (7, 29, 4). Conforme Faria (1994, p. 478), presente em Tito Lívio (8, 8, 9). Conforme Faria (1994, p. 499), presente em Verrinas, de Cícero (1, 45). Ainda que exponhamos essa ilação proposta por esses dois autores, não ousamos por ora defendê-la incondicionalmente. Isso só seria possível após uma observação exaustiva e sistemática de dados empíricos remanescentes do latim vulgar, o que não fazemos aqui. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 108 ÍNDICE { O terceiro registro da formação de palavras via prefixação se circunscreve ao latim eclesiástico (medieval), em que esse fenômeno foi mais produtivo e rico. Maurer Jr. (1959, p. 246) afirma que é graças a esse período que as línguas românicas ocidentais possuem uma prefixação pujante, vigorosa. Foi o latim eclesiástico que reintroduziu as formas prefixais latinas, que muitas vezes co-ocorrem com as vernáculas no português arcaico, como pudemos verificar nos pares superpor e sobrepor, interlocutória e antrelocutória, admoestados e amoestados, advogada e auogada. 3 Uma proposta de esquematização da morfofonologia e da morfossemântica prefixal latina Por causa da reduzida extensão desse artigo, bem como por ser recorrente em praticamente todos os manuais de latim a exposição de um inventário dos prefixos e dos sentidos que veiculam, trataremos nesta seção apenas de sistematizar concisamente tal listagem, com base em Romanelli (1964), oferecendo as indicações das alomorfias e do homomorfismo existentes. Após isso, passaremos a uma proposta de sistematização das relações semânticas que brotam da relação entre os prefixos latinos. (1) ab-, com seus alomorfes abs-, as-1, a-1 e ap-1. (2) ad-, com seus alomorfes a-2, ac-, af-, ag-, al-, an-1, ap-2, ar-, as-2 e at-. (3) ambi-, com seus alomorfes amb-, am- e an-2. (4) ante-, com seus alomorfes anti- e an-3. (5) au-. (6) bi-, com seus alomorfes bis- e di-1. (7) circum-, com seu alomorfe circu-. (8) cis-, com seu alomorfe ci-. (9) com-, com seus alomorfes col-, cor-, con- e co-. (10) contra-, com seu alomorfe contro-. (11) de-. (12) dis-, com seus alomorfes dif-, dir- e di-2. (13) du-. (14) ex-, com seus alomorfes ec-, ef-, e- e es-. (15) extra-. (16) in-1, com seus alomorfes il-1, im-1, ir-1 e i-. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 109 ÍNDICE { (17) in-2, com seus alomorfes il-2, im-2, -ir-2, indu-, endo-, indi- e ind-. (18) inter-, com seu alomorfe intel-. (19) intro-. (20) ne-, com seus alomorfes nec-, neque-, neg-, ni-. (21) ob-, com seus alomorfes oc-, of-, og-, op-, o-, obs- e os-. (22) per-, com seus alomorfes pel- e pran-. (23) por-, com seus alomorfes pol- e po-1. (24) post-, com seus alomorfes posti-, pos-, e po-2. (25) prae-, com seus alomorfes pre-, pri- e pris-. (26) praeter-. (27) pro-, com seu alomorfe prod-. (28) re-, com seu alomorfe red-. (29) retro-. (30) sed-, com seus alomorfes se- e so-. (31) sem-1, com seus alomorfes sim-1 e sin-1. (32) semi-, com seus alomorfes sem-2, sim-2, sin-2, se- e ses-. (33) sub-, com seus alomorfes suc-, suf-, sug-, sum-, sup-, sur-, subs-, sus- e su-. (34) subter-. (35) super-, com seu alomorfe supel-. (36) trans-, com seus alomorfes tra- e tran-. (37) tri-, com seus alomorfes ter-, tre-, te- e trium-. (38) uni-, com seus alomorfes un- e ul-. (39) ve-. Tudo parece apontar que as relações semânticas (polissemia, homonímia e sinonímia, antonímia) depreendidas do domínio da morfologia apresentam certa dissimilitude em relação às mesmas relações quando ativadas no componente lexical stricto sensu. Parece-nos, destarte, ser possível afirmar que as relações morfossemânticas são, de certa forma, peculiares. Assumindo tais diferenças como verazes, ao invés de utilizar as denominações homonímia, sinonímia e antonímia, preferimos adotar as designações homomorfismo, sinmorfismo e antinomorfismo. A primeira delas foi utilizada pela primeira vez por Faria (1958, p. 104) e a partir dela foi criada, paralelamente, a segunda designação, exposta pela primeira vez em Coelho. (2004, p. 139) Já a última é um termo neológico Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 110 ÍNDICE { cunhado em nossa pesquisa de mestrado, e que se aplica, no âmbito da morfologia, apenas à prefixação. Do inventário acima, observamos os seguintes prefixos homomórficos: a-1 / a-2; an-1 / an-2 / an-3; ap-1 / ap-2; as-1 / as-2; di-1 / di-2; il-1 / il-2; im-1 / im-2; in-1 / in-2; ir-1 / ir-2; po-1 / po-2; sem-1 / sem-2; sim-1 / sim-2; sin-1 / sin-2. Nesse fenômeno, os itens prefixais aparecem envolvidos em uma situação de coincidente materialização fônica e grafemática, mas com étimos e significados diferenciados, o que nos permite classificá-los como dois morfemas distintos, e não como variantes de um mesmo morfema. Verificamos também que são poucos os prefixos dotados de monossemia, sendo a maioria dos prefixos configurada numa rede polissêmica, em que se manifesta mais de um significado, geralmente associados entre si por um sistema radial, que apresenta inter-relações entre um núcleo sêmico (prototípico) e os demais sentidos, mais periféricos. Adotando-se a definição de sinmorfismo preconizada por Coelho (2004, p. 139), como caracterizada pela “[...] existência de dois morfemas que apresentam sequências fônicas distintas e, no entanto, apresentam-se, em um mesmo contexto ou em contextos distintos, agregando o mesmo valor [...], ou seja, revelando o mesmo sentido”, podem ser considerados sinmórficos os pares prefixais ab- e au-, bis- e du-, in-1 e ne-, re- e retro-, sub- e subter-. Já como representantes do antinomorfismo, ou seja, a relação semântica de oposição entre morfemas, podem ser tomados os pares ab- e ad- (e seus respectivos alomorfes a-1 e a-2; ap1- e ap-2; as-1 e as-2), cis- e trans-, ex- e in-2, extra- e intro-, prae- e post-, sub-/subter- e super. Conclusão Através de nossos estudos debruçados sobre a morfologia derivacional do português arcaico, vem se tornando cada vez mais evidente a necessidade de se ir beber na língua-mãe para compreender as inflexões e rumos de suas descendentes, o que confirma a importância fulcral do estudo dos processos mórficos latinos para a compreensão da morfologia do português arcaico e contemporâneo e das demais línguas novilatinas. Como não tecer relações entre o fluxo constante e vivo de prefixações incidentes em formas verbais no português medieval e a vitalidade desses mesmos prevérbios no latim clássico, vulgar e eclesiástico? E mais: tal como nos aponta Mattos e Silva (2008, p. 305), como realizar corretamente a segmentação mórfica do vocábulo esconder, cujo prefixo só se deixa depreender diacronicamente, sem recorrer ao seu étimo latino abscondere? Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 111 ÍNDICE { A prefixação, sobretudo a verbal, foi um importante mecanismo intralinguístico de constituição e ampliação do léxico latino, possibilitando a construção de famílias derivativas de vocábulos, fenômeno que foi transmitido às línguas românicas. Do que temos observado, muitos dos aspectos obscuros ou complexos que imergem da afixação dos morfemas lexicais subsidiários podem ser desvencilhados e resolvidos à luz da morfologia histórica, incidindo, principalmente, nos processos de formação de palavras no próprio latim. Do que foi dito acima e, sobretudo, através da análise da prefixação no português arcaico e da franca dependência de tal estudo à compreensão da morfologia na língua matriz, o latim, só nos cabe expressar, como palavras de conclusão desse artigo, a percepção que nos é cada vez mais confirmada, já constatada por Rio-Torto (1998, p. 18), de que “[...] a análise e a morfologia das palavras não pode ignorar as vicissitudes da gênese e da história destes. Assim sendo, é natural que nem todas as palavras possam caber nas malhas apertadas de uma análise meramente sincrônica.” Referências ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática latina: curso único e completo. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. ALMENDRA, Maria Ana; FIGUEIREDO, José Nunes de. Compêndio de gramática latina. Porto: Porto, 1996. BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica: história interna das línguas românicas. São Paulo: EDUSP, 2010. Vol. 2. ______. Elementos de filologia românica: história externa das línguas. 2. ed. 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Os prefixos latinos: da composição verbal e nominal, em seus aspectos fonético, morfológico e semântico. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade de Minas Gerais, 1964. SAID ALI, Manoel. Gramática histórica da língua portuguesa. 7. ed. melhorada e aumentada. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1971. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 113 ÍNDICE Indícios da evolução do latim na obra Fabvlae, de Gaivs Ivlivs Hyginvs Darla Gonçalves Monteiro da Silva∗ Introdução Este artigo pretende analisar dez fábulas presentes na obra Fabulae, de Gaius Iulius Hyginus (64 a.C. – 17 a.C.), levantando aspectos linguísticos pouco presentes em autores clássicos, mas com grande recorrência na referida obra. Destaco aqui o uso de pronomes demonstrativos de primeira e terceira pessoas com função sintática e a semântica de pronomes anafóricos, além do pronome relativo neutro quod usado como catafórico. O artigo constará de quatro partes. A primeira parte tratará do autor da obra Fabulae e trará informações sobre a utilidade das fábulas; a segunda parte trará um quadro geral da distribuição dos pronomes em sua forma canônica; a terceira apresentará o papel da anáfora sob a visão de Cançado (2005); a quarta parte trará a análise das fábulas escolhidas. Por fim, seguirão as considerações finais. 1 O autor e as fábulas O autor mais verossímil para a Fabulae parece ser Caio Júlio Higino, bibliotecário de Augusto. Espanhol, Higino foi levado a Roma por César, onde seguiu os ensinamentos de Alexandre, o Polímata. Depois de ser libertado, foi encarregado de dirigir a Biblioteca Palatina. Evocado por Suetônio (De Grammaticis, 20), este Higino é, então, um erudito, um polígrafo próximo do centro do poder. (BORIAUD, 2003) Restam dúvidas a respeito do interesse do autor sobre o tema, que não cabem ser resolvidas no presente artigo. Apesar de autores, nos séculos XIX e XX, negarem ao texto qualquer filiação à literatura clássica por causa da estilística que atribuíam a ela, tal argumento perdeu sua força, permitindo que o texto fosse datado à época de Augusto. De fato, durante a tradução das fábulas, foram encontradas passagens cujas construções não eram tão recorrentes na época clássica. Algumas dessas construções serão abordadas no correr deste texto. ∗ Graduanda no bacharelado em Latim pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 114 ÍNDICE Não podemos esquecer a função das fábulas. Entendemos aqui o termo “fábula” como histórias mitológicas. As fábulas de Higino são, por inteiro, histórias da mitologia Grega, escritas para um leitor latino pouco familiarizado com as etimologias gregas. Percebemos ao longo das fábulas, porém, a presença de helenismos, que o autor preferiu manter. 2 A distribuição canônica dos pronomes Interessa-nos, para análise, os pronomes demonstrativos de primeira – hic, haec, hoc – e terceira pessoas – ille, illa, illud –, o pronome anafórico – is, ea, id – e o pronome relativo – qui, quae, quod. Ernesto Faria diz que “os pronomes demonstrativos são empregados para mostrar as pessoas ou os objetos” (1958, p. 134) e aplicam-se ao lugar e ao tempo, indicando proximidade – primeira e segunda pessoa – ou a distância referente a ambas – terceira pessoa. Os pronomes anafóricos, por outro lado, referem-se a um termo da oração já mencionado ou anunciam um termo que será enunciado. (FARIA, 1958) Os pronomes relativos exprimem uma relação existente entre a oração na qual estão inseridos e um substantivo que geralmente se encontra na oração anterior, chamado antecedente. O pronome concorda com seu antecedente em número e gênero, mas assume o caso determinado pela função que desempenha em sua própria oração. Apresentamos abaixo, para melhor visualização, as tabelas dos pronomes demonstrativos, anafóricos e relativos, retiradas de Rezende (2009): Tabela I – Pronomes Demonstrativos de Primeira Pessoa Singular Nominativo Acusativo Masculino Feminino Neutro Masculino Feminino Neutro Hic Haec Hoc Hi Hae Haec Hunc Hanc Hoc Hos Has Haec Horum Harum Horum Genitivo Huius Dativo Huic Ablativo Plural Hoc Hac His Hoc His Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 115 ÍNDICE Tabela II – Pronomes Demonstrativos de Terceira Pessoa Singular Nominativo Acusativo Plural Masculino Feminino Neutro Masculino Feminino Neutro Ille Illa Illud Illi Illae Illa Illum Illam Illud Illos Illas Illa Illorum Illarum Illorum Genitivo Illius Dativo Illi Ablativo Illo Illa Illis Illo Illis Tabela III – Pronomes Anafóricos Singular Nominativo Acusativo Plural Masculino Feminino Neutro Masculino Feminino Neutro Is Ea Id Ii Eae Ea Eum Eam Id Eos Eas Ea Eorum Earum Eorum Genitivo Eius Dativo Ei Ablativo Eo Ea Iis, Eis Eo Iis, Eis Tabela IV – Pronomes Relativos Singular Nominativo Acusativo Masculino Feminino Singular Masculino Feminino Neutro Qui Quae Quod Qui Quae Quae Quem Quam Quod Quos Quas Quae Quorum Quarum Quorum Genitivo Cuius Dativo Ablativo Plural Cui Quo Qua Quibus Quo Quibus Tendo apresentado a distribuição e função dos pronomes a serem trabalhos neste artigo, passaremos à definição de anáfora dada por Cançado (2005). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 116 ÍNDICE 3 A anáfora na teoria linguística contemporânea. Márcia Cançado (2005) apresenta a definição de anáfora como identificadora de objetos, momentos, lugares, pessoas e ações através de uma “referência a outros objetos, pessoas etc., anteriormente mencionados no discurso ou na sentença.” (CANÇADO, 2005, p.56) Sendo assim, a interpretação de uma anáfora é derivada da expressão antecedente a qual se refere. Após apresentada a definição de anáfora e demonstrado como os pronomes seriam utilizados no latim clássico, passaremos à análise das fábulas do Higino. 4 Análise das fábulas. Até este ponto do trabalho, analisamos dez fábulas de um total de 277. São elas Phaeton, Proserpina, Triptolemus, Io, Titanomachia, Europa, Python, Semele, Lycurgus e Vulcanus. Por motivos de espaço, exporemos aqui somente os trechos relevantes para a compreensão dos fenômenos estudados, juntamente com nossas respectivas traduções. 4.1 Phaeton “Phaethon Solis et Clymenes filius cum clam patris currum conscendisset et altius a terra esset elatus, prae timore decidit in flumen Eridanum. Hunc Iuppiter cum fulmine percussisset...” “Como Faetonte, filho do Sol e de Climene, tivesse subido secretamente no carro do pai e tivesse sido levado muito alto acima da terra, por causa do medo, caiu no rio Eridano. Como Júpiter o tivesse castigado com um raio...” Nessa primeira fábula, temos a ocorrência de um pronome demonstrativo de primeira pessoa hunc com a função de pronome anafórico, retomando o nome Phaeton. 4.2 Proserpina “Pluton petit ab Iove Proserpinam filiam eius et Cereris in coniugium daret. Iovis negavit Cererem passuram, ut filia sua in Tartaro tenebricoso sit, sed iubet eum rapere eam flores legentem in monte Aetna, qui est in Sicilia. In quo Proserpina dum flores cum Venere et Diana et Minerva legit, Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 117 ÍNDICE Pluton quadrigis venit et eam rapuit; quod postea Ceres ab Iove impetravit, ut dimidia parte anni apud se, dimidia apud Plutonem esset. (...)” “Plutão pediu a Júpiter que lhe desse em casamento Prosérpina, filha dele e de Ceres. Júpiter disse Ceres não haver de suportar que sua filha viva no tenebroso Tártaro, mas mandou-o raptá-la enquanto colhia flores no monte Etna, que está na Sicília. Enquanto Prosérpina colhia flores no monte com Vênus, Diana e Minerva, Plutão veio no carro puxado por quatro cavalos e a raptou; depois, Ceres obteve de Júpiter isto: que ela ficasse junto a si metade do ano, metade junto de Plutão. (...)” Aqui, temos a ocorrência do pronome relativo neutro quod esvaziado de sua função. É usado como um catafórico, antecipando o que está expresso na oração iniciada por ut. 4.3 Triptolemus “Cum Ceres Proserpinam filiam suam quaereret, devenit ad Eleusinum regem, cuius uxor Cothonea puerum Triptolemum pepererat, seque nutricem lactantem simulavit. Hanc regina libens nutricem filio suo recepit. (...)” “Como Ceres procurasse sua filha Prosérpina, dirigiu-se ao rei Eleusino, cuja esposa Cothonea dera à luz o menino Triptólemo, e simulou-se uma ama-de-leite. A rainha de boa vontade aceitou-a nutriz para seu filho. (...)” Além do helenismo presente nesse trecho em Cothonea, que não traduzimos, há a ocorrência do pronome demonstrativo de primeira pessoa sendo novamente usado como um anafórico, retomando Ceres. 4.4 Io “Ex Inacho et Argia Io. 1Hanc Iuppiter dilectam compressit et in vaccae figuram convertit, ne Iuno 2eam cognosceret. 3Id Iuno cum rescivit, Argum, cui undique oculi refulgebant, custodem 4ei misit; 5hunc Mercurius Iovis iussu interfecit. (...)” “Io descende de Argia e Ínaco. Júpiter violentou-a, que foi sua escolhida, e transformou-a em uma forma de vada para que Juno não a reconhecesse. Quando Juno descobriu isso, mandou Argos, a quem os olhos refulgim por todos os lados, como vigilante para ela; Mercúrio, por ordem de Júpiter, matou-o. (...)” Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 118 ÍNDICE Temos, nessa fábula, dados interessantes. Em (1) e (5), há pronomes demonstrativos de primeira pessoa usados como anafóricos: (1) retoma Io e recebe, ainda, um adjetivo – dilectam –, tendo, portanto, um valor substantivo mais marcado; (5) retoma Argum. Os pronomes em (2), (3) e (4) são anafóricos, exercendo sua função. A ocorrência desses dois pronomes diferentes exercendo a mesma função em um único texto caracterizam o estado de variação linguística. 4.5 Titanomachia “Postquam Iuno vidit Epapho ex pellice nato tantam regni potestatem esse, curat in venatu, ut Epaphus necetur, Titanosque hortatur, Iovem ut regno pellant et Saturno restituant. 1Hi cum conarentur in caelum ascendere, 2eos Iovis cum Minerva et Apolline et Diana praecipites in Tartarum deiecit. (...)” “Depois de Juno ter visto que Épafo, filho de uma concubina, tinha tão grande poder de governo, cuida que Épafo seja morto em uma caçada e exorta os Titãs a expulsarem Júpiter do governo e restituírem-no a Saturno. Como eles tentassem ascender ao céu, Júpiter, com Minerva, Apolo e Diana, lançou-os de cabeça no Tártaro. (...)” Novamente, temos um pronome demonstrativo hi, em (1), usado como anafórico ao retomar Titanos, e um pronome anafórico eos, em (2), retomando, também Titanos. 4.6 Europa “Europa Argiopes et Agenoris filia Sidonia. 1Hanc Iuppiter in taurum conversus a Sidone Cretam transportavit et ex ea procreavit Minoem Sarpedonem Rhadamanthum. 2Huius pater Agenor suos filios misit, ut sororem reducerent aut (...)” “Europa Sidônia era a filha de Argíope e Agenor. Júpiter, transformado em touro, transportou-a de Sídon para Creta e gerou, com ela, Minos, Sarpédon e Radamante. Agenor, pai dela, enviou seus filhos para que trouxessem de volta a irmã ou (...)” Os dois pronomes demonstrativos de primeira pessoa em (1) e em (2), como anafóricos, retomam Europa. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 119 ÍNDICE 4.7 Python “Python Terrae filius draco ingens. 1Hic ante Apollinem ex oraculo in monte Parnasso responsa dare solitus erat. 2Huic ex Latonae partu interitus erat fato futurus. Eo tempore Iovis cum Latona Poli filia concubuit; 3hoc cum Iuno resciit, facit, (...)” “Píton, filho da Terra, era uma enorme serpente. Ele costumava, antes de Apolo, dar respostas em forma de oráculo no monte Parnaso. Era-lhe predestinada, como fado, uma morte a partir da descendência de Latona. Durante esse tempo, Júpiter se deitou com Latona, filha de Pólus; quando Juno soube isso, fez (...)” Em (1), (2) e (3), temos pronomes demonstrativos de primeira pessoa, os dois primeiros retomando draco. Em (3), o pronome, também agindo como anafórico, retoma toda a oração anterior. 4.8 Semele “Cadmus Agenoris et Argiopes filius ex Harmonia Martis et Veneris filia procreavit filias quattuor, Semelen Ino Agauen Autonoen, et Polydorum filium. Iovis cum Semele voluit concumbere; quod Iuno cum resciit, (...)” “Cadmo, filho de Agenor e Argíope, gerou de Harmonia, filha de Marte e Vênus, quatro filhas – Sêmele, Ino, Agave, Autônoe – e um filho, Polidoro. Júpiter desejou deitar-se com Sêmele; quando Juno soube disso (...)” Nessa fábula, temos um pronome relativo neutro quod agindo como um anafórico. A oração é a mesma presente em (3) na fábula anterior. A diferença ocorre no pronome utilizado: em Python há um pronome demonstrativo, nesta, há um relativo. 4.9 Lycurgus “Lycurgus Dryantis filius Liberum de regno fugavit; quem cum negaret deum esse vinumque bibisset et ebrius matrem suam violare voluisset, tunc vites excidere est conatus, quod diceret illud malum medicamentum esse quod mentes immutaret. Qui insania ab Libero obiecta uxorem suam et filium interfecit, ipsumque Lycurgum Liber pantheris obiecit in Rhodope, qui mons est Thraciae, cuius imperium habuit. Hic traditur unum pedem sibi pro vitibus excidisse.” Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 120 ÍNDICE “Licurgo, filho de Driante, afastou Líber do reino; como negasse ele ser um deus e como tivesse bebido vinho e, ébrio, tivesse desejado violentar sua mãe, tentou, então cortar as videiras, porque dissesse que aquele medicamente de má qualidade alterava as mentes. Ele, sob a loucura inspirada por Líber, matou sua esposa e o filho, e Líber lançou o próprio Licurgo às panteras no Ródope, que é uma montanha da Trácia, sobre o qual ele reinou. Conta-se ele ter cortado um único pé seu em lugar das videiras.” Novamente, temos um pronome demonstrativo hic com a função de anafórico, retomando Lycurgus. 4.10 Vulcanus “Vulcanus cum resciit Venerem cum Marte clam concumbere et se virtuti 1eius obsistere non posse, catenam ex adamante fecit et circum lectum posuit, ut Martem astutia deciperet. 2Ille cum ad constitutum venisset, concidit cum Venere in plagas adeo, ut se exsolvere non posset. 3Id Sol cum Vulcano nuntiasset, 4ille 5eos nudos cubantes vidit; (...)” “Quando Vulcano descobriu que Vênus deitava-se às escondidas com Marte e como não pudesse confrontar a força dele, fez uma corrente de diamante e colocou à volta do leito, para que apanhasse Marte com a astúcia. Quando ele tivesse vindo ao encontro, caiu com Vênus na armadilha de tal modo que não tivesse podido desprender. Como o Sol tivesse contado isso para Vulcano, ele viu-os deitados nus (...)” Temos, em (1), (3) e (5), pronomes anafóricos desempenhando sua função: (1) retoma Marte, (3), toda a oração anterior e (5) retoma Venere e, indiretamente, Martem. Em (2) e em (4), há pronomes demonstrativos de terceira pessoa retomando Martem e Vulcano, respectivamente. Há, portanto, novamente, dois pronomes de naturezas diferentes desempenhando a mesma função em um mesmo texto. Considerações finais Após a análise das fábulas, chegamos à conclusão de que a variação linguística na obra Fabulae, de Gaius Iulius Hyginus, é marcada, até o momento, pelo uso diferenciado dos pronomes demonstrativos, anafóricos e relativos. Parece não haver nenhum motivo específico para a aplicação dos diferentes pronomes em um contexto no qual apenas um, o Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 121 ÍNDICE anafórico, seria suficiente. O fato de ser uma obra para leitores latinos pouco familiarizados com termos gregos e, também, conter um estilo de escrita sucinto e econômico levanta a hipótese de que poderia ser destinada a um público desacostumado com o estilo das obras clássicas da época. É uma hipótese que pretendemos investigar mais profundamente no decorrer da pesquisa. Esperamos que este artigo seja um ponto de partida para estudos mais minuciosos de autores e obras da literatura latina clássica e de outras épocas, a fim de que possamos ter mais exemplos de variações linguísticas que nos ajudem a compreender melhor a evolução e mudança do latim. Referências BORIAUD, J.-Y. Fables. Paris: Belles Lettres, 2003. CANÇADO, Márcia. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. FARIA, Ernesto. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1958. REZENDE, Antônio Martinez de. Latina essentĭa: preparação ao latim. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 122 ÍNDICE Processos de gramaticalização de conjunções e Preposições em obras de São Boaventura Zélia Gonçalves dos Santos∗ Introdução A pesquisa intitulada Processos de Gramaticalização em Obras de São Boaventura propõe investigar o comportamento de algumas conjunções no latim clássico e no latim tardio, como elas surgiram, como se formaram, bem como empreender a análise do emprego das preposições, também no período clássico e no período tardio do latim, quando o uso desses elementos começou a se disseminar, assumindo esses itens, posteriormente, nas línguas românicas, a função de marcadores de caso. O estudo das conjunções e preposições far-se-á com base na teoria funcionalista da gramaticalização, através de textos em Obras de São Boaventura. São Boaventura foi um filósofo e teólogo escolástico medieval, nascido no século XIII. Estudou na Universidade de Paris (Sorbonne), em 1235, e, mais tarde, em 1257, tornou-se magister na Escola Franciscana de Paris. 1 Funcionalismo e gramaticalização Sabe-se que existem duas correntes linguísticas: funcionalismo e formalismo. Enquanto o funcionalismo é voltado para a semântica e a pragmática, o formalismo se interessa pela forma, e foca seu estudo na sintaxe. A Gramaticalização é um tipo de mudança linguística e tudo que afeta a gramática de uma língua. Alguns elementos sofrem alterações gramaticais e/ou semânticas no decorrer do tempo, passando antes por um período de variação. Há diversidade de perspectiva sobre a gramaticalização. O desacordo encontra-se até mesmo no que se refere ao termo para nomear esse processo. Alguns preferem chamá-lo de gramaticização ou gramatização. Entretanto, a maioria dos autores denominam-no de gramaticalização. Desse modo, muitos conceitos tem sido empregados nas diversas teorias ∗ Professora Assistente Nível 1 - UFBA Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 123 ÍNDICE para se referirem à gramaticalização: apagamento semântico, esvaimento semântico, morfologização, reanálise, redução, sintaticização, embora alguns deles estejam ligados a certas características sintáticas ou semânticas daquele processo, pode-se citar: Gramaticalização é o trajeto empreendido por uma forma, ao longo do qual, ela muda de categoria sintática (=recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações semânticas e fonológicas, deixa de ser uma forma livre até desaparecer, como consequência de uma cristalização extrema. (CASTILHO, 1997, p. 30.) A gramaticalização constitui, ultimamente, o centro de interesse de pesquisadores não só no exterior (Hopper, Heine, Claudi e Hünnemeyer, Traugott, Lehmann, Swestser, entre outros), como também no Brasil (Castilho, Braga, Votre, Poggio, Barreto e outros), em torno da qual há muitas discussões e questões a serem resolvidas. 2 Processos de gramaticalização de algumas conjunções 2.1 Conjunções que se mantiveram na passagem do latim para o português Entre as conjunções que se mantiveram na passagem do latim para o português, citam-se: e < et , ou < aut, quando < quando, se < si, como < quomodo. 2.1.1 A conjunção e A conjunção coordenativa aditiva e originou-se da conjunção aditiva latina et, derivada do advérbio latino et, por sua vez oriundo do advérbio indo-europeu eti ‘ além de’; Na passagem de et para o português, houve perda de elemento fonológico, desapareceu o t permanecendo e. 2.1.2 A conjunção ou A conjunção alternativa ou originou-se da conjunção alternativa latina aut ‘ou’ formada de um elemento adverbial au, acrescido da partícula – ti.; Com a conjunção aut também ocorreu perda de elemento fonológico (t) havendo a mudança de au > ou, do mesmo modo que aurum = ouro. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 124 ÍNDICE 2.1.3 A conjunção quando A conjunção temporal quando originou-se do acusativo feminino singular do relativo quam, adverbializado e somado à preposição indo-européia do, que significava ‘para’. A forma quando, que já havia assumido no latim, por um processo metafórico, o sentido temporal, passou, com esse mesmo valor semântico, ao português, vindo a constituir, mais tarde, a correlação quando... quando, cujo conteúdo semântico apresenta resquícios do valor temporal de origem. Abarcou todas as outras que significam ‘quando’ temporal Ex: ubi, ut. 2.1.4 A conjunção se A conjunção condicional latina si originou-se de sei, locativo do tema pronominal so/as ‘neste caso’, ‘em tal situação’. A conjunção condicional latina si, ao passar para o português se, manteve os valores semânticos de conjunção condicional e integrante que já possuía no latim. 2.1.5 A conjunção como A conjunção causal originou-se da conjunção latina quomo, forma apocopada do advérbio interrogativo latino quomodo; A forma Como – de advérbio interrogativo de modo e conjunção modal e causal, ainda no latim, passou ao português, inicialmente como conjunção modal, vindo a expressar, mais tarde, as relações de causa (que já expressava no latim), de comparação, de conformidade e de tempo (por analogia à conjunção temporal latina cum ~ quom; ainda por um processo metonímico, veio a constituir a conjunção concessiva como quer que e, associada às conjunções condicionais que e se, as conjunções comparativo-hipotéticas como que e como se. Como conjunção causal, experimentou ainda uma sintaticização, passando a ocupar a posição inicial no período. 2.2 Conjunções que desapareceram na passagem do latim para o português Entre as conjunções que desapareceram na passagem do latim para o português, citam-se: cum , sed, ut e vel Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 125 ÍNDICE 2.2.1 A conjunção latina cum e a sua equivalência em português A forma cum, em latim arcaico quam, originou-se de um antigo acusativo singular neutro ou masculino do relativo-indefinido que vai aparecer em composição em quoniam (de quom e iam), e no advérbio quondam ‘outrora’ A forma Cum ao, passar para o português, atingiu o estágio zero como conjunção temporal, entretanto, se manteve como preposição (com). 2.2.2 A conjunção latina sed e a sua equivalência em português A forma Sed – ‘mas’ segundo Ernout-Meillet, é provável que sed represente sed onde o e se abreviou diante do d final, enquanto que ela se conservou em composição: seditio. Os gramáticos citam uma forma arcaica sedum, duvidosa, e não atestada; a grafia set, condenada por eles, registra sem dúvida um ensurdecimento do d final diante da surda inicial da palavra seguinte, cf. apud e aput etc. Muito pouco expressiva, sed não permaneceu nas línguas românicas, onde foi substituída por outras palavras, em francês, por magis. Na língua portuguesa, mas experimentou a discursivização, tornando-se um elemento do discurso, muitas vezes sem qualquer conteúdo semântico. 2.2.3 A conjunção latina ut e a sua equivalência em português A forma ut originou-se do radical do relativo interrogativo- indefinido (forma reforçada uti) que perdeu a consoante inicial por simples acidente de sua evolução fonética. A conjunção final ut desapareceu dando lugar a quod e às conjunções que com esta se confundiram (quia e quid) dando origem a que. Quod > que ou qualquer outra conjunção equivalente tomou o lugar de ut como concessiva. 2.2.4 A conjunção latina vel e a sua equivalência em português A conjunção alternativa vel originou-se de uma forma primitiva velsi (do verbo volo ‘querer’), substituída mais tarde, por vis e tornada advérbio, significando ‘se quer’ ‘se deseja’. A forma vel conservou o valor semântico alternativo que já possuía no latim, quer quando empregada isoladamente, quer quando em correlação com aut. Caiu, entretanto, Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 126 ÍNDICE muito cedo, ainda no século XIII, sendo substituída, no mesmo século, pela conjunção quer... quer, de formação e valor semântico similares. 3 Conjunções documentadas em obras de São Boaventura Fez-se, até o presente momento, um levantamento de algumas conjunções e preposições em textos das obras de São Boaventura: Soliloquium de Quatuor Mentalibus Exercitiis., conforme exemplos a seguir: 3.1 Conjunções que se mantiveram na passagem do latim para o português Entre as conjunções documentadas no corpus analisado e que se mantiveram na passagem para o português, registram-se: e (< et) , ou (< aut), , quando (<quando), se (<si), como (<quomodo), sendo elas exemplificadas a seguir: ET Dei spiritus sancti consolatricem pietatem et clementiam, ne taedio devicta deficiat. Soliloquium § 1, p.309) ‘A consoladora piedade e clemência de Deus Espírito Santo, para não desfalecer, vencida pelo tédio.’ AUT [...] et secundum Augustinum, “omne bonum” nostrum aut Deus est, aut a Deo est. (Soliloquium § 1, p. 309) ‘E como se exprime Santo Agostinho “todo o nosso bem ou é Deus ou nos vem de Deus.’ QUANDO [...] quando irrabam, reduxit me...(Soliloquium § 42 ,p.332) ‘quando eu andava transviado, me reconduziste ao bom caminho.’ SI [...] Si recte sentis, puto, quod mecum dices.... Soliloquium (§ 19, p. 322) ‘Se tivesses juízo, dirias, creio comigo ...’ COMO (quomodo) [...] Quomodo coram te subsistam? Soliloquium (§ 11, p.318) ‘Como poderei apresentar-me em sua presença?’ Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 127 ÍNDICE 3.2 Conjunções que desapareceram na passagem do latim para o português CUM [...] Cum magna enim verecundia illuc venires, si eam in hac lacrymarum valle non amasses. (Soliloquium § 4, p.357) ‘Porque com grande vergonha irias a ela, se não a tivesses amado neste vale de lágrimas’ SED [...] Sed secundum Bernardum, singularis illa Majestas mori voluit, ut viveremus... (Soliloquium § 30, p.327) ‘Mas segundo São Bernardo: Aquela majestade singular quis morrer para que nós tivéssemos a vida...’ UT [...] Cunctae creaturae tibi vilescant, ut Creator tuus solus in corde dulcescat (Soliloquium § 9, p .342) ‘Sejam desagradáveis aos teus olhos todas as criaturas, a fim de que só o Criador seja doce ao teu coração.’ VEL [...] Vel aliter, secundum Bernardum. ( Soliloquium § 43, p. 333) ‘Ou, conforme ensina São Bernardo.’ 4 Processos de gramaticalização de algumas preposições 4.1 Preposições que se mantiveram na passagem do latim para o português Entre as preposições que se mantiveram na passagem do latim para o português, pode-se citar: por (< per), para;. (< ad), em (< in), diante (< ante), de (< de) com (< cum), sem (< sine), sob (< sub), sobre (< super). 4.1.1 A preposição per A preposição per ‘através de’, conforme W. Lindsay (apud POGGIO, 2002), está relacionada com o indo-europeu pero, ‘eu transporto’, ‘trago’ ou ‘passo através de’. Para ele há duas preposições latinas da mesma raiz per-: pr-o e pr-ae. Per passou a ‘por’ no português, mantendo-se até hoje para denotar a ‘causa’; entretanto, para significar ‘efeito’ a atingir’, caiu em desuso, sendo substituída por para. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 128 ÍNDICE 4.1.2 A preposição ad A preposição ad - W. Lindsay (apud POGGIO, 2002) assinala que essa preposição provém do indo-europeu ad, sem indicar a que classe pertencia. Passou para o português como ‘a’ apresentando alterações gramaticais e semânticas. 4.1.3 A preposição in A preposição in - W.Lindsay (apud POGGIO, 2002) afirma que a preposição latina in possuía uma forma mais antiga en, que corresponde ao indo-europeu en, sem indicar a que classe pertencia. No latim tardio, há um processo de sintaticização, em decorrência do uso dessa preposição apenas como acusativo. 4.1.4 A preposição ante A preposição ante -- W.Lindsay (apud POGGIO, 2002) assinala que ante ‘(ante’) vem do indo-europeu anti, locativo singular de uma raiz relacionada com o latim antes ‘ordem’ No latim, houve um processo de recategorização sintática, quando a forma adverbial ante foi empregada como preposição, passando assim a outra classe gramatical. 4.1.5 – A preposição de Segundo E. Faria (apud POGGIO, 2002), a preposição latina de é uma antiga forma casual fossilizada como advérbio, com a característica de servir ao mesmo tempo como preposição e como preverbo. De eliminou ab e ex que com ela competiam. No latim, ocorreu inicialmente a recategorização sintática da forma casual de um advérbio e, depois em preposição seguida de mudança de sentido. 4.1.6 – A preposição cum Segundo E. Faria (apud POGGIO, 2002), a preposição latina cum é uma antiga forma casual fossilizada como advérbio, caracterizando-se por servir ao mesmo tempo como preposição e como preverbo. Entretanto, A. Ernout e A Meillet (apud POGGIO, 2002), assinalam que não há registro de cum como advérbio. Durante a sua mudança, na língua latina, a forma casual cum, ao passar por um processo de enfraquecimento semântico, Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 129 ÍNDICE gramaticalizou-se, segundo alguns autores, como advérbio, e, na sua trajetória, cum foi posteriormente recategorizada como preposição. 4.2 Preposições que desapareceram na passagem do latim para o português Entre as preposições que desapareceram na passagem do latim para o português, citam-se: ab, ex, apud, propter, post, extra etc. 4.2.1 A preposição latina ab e a sua equivalência em português A forma ab, segundo W. Lindsay (apud POGGIO, 2002), originou-se do indoeuropeu ap (‘de”), forma abreviada do (grego). A forma ab à semelhança da preposição grega ‘apo’, foi empregada primeiro para denotar o ‘ponto de partida’, ‘afastamento de um lugar’, com idéia de movimento, donde equivale em vernáculo a de, do lado de, desde. Após um longo período de coexistência das formas ab, ex e de para indicar o ‘afastamento’, e a procedência passagem para o português, emprega-se apenas a preposição de, que, como já se observou, acaba por eliminar as outras; assim sendo, ex chega ao estágio zero da gramaticalização, sendo expresso seu conceito através da preposição de ou de locuções prepositivas, como: do interior de, das proximidades de, entre outras. 4.2.2 A preposição latina ex e a sua equivalência em português A forma latina ex, segundo W. Lindsay (apud POGGIO, 2002), provém do indoeuropeu eks, constituída de ek + a partícula se. Como já foi observado, a preposição ex, depois de conviver com ab e de, foi eliminada por esta, chegando ao estágio zero da gramaticalização. 4.2.3 A preposição apud e a sua equivalência em português A forma latina apud (latim arcaico aput), observa W. Lindsay (1937: 148), parece ser a preposição europeia apo, acrescida da partícula d(e) ou t(i) e deve ter sido originariamente apod ou apot. Conforme assinalam A Ernout e F. Thomas (1953), emprega-se apud, sobretudo, com verbos de estado e pessoas. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 130 ÍNDICE A preposição latina apud, na passagem para o português, desaparece, mas seu conceito é expresso, ou através do uso da preposição ante (port.arcaico), ou através do uso de locuções prepositivas (cerca de, junto de, diante de, chegando ao estágio zero da gramaticalização , somente usada em referências). 4.2.4 A preposição propter e a sua equivalência em português Segundo W. Lindsay (1937): 151), a preposição propter (‘perto de” é formada de prope acrescida do suf. tero. Para M. Bassois de Climent (1956:246), propter deriva-se de prope e, como essa, expressa proximidade ‘de, ‘junto de’. Em sentido local, é usada em todos os períodos, em alguns autores, como César, Nepote, Cúrcio, outros. Seu uso, porém, é mais frequente com acepção causal, pois muitos autores a preferem a ob. Também é empregada para indicar a pessoa de quem se vale para realizar algo ‘por meio de’. No período pós-clássico, essa preposição assume às vezes, um matiz de finalidade (para) e no período de decadência, ela tem, às vezes significado de referência ‘sobre’, ‘acerca de’ e se constrói com genitivo e ablativo. Para explicar o fenômeno de gramaticalização ocorrido, deve-se destacar que a preposição latina propter desapareceu completamente na língua portuguesa, chegando ao morfema zero, porém, em sua substituição, adotou-se no português arcaico a preposição por, que, conforme documenta Cunha (1980), no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, a mesma, originária do latim tardio, era uma forma metatética do clássico pro. No latim a preposição por concorria com a preposição per, por volta do século XVII. 4.2.5 A preposição post e a sua equivalência português A forma latina post, segundo W. Lindsay (apud POGGIO, 2002), do latim poste por post – ti, frequentemente entrou em composições com a perda do t, tendo como resultado pos, como em posquam. A forma post, antigo advérbio, foi recategorizado como preposição no português, significando depois de. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 131 ÍNDICE 4.2.6 A preposição extra e a sua equivalência em português A forma extra latina segundo V. Magnien (1948, p. 499), provém do ablativo feminino de exterus (extera), formada do mesmo modo que outras preposições, como infra, intra, supra e ultra. A preposição latina extra desaparece na passagem para o português, ocorrendo estágio zero do processo de gramaticalização, mas seu conceito é expresso ou através do uso da preposição ante e de ou através de locução prepositiva (fora de). 5 Preposições documentadas em obras de São Boaventura 5.1 Preposições que se mantiveram na passagem do latim para o português Entre as preposições documentadas no corpus Soliloquium de Quatuor Mentalibus Exercitiis, analisado até o presente momento, e que se mantiveram na passagem para o português, registram-se: Em (< in), para < ad), por (< per), com (< cum), abaixo exemplificadas: IN Lecto genua mea as Patrem Domini nostri Iesu Christi a quo omnis paternitas in caelo et in terra nominatur. (Soliloquium § 1 p. 309) ‘Dobro os meus joelhos diante do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual toda a criatura no céu e na terra deve sua existência.’ AD Anima humana ad Deum (Soliloquium § 6 p. 315) A alma humana foi criada para Deus. PER [...] ut det vobis secundum divitias gloriae suae virtute corroborari per spiritum...(Soliloquium § 1 p. 309) A fim de que ele nos conceda, segundo as riquezas de sua glória, que, por seu espírito. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 132 ÍNDICE CUM [...] Deliciae enim suae sunt esse cum filius hominum (Soliloquium § 5 p. 314) Porque acha as uas delícias em estar com os filhos dos homens. 5.2 Preposições que desapareceram na passagem do latim para o português AB Homo Propriisime secundum, naturam vivere est in terris caelestem vitam ducere, ab exterioribus ad interiora redire, ab inferioribus ab superiora ( Soliloquium § 11 p. 342) O homem – viver segundo a natureza, propriamente, é levar na terra uma vida celeste, das coisas exteriores recolher-se às anteriores; subir das inferiores às superiores. EX [...] Ex verbis enim tuis sentio, quod non fuit frustra mea admonitio ( Soliloquium § 9 p. 317) Das tuas palavras deprendo que não foram inúteis meus avisos. APUD [...] Ego et Pater meus ad eum veniemus et mansionem apud eum faciemus (Soliloquium § 5 p. 314) Eu e meu pai viemos a ele e faremos nele habitação PROPTER [...] Sed beatus est qui amat te, Domine, et inimicum propter te et amicum in te ( Soliloquium § 46 p. 334) Feliz, pelo contrário, é quem ama a ti, Senhor, e aos inimigos por amor de ti, e aos inimigos em ti. POST Interrogatio Animae. Dic, quaeso, o homo, si post devotam invocationem divinae magnificentiae et post humilhem implorationem aeternae sapientiae... ( Soliloquium §1 p. 311) Pergunta da Alma. Dize-me, por favor, ó Homem – depois de invocar devotamente a divina magnificência, de implorar humildemente a divina sapiência. EXTRA [...] Cumque eorum affectui nihil extra Deum sufficiat, Supernis interesse civibus appetunt, et adenue in mundo positi: extra mundum surgunt ( Soliloquium § 8 p. 340) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 133 ÍNDICE E como nada satisfaz as suas aspirações fora de Deus, só descansam na quieta contemplação de seu Deus, anelam ardentemente por serem associadas ao cidadão do céu, e embora morando ainda no mundo, sobre ele se elevam. Considerações finais Por fim, far-se-á um trabalho exaustivo, estudando os processos de gramaticalização pelos quais passaram algumas conjunções e preposições no latim e no português, para, numa etapa posterior fazer o mesmo estudo com conjunções e preposições, em textos de Obras de São Boaventura, no latim e na língua italiana, buscando assim, dar uma contribuição para o estudo da mudança que acompanha os processos de gramaticalização de conjunções e preposições. Referências BARRETO, Therezinha Maria Mello. Gramaticalização das conjunções na história do português. Salvador. UFBA. Tese de Doutoramento em Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1992. 413 p. CASTILHO, Ataliba T. de. A gramaticalização. Estudos linguísticos e literários, Salvador, v. 19, p. 25-64, mar 1997. ERNOUT, Alfred; MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots, Ret. De la 4ª édition augmentée d”additions et de corrections par Jacque André. Paris: KLINCKSIECK, 2001. [Disponível em: http://frscribd.com/doc/40784138/Ernout-MeilletDictionnaire-Etymologique-de-la-langue-latine Acesso em: 6 jun de 2012.] FARIA, Ernesto. Gramática Superior da Língua Latina. Rio de Janeiro, Livraria Acadêmica. 1958. POGGIO, Rosauta M. G. F. Processos de Gramaticalização de Preposições do Latim ao Português, Uma Abordagem Funcionalista. Salvador, EDUFBA, 2002. POGGIO, Rosauta M.G. F. A Gramaticalização na História das Preposições do Latim ao Português. [Disponível em http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/32/htmcomunica/ci210.htm Acesso em: 8 jun de 2012.] POGGIO, Rosauta M. G. F. Aspectos da História das Preposições do Latim ao Português. Disponível em: <http://www.gelne.ufcbr/revista ano 4 no2 05pdf> Acesso em 9 jun.2012. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 134 ÍNDICE SÃO BOAVENTURA, Soliloquium de quatuor mentalibus exercitiis; Solilóquios sobre os quatro exercícios mentais. Trad. De Frei Saturnino Schneider. In___: Obras escolhidas, Traduzido por Luís Alberto de Boni, Jerônimo Jerkovic e Frei Saturnino Schneider. Organizado por Luís Alberto de Boni. Caxias do Sul; Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Universidade de Caxias do Sul. Sulina/Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vozes, 1983. P. 373-403. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 135 ÍNDICE Figuratividade na poesia bucólica de Virgílio: um estudo da poética da expressão Thalita Morato Ferreira (UNESP-Araraquara)∗ Orientador: Prof. Dr. Márcio Thamos (UNESP-Araraquara)∗∗ Introdução Ao buscar motivos poéticos em Teócrito (século III a.C), o poeta siracusano responsável pela criação do gênero bucólico ou pastoril, Virgílio, poeta do Período Clássico na Literatura Latina, compõe, aproximadamente entre 41 e 37 a.C, um conjunto de dez poemas que a tradição dos Estudos Clássicos convencionou chamar de Bucólicas. Nesta obra, o poeta constrói personagens e ambientes campestres, apresentando-nos uma linguagem repleta de elementos figurativos e contornos estilísticos. Em uma simples leitura exploratória das Bucólicas, é visível a alternância de diálogos (I, III, V, VII e IX) e monólogos (II, IV, VI, VIII e X), o que a tradição nomeia como uma alternância entre monodias e cantos amebeus. Nas bucólicas ímpares o diálogo é patente em quase todo o texto, enquanto nas bucólicas pares o discurso prevalece sobre o diálogo. A composição, a ordem e a cronologia das Bucólicas tem sido alvo de estranheza e discordância entre os comentadores da obra de Virgílio. Não é de interesse deste trabalho estabelecer uma rigorosa cronologia que levante a hipótese da ordem de composição e publicação das Bucólicas, pois além de pertencer a um terreno obscuro, não colabora para o entendimento da poeticidade evidenciada nesses textos. Com vistas à exequibilidade do trabalho, procuramos destacar do conjunto de dez poemas aqueles em que o discurso é dominante em relação aos diálogos, ou seja, os poemas pares. Não se trata de uma divisão criteriosa, mas tão somente de uma seleção que se fez necessária para o desenvolvimento do trabalho. ∗ ∗∗ Bolsista CAPES – Mestranda em Estudos Literários da UNESP, campus de Araraquara. Professor de Língua e Literatura Latinas. Departamento de Lingüística. UNESP, campus de Araraquara. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 136 ÍNDICE Assim, com vistas ao reconhecimento do poético presente nos versos de Virgílio, pretende-se destacar o arranjo estilístico utilizado pelo poeta e, com isso, tentar compreender o revestimento estético adotado nas composições, desenvolvendo uma investigação científica sobre poesia latina e expressão poética. A Semiótica, que norteia as análises dos poemas aqui mencionados, concentra-se nos estudos da apreensão e da construção do sentido. Para essa ciência interessa o modo como as relações estruturais da linguagem são capazes de produzir a significação. De tal modo, o sentido aparece engendrado por uma forma, ou seja, por uma estrutura que o particulariza. O conceito semiótico de figuratividade está intimamente relacionado com a teoria do sentido e, por isso mesmo, abrange os fenômenos tanto semânticos como culturais que aparecem interligados no processo de apreensão e construção da significação. A figuratividade é uma categoria descritiva que, ligada à teoria estética, abarca o figurativo e o não-figurativo (ou abstrato), este último sempre aparecerá revestido por figuras que o particularizam. Nesse sentido, no processo de figurativização de um texto, encontramos o nível da figuração, em que um tema, ou seja, um discurso abstrato, é convertido em figuras; e também o nível da iconização, em que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do mundo, provocando, assim, uma ilusão ou impressão referencial. Este termo é definido como sendo “o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de sentido “realidade”. (GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 223) A figuratividade, como observa Bertrand (2003, p. 154), “Sugere espontaneamente a semelhança, a representação, a imitação do mundo pela disposição das formas numa superfície”. De tal modo, um texto classificado como figurativo cria figuras capazes de representarem, verbal ou visualmente uma figura do mundo natural. O efeito sugerido por essa representação pode transmitir ao leitor a ideia de “realidade”, “irrealidade” ou até mesmo “surrealidade”. Trata-se de efeitos específicos gerados pelo texto por meio de estratégias discursivas e que são capazes de criar impressões referenciais. Sobre isso Bertrand (2003, p. 157) afirma que: A figuratividade se define como todo conteúdo de um sistema de representação, verbal, visual, auditivo ou misto, que entra em correlação Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 137 ÍNDICE com uma figura significante do mundo percebido, quando ocorre sua assunção pelo discurso. Nesse sentido, é pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto podem gerar ilusões da realidade, produzindo imagens capazes de representar o mundo natural, concreto. De acordo com o conceito de representação aqui sugerido, a figuratividade incorporaria a criação de um simulacro com a aparência de verdadeiro, estabelecendo uma noção intertextual entre a realidade e o texto literário. Com vistas à dimensão enunciativa e figurativa dos poemas bucólicos de Virgílio, a “II”, a “VI” e a “VIII” Bucólicas serão apresentadas como exemplo do revestimento particular da linguagem poética, com destaque para a poeticidade que engendram. 1 Bucólica: Córidon, o pastor apaixonado A “II Bucólica” apresenta o monólogo notadamente lírico do pastor Córidon que utiliza o cenário campestre para cantar o seu amor ao menino Aléxis. O pastor sofre as angústias de uma paixão não correspondida e todo o cenário bucólico compartilha de sua tristeza. Nos primeiros versos do poema (hexâmetros 6 e 7), o leitor pode depreender a sensibilização do sujeito lírico que canta: [hex. 6-7] O crudelis Alexi, nihi mea carmina curas? Nil nostri miseri? Mori me denique coges. (VIRGILE, 1956, p. 29) Tradução de estudo: Ó cruel Aléxis, não te aprazes os meus versos? Não te apiedas de mim? Tu me forçarás, finalmente, a morrer. A partir do vocativo “Ó cruel Aléxis” e da expressão “tu me forçarás, finalmente, a morrer”, conseguimos depreender um efeito de sentido, o da tristeza, que é construído no texto a partir de uma seleção lexical. Evidencia-se, portanto, a construção do tom melancólico que perpassará todo o poema. A disjunção em relação ao objeto de sua paixão leva o pastor a cantar a razão de sua melancolia, que é a impossibilidade de concretização do seu amor. Mas Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 138 ÍNDICE também podemos evidenciar em seu canto uma tentativa de convencimento, já que Córidon tentará persuadir o menino Aléxis, alvo de sua paixão, afirmando no hexâmetro 19: “despectus tibi sum, nec qui sim quaeris, Alexi” (tenho sido desprezado por ti, Aléxis, e tu não queres saber como sou)1 e também nos hexâmetros 25 e 26: “Nec sum adeo informis: nuper me in litore uidi/ cum placidum uentis staret mare” (Nem sou disforme: recentemente me vi na costa, quando o mar estava calmo e sem vento)2. Assim, apreendemos, pelo arranjo particular da linguagem, um efeito de sentido que emerge da tentativa de convencimento a um destinatário, o menino Aléxis. O canto pastoril de Córidon, expressa, dessa forma, a confissão de um estado melancólico e triste, o que, nesse contexto, pode ser visto como uma tentativa de cantar e sensibilizar o seu destinatário. Mas a natureza é a única testemunha do canto do pastor e, já sensibilizada, ela refletirá o seu canto. Os hexâmetros 12 e 13 apresentam-nos o canto do pastor que, inserido em um cenário campesino, vale-se das imagens que a natureza lhe oferece para poder construir o próprio canto. Dessa forma, Córidon menciona o canto melódico e sibilante das roucas cigarras. [hex. 12-13] At mecum rauciS tua dum ueStigia luStro, Sole Sub ardenti reSonant arbuSta cicadiS. (VIRGILE, 1956, p. 29, grifo nosso) Tradução de estudo: Mas comigo, enquanto eu sigo as tuas pegadas, sob o ardente sol, os arvoredos ressoam com as roucas cigarras. O conjunto de sibilantes que estão dispostas nos dois versos mimetiza a cena que está sendo descrita pelo pastor, já que sugere a sibilância do canto das cigarras, um canto que emerge da natureza e que, associado ao canto melancólico do pastor, contribui para a construção de um canto lírico-pastoril. A aliteração em /s/ figurativiza, assim, o som sibilante das roucas cigarras, que são de extrema importância para a composição da cena campestre. O que se pode observar nesse trecho é uma manipulação artística da linguagem, 1 2 Tradução de estudo. Tradução de estudo. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 139 ÍNDICE na qual, relacionando o som com o sentido, o poeta procura dar relevo àquilo de que fala. Trata-se, portanto, do desejo do artista de fazer com que o discurso poético se “identifique concretamente com o próprio referente”. (THAMOS, 2003, p. 114) Além disso, a alusão mimética ao mundo natural, produzida a partir do conjunto de sibilantes, deve ser lida como a etapa final da figurativização do texto, o nível da iconização. Assim, O processo de criação de imagens poéticas é, por natureza, um processo inventivo em que a sensibilidade lingüística do poeta, conjugando-se com sua própria experiência lírica, procura despertar a sensibilidade do ouvinteleitor, provocando-lhe determinadas impressões afetivas, a fim de alcançar certa afinidade psicológica, naturalmente mediada pelo texto. (THAMOS, 2010, p. 45) Ainda com relação aos expedientes estilísticos evidenciados na “II Bucólica”, merece destaque o momento em que Córidon tenta convencer Aléxis sobre a boa vida no campo. O pastor passa a cantar sobre personagens mitológicos e elementos da vida campesina, descrevendo como as ninfas e as náiades (divindades campestres) estariam dispostas a agradar Aléxis com presentes dignos de um deus caso ele se entregasse ao seu amor. Os versos selecionados (hexâmetros 45-50) apresentam um rigor formal e um relevo estilístico marcantes na descrição de flores e, especialmente, na construção poética. [hex. 45-50] «Huc ades, o formose puer: tíbia lilia plenis ecce ferunt Nymphae calathis; tibi candida Nais, pallentis uiolas et summa papauera carpens, narcissum et florem iungit bene olentis anethi ; tum, casia atque aliis intexens suauibus herbis, mollia luteola pingit uaccinia calta. (VIRGILE, 1956, p. 30) Tradução de estudo: Venha, aqui, ó formoso menino, as Ninfas3 ofertam os lírios em amplas cestas. Veja, é a cândida Náiade4 que para ti colhe pálidas violetas5 e altas papoulas, unindo-as com o narciso6 e a flor de endrão7 3 4 5 6 Ninfas, divindades secundárias responsáveis pela proteção aos bosques, campos e águas. Náiade, ninfa das fontes e rios. Pálidas violetas, violetas brancas. Narciso, planta bolbosa que apresenta flores perfumadas e de cores variadas: brancas, amarelas, laranjas ou vermelhas. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 140 ÍNDICE perfumado. Então, entrelaçando-as com a casia8 e outras suaves ervas, decora os delicados murtinhos9 com caltas10 amarelas. Deste trecho, merece destaque o hexâmetro 50, que é considerado como um uersus aureus na literatura latina, já que apresenta dois adjetivos seguidos de dois substantivos, os quais eles concordam e modificam respectivamente. No centro do verso, encontramos o verbo pingit, que invoca a ação de matizar, decoração que é proporcionada pela Náiade ao entretecer diversas flores em uma espécie de buquê, possível presente a ser ofertado ao menino Aléxis se ele viesse a desfrutar da companhia do pastor Córidon, aquele que nos canta seu lamento. Mollia luteola pingit uaccinia calta Adj 1. Adj. 2. Verbo Subst. 1 Subst. 2 Mollia. Adj. 1 (delicados) Adjetivo acusativo plural que modifica Uaccinia (murtinhos) Subst. 1 Luteola Adj. 2 (amarela) Adjetivo ablativo singular que modifica Calta (calta) Subst. 2 Nota-se, neste verso, que a disposição dos sintagmas mimetiza a ordem das flores estruturadas pela Náiade. A calta (subst. 2) amarela (adj. 2) é colocada entre os murtinhos (subst. 1) delicados (adj. 1), mesclando, assim, as diferentes cores do buquê. Vale ressaltar ainda que a ideia expressa no verso, a de um enfeite de flores produzido pela Náiade, está presente iconicamente, deixando entrever, pelo arranjo particular da linguagem, a imagem de um buquê pela distribuição das palavras no verso. Nota-se ainda que as figuras utilizadas nesse trecho sugerem o encanto e a beleza da vida campesina, motivo pelo qual Córidon utiliza-as para convencer Aléxis. 7 8 9 10 Endrão, planta umbelífera com folhas e flores aromáticas. Caneleira ou casia, identificada como pertencente à família do loureiro. Murtinho ou murta, arbusto com folhas aromáticas verde-escuras e flores brancas. Calta, planta silvestre, perene e ornamental. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 141 ÍNDICE 2 Bucólica: Sileno embriagado Na “VI Bucólica” encontramos dois rapazes, Cromis e Mnasilo, que encontram Sileno adormecido e embriagado. Os jovens resolvem amarrá-lo para, assim, obrigá-lo a cantar. Uma Náiade ajuda-os na brincadeira. Ao acordar, Sileno promete cantar se os jovens o soltarem. Assim, ele canta sobre a criação do mundo, sobre mitos famosos e metamorfoses. O trecho selecionado para análise refere-se ao canto de Sileno, ao momento em que ele cita o mito de Pirra, esposa de Deucalião, que após ser salva de um dilúvio, juntamente com seu marido, teve que repovoar a Terra lançando pedras para trás das costas. As pedras atiradas por Deucalião transformavam-se em homens e as de Pirra em mulheres. Sileno também menciona os reinos de Saturno, fazendo alusão à Idade de Ouro e à primavera eterna que são características desse tempo. O cantor também cita Prometeu, que roubou o fogo dos deuses do Olimpo para ofertá-lo aos homens. Por isso, ele foi preso a um penedo no Cáucaso, onde uma águia lhe roia as entranhas diariamente. [hex.41-42] Hinc lapides Pyrrhae iactos, Saturnia regna, Caucasiasque refert uolucris, furtumque Promethei. (VIRGILE, 1956, p. 51) Tradução de estudo: Aqui, traz de novo as pedras atiradas de Pirra, os reinos de Saturno, as aves do Cáucaso (caucásias) e o furto de Prometeu. Nesse trecho, em que há uma rápida referência ao mito de Prometeu, nota-se que a ave que deveria aplicar o castigo aparece no plural, embora a tradição do mito revele que apenas uma ave cumpria a punição. Nota-se, portanto, a presença de um plural poético, que não é incomum na poesia latina. O emprego do substantivo “uolucris”, no plural, concretiza a ideia de ir e voltar da ave, fazendo alusão à punição que se repetia diariamente. Tendo em vista que a primeira etapa da figurativização de um texto diz respeito ao nível da figuração, quando determinado tema abstrato é revestido por figuras concretas, observa-se que o mito de Prometeu seria o tema abstrato, geral, que aparece revestido por figuras, no caso, as aves, que concretizam a ideia de repetição presente, tematicamente, no mito. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 142 ÍNDICE 3 O canto dos pastores A “VIII Bucólica” apresenta-nos o canto de dois pastores, Damão e Alfesibeu. No primeiro monólogo, Damão canta os infortúnios de um pastor traído e que, abandonado, escolhe o suicídio como último recurso de seu amor infeliz, enquanto Alfesibeu, no segundo monólogo, canta os rituais mágicos de uma mulher que se vale de todos os artifícios para trazer o amado de volta. Do canto de Alfesibeu merece destaque o trecho em que a magia é executada: [hex.76-79] Ducite ab urbe domum, mea carmina, ducite Daphnim Necte tribus nodis ternos, Amarylli, colores; necte, Amarylli, modo et “Veneris” dic “uincula necto” Ducite ab urbe domum, mea carmina, ducite Daphnim (VIRGILE, 1956, p. 62) Tradução de estudo: Trazei Dáfnis, da cidade à minha morada, meus encantamentos, trazei. Ata com três nós as cores três a três, Amarílis; ata já, Amarílis, e dize: “os laços de Vênus eu ato”. Trazei Dáfnis, da cidade à minha morada, meus encantamentos, trazei. Neste trecho, uma feiticeira, desejosa de rever o amado, pede à criada Amarílis que faça três nós em três laços de três cores. O motivo da menção à deusa do amor revela-nos que o encantamento é amoroso. Assim, este ritual de magia tem o objetivo de encontrar e trazer de volta ao campo o jovem Dáfnis, objeto de desejo de uma mulher cujos rituais são cantados por Alfesibeu. Nota-se que o número três é expresso, figurativamente, na triplicação do verbo “nectere”, que aparece duas vezes no imperativo e outra no presente do indicativo (“necto”). Essa repetição, de caráter encantatório, caracteriza-se como elemento formal determinante da mágica ou do feitiço. Observa-se, assim, que a utilização do verbo “nectere” favorece, de algum modo, a figurativização da cena que está sendo descrita, uma vez que se trata de um elemento verbal que reforça o feitiço lançado a Dáfnis, ilustrando, portanto, a ideia de repetição que está em consonância com o ritual mágico expresso nos versos. Assim, o trecho em destaque favorece à representação icônica, deixando entrever, pelo arranjo particular da linguagem poética, a imagem de um canto mágico. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 143 ÍNDICE Considerações finais Com a análise dos recursos da figuratividade sob a perspectiva de uma poética da expressão, procurou-se destacar nos poemas de Virgílio o arranjo estrutural da linguagem poética. Como se sabe, os procedimentos de figurativização de um texto são estabelecidos em dois níveis. No primeiro, o da figuração, um tema (abstrato) deve ser revestido por figuras, enquanto no segundo, o da iconização, as figuras instauradas em um discurso teriam o poder de se transformar em imagens do mundo, provocando, através de um revestimento particular da linguagem, uma ilusão referencial, ou seja, a criação de um simulacro análogo à realidade. Logo, a poeticidade de um texto só pode ser reconhecida se o efeito produzido ficar justificado por um arranjo estrutural do discurso. Com base no raciocínio tecido por Greimas (1975, p. 12), para que esse efeito seja construído [...] o significante sonoro – e gráfico, em menor proporção – entra em jogo para conjugar suas articulações com as do significado, provocando com isto uma ilusão referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposições emitidas pelo discurso poético. [...] Nesse sentido, ao afirmar a especificidade do discurso poético de Virgílio, afirma-se os efeitos de sentido determinantes no engendramento do sentido poético. De acordo com Zélia de Almeida Cardoso (1989, p.66), “Apesar da aparente simplicidade dos temas, a linguagem de Virgílio, nas Bucólicas, é bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentais”. Dessa forma, tendo em vista a dimensão enunciativa e figurativa de cinco poemas pastoris, o trabalho concentra-se em um estudo sobre os recursos da figuratividade poética, com destaque para os recursos da expressão que têm relevância para a análise dos poemas de Virgílio. O contato temático e, principalmente, expressivo com os poemas do mantuano contribui para o entendimento de que a poesia tem a virtude de perpetuar valores e de registrar um povo e um momento da fala desse povo. Assim, os poemas de Virgílio afirmam a potencialidade de uma cultura que permanece para as sociedades atuais. Logo, é oportuno afirmar que o poeta latino traça o perfil de seu universo singular e também o universo alheio. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 144 ÍNDICE A poesia revela-se como fundamento de uma sociedade e a condição necessária para a sua permanência. Enquanto manifestação privilegiada do mais alto poder expressivo que uma língua pode alcançar, versos são o testemunho irretorquível seja de sólidas construções neles plasmadas, seja do próprio sistema virtual que as trouxe à vida. Este fica, por tal modo, igualmente imortalizado, graças à realização plástica e rítmica que faculta ao sistema virtual. (LIMA, 2003, p. 100) Referências BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo Casa. Bauru-SP: Edusc, 2003. CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Editora Cultrix, 1983. GREIMAS, Algirdas Julien. Ensaios de semiótica poética. Trad. de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1975 LIMA, Alceu Dias. De metrificação e poesia latina. Alfa: revista de lingüística (UNESP), São Paulo, v. 47, n. 1, p. 99-109, 2003. THAMOS, Márcio. Catulo e a figuratividade poética ou um pequeno drama lírico em três atos. Matéria de poesia: crítica e criação, série Estudos Literários, Araraquara, n. 9, p. 33-46, 2010. ________. Figuratividade na poesia. Itinerários: revista de literatura, Semiótica, Araraquara, n. 20 (especial), p. 101-118, 2003. VIRGILE. Bucoliques. Texte établi et traduit par E. De Saint-Denis. Paris : Les Belles Lettres, 1956. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 145 ÍNDICE Elementos cívicos da sociedade romana: O mos maiorum na lírica de Horácio Prisciane Pinto Fabrício Ribeiro* Profª Drª Alcione Lucena de Albertim** Introdução Roma tinha, como um dos pilares de sustentação da sua civilização, o mos maiorum. Trata-se de um conjunto de elementos concernentes à moral romana dos antepassados. Esse conjunto era formado por partes elementares da concepção formadora da mentalidade do indivíduo, mas que se refletia na ordem pública e repercutia na organização política da Urbs. A ideia de patriotismo, submissão à pátria, de obrigação em manter as devidas observâncias ao direito, à hierarquia, à religião e à cidadania se encaixava perfeitamente nos costumes nitidamente acatados e conservados pelos Patres, os pais da pátria. Valores como libertas, frugalitas, virtus, fides, pietas, honor, grauitas, labor, dentre outros, perpassam a concepção do mos maiorum, e são utilizados por Horácio nas Odes. A noção de preservação dos preceitos dos antepassados se fundamentou primeiramente no âmbito da família, logo, é imprescindível pensar que os elementos acima referidos, valores brotados a partir do próprio espírito romano, surgiram de uma ideia particular, concernente a cada grupo familiar, e com o desenvolvimento da estrutura social, expandiram-se, dizendo respeito agora à cidade. É importante vermos que a religião está na base da estruturação desses valores. Nas Odes, de Horácio, Livro III, é possível perceber a presença desses elementos em uma construção interligada desses poemas, respeitante ao mos maiorum, havendo uma intertextualidade e uma continuidade em relação ao assunto tratado. É possível lê-los como uma única unidade, sem perder o fio condutor de todo o contexto observado pelo autor, mantendo o liame muito bem delimitado. Entretanto, o âmbito do presente trabalho não * ** Graduanda do curso Letras Clássicas, habilitação em Línguas Clássicas (Grego e Latim) da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Doutora em Letras pela Universidade Federal da Paraíba e orientadora do trabalho. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 146 ÍNDICE comporta um estudo de tamanha dimensão. Diante disso, propomos analisar no presente estudo os valores que compõem o mos maiorum apenas na Ode I, deixando para outro momento uma análise mais profícua concernente às demais Odes. O público alvo destes poemas é o povo romano, que já no século I a. C. havia se distanciado do sentido de romanidade, cujo fundamento está sedimentado nos princípios constitutivos do mos maiorum, respeitantes às origens do povo romano. Visando um retorno aos valores responsáveis pela formação dessa civilização, a fim de legitimar o imperium romanum a partir da determinação e da aquiescência divina, Horácio dirige-se ao romano, que, nesta conjuntura, já não mais exprimia em sua vivência os traços elementares do mos maiorum. 1 Contextualização Todo o período republicano de Roma, datado do século VI a. C. ao século I a.C., é marcado pela presença de inúmeras guerras civis e expansões militares. A morte do maior cônsul republicano, Júlio Cesar, nos momentos finais da república, acarretou uma terrível guerra civil entre o seu assassino Brutus e o seu sucessor Otávio, apoiado por Marco Antônio. Esses acontecimentos geram uma profunda instabilidade na sociedade romana em relação aos seus hábitos, meios de vida e costumes, responsáveis pela caracterização da identidade dessa civilização. O segundo Triunvirato1 da historia de Roma composto por Lépido, Marco Antônio e Otávio, tem seu termo definitivo com a batalha de Acctium, travada entre Otávio e Marco Antônio quando aquele obtém vitória sobre este no ano 31 a. C., fato que dará a Otávio o título de princeps, o primeiro dentre os pares, e faz cessar as guerras civis. Surge então o período imperial de Roma, e era em Otávio César Augusto que os poderes estavam concentrados. Ele, agora como imperator2, deverá tomar uma série de 1 2 O Triunvirato consistia na união de três grandes lideres militares. Era constituído, de modo formal, nos períodos de guerras civis. O primeiro triunvirato fora constituído informalmente por Crasso, Júlio César e Pompeu. Imperator foi o título dado a Augusto em 27 a. C. como reconhecimento do poder do seu comando sobre todo o exército. Esse título foi dado a todos os outros soberanos que assumiram o poder desde César Augusto. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 147 ÍNDICE medidas para regularizar e estabilizar a sociedade que estava passando por mudanças e adquirindo inúmeros costumes de outros povos devido às conquistas militares. Dentre as grandes preocupações de Augusto3 relacionadas ao imperium romanum, estava a necessidade de reaver as tradições morais. Ele vai estabelecer, através de uma série de estratégias fundamentadas na religião, família, agricultura, matrimônio e poder militar, a retomada do mos moiorum, que podemos entender como ‹‹costume dos antepassados››. Dessa forma, a fim de trazer em vigor uma nova Roma, grandiosa e perene, Augusto utilizou-se de importantes pontos da sociedade: as leis, a agricultura, arquitetura e a literatura. Na literatura latina, é possível encontrar diversos literatos4 que puseram em evidência a presença do mos maiorum, tanto de maneira implícita quanto explícita, ou construindo a retomada dos valores através de críticas à corrupção e de ilustrações. Dentre eles está Horácio, que se sobressai com suas conhecidas Odes Cívicas, nas quais o poeta irá expor uma forte crítica à avareza, ao adultério, à inveja, à luxúria, dentre outros pontos que são contrários aos valores e tradições excepcionais dos romanos. Esses traços, em seus poemas, carregam o tom da ideologia moralizante e tradicional defendida por Augusto. A participação dos escritores nesse sentido consolida a era Augustana como sendo o período glorioso de Roma, o nascimento de uma civilização eternizada e a divinização do Imperador Augusto. 2 Conceituação O mos maiorum é o conjunto de elementos cívicos que diz respeito ao ideal romano e que se constitui em uma ética a ser observada pelo cidadão. Dentro desse conjunto, estes elementos são estabelecidos de modo hierárquico, conforme a importância atribuída a cada um deles. Estão em primeiro plano a uirtus, a pietas e a fides, valores que constituem o tripé basilar da identidade romana. 3 4 Foi conferido a Otávio o título de Augustus. Tal termo possui uma conotação religiosa e é derivado do verbo auge̅re, que significa “aumentar”. A utilização dessa palavra era limitada ao âmbito religioso. A atribuição desse título a Otávio deixa clara a importância dele, não apenas militar ou política, mas também religiosa. Além de Horácio temos como principais nomes da literatura latina da Era Clássica de Roma Virgílio, Cícero, Ovídio, Propércio, Sêneca, dentre outros dignos de destaque. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 148 ÍNDICE A uirtus, a princípio, exprimia a excelência guerreira, conforme a acepção etimológica do termo. O vocábulo traz em si o sentido de força física, condizendo com o desempenho do guerreiro no campo de batalha. A evolução do vocábulo lhe trouxe um significado mais abrangente, denotando, posteriormente, disciplina, controle de si mesmo, o que se refletia no cidadão quanto ao seu comportamento diante da pátria, no cumprimento do seu dever cívico. A pietas, de sentido estritamente religioso, é o cumprimento dos deveres para com os deuses, a pátria e a família. É um valor intrinsecamente romano. Na Eneida, o maior poema do gênero épico da literatura romana, escrito por Virgílio, a pietas é a característica fundamental do caráter do herói, Eneias, mito fundador das bases da futura Roma. Segundo Pierre Grimal, existe “uma pietas para com os deuses, mas também para com os membros dos diversos grupos a que se pertence, para com a própria cidade e, para além desta, afinal para com todos os seres humanos.” (GRIMAL, 1984, p.70) A fides é o meio de assegurar os tratados firmados entre os homens, consolidar as relações entre os indivíduos. É a confiança concernente à palavra empenhada. Este elemento existe, basicamente, conforme Maria Helena Rocha, “no centro da ordem política, social e jurídica de Roma.” (PEREIRA, 1989, p.322) Além desses valores, que ocupam lugar de primazia no que diz respeito ao elenco de valores que compõem o mos maiorum, podemos destacar outros elementos. A gloria, que sendo a consequência da execução da uirtus, é o reconhecimento público das qualidades do cidadão. Para isso, é preciso ser amado pela multidão e ser digno de sua confiança. Honor, outro dos elementos constitutivos do mos maiorum, é um atributo do cidadão diante da coletividade. É a honra que lhe é conferida pelo mérito, para que assim faça jus à família e ao estado a que pertence, sendo digno assim da gloria que lhe é atribuída. Próxima da noção de honor, temos a dignitas, pois ambas estão situadas mais no ramo político do que no moral. Entretanto, a dignitas se forma mais no sentido de honra pessoal, no âmbito da posição social, ou no prestígio alcançado por aquele que detém a honor. Além dos valores acima referidos, podemos pontuar outros importantes aspectos que precisam as partes pertencentes ao mos maiorum, como a concordia (a paz e o consenso), a frugalitas (vida sem ostentações ou luxos), o labor (valor ético do trabalho - o bom cidadão Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 149 ÍNDICE possui dignidade e reconhecimento na comunidade através da capacidade de prover seu sustento), a grauitas (firmeza, temperança e austeridade), a potestas (execução do poder), a libertas ( direitos dado ao homem em sua condição de cidadão). Esses pontos destacados acima, fazem parte da coletividade de conceitos figurados pelos costumes dos ancestrais e delimitam a identidade romana os dissociando dos outros povos estabelecendo uma condição sine qua non, para a permanência do Império Romano. 3 Análise da Ode I, Livro III, de Horácio Ao escrever as Odes Cívicas, Horácio não apenas defende um conjunto de ideias praticadas pelos antigos (mos maiorum), criticando todos os pontos negativos da sociedade, mas busca, através disso, engrandecer uma nova Roma, agora liderada por aquele que trará de volta os valores morais e consolidará a Pax Romana, Augusto. Observando o importante papel educacional e formador do poeta, Horácio expressa em tom grave a sua preocupação em relação ao momento corrupto em que a civilização romana se encontrava. Para essa análise, trabalharemos com fragmentos e termos mais importantes da Ode, de forma simultânea, a fim de mostrar as relações entre elas apontando apenas as partes mais pertinentes e que remontam os aspectos do tema em questão. No primeiro verso da primeira ode, Horácio vai dizer: "Odi profanum uolgus et arceo: Odeio e rechaço o vulgo profano.” Esse verso, já muito debatido entre pesquisadores e tradutores, reflete a aversão do eu lírico diante da situação presente da população romana. Ele atribui ao povo um caráter maculado, manchado pelos vícios e pela falta de observância aos conceitos sociais, políticos e sobretudo religiosos. A utilização do termo uolgus irá representar exatamente essa noção da massa popular que está com seus princípios infamados, o que difere do termo gens, cujo significado pode ser entendido como “povo”, mas no sentido de “raça”, cujos costumes são deliberadamente respeitados e vistos dos primórdios, até porque a palavra gens vem da noção presente no verbo gigno, gignere, que está relacionado à origem. O adjetivo profanum está muito bem empregado, pois irá complementar essa ideia de uolgus, aumentando mais a noção do sacro, que foi marginalizado, negligenciado. O verbo Odi, que podemos traduzir como “odeio”, retrata o sentimento do eu lírico, como Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 150 ÍNDICE representante divino, em abominar o ferimento dos princípios cívicos, a profanação da religião, e isso é consolidado pelo outro verbo do verso arceo e os termos já analisados supra. No percurso da primeira estrofe, temos a expressão fauete linguis, que podemos traduzir por “favorecei com palavras”, visto que linguis pode ser entendido abstratamente como “palavras”. O verbo fauete carrega um teor religioso muito forte, por ter sua raiz proveniente do verbo *For, fari que significa falar, mas no sentido profético. A acepção “favorecer” para fauete traz a ideia religiosa intrínseca do verbo, a qual se prolongará com os termos carmina, musarum e sacerdos, presentes na mesma estrofe, pontuando o envolvimento do poeta com aquilo que é profético, sagrado. Podemos ver a participação do poeta como um arauto inspirado pelas musas para conclamar a respeito da perda dos princípios cívicos. No termino da primeira estrofe da Ode I, vemos a referência ao público quem era atribuído esse canto, uirginibus e pueris. É possível entender o termo uirginibus como a representação da mulher como parte integrante da família, instituição pautada pelos elementos cívicos, como já dissemos anteriormente. Pueris remete ao futuro da civilização, pois os jovens são aqueles que dão continuidade a uma raça, não apenas no nome mas também em princípios e valores. É nesse ponto que Horácio quer estabelecer o despertar do romano, começando do específico, daquilo que diz respeito ao lar (uirginibus) e a sociedade (pueris). O poeta vem mostrar que o respeito aos costumes ancestrais eram, portanto, uma forma de assegurar o futuro do Estado, do governo e, acima de tudo, da identidade. Na segunda estrofe, há outra noção presente no mos maiorum, que é a religião envolvida com a política. Agora, o eu lírico vai permanecer no contexto religioso, mas atando-o à visão política da sociedade. Não é gratuita a utilização dos termos imperium, regum timendorum e Iouis, apontando a inter-relação do poder divino e da autoridade humana. Todo poder delegado ao homem derivava dos deuses, o sacro permanece imbricado ao contexto político e a ideia de submissão ao que é superior, e isso deveria fazer parte da vida cotidiana do romano, deuses coabitando a cidade com os homens. A partir da terceira estrofe até a penúltima, ocorre o desenrolar desses conceitos, através de imagens, comparações e exemplos que Horácio vai utilizar para reiterar e trazer mais para próximo do leitor a construção dos elementos cívicos. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 151 ÍNDICE Na terceira e na quarta estrofe, vemos ilustrações da sociedade, a atuação da aristocracia e as desigualdades materiais entre um e outro indivíduo, até mesmo a participação de cada um na sociedade, terminando a quarta estrofe com um caráter moralista, enfatizando a igualdade imposta pela Necessitas, a necessidade personificada, cujo atributo veicula a sina dada a cada um como algo intocado e impossível de ser refutado. A quinta e a sexta estrofe parecem soltas no corpo do texto, mas veiculam mais uma ilustração do homem que busca o excesso, e como aquilo pode ser inútil e até mesmo prejudicial, desviando-o para caminhos indevidos. Trata-se de uma citação da obra Tusculanas de Cícero5. Podemos inferir aqui a ideia da aurea mediocritas, o meio-termo como representativo a prática da virtude. Aristóteles irá trabalhar os conceitos da Aurea Mediocritas em Ética a Nicômaco, ele a classifica como me/son, o qual podemos entender como meiotermo: “Refiro-me a virtude moral, pois é ela que diz respeito às paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e um meio-termo.” (Aristóteles. Ética a Nicômaco,II, 6, 16-17) E diz mais: Ora, a virtude diz respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvado são características da virtude. (Aristoteles, Ética a Nicômaco, II, 6, 25-28) A virtude moral consiste em evitar os extremos, nem a falta, nem o excesso, mas o equilíbrio. Essa ideia se entrelaça com as concepções presentes no mos maiorum, como a frugalitas, a grauitas e a paupertas (elemento intimamente ligado ao frugalitas, que significa levar uma vida frugal, modesta) a qual será representada nessa ode nas estrofes oito e nove onde o eu lírico expõe a imagem da natureza como o ambiente da felicidade do homem, e a figura do peixe expressa a simplicidade em contraposição com o homem tirano e cheio de ostentação expresso na segunda e terceira estrofe dessa mesma ode. 5 Nesse trecho da obra Tusculanas, Cícero conta a história de Damocles, cortesão do tirano Dionísio de Siracusa o qual alimentava uma grande inveja em relação à prosperidade do tirano Siracusano. Percebendo isso, o tirano dá seu lugar a Damocles em uma festa porém coloca uma espada pendendo sobre a cabeça do cortesão pendurada apenas por crina de cavalo. Dionísio procura mostrar para Damocles a instabilidade e efemeridade de uma vida cheia de luxos e riquezas. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 152 ÍNDICE Na décima estrofe, os termos timor et minae e Cura irão aparecer, evidenciando a advertência e o tom grave, corroborando aquilo que sobrevirá aos homens que recusam o que a terra lhe provê ( ideia presente na quarta estrofe). A terra pode representar a nação, a própria constituição romana, os princípios básicos que cada indivíduo deveria seguir respeitosamente. O término do poema ocorre nas duas últimas estrofes, onde Horácio intencionalmente vai expressar mais uma vez a noção da simplicidade que vai contra toda ostentação e luxo, e isso a partir de indagações que remetem à reflexão. 4. Tradução da Ode I, Livro III, de Horácio6 Odi profanum uolgus et arceo. Fauete linguis: carmina non prius audita Musarum sacerdos uirginibus puerisque canto. Regum timendorum in proprios greges, 5 reges in ipsos imperium est Iouis, clari Giganteo triumpho, cuncta supercilio mouentis. Est ut uiro uir latius ordinet arbusta sulcis, hic generosior 10 descendat in campum petitor, moribus hic meliorque fama contendat, illi turba clientium sit maior: aequa lege Necessitas sortitur insignis et imos, omne capax mouet urna nomen. 15 Destrictus ensis cui super impia ceruice pendet, non Siculae dapes dulcem elaboratum saporem, non auium citharaequecantus 20 Somnum reducent: somnus agrestium lenis uirorum non humilis domos 6 A tradução no corpo do trabalho da Ode 1, Livro III de Horácio é nossa. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 153 ÍNDICE fastidit umbrosamque ripam, non Zephyris agitata tempe. Desiderantem quod satis est neque tumultuosum sollicitat mare, nec saeuus Arcturi cadentis impetus aut orientis Haedi, non uerberatae grandine uineae fundusque mendax, arbore nunc aquas culpante, nunc torrentia agros sidera, nunc hiemes iniquas. 25 30 Contracta pisces aequora sentiunt iactis in altum molibus: huc frequens caementa demittit redemptor cum famulis dominusque terrae 35 fastidiosus: sed Timor et Minae scandunt eodem quo dominus, neque decedit aerata triremi et post equitem sedet atra Cura. 40 Quod si dolentem nec Phrygius lapis nec purpurarum sidere clarior delenit usus nec Falerna uitis Achaemeniumque costum, cur inuidendis postibus et nouo sublime ritu moliar atrium? Cur ualle permutem Sabina diuitias operosiores? 45 Odeio e rechaço o vulgo profano. Favorecei com palavras: Sacerdote das musas, Canto canções não ouvidas antes, Às virgens e aos meninos. O poder dos reis que devem ser temidos, Sobre os próprios povos, sobre os próprios reis É de Júpiter sonoro com o triunfo dos Gigantes Movendo tudo com um olhar. É possível que um homem distribua Os arvoredos em sucos mais amplamente do que o outro, Que um candidato mais nobre entre agora na assembleia, Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 154 ÍNDICE Ora dispute ser o melhor em fama e costumes, Ora seja o maior em turba de clientes: Com justa lei, a Necessidade sorteia Os assinalados e os humildes, Todo nome a ampla urna agita. Àquele a quem sobre a cabeça ímpia, A espada desembainhada está pendurada, Os festins dos Sículos não produzirão Um doce sabor, o canto das aves e da cítara Não reconduzirão o sono: o sono suave Dos homens rústicos não desdenha As casas humildes e a margem sombria, Nem os Tempes agitados pelos Zéfiros. O que deseja o que é suficiente,Nem O mar alvorotado [o] atormenta, Nem Os ímpetos cruéis de Arcturus cadente Ou do Capricórnio oriental, Nem o solo traiçoeiro dos vinhedos maltratados Pelo granizo, agora pela árvore culpando as águas, Ora os astros ressecando os campos, Ora intempéries irregulares. Os peixes sentem as águas contraídas Pelos escombros lançados no alto mar: Aqui, O empreiteiro frequente e senhor soberbo da terra Atira com os servos cascalhos: mas, O Temor e as Ameaças alcançam o mesmo lugar Que o senhor, e o Cuidado tenebroso Não se retira no trirremi brônzeo e Assenta-se atrás do cavaleiro. Se, pois, o dolente, nem as Pedras Frígias Nem o uso das púrpuras mais resplandecente Que uma constelação, nem vinho Falerno, Nem costo Pérsico abranda, Por que construiria um átrio sublime com pórticos Que hão de ser invejados e em novo estilo? Por que eu trocaria pelo vale Sabino, Riquezas mais penosas? Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 155 ÍNDICE Referências ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, traduções Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, a partir da versão inglesa de Sir William David Ross. São Paulo: Abril Cutural, 1973. BRANDÃO, Junito de Souza, Dicionário mítico-etimológico da mitologia e da religião romana. 3ª ed.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. CARDOSO, Zélia de Almeida. A Literatura Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989. FARIA, Ernesto. Dicionário Latino-Português. Volume 17. Belo Horizonte, 2003. FLACCUS, Quintus Horatius. Liber tertius, carmina I-VI. [Disponível em: <http:// www.thelatinlibrary. com/hor. html>] GRIMAL, Pierre. A Civilização Romana. Lisboa: Edições 70, 1984. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica – Cultura Romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. SARAIVA, F. R. DOS SANTOS. Novíssimo Dicionário Latino-Português. 9ª ed., Livraria Garnier. Rio de Janeiro, 2006. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 156 ÍNDICE O mito das raças humanas nas Metamorfoses de Ovídio Emmanuela Nogueira Diniz∗ Introdução Em primeiro lugar, é bom explicar o que significa “deixar o texto falar”: significa que todas as obras literárias ou filosóficas, gregas e latinas, devem ser abordadas partindo de uma leitura que produza um entendimento do texto, poema ou fragmento escolhido tanto na estrutura – sintática - estabelecida pelo autor, quanto no sentido – semântica – que o texto revela. A mensagem aqui é: não se deve trazer nada para o texto; nem se deve abordar o texto a partir de interpretações dessa ou daquela tradução, dessa ou daquela época. Ao contrário disso, deve-se unicamente ‘deixar o texto falar’. Feito isso, o resultado é o oposto do esperado pelas traduções tradicionais, ou seja, esse tipo de leitura e estudo do texto ou da poesia é quem revela a sutileza, a inteligência e arte de cada um de seus autores – aqui em destaque, Ovídio – além de, permitir, também, um diálogo com o texto que se torna necessariamente um diálogo com o próprio autor. O estudo das Metamorfoses é muito importante porque além de marcar bem o Período Clássico1 da literatura latina, a obra realiza um verdadeiro resgate de toda a mitologia grega: desde a visão sistemática do ordenamento do Caos de Hesíodo, na Teogonia e nos Trabalhos e Dias, até as epopéias de Homero – com a Ilíada e a Odisséia. Além disso, as Metamorfoses narram a origem de Roma, no livro XIV, diante da apoteose do herói Eneias, e, em seguida, no livro XV, a saga de César que levou a ascensão de Augusto. Sendo assim, não é necessário que o leitor, aluno ou pesquisador, tenha lido sobre a história da Grécia ou de Roma, pois toda ela está claramente demonstrada ao longo de seus quinzes livros. Através deles é possível resumir os problemas universais e se lhes dar um explicação através de todos os recursos científicos, mitológicos, filosóficos, políticos e artístico, acumulados pelas gerações anteriores, da Grécia e de Roma. ∗ 1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. O período denominado Clássico compreende o séc. I a.C. e o séc. I d.C. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 157 ÍNDICE 1 As Quatro Idades do Homem nas Metamorfoses de Ovídio 1.1 A Idade Áurea (ou de Ouro) Ovídio inicia a descrição da Idade de Ouro, no Livro I, entre os versos 89 - 112. Neles, o autor ressalta, através de uma narrativa mítica, o caráter humano, contando-nos como era a vida dos homens durante esse período, além de expor as condições físicas na Terra. Passemos a primeira Idade: Aurea prima sata est aetas, quae vindice nullo, sponte sua, sine lege fidem rectumque colebat. Poena metusque aberant, nec verba minantia fixo aere legebantur, nec supplex turba timebat iudicis ora sui, sed erant sine vindice tuti. [Ovídio, Metamorfoses I, vv. 89-93] Versão Operacional: A primeira idade áurea (de ouro) foi criada2 não havendo nenhum vingador que cultivava espontaneamente em seu reino a confiança sem lei O medo e os castigos estavam longe, as leis [palavras] ameaçadoras não eram lidas no bronze fixo3, nem a turba suplicante temia as faces [boca, sentença] do seu juiz, mas estavam seguros sem acusador (alguém que acusasse). Quando a primeira idade - aurea aetas - de ouro foi criada, a rectum, o que rege aquela idade -, era guiado pelo que é reto e justo – o sentido de rectum é, em primeiro plano, escrita em linha reta determinando, portanto o espaço entre o profano e o sagrado. Isto comprova que, naquele tempo, os homens vivam num pleno estado de confiança e lealdade entre si - fidem -; pois não havia, de um lado, ninguém que os acuse – a figura do juiz, nem, 2 3 [v. 89] sata est, significa, “foi criada”. [v. 91-92] nec verba minantia fixo aere legebantur – as leis de Roma eram inscritas em bronze que se afixava no Capitólio, a fim de que todos os cidadãos romanos as obedecessem, depois que Roma institui a República. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 158 ÍNDICE de outro, a necessidade de se impor leis escritas, prevalecendo à vontade de um imperador, ditador ou rei. Portanto, é possível compreender aqui que a idade de ouro é marcada por uma ausência de leis como se concebem as leis escritas pelo homem. O verso 99 ilustra bem esse estado de uma confiança espontânea em que os homens dessa idade vivam: non galeae, non ensis erat: sine militis usu [Ovídio, Metamorfoses I, v. 99] Versão operacional: não havia nem capacetes nem espadas: sem o uso de exército[soldado] Outra característica bastante interessante sobre as condições da Terra e dos homens, durante a idade de ouro, nas Metamorfoses de Ovídio, aparece no verso 107, demonstrando a natureza da terra como generosa e fecunda, isto é, o homem não precisa plantar/semear e extrair o alimento: Ver erat aeternum, [Ovídio, Metamorfoses I, v. 107] Ovídio afirma com verso que só havia a primavera nesse tempo, isto quer dizer, a natureza era extremamente abundante e permanecia assim; a terra destilava flores e frutos; os rios eram de néctar e leite; o mel, a seiva escorria das árvores; os zéfiros embriagavam os ares de perfumes. Em Hesíodo, no Erga4, este tema – o mito das raças humanas – que está ligado ao mito anterior – Prometeu e Pandora (v.42-105) - revela a origem dos males e das desgraças que perseguem o homem, bem como a origem do trabalho, vontade irremediável de Zeus e impossível de o homem escapar dele. No entanto, a partir do verso 108, Hesíodo inaugura a 4 Hesíodo, Trabalhos e Dias, ἕτερόν τοι ἐγὼ λόγον ἐκκορυφώσω- v. 106. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 159 ÍNDICE narrativa sobre a raça de ouro, ou seja, ‘como do mesmo lugar nasceram / tornaram-se deuses e homens mortais’.5 Hesíodo, por sua vez, no verso 109, usa χρύσεον γένος, para nomear a raça de ouro, em que o substantivo neutro γένος possui primeiramente o sentido de nascimento, origem, pois, remete não só ao verbo γίγνοµαι – vir a ser, tornar-se, nascer -, mas, também, se refere ao substantivo γένεσις, εως [ἡ] – origem, nascimento - daí o sentido resultar em gênero, raça, com a idéia de descendência. No verso 111, temos a expressão ἐὶ Κρόνου6 revelando que naquela idade os homens e a terra estavam sob o poder de Cronos. O sentido para a expressão, além de indicar um aspecto temporal, ela aponta precisamente para a idéia de que a terra e os humanos estavam sob o poder de Cronos, ou seja, Cronos é quem comanda e, por sua vez, esse reino está no céu (οὐρανῷ - no Locativo). Para confirmar tal afirmação, Hesíodo uso anteriormente, no verso 110, Ὀλύµια δώµατ᾽ ἔχοντες - e, que deve ser entendido como ‘os que têm morada Olímpia’, ou, também, ‘os que habitam Olímpia’. 1.2 A Idade de Prata Nos versos 113-124, do Livro I das Metamorfoses, Ovídio descreverá a Idade de Prata, porém ela será trabalhada aqui, primeiramente, entre os versos 113-115 e, por conseguinte, nos versos 116-118: Postquam, Saturno tenebrosa in Tartara misso, sub Iove mundus erat, subiit argentea proles, auro deterior, fulvo pretiosior aere. 5 6 Hesíodo, Trabalhos e Dias, ὡς ὁµόθεν γεγάασι θεοὶ θνητοί τ᾽ ἄνθρωyοι - v 108. Murachco, H. Língua Grega I, p 575. Essa expressão é formada pela preposição ἐyὶ seguida de um Genitivo que marca a diferença entre o que está por cima/em cima e o que está em baixo – a relação de cima para baixo -, e, não, o ponto de partida ou a origem como o caso Genitivo comumente costuma exprimir. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 160 ÍNDICE Versão Operacional: Depois que o mundo estava sob Júpiter tendo sido Saturno conduzido[enviado] ao tenebroso Tártaro surgiu, então, a raça de prata, inferior a de ouro, mais valorosa que a de bronze fulvo Em primeiro lugar, Ovídio introduz o termo proles7 para se referir à raça de prata e não aetas – idade – seguindo o sentido de γένος empregado por Hesíodo e mantido por ele ao longo desse mito. Em segundo, essa raça será marcada, também, por uma mudança – metamorfose – não somente na qualidade do metal, mas, também, em seu reinado que antes estava sob Saturno e, agora, está sob Júpiter (sub Jove)8. Outro aspecto interessante é o uso dos adjetivos deterior e pretiosior9, de sentidos opostos entre si, mas ambos na forma de um comparativo de superioridade, nos quais enfatizam as qualidades da idade de prata de modo a delimitar seu aspecto em contraposição às idades de ouro e de bronze; a relação entre os metais é usada por Ovídio para simbolizar a crescente decadência do gênero humano (auro deterior, fulvo pretiosior aere, v. 115). Entretanto, a partir do verso 116, Ovídio narrará como Júpiter interveio nas condições da terra, enquanto ali reinava. A primavera da raça de ouro que antes era eterna, agora foi contraída por Júpiter transformando-se numa breve primavera seguida de outras três estações, isto quer dizer, Júpiter é a divindade que instaura as quatro estações do ano. Iuppiter antiqui contraxit tempora veris perque hiemes aestusque et inaequalis autumnos et breve ver spatiis exegit quattuor annum. 7 8 9 Proles, is (s.f.) no sentido etimológico de prole, decendência ou filho. A preposição ‘sub’ acompanhada de um dativo – Jove – indica que algo está sob, debaixo de. Grimal, P. Gramática Latina §39: O Comparativo de superioridade se faz acrescentando-se ao radical do adjetivo -ior, para o masculino e feminino, e -ius, para o neutro, p 26. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 161 ÍNDICE Versão Operacional: Júpiter contraiu/reduziu as estações da antiga primavera através de invernos, verões, outonos desiguais e uma breve primavera, [ele] limitou o ano em quatro espaços 1.3 A Idade de Bonze Vejamos, agora, como o poeta narrou a Idade de Bronze, em destaque os versos 125127: Tertia10 post illam successit aenea proles, saevior ingeniis et ad horrida promptior arma, non scelerata tamen. Versão Operacional: A terceira raça, bronzea, sucedeu depois daquela mais severa na índole e mais preparada para horríveis guerras Contudo não criminosa [celerada]. A terceira raça de bronze foi identificada no poema pelo uso dos adjetivos saevior – mais cruel – e promptior – mais inclinada –, que traz, novamente, em sua estrutura a forma de um comparativo de superioridade. A partir disso, a idade de bronze é entendida como uma raça que possui uma natureza mais violenta e mais disposta ou inclinada às guerras. Por outro lado, mesmo sendo de natureza mais desumana que a de prata, Ovídio explica, logo em seguida, que não se trata de homens celerados ou criminosos11. Entretanto, após a exposição da raça de bronze, Ovídio parte imediatamente para a proles de ferro, diferentemente de Hesíodo que, por sua vez, descreve uma raça de homens heróis (ἀνδρῶν ἡρώων θεῖον γένος – v. 159) entre a raça de bronze e a de ferro, é a quarta raça. 10 11 'Tertia' aqui está na forma adverbial – Grimal, Gram Latina, p.49, IV. Ovídio, Met., non scelerata tamen, v. 127. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 162 ÍNDICE Zeus Cronida encobriu debaixo da terra (κατὰ γαῖ᾽ ἐκάλυψεν- v. 156) a raça anterior e criou outra mais justa/ reta e mais corajosa/superior - δικαιότερον καὶ ἄρειον12, v. 158. Nos Trabalhos e Zeus Dias, criou a terceira raça de bronze - τρίτον ἄλλο γένος µερόyων ἀνθρώyων χάλκειον (v. 143) – nada semelhante a raça argentea οὐκ ἀργυρέῳ οὐδὲν ὁµοῖον (v. 144). No entanto, no verso 146, aparece o termo ὕβριες demonstrando que a violência do gênero humano deve-se à influência do poder das obras bélicas de Ares, além de mostrar que seus integrantes não se alimentam de trigo e têm o coração duro e firme, pois estes são de aspecto forte e invencível tendo o bronze como metal tanto usado para a construção de suas casas como para a produção de suas armas. 1.4 A Idade de Ferro Vejamos, antes de concluir essa mitologia, como Ovídio descreve a última das raças do homem entre os versos 145-150: De duro est ultima ferro. Protinus inrupit venae peioris in aevum omne nefas13: fugere pudor verumque fidesque In quorum subiere locum fraudesque dolique insidiaeque et vis et amor sceleratus habendi. Versão Operacional: A última - idade - é de ferro duro Imediatamente, tudo que é nefasto inrompeu nesse tempo de veia [pulso/coração] mais perverso fugiram o pudor, a verdade e a confiança [fides] no lugar dos quais surgiram a fraude e dolo, a força da perfídia e, também, o amor celerado do ter[possuir]. 12 13 Aqui Hesíodo usa dois adjetivos na mesma forma de comparativo de superioridade marcados pelo sufixo – τερος, α, ον – Murachco, Língua Grega I, p. 139. Nefas > Nec fas: representa tudo aquilo que não é permitido pelos deuses. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 163 ÍNDICE A última idade traz consigo tudo aquilo que é nefasto, isto é, o que não é licito pelos deuses, em oposição à pudor verumque fidesque que caracterizavam, principalmente, a idade de ouro. A ausência de pudor, justiça e confiança dá lugar, por sua vez, ao que de há pior: a trapaça, a astúcia, fraude, o dolo. É notável aqui a superação, assim como a preferência, do homem pelo que não é permitido pelos deuses – nefas – diante da fidem – confiança ou lealdade que originalmente marcou a idade áurea. Na quinta raça de ferro em Hesíodo - σιδήρεον γένος, v.176 – apontarei dois aspectos importantes para a sua descrição e entendimento: o primeiro mostra um gênero humano que durante o dia vive do trabalho (labor) - καµάτου - e das lamentações - ὀιζύος – e, à noite não se cansa de destruir – φθειρόµενοι. Para estes homens, os deuses darão difíceis inquietações14. Em segundo, o fato de que a justiça estará na mão dos homens, por meio de leis escritas por eles mesmos; não haverá o respeito e, sim, o vigor dessa lei escrita; desse modo, contra o mal não haverá forças - κακοῦ δ᾽ οὐκ ἔσσεται ἀλκή, v. 201. 2 Horácio e a influência cosmogônica de Hesíodo e Ovídio no Epodo XVI A proposta de trazer o Epodo XVI de Horácio para esse artigo não partiu necessariamente do tema da obra, pois ela não é cosmogônica; mas, sim, para mostrar que toda essa cosmogonia abordada anteriormente, no Livro I das Metamorfoses com Ovídio e depois, nos Trabalhos e Dias com Hesíodo, se perpetuou na lírica e na literatura latina. O que se pretende aqui é apontar dentro do corpus do Epodo XVI alguns trechos que remetem claramente ao mito das raças humanas. Nos versos 1-2, Horácio diz o seguinte: Altera iam teritur bellis civilibus aetas, suis et ipsa Roma viribus ruit15. Versão Operacional: Agora outra idade é triturada [esmagada] com guerras civis 14 15 Hesíodo, Trabalhos e Dias, χαλεyὰς δὲ θεοὶ δώσουσι µερίµνας, v. 178. Horácio usou ‘ruit’ no Perfectum, que, em Latim, é um aspecto verbal que indica ato acabado, em oposição ao Infectum, que indica ato contínuo. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 164 ÍNDICE e a própria Roma ruiu [se desmoronou] com seus homens. Horácio, nos versos 1-2, utiliza a expressão altera aeta mostrando, temporalmente, não apenas uma Roma tumultuada, mas, também, a opção pessoal do poeta em preferir a vida campestre à urbana. Essa civilização romana sempre ávida por conquistas de terras alheias e joguetes políticos, inspira o poeta a cantar uma fuga favorável (secunda fuga, v.66)– apontando uma saída - ao cidadão romano; além de criticar o homem moderno em sua avidez por honra, poder e riquezas. A fuga do império romano é a marca do Epodo XVI, pois traz consigo uma oposição a esse estilo de vida e uma exortação à vida tranquila e longe das guerras civis características dos tempos áureos. Entretanto, nos versos 63-66, Horácio narra que o deus Júpiter guarda uma costa – uma espécie de terra prometida ou paraíso – para os homens justos (piae genti, v.63) que percebem a necessidade de abandonar aquela civilização cercada por duras leis, assim como, o fato de assistirem à ruína da República mostrando um sentimento de tristeza pela liberdade perdida. Iuppiter illa piae secrevit16 litora genti, ut inquinavit aere17 tempus aureum, aere, dehinc ferro duravit saecula, quorum piis secunda18 vate19 me datur fuga. 16 17 18 19 [v.63] sēcrēvīt > Perfeito de sēcērnō. A idéia de procedência, origem, afastamento, separação, é expressa em Latim por ab, ex, de, com ablativo. É o caso do verbo sēcērnō que poderá ou não se formar com as preposições ab, ex, de, seguidas de ablativo, pois o uso dessas preposição pode variar de acordo com os verbos, os escritores e a época. Os poetas suprimem muito freqüentemente essas preposições ao contrário dos prosadores que as empregam. Grimal. P. Gramática Latina, p.115 IV. [v.64 ] aere > Grimal. P. Gramática Latina, p.115. II. O meio, o instrumento. Esse adjunto está no ablativo para os nomes de coisas: Hastā ferire (§ 192). A forma adjetiva ‘secunda’ aparece no verso 66 com o sentido figurado de algo ‘ propício’, ‘favorável’, ‘que não encontra obstáculos’; e, não, em seu sentido mais etimológico indicando algo que segue, que está em seguida, ou, ainda, o segundo que vem após o primeiro com a idéia de tempo. O sentido de vate utilizado aqui é o de adivinho, profeta, oráculo, profetisa e que, por extensão, pode ser interpretado como poeta, poetisa. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 165 ÍNDICE Versão Operacional: Júpiter separou aquele litoral para a pia gente de modo que, (ele) degradou a idade de ouro com bronze e, em seguida, a de bronze, (ele) endureceu com ferro os séculos dos quais uma fuga favorável é dada aos pios, sendo eu vate O poeta atribuiu aos metais – aere, aureum, ferro – que também representam o gênero humano bem como a Monarquia romana em oposição à República, um caráter moral, partindo de um tema político que lamenta o propósito da guerra civil demonstrando, assim, a decadência da antiga virtude. A influência do mito das raças humanas de Ovídio e Hesíodo é clara a partir desses dois trechos extraídos do Epodo XVI – v. 1-2 e v. 63-66 – aqui estudados. Horácio, que também apresenta em seu texto, a idéia da possibilidade de uma vida melhor, não o faz com o mesmo tom otimista, por exemplo, de Virgílio20. Enquanto este afirma que um tempo melhor virá e favorecerá a todos, Horácio acredita que os tempos vão piorar, mas que existe um lugar protegido para onde se deve fugir. Por fim, a intertextualidade evidente nos poemas analisados indica o diálogo existente entre estes mestres, revelando a sabedoria de dialogar sem plagiar. Certamente, os textos destes autores são modelos a serem seguidos pelos aprendizes em todas as gerações. Referências CART A., GRIMAL P., LAMAISON J., NOIVILLE R. Gramática Latina – tradução e adaptação de Maria Evangelina Villa Nova Soeiro. T. A. Queiroz Editor: Ed. da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1986. FLACCUS, Quintus Horatius (Horace). Q. Horati Flacci Carmina. Friedrich Vollmer. Lipsiae. in aedibvs B.G. Tevbneri. Posted by Konrad Schroder on the Latin Library, 1912. HESIOD. The Homeric Hymns and Homerica with an English Translation by Hugh G. EvelynWhite. Works and Days. Cambridge, MA., Harvard University Press; London, William Heinemann Ltd. 1914. [Disponível no site: http://www.thelatinlibrary.com] MAIA JÚNIOR, Juvino Alves. Latim: Teoria e prática nos cursos universitários. 3ª edição. Idea/Editora Universitária, João Pessoa, 2010. 20 Écloga IV de Virgílio – entre os versos 1-62. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 166 ÍNDICE MURACHCO H. G.; MAIA JÚNIOR. Curso de Grego Clássico: Introdução à Língua Grega. Zarinha Centro de Cultura, UFPB, 2006. MURACHCO, H. G. Língua Grega: visão semântica, lógica, orgânica e funcional. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Vozes. 2001. II volumes. OVID. Metamorphoses. Hugo Magnus Ed. Gotha (Germany). Friedrich Andr. Perthes. 1892. [Disponível no site: http://www.thelatinlibrary.com] Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 167 ÍNDICE Os espetáculos públicos sob a ótica de Marcial: poesia e propaganda Raul Oliveira Moreira∗ Introdução Como ditava o princípio político do “evergetismo” – a dissimulada doação à população de “presentes luxuosos” pelo indivíduo no exercício do poder público, às custas do próprio bolso – quer os edifícios e banhos públicos, quer os banquetes e espetáculos, eram concedidos ao povo por cidadãos compelidos por essa prática. Os notáveis poderiam construir templos, reformar estradas e até mesmo distribuir comida, a depender do grau da magistratura ou até onde se pretendia angariar popularidade. No ano 80 da nossa era, um dos maiores exemplos dessa prática política foi oferecido à população: o imperador Tito mandara celebrar a abertura do anfiteatro Flávio – mandado construir por seu pai – com 100 dias de espetáculos públicos. Durante esses cem dias, não só moradores da capital como também a infinidade de povos vindos das mais distantes regiões do mundo conhecido concentraram sua atenção nos eventos ocorridos no anfiteatro: lutas entre gladiadores, bestiarii, venatores, além de naumaquias, ballets aquáticos e toda a sorte de mimos e encenações mitológicas. De todos os espectadores, um deles, entretanto, é-nos significativo. O poeta Marco Valério Marcial deixou-nos um testemunho poético dos eventos ocorridos no anfiteatro, o De spectaculis, um conjunto de epigramas, embora reunidos sob esse título apenas numa edição do século XVII. Analisaremos a partir de agora estes espetáculos sob a visão dos escritos de Marcial, cuja característica principal é a exaltação ao poder do imperador e sua essência divina, pois quem tanto pode e tanto faz foi certamente tocado pelos deuses. 1 Descrição acerca dos jogos 1.1 A oitava maravilha da antiguidade A abertura do relato se dá com a apresentação do palco onde serão apresentados os espetáculos: o anfiteatro Flávio, considerado pelo poeta como superior em beleza e majestade ∗ Graduando em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 168 ÍNDICE às Pirâmides de Tebas, aos Jardins da Babilônia, aos templos de Diana e Apolo e ao mausoléu de Halicarnasso, famosas maravilhas da antiguidade. Popularmente conhecido por Coliseu, o anfiteatro leva esse nome por ter sido construído próximo da colossal estátua de Nero, no centro da cidade. A estátua teve sua cabeça substituída pela do Sol por Vespasiano e logo foi totalmente desmanchada. O Coliseu ocupa grande parte da área onde antes estava o opulento palácio também do imperador Nero, a Domus Aurea. Onde antes apenas o imperador se deliciava com seus lagos, jardins e pomares, todo o povo passou a usufruir dos prazeres não só do teatro, como também de uma nova casa de banhos públicos, as Termas de Tito. Segundo o epigrama 2, de Marcial, “Todo o labor ao anfiteatro de César o posto cede: a única obra que, pelas outras juntas, a fama há-de celebrar [...] Restituída a si mesma foi Roma e sob o teu governo, César, são do povo as delícias que só do tirano eram”. 1.2 A Babel romana Tamanho evento, organizado por um ser de cuja essência divina ninguém duvidava, reuniu enorme e diversa audiência. Marcial descreve povos oriundos da Trácia, Sarmácia, Arábia e Etiópia presentes na Urbs. O atrativo dos jogos não se restringia somente em assistir o que se passava na arena. Os espectadores concorriam a presentes, ou missilia: perfumes, moedas ou tesserae, os vales, que podiam ser trocados por ingresso nos banhos ou bordéis, roupas, escravos, comida etc. 1.3 A condenação aos delatores As primeiras cenas narradas por Marcial do que foi exibido à população descrevem os castigos infligidos na arena aos culpados por crime de delação. Os delatores entregavam ao Senado indivíduos cuja conduta fosse duvidável ou imprópria, muitas vezes sem provas concretas. Eles eram pagos pelo serviço com porcentagens dos bens dos acusados e a maior parte era retida pelo imperador. Entretanto, as delações se multiplicaram e fortunas foram desfeitas. Amplamente empregado por Tibério, esse sistema serviu para enriquecer enormemente o Erário público e a Bolsa privada do imperador, embora muitas vezes essas instâncias se confundissem. Tito os exilou na Ásia e na África, extinguindo a prática oficialmente. Segundo o epigrama 5, de Marcial, “Foi expulso o delator, da ausónia urbe anda fugido: Tal benesse pode inscrever-se entre as despesas do príncipe.” Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 169 ÍNDICE 1.4 O teatro de arena Com o auxílio de escravos e libertos fantasiados de Marte e Vênus para dar continuidade aos jogos, Marcial passa a narrar as apresentações teatrais na arena. Ora como atração principal, ora na função de entreter o público entre outros números, elas possuem ambientação mitológica e seus protagonistas quase sempre são condenados à morte que sofrerão o mesmo destino trágico dos personagens das fábulas. Começando por Pasífae se unindo ao touro - como parte de uma punição de Posêidon, Afrodite fez com que Pasífae se apaixonasse por um Touro; ela pediu a Dédalo que construísse um artefato para que ela consumasse a paixão pelo animal. Há o Leão de Nemeia – vencido por Hércules, em um dos seus doze trabalhos, por ordem do rei Euristeu. Entretanto, enquanto uma lutadora deu cabo do feroz leão, uma condenada sofreu no papel de Pasífae. “Dédalo”, o criador do labirinto que hospedou a cria da esposa de Minos, foi despedaçado por um urso (epigrama 10): “Dédalo, ao seres assim dilacerado por urso da Lucânia, como desejaria ter agora tuas asas”. O desfecho de “Orfeu” contrariou o desfecho da fábula, pois foi morto por um urso mal-amestrado; O “Prometeu” romano também teve fim diferente, mas não melhor: ao contrário do mito, onde ele era visitado diariamente por um abutre que comia o seu fígado, sendo libertado por Hércules, o que foi visto no Coliseu foi além das expectativas (epigrama 9): “Viviam ainda os lacerados membros, destilando sangue, e em todo corpo nada havia já de corpo.” O número de animais mortos na arena foi grande: dos historiadores que também escreveram sobre esses jogos, Suetônio e Díon Cássio, há uma divergência numérica que chega a diferir em milhares. Alguns desempenharam papéis e foram aplaudidos ou tiveram sua morte lamentada. Uma javali prenhe deu a luz aos filhotes pouco antes de ser espetada por uma lança, como no nascimento do deus Baco, filho de Sêmele. Outro javali entrou na arena como aquele da Caledônia, a ser batido por um lutador citado em várias outras passagens por Marcial, chamado Carpóforo. Classificado como um bestiarius, pois lutava somente contra animais, ao contrário dos gladiadores e venatores, Carpóforo teve sua braveza comparada a de Hércules ao ser exposto e abater, além dos javalis, touros, búfalos e bisontes: Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 170 ÍNDICE Se os tempos de antanho, César, um Carpóforo houvessem criado, nem a frondosa Nemeia ao leão, nem a Arcádia ao Javali de Ménalo teriam medo. Se eles nas mãos tomasse as armas a Hidra morreria de uma vez só; um único golpe lhe bastaria para derrubar a Quimera inteira. Enumere-se a glória das empresas de Hércules: é mérito maior num único dia conseguir subjugar duas vezes dez feras. (MARCIAL, 2004) 1.5 Ave, Cesar, morituri te salutant Ícones incontestáveis do mundo clássico e originalmente romanos, os gladiadores também estiveram presentes nos jogos de Tito. Duramente criticado entre os intelectuais, também foi defendido por “terem o mérito de fortalecer a coragem dos espectadores”. A luta entre gladiadores introduziu na sociedade greco-romana uma dose aceitável de prazer sádico maior que as outras manifestações, pois o que tornava uma batalha mais emocionante era a redução de um combatente a pedir clemência, tendo a audiência do espetáculo de decidir pela sua vida. Entretanto, diz-nos Vayne que Não devemos deduzir a partir disto que a cultura greco-romana era sádica; não se admitia o prazer de ver sofrer em termos gerais, e durante os combates reprovava-se quem visivelmente se deliciava com os massacres [...] em lugar de assistir ao espetáculo com objetividade, como uma demonstração de coragem. A literatura e a imaginária greco-romana não são sádicas em geral, ao contrário, e o primeiro cuidado dos romanos, quando iam colonizar um povo bárbaro, era proibir os sacrifícios humanos. Uma cultura é feita de exceções cuja incoerência escapa aos interessados, e em Roma os espetáculos constituíam uma dessas exceções. (VAYNE, 2009, p.184-5) Apesar de originalmente serem dedicados às divindades e possuírem caráter litúrgico, o esvaziamento de sentido dessa manifestação aliada à crescente crueldade empregada na arena cedeu espaço para o avanço do cristianismo e sua mudança na moral vigente. Sabendo que poderiam não voltar vivos do combate, os gladiadores saudavam o César como destinados à morte. Entretanto, o registro que Marcial nos deixa contraria a sina desses guerreiros. Prisco e Vero, dois gladiadores que angariaram glória e admiradores, se bateram na arena por muito tempo. Conquanto não desistiram e a batalha só teria fim com a morte de um deles, Tito os dispensou da batalha enviando-lhes a “Vara da dispensa”, a liberdade, privilégio raramente concedido a gladiadores, notadamente escravos. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 171 ÍNDICE 1.6 As naumaquias Batalhas navais também foram travadas no anfiteatro, com a arena sendo inundada para as apresentações. Júlio César já havia presenteado a população com uma grande naumaquia, ainda em tempos da República, e Augusto, durante seu governo, também. Até então, os imperadores Cláudio e Nero ousaram produções ainda maiores: como parte de um conjunto de obras, o primeiro ordenou a drenagem de um pântano para a manutenção de um lago artificial, o Fúcino, onde apresentou seu espetáculo; o imperador Nero, por sua vez, o fez dentre os muros de seu palácio. Contudo, Marcial conta-nos que Tito foi além em sua empreitada. Enquanto as antigas exibições aquáticas limitavam-se ás batalhas – como o Actium e o desembarque dos atenienses em Siracusa – agora havia uma espécie de ballet aquático, com a exibição de personagens mitológicas. A obra de Augusto, aqui, consistiu em fazer recontros de frotas e em agitar as vagas com a tuba marinha. Mas o que é isso perante as empresas de nosso César? Nas ondas viu Tétis e também Galateia, monstros desconhecidos; na rebentação da água, carros efervescentes viu-os Tritão e cuidou que haviam passado os cavalos do seu senhor. [...] Tudo quanto no circo e no anfiteatro se pôde ver outro tanto a engenhosa, César, a tua honra excedeu. Calem-se o Fúcino e os lagos do sinistro Nero: As gerações futuras lembrarão somente esta batalha naval. (MARCIAL, 2004) Conclusão Similar ao círculo literário que Mecenas mantinha em torno de si e de Augusto, Marcial orbitava a família imperial dos Flávios, onde chegou a “viver de literatura”. Entretanto, algumas diferenças são patentes nos períodos: os tempos de Augusto eram de consolidação da ordem pública, vitimada por anos de guerras civis. Para tal tarefa, a literatura serviu como ferramenta de propagação da grandeza da civilização romana pelas mãos da família Juliana. Há de ser ressaltado que a poesia suplantou a prosa nesse período, sendo essa última notadamente mais utilizada no final da República. O período em questão representa um império, embora ainda “disfarçado” do modelo monárquico, já caminhando para a degeneração. Tiranos como Calígula e Nero governaram ao modo oriental, sem respeitar outras instâncias de limitação ao poder imperial, como o Senado e os tribunos. Essa Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 172 ÍNDICE transformação contínua do aparelho social, há muito não mais calcada no direito e no mérito, permitiu um enorme círculo de bajuladores e indivíduos que obtinham poder às custas dos favores e da proteção do imperador. Embora não seja concisa uma generalização, pode-se afirmar que mesmo aqueles que não dependiam dos favores do imperador não faziam objeção em alinhar-se à sua pessoa. A represália obedecia à vontade pessoal e aos caprichos do “primeiro cidadão de Roma”. É nesse contexto em que está inserido Marcial, tomado por alguns como mero bajulador. Não podemos esquecer do poeta de estilo mordaz e sagacidade únicas, além do momento social de sua época, pois, como diria o próprio Marcial, numa passagem dirigida à própria pessoa do imperador, “perdoa estes improvisos: não merece o teu desagrado quem se apressa, César, para te agradar”. Assim, foi agraciado com o jus trium liberorum, um direito concedido àqueles que tivessem mais de três filhos, sendo isentos de parte dos impostos. Acredita-se que mais da metade de sua obra original se perdeu durante os séculos. Muitas modalidades de apresentações na arena não foram encontradas no texto que chegou até nós, embora sejam encontradas em outros registros que narram a abertura do anfiteatro Flávio. Referências MARCIAL. Epigramas. Tradução de Paulo Sérgio Ferreira, Delfim Ferreira Leão e José Luís Brandão. São Paulo. Editora 70, 2004. VEYNE, Paul (org.). História da vida privada: do império romano ao ano mil. Tradução Hildegar Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Vol 1. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 173 ÍNDICE HISTÓRIA SOCIAL DO LATIM NO BRASIL Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 174 ÍNDICE O latim e o vernáculo no século XVI: o caso da Grammatica de João de Barros Sara Bernardo∗∗ Introdução Esta pesquisa busca contribuir com o estudo de fontes para uma história social do latim no Brasil. O projeto Em busca de fontes para uma história social do latim no Brasil, coordenado pelo professor José Amarante (NALPE/UFBA) pretende catalogar e analisar diferentes tipos de fontes a fim de responder a algumas indagações: Que Latim de leu no Brasil? Quem lia Latim? Por que lia? O que se escrevia em Latim? Quem e em quais contextos se escrevia? Quem e como se ensinou Latim? Como entendermos seu processo de avanços e retrocessos enquanto objeto de estudo? O objetivo, num sentido geral, deste projeto é entender, através de diferentes pistas de fontes alguns aspectos relacionados aos discursos, as práticas e as representações ligadas ao uso do latim no Brasil até o séc. XX. A análise da presença do Latim na Grammatica de João de Barros (1540) tem o objetivo de atestar o peso significativo que se atribui à língua no séc. XVI e a contribuição trazida pelo seu prestígio e poder na consolidação de uma nova língua, a língua portuguesa. A Grammatica foi selecionada por marcar um discurso gramatical nos primeiros momentos de colonização portuguesa no Brasil. Esta pesquisa, então, tem, especificamente, o objetivo de analisar os expedientes discursivos presentes na Grammatica de João de Barros, para marcar as relações entre o Latim e o vernáculo nesses primeiros momentos de colonização portuguesa. O trabalho se pauta metodologicamente nos pressupostos da linha de pesquisa da História da Cultura Escrita, analisando, na referida Grammatica e no que se refere ao latim e a relação com o vernáculo, a perspectiva dos discursos, suas representações1 e as relações de poder. ∗∗ 1 Graduanda na Universidade Federal da Bahia, bolsista no Pet-Letras, orientanda do Prf. Ms. José Amarante Santos Sobrinho. CASTILLO GÓMEZ, 2003. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 175 ÍNDICE 1 O latim na Grammatica Na Grammatica escrita por João de Barros, aparecem alguns tipos de ocorrências relacionadas ao latim, além do grego e do hebraico, dentre eles: o latim como língua mãe do português; particularidades do português; comparações em dimensões imperiais; exemplos do mundo clássico; citações do latim. Serão, pois, esses os principais aspectos que abordaremos neste trabalho. Um ponto significante é o fato de existir em todo o texto comparações explícitas e subtendidas, num movimento antagônico, tanto da superioridade do latim, quanto da superioridade do português. Isso se deu pela necessidade de se firmar o português como uma língua de uma nação imperial, fazendo uma marcação de igualdade, grosso modo, em termos comparativos ao latim, o que valorizaria a nossa língua. 1.1 O Latim como língua mãe do português Na gramática, que é o corpus desta pesquisa, o Latim se faz marcar em quase todo o texto com exemplos, comparações e citações. Esse fato não se deu sem motivos; um importante fato histórico contribuiu para a presença do latim na Península Ibérica, “onde os primeiros escritos em Português surgiram no séc. XIII”2, que foi a chegada dos romanos. Todos os povos da Península, exceto os bascos, adotaram o latim como língua. O processo de formação da língua se deu num movimento linear de construção: LATIM VULGAR > ROMANCE > GALEGO PORTUGUÊS > PORTUGUÊS3. O Latim não influenciou apenas nos vocábulos, mas também na fonética, na fonologia, na morfologia, na sintaxe e, por que não dizer, na literatura? Ao selecionar trechos da Grammatica, alguns pontos seriam relevantes observar. Vejamos alguns deles, que se referem a conclusões do gramático: a) As letras do nosso alfabeto, (a, b, c, d, e, f, g, i, l, m, n, o, p, r, s, t, u), segundo a Grammatica, foram criadas por “Nicóstrata, madre de Evandro”4, que era o rei dos latinos. Mais tarde foram adicionadas mais seis letras (h, k, q, x, y, z), sendo que, no 2 3 4 TEYSSIER, 1997. TEYSSIER, 1997. JOÃO DE BARROS, 1540. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 176 ÍNDICE Latim, o h não era considerado letra, apenas uma aspiração, e o k era usado somente em nomes gregos. b) A morfologia do português na Grammatica é uma das partes mais importantes herdadas do Latim. Muitos são os empréstimos linguísticos, as derivações, dentre outros processos de formação lexical. c) Outra regra herdada do Latim é a que se refere ao uso do m antes de p ou b. d) Os sons dobrados em algumas dicções como “anno, grammatica, immortal”5 e no modo subjuntivo dos verbos: “amassem, lesse, ouvisse, fosse”.6 e) Os casos, que “[...] são os termos por onde os nomes, pronomes e particípios podem andar, os quais termos dados que não mudem a substância do nome: governam a ordem das orações mediante o verbo.”7 1.2 Particularidades do português Neste tópico, percebemos mais claramente as comparações, num movimento antagônico, em relação ao português e ao latim, principalmente quanto à possível superioridade da língua portuguesa em relação à latina. Dentre essas particularidades podemos destacar: a) No português a sílaba tem três letras no máximo, enquanto os latinos fazem sílabas com até cinco consoantes. b) A tonicidade da língua portuguesa é marcada pelo fato de a sílaba tônica ser longa e a percebermos nas trovas, enquanto no Latim identifica-se a tonicidade nos versos, o que facilita essa percepção. c) Os latinos não possuem aumentativo e diminutivo, o que herdamos dos gregos. 5 6 7 JOÃO DE BARROS, 1540. Idem. Idem. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 177 ÍNDICE d) Quanto à comparação, [...] entre nós e os latinos há esta diferença, eles fazem comparativos de todos os seus nomes adjetivos, que podem receber maior ou menor significação: e nós não temos mais comparativos que estes. Maior, que quer dizer mais grande, menor por mais pequeno, melhor, por mais bom, e pior, por mais mau. Mas todos os outros comparativos que eles formam, suprimos nós com este advérbio, mais: que acrescenta a coisa a que o ajuntamos, por semelhante exemplo.”8 e) Os nomes que derivam de verbos são os nomes verbais como “amar, amor”9, com isso, o português supre muitos nomes que do Latim. f) Os latinos possuem sete gêneros de nomes: masculino, feminino, neutro, comum de dois, comum a três, duvidoso e confuso. O português “[...] não somente conhecemos o nosso gênero por significação como os latinos, mas por artigos [...]”10, classe que o Latim também não possui. g) O Latim possui cinco gêneros de verbos pessoais que são os ativos, passivos, neutros, comuns e depoentes, enquanto o português da Grammatica possui apenas dois: o ativo e o passivo. h) Suprimos muitos verbos da língua latina quando juntamos o nosso verbo “hei, hás” com um nome. Isto é, os termos do particípio futuro do Latim, suprimos com locuções verbais. i) O Latim possui cinco discursos, o português possui os mesmos, mas “[...] las outras mais partes que os latinos têm, suprimos, ou pelo infinitivo à imitação dos gregos, ou por cincunlóquio, a que podemos chamar rodeio.”11 j) 8 9 10 11 O português possui o c e o ç, o Latim não tem essa figura, suprindo-a com o k e o q. Idem. JOÃO DE BARROS, 1540. Idem. Idem; Rodeios são locuções verbais. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 178 ÍNDICE k) Por a consoante g, seguida das vogais e e i não possuírem o mesmo som das outras três junções, no português, acrescenta-se o u entre essas sílabas. Ex: ga, gue, gui, go, gu. l) O h, que os latinos não consideram letra, o português a utiliza como aspiração (há!), como no Latim, mas também entre algumas junções, a fim de modificar-lhes a sonoridade e formar uma nova sílaba: “cha, lha, nha”, que são as três “prolações” que o Latim não possui. 1.3 Comparações em dimensões imperiais Quando se fala de comparação na Grammatica de João de Barros, visualiza-se uma língua sendo descrita, uma língua imperial se firmando. Para isso, o autor busca diversas formas de comparações. Uma delas é aquela que eleva a língua a uma dimensão equivalente e muitas vezes até de superioridade quanto a outras línguas. Ao falar de barbarismo, que é uma “figura de pronunciação” na língua portuguesa, João de Barros mostra a superioridade portuguesa em relação às outras línguas quando diz que essas línguas “imitam” o português: E em nenhuma parte da terra se comete mais esta figura da pronunciação, que nestes reinos: por causa das muitas nações que trouxemos ao jugo de nosso serviço. Porque bem como os gregos e Roma haviam por bárbaras todas as outras nações estranhas a eles, por não poderem formar sua linguagem: assim nós podemos dizer que as nações de África, Guiné, Ásia Brasil, barbarizam quando querem imitar a nossa.12 Para explicar o que é o solecismo, que é mais gênero dos vícios que se pode cometer, percebe-se mais uma vez uma comparação entre o português e línguas de outras nações, outros impérios: Vem este vocábulo, solecismo, de uma cidade de Çelíçia que se chamava, Solos: a qual dizem que povoou Solon. E por que a esta povoação concorreram povos de diversas nações, que corromperam a verdadeira e pura língua dos gregos, chamaram eles à esta corrupção solecismo, donde os romanos tomaram este vocábulo que nós ora usamos.13 12 13 JOÃO DE BARROS, 1540. Idem. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 179 ÍNDICE 1.4 Exemplos do mundo Clássico Como exemplos do mundo clássico, pode-se encontrar na Grammatica escrita por João de Barros desde Salomão, sábio rei bíblico, até Heitor, cavaleiro famoso por seus esforços no exército de Troia, ao definir metáfora: Metáfora quer dizer transformação, desta usamos quando por alguma conveniência ou especialidade que uma coisa tem atribuimos a outra: como por um homem sabedor dizemos, é um Salomão; e por um liberal, é um Alexandre: e por um esforçado, é um Heitor. 14 Ou ao exemplificar metonímia, que, segundo a Grammatica, quer dizer transnominação: “César morreu a ferro, por punhal ou espada com que o mataram.”15 Além de Judas, Tortélio, Gélio, Viturino, Sérvio, Méssala, Prisciano... 1.5 Citações do Latim Uma citação de Latim presente na Grammatica de João de Barros é referente às orações anfibológicas, que eram muito usadas nos oráculos com o intuito de confundir os gentios: “como se conta da resposta que houve h ] ouve Pirro do oráculo de Apólo que os gramáticos trazem mui comum: Aio te Aeacida romanos vincere posse.”16 2 Os diálogos: Em louvor da nossa linguagem e o da Viciosa vergonha Nos “Diálogos” presentes na Grammatica se tem uma relação de poder da igreja em paralelo à gramática descritiva, escrita por João de Barros, e que apresenta uma forte relação de poder entre os saberes eclesiásticos e a língua portuguesa. No primeiro, O diálogo em louvor da nossa linguagem, percebe-se que o autor admite que as línguas, das quais o português herdou traços, são as “princesas do mundo” (grego, hebraico e latim), mas não se esquece de enfatizar que a nossa língua é filha dessas três línguas e que “excede” as demais línguas, também geradas por elas, a ponto de dizer que o português é mais elegante.17 As comparações continuam a se fazer presentes, porém num texto mais literário, num diálogo entre um filho e um pai, para ser mais precisa. 14 15 16 17 Idem. Idem. JOÃO DE BARROS, 1540. Idem. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 180 ÍNDICE Os textos eclesiásticos estão sempre sendo citados, e a língua é exaltada a todo o momento. No Diálogo da viciosa vergonha, o pai fala como o filho a respeito do pecado, cita trechos eclesiásticos de exortação e continua ligando a religião à língua: Donde São Paulo, escrevendo aos de Éfeso (Ad Ephesios, cap. VI), lhes [ s ] mandava que criassem seus filhos na instituição e admoestação de Cristo. E daqui tirou Crisóstomo, quando em uma homilia mandou que os moços fossem ensinados e ocupados nas letras divinas. E ainda em público eprivadamente, os maridos, com suas mulheres e filhos, pratiquem e disputem nas letras sagradas. Nessa segunda parte, João de Barros cita filósofos como Platão, grandes homens latinos como Pilatos, os deuses da mitologia latina e os saberes eclesiásticos, com o objetivo de afirmar a relação de poder presente em seu discurso, nessa parte da Grammatica, onde a literatura latina se fez presente de uma forma mais intensa do que na parte gramatical. Conclusão Tendo em vista tudo o que foi analisado na Grammatica de João de Barros, que foi nosso objeto de estudo, conclui-se que a principio o Latim era utilizado por diferentes povos a fim de se ter uma língua unificadora, segundo Teyssier18, e, em relação a ela, foram construídos discursos, estabelecendo relações de poder, e discursos não só no domínio eclesiástico, mas acadêmico e no pragmático19, que se fizeram presentes na história da nossa língua vernácula de uma forma bastante significativa. Isto é, servindo como um dos alicerces da língua portuguesa falada aqui no Brasil: “E porque (como já disse) por sermos filhos da língua latina, temos tanta conformidade com ela, que convém usarmos dos seus termos: principalmente em coisas que têm seus próprios nomes, dos quais não devemos fugir.”20 Referências BARROS, João de. Gramática da língua portuguesa. Cartinha, gramática, diálogo em louvor da nossa linguagem e diálogo da viciosa vergonha. (ed. M.L.C. Buescu) Lisboa: Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, 1971. Transcrição Z.O.N. Carneiro (PROHPOR). Corpus Histórico do Português Tycho Brahe. Versão Editada (a partir de texto-fonte com ortografia original) 18 19 20 TEYSSIER, 2001. BURKE, 2005. JOÃO DE BARROS, 1540. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 181 ÍNDICE BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. CASTILLO GÓMEZ, Antonio. Historia de la cultura escrita. Ideas para el debate. In: Revista Brasileira de História da Educação. Editora Autores Associados / SBHE, jan-jul. 2003, n. 5, p. 93125. MAIA, Clarinda de Azevedo. A consciência da dimensão imperial na língua da produção linguístico-gramatical portuguesa. In: BRITO, A. M. (org.). Gramática: história, teorias, aplicações. Porto: Fundação Universidade do Porto/Faculdade de Letras, 2010, p. 29-49. TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Trad. Celso Cunha. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 182 ÍNDICE O Latim no Brasil do Século XIX: Entre silabadas, sátiras e puristas Camila Borges da Silva Ferreiro* Para uma História Social do Latim Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004; 11), evocando o poeta Pessoa, nos convida a refletir sobre o labor coletivo dos historiadores: “sem antes sonhar, a obra não nasce, Deus querendo”. Convite aceito, a História é, aqui, concebida como um produto coletivo. O que se segue não passa de um grão, diante da amplitude do projeto em que está contido. “Em busca de fontes para uma História Social do Latim no Brasil” está atento não só às práticas de uso da língua latina no Brasil, mas também às suas representações sociais, abrindo caminhos e horizontes ainda por serem explorados. Dezesseis séculos após a tomada de Roma pelos povos bárbaros, os estudos latinos, ainda hoje, se mantêm vivos, a despeito do status de língua morta. Apesar dessa vigência milenar, ainda está por ser construída a história dos seus usos e suas representações no Brasil. Visando a compreensão de sua trajetória, principio analisando os processos delineados a partir da sua incontestável presença cultural e política na Europa, verdadeira ponte para difusão do latim na América. 1 A História Social do Latim Pós-Medieval na Europa: a proposta de Peter Burke (1993) Segundo Burke (1993), os estudos históricos concordam, com certa unanimidade, a respeito da presença e da importância do Latim na cultura erudita da Europa Medieval, contudo, após a Renascença, isso ainda não está muito bem estabelecido. Sua proposta identifica pelo menos três domínios, nos quais o latim permaneceu empregado: o domínio eclesiástico, o domínio acadêmico e o domínio pragmático. Língua oficial da Igreja Católica Romana, o latim servia-lhe como um recurso valioso, pois permitia uma unidade linguística entre os diversos países da comunidade católica. Ao mesmo tempo, a natureza especial dos textos sagrados era sublinhada pelos * Camila Borges da Silva Ferreiro é graduanda em Letras Vernáculas na Universidade Federal da Bahia. Este trabalho foi realizado sob a orientação de Prof. José Amarante Santos Sobrinho. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 183 ÍNDICE estimados estudos em torno da língua latina, como os retóricos, filosóficos e gramaticais, elaborados desde a Antiguidade. O seu uso no domínio eclesiástico estava consagrado. Críticas ao domínio do latim na Igreja foram realizadas, principalmente a partir do século XVI. Isso resultou em algumas concessões, de modo que os vernáculos locais passaram a ter alguma aceitação entre os seus registros oficiais. “Porém, um dilema estaria estabelecido: escrever em latim, siginificava o afastamento do povo. Escrever em vernáculo significava abdicar da internacionalização que o latim proporcionava”. (BURKE, 1993, p. 5358) Através de um levantamento das obras publicadas na Idade Média e Moderna, Peter Burker (1993) evidencia que, até o século XIX, o latim aparecia como língua de ciência e cultura, caracterizando, desse modo, a sua atuação no domínio acadêmico. Quem quisesse estudar os escritos de Galileu (séc XVI-XVII), ou a filosofia de Francis Bacon (séc XVI-XVII), ou a de Thomas Hobbes (sec XV-XVI), John Locke (séc. XV- XVI) ou a física de Isaac Newton (séc. XVI-XVII), para os que quisessem estudar esses autores a partir de suas publicações originais, estudar latim lhes era iminente. A litaratura latina, independentemente do gênero, também florescia. Do século XV ao XIX, em países como a Itália, Alemanha, Holanda, Polônia e França, o latim estava presente “na lírica, na épica, na poesia, na prosa, na ficção e na não-ficção […] Quanto ao teatro, a sua associação com o ensino do latim garantiu um fluxo contínuo de peças ao longo dos séculos XVI e XVII, especialmente nas instituições de ensino jesuítas”. (BURKE, 1993, p. 59-60) A importância do latim, no domínio acadêmico, é ainda mais evidente, quando Burke (1993: 60) constata o número de traduções das línguas vernáculas para o latim: mais de 528 traduções publicadas entre 1485 e 1799. Embora a Modernidade seja caracterizada pela emergência dos vernáculos na Europa, e o uso do latim apareça diversas vezes como uma atitude antiquada e combatida, ainda assim, a sua derrota não se configura por completo, pois o latim permanece a língua oficial para publicações eruditas. Em meados do século XIX, Gauss (matemático alemão) ministrava palestras e publicava sua obra em latim. Na França, a tese suplementar para o doutorado em letras, deveria ser escrita em latim. Na Inglaterra, as aulas inaugurais em Cambridge eram ministradas em latim. Na Holanda, Jean Charles Naber presumivelmente ensinou Direito Romano em latim até 1911. (BURKE, 1993, p. 59-69) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 184 ÍNDICE Por fim, o domínio pragmático foi cunhado por Burke (1993) em referência aos usos do latim em contextos internacionais (como diplomacia e viagens) e em situações do Direito e do Comércio. De acordo com os dados levantados pelo pesquisador, até 1870, algumas universidades de Oxford, realizavam a sua contabilidade em latim. No Direito, a presença da língua latina se revela ainda mais evidente, pois, ainda hoje, expressões latinas permanecem usadas nos autos processuais, até mesmo em países como a Inglaterra, onde a influência do Direito Romano não foi preponderante. 2 A chegada dos portugueses e do latim no Brasil Em ebulição, durante a expansão do Império Romano, o latim correu a Europa Ocidental, na Antiguidade. Língua oficial do Império, o latim gozava de prestígio. Muitos povos a ambicionavam, em busca dos privilégios oferecidos pela cidadania romana. Com a chegada dos espanhóis à costa do continente americano, no século XVI, a área de atuação do latim se expandiu ainda mais. Contudo, o cenário desta expansão deu-se em contextos imensamente distintos. Como indicam os estudos de Burke (1993), o latim no século XVI assumia papel central nos domínios pragmático e eclesiástico, sendo contestado no domínio acadêmico, embora ainda mantivesse posição de prestígio entre as grandes universidades. Nesse período, observam-se movimentos para emancipação das línguas vernáculas, cada vez mais gramaticizadas, dicionarizadas e internacionalizadas. Percebe-se que a sociedade europeia estava dividida, entre a popularização da tradição erudita e a erudição da tradição popular. O latim clássico persistia, com uma gramática milenar sedimentada. Os vernáculos avançavam. No Brasil colonial, o multilinguismo generalizado1 contribuía para a ascenção dos vernáculos, e a tradição pedagógica jesuítica reunia esforços para o estabelecimento da língua latina, embora tivesse contribuído para o estabelcimento das línguas gerais. Calejados pelo desprestígio da língua clássica, sofrido nos últimos séculos, na Europa, seus fomentadores pertenciam principalmente ao mundo eclesiástico, munidos de estratégias e dispostos a certas concessões para garantir a introdução dos sagrados estudos latinos entre o 1 Multilinguismo generalizado: ver Mattos e Silva (2004), Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 185 ÍNDICE povo das terras de além-mar. Se, na Europa, a Igreja permitiu a utilização de vernáculos em determinados documentos oficiais, no Brasil, os jesuítas buscaram estudar a linguagem dos indígenas, produzindo gramáticas e estabelecendo a sua escrita, para ter acesso ao seu universo. Os meios justificam os fins. Foi preciso dar os primeiros passos em língua de índio, instrumento fundamental seja para galgar a língua sacra e o consequente conhecimento teológico, ou seja para estabelecer domínio político nas terras de além-mar. 3 Entre silabadas, sátiras e puristas: O Latim no Brasil do Século XIX, a partir de leituras do períodico A Semana, Ano 1. Em busca de discussões sobre o latim, em busca de suas representações simbólicas, em busca do uso de expressões latinas, de notícias sobre o universo da língua e da literatura latina, minha pesquisa centrou-se na leitura dos exemplares do primeiro ano de um periódico do século XIX, cujo nome é A Semana. Lançado em três de janeiro de 1885, a relação de colaboradores desse periódico contava com nomes de prestígio como Machado de Assis, Aloízio de Azevedo e Artur Azevedo. Embora os periódicos originalmente tenham servido a divulgação da produção científica, no século XIX, também manifestavam a função social da imprensa: formar opinião acerca dos acontecimentos de seu tempo. O trecho abaixo retirado do editorial de lançamento proclama: “O seu fim único será este: fazer a história completa e fiel da semana decorrida, dando a nota do dia.” Isso se confirma nas publicações posteriores, através de variadas discussões sobre episódios políticos e resenhas artístico-literárias. Nas edições do periódico, as práticas de uso do latim pouco se fizeram presentes. Mas, por outro lado, a temática em torno da língua latina aparece frequentemente no periódico. O latim se revelou um assunto do dia. Discussões entre puristas e vanguardistas não eram raras. Caricaturas de professores de latim aparecem frequentemente na literatura. A língua, enquanto produto social, é fonte de legitimação de acordos e condutas. Ela representa simbolicamente as experiências humanas e suas diversas formas de sentir, de pensar e agir na vida social. Por isso, esse estudo se distancia da metodologia apresentada por Burke. Ao invés de catalogar as ocorrências de uso da língua latina, serão apresentadas a seguir as representações do latim no periódico. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 186 ÍNDICE Após vários séculos instituído como língua de prestígio e como língua internacional, o latim no Brasil do Século XIX era encarado a partir de pelo menos dois pontos de vista. De um lado, a parcela purista da sociedade o julgava fonte de uma cultura superior. Sob essa ótica, o latim era sinônimo de boa linguagem e atribuía status a contextos comerciais ou científicos. No exemplar nº 01, as expressões de benção e boa sorte da redação foram estilísticamente redigidas em latim. […] para em tão amável companhia e com o mesmo destino fazer a mesma viagem — se não ficar no caminho; quod Deus avertat! Depois de exhibido o passe, feitos os comprimentos e derramado o latim do estylo, queira o respeitável conductor tocar a campainha:—Siga o. Bond! E dè-nos Deus bôa viagem! [grifo nosso] No exemplar nº 02, a propaganda de um remédio para tuberculose2, tráz em sua marca, uma palavra em latim. 2 A herva homeriana nada tem a ver com o poeta latino, Homero. Supõe-se que o nome da planta foi atribuído em refência à Paulo Homero, precursor de sua comercialização. (fonte: Rodriguésia: Revista do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Ano III, nº 09, disponível em http://rodriguesia.jbrj.gov.br Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 187 ÍNDICE Essas duas ocorrências evidenciam o uso do latim no domínio pragmático. Em tese, a presença de uma língua nesse domínio requer a sua presença nos demais, pois os usos pragmáticos de uma língua são respostas a sua representatividade social. Latinizar, então, o nome do empresário, Carlos Bertini, para nomear a marca, Bertinus, atribui um caráter internacional e científico ao medicamento, utilizado para fins publicitários, a fim de valorizar o produto comercializado. Da mesma forma, fazer o uso estilístico do latim em um texto, mesmo que apenas em uma pequena passagem, valorizava -o. No exemplar nº 47, o latim aparece para fundamentar o posicionamento do poeta Gonzaga Filho, em uma discussão com seu colega de profissão, Filinto de Almeida, a respeito da prosódia do adjetivo pudico. São palavras breves e não esdruxulas. Não há a menor duvida sobre a sua procedencia; Ora, em latim, não só os adverbios pudicè e impudicè, como também os adjetivos pudicus e impudicus, teem longa syllaba di. Todos os lexicos o registram concordemente e poetas da superioridade de Ovidio e Horacio firmaram, em seus versos corretíssimos, aquella mesma accentuação longa. Parece-me, pois, que devemos em português respeitar a pronuncia latina. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 188 ÍNDICE Assim como na Europa, a emergência dos vernáculos ganhava força, através de discussões em torno das notáveis variantes linguísticas, mas o latim não se deu por vencido. A língua e literatura latina são valorizadas pelo poeta. Nos moldes da milenar tradição gramatical e literária, Gonzaga Filho posiciona-se a favor da normatização tradicional da língua portuguesa. Todavia, não só de puristas era formada a sociedade brasileira do século XIX. Para uma outra parcela da sociedade, o latim era utilizado em contextos satíricos, numa tentativa clara de destituir a língua de Roma, do poder que gozara até então. No exemplar nº 06, outro debate sobre língua portuguesa vira notícia do jornal, mas desta vez, verificamos o combate da tradição latina. 1º de fevereiro de 1885. Continua a questão grammatical entre os Drs. Castro Lopes3 e Carlos Laet4. Acordar elles é o motte, constatado e defendido pelo primeiro e contestado e repellido pelo segundo. Nós consultamos elles, lemos elles, estudámos elles, e concluimos que então estão elles de acordo no fundo. Oscilando a divergência apenas entre a classificação de barbarismo e solecismo. Todavia, para que o público não pense que o illustrado latinista Carlos Lopes encampa o erro popular, defendendo-o, aconselhamos que esta questão seja debatida – em latim. É o meio mais efficaz de ninguém a entender; e salva-se assim a grammatica e a linguagem. No exemplar nº 17, foi publicado um trecho de “Maria da Fonte”, obra de Camilo Castelo Branco. Nele o latim é o instrumento para rogar uma praga aos inimigos. [...] quando alli entrei preso em 11 de outubro, foi o Canêta o primeiro homem que no salão dos quartos de malta, me fez os cumprimentos. Eu tinha sido preso a requerimento da minha família, quando ia para Coimbra continuar no Pateo, as minhas exploraçoens scientificas, bebendo nos manaciaes latino e rhetorico do padre Cardoso e do padre Simoens – Deus lhes falle n'alma em latim ciceroniano. Os meus inimigos em letras dois annos depois, farejavam delictos execrandos na causa mysteriosa d'aquella prisão de sete dias. [grifo nosso] 3 4 Encontrei um Dr. Castro Lopes que fez uma conferência entitulada A natureza do sol, da luz e de vários phenomenos physicos, nas Actas de 1885 da Revista do Instituto Polytechnico Brasileiro http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=334774&pagfis=4937. Acesso em 24.05.2012 Membro da Academia Brasileira de Letras. Formado em engenharia, não seguiu carreira, voltando-se para o magistério e o jornalismo (prestou concurso para a cadeira de português, geometria e aritmética do colégio D. Pedro II, mas após a reforma de 1915 na educação secundária, que extinuiu a cadeira que reunia três disciplinas tão díspares, ele foi nomeado professor de língua portuguesa). Wikipédia. Acesso em 24.05.2012 Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 189 ÍNDICE Em uma crônica assinada por Valentim Magalhães, há a representação de uma aula de latim. O temor e a atitude autoritária e arbitrária do professor são destacadas no trecho abaixo. Eil-o que se adeanta pela aula, por entre as filas parallelas dos bancos, com o seu passo pausado, fazendo ringir as grossas botas reluzentes nas taboas brunidas do soalho. Os rapazes, que este ruido familiar av isva de longe, mergulhavam apressuradamente os olhos nos livros abertos, simulando uma aplicação ao estudo realmente... feroz. E o padre-mestre – abotoado na sua ampla sobre-casaca, com a sua bella cabeça vigorosa, engastada no collarinho alto e claro, os cabellos longos, levemente ondeados de fios de prata, cahindo-lhe sobre os hombros, os olhos grandes e bondosos, luzindo atravez dos pculos de ouro, as mãos atraz das costas – passava, fiscalisando o estudo dos seus alunos […] Quando se approximava do meu banco, apenas me distinguia entre os outros pequenos, vinha dizendo a meia voz, com um sorriso paternal: - Valentinus, valentini... e, batendo-me co m a palma da mão sobre a cabeça: - … valentinó! … Um dia na aula de latim, deu-me dois bolos... Não sei que contrariedade lhe havia agastado o espírito; o certo é que entrou para a aula com uma das mãos passada atraz das costas, o sobr'olho carregado, a cabeça mais enterrada sobre o peito do que de costume... Signaes evidentes de que trazia consigo um vivo desejo de dar bolos e … a palmatoria. Entrou, sentou-se, gritou: _ Cheguem-se cá, fiquem em volta da mesa. Nós obedecemos, a tremer. - Vá; comece você. - o primeiro da roda começou, mas com tal caiporismo que disparou logo uma syllabada hedionda. Em paralelo, o Inglês e o Francês emergem como língua de prestígio, de modo que enquanto apenas um anúncio foi encontrado na secção dos classificados para aulas particulares de latim, quase todas as publicações do periódico possuem aulas particulares de inglês e francês anunciadas na secção dos classificados. E suas literaturas foram frequentes alvos da análise de prestigiados críticos literários. Contudo, o latim aparece em praticamente 30% das publicações do jornal. Ele fazia parte do assunto do dia. Bom: aí está um retrato das transformações sociais no cenário pós-Revolução Industrial. Assim como disse Camões em um de seus sonetos: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Digo eu: Mudam-se os centros de poder, mudam-se as línguas de prestígio. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 190 ÍNDICE Últimas palavras: Por que, afinal, estudar a Históra Social do Latim? No mundo contemporâneo, isso é notável, não há espaço no Brasil para o latim como língua internacional. Desobrigada a sua presença no currículo escolar, do nível básico ao superior, o interesse na língua latina está circunscrito aos estudos literários, religiosos, filosóficos e linguísticos, além, é claro, de interessar a eventuais sujeitos com motivações pessoais. Cientes dos discursos que envolviam o latim em outros tempos, porém, podemos efetuar escolhas criteriosas acerca de qual posicionamento adotarmos. Como disse o Prof. José Amarante, durante entrevista no I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia: “numa época em que nos esforçamos para desencavar dinossauros, com o objetivo de conhecer formas de vida anteriores à nossa, por que enterrar uma cultura milenar greco-latina, que ajuda a explicar muitas coisas do mundo moderno?5” A partir dos estudos sobre a história social do latim suscitam-se inúmeras reflexões acerca do papel atribuído aos estudos clássicos na atualidade: enterraremos o latim e sua cultura milenar, numa cova rasa, atirada aos corvos? Seremos, hoje, os professores de latim satirizados de outrora, a denunciar nos alunos as mesmas silabadas que cometemos? Seremos, hoje, os puristas a observar a língua como uma estrutura atomística, justificando escolhas normativas, a partir da etimologia da “língua-mãe”? (ou seria “língua tia”, ou “avó”, “prima”?). A História, afinal, põe-se a nosso favor, revelando antigos caminhos e suas encruzilhadas. O destino? Bom, veremos em que dará. Referências Períodico A Semana. Disponível em http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/639. Acesso em 18/10/2012. BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo: Unesp., 1993. MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2004. 5 Entrevista na íntegra disponível em http://www.salvadoracontece.com/2012/06/salvadorsedia-o-1-encontro-de-estudos.html Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 191 ÍNDICE Análise dos usos e influências do latim na construção dos contos e romances de Machado de Assis Silvio Wesley Rezende Bernal∗ Orientador: José Amarante∗∗ Esse trabalho se insere no projeto de pesquisa “Em busca de fontes para uma História Social do Latim no Brasil”, que se vincula à linha de pesquisa História da Leitura e da Escrita no Brasil. Aqui tomaremos como objeto de estudo alguns contos e romances de um dos maiores escritores brasileiros, Machado de Assis, com objetivo de encontrar as referências feitas à língua latina, buscando caracterizar, a partir da ótica de Machado, em quais discursos o latim se fazia presente no século XIX, e de que forma tais discursos influenciam o autor no desenvolvimento de suas obras. Para o melhor entendimento do foco deste escrito é interessante citarmos que para Castillo Gómez (203) temos três direções para seguir para a compreensão da história da cultura escrita: o estudo dos discursos, das práticas e das representações. O foco principal desta análise está nas representações do latim na sociedade brasileira do século XIX, observando a “utilidade” da língua e a “importância” que a ela se atribuía no período. Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 1839. Descendente de família pobre, fez os estudos primários em escola pública, tendo sido aluno do padre Silveira Sarmento, que o contratou como sacristão e iniciou seus estudos em latim. Interessou-se pelo estudo de línguas e consta que aprendeu francês, inglês e alemão, tendo aprendido muito por conta própria, uma vez que não frequentou a escola por muito tempo. No que diz respeito ao latim, observaremos em suas obras uma grande diversidade de passagens em que o autor faz referências à língua, ao seu uso, sua utilidade e também a muitos dos escritores da literatura latina. Falarei agora sobre algumas citações encontradas em romances e contos que nos permitirão enumerar uma série de possibilidades de caracterização das representações do latim na época de Machado. Para dar início à análise, trabalharei primeiramente com o ∗ ∗∗ Universidade Federal da Bahia – Graduação. Universidade Federal da Bahia. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 192 ÍNDICE gênero “conto”, e em uma de suas obras mais célebres desse gênero, O Alienista (1981), encontramos logo no capítulo II referências a autores latinos: O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos loucos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria crer. Quê! Um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua! (ASSIS, 2002, p.5) Percebe-se nessa passagem a ligação do latim nos chamados “discursos acadêmicos”; no caso, a citação diz respeito a um rapaz que havia iniciado seus estudos há pouco e já se mostrava conhecedor dos escritos latinos. Outro tipo de caracterização interessante é a do latim como meio de ascensão cultural, evidenciada na passagem da chamada transformação “inexplicável” de um rapaz, antes considerado “bronco e vilão”, em alguém que agora fazia discursos com “recamos de grego e latim”. Observamos nesse trecho ainda a referência a Cícero, como representante do período de ouro do latim e a autores do período Eclesiástico, Apuleio e Tertuliano, mostrando que ainda era muito comum contato com o latim devido à Igreja. No mesmo conto, encontramos a seguinte passagem: - La bocca solevò dal fiero pasto Quel seccatore...1 Alguns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim. (ASSIS, 2002, p. 18) Trata-se de uma passagem em que o Padre Lopes começa a citar um trecho de Dante, em italiano, dirigindo-a a um inimigo; mas o interessante de se observar nesse trecho é o fato de que, mesmo o latim sendo frequentemente utilizado pela Igreja, ele era desconhecido por grande parte das pessoas, visto que bastava um murmúrio em língua um pouco diferente, para se imaginar que se tratasse de uma oração em latim. No conto Felicidade pelo Casamento2, temos também referências ao mundo clássico como quando o narrador diz “Na terra grega de Xenofonte3, na terra romana de Tito Lívio, 1 2 Expressão retirada do canto XXXIII do Inferno de Dante Alighieri que significa “Aquele pecador retirou a boca do fero alimento”. Publicado no Jornal das Famílias, em junho e julho de 1866, e assinado com o pseudônimo de F. (primeira parte) e S. (segunda parte). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 193 ÍNDICE na terra santa de São Mateus e São João.” (ASSIS, 2002, p. 71) No caso, o que nos interessa é a aparição da figura do historiador romano Tito Lívio, que sempre cantou a grandeza do passado de sua pátria, como figura simbólica da Roma antiga. No mesmo conto ainda encontramos menção a outros autores clássicos, em uma passagem que retrata a existência da leitura desses por parte da sociedade da época. Isto fica claro na fala de uma das personagens, o doutor, ao relatar sobre uma casa de sua propriedade que oferecera ao amigo como residência. Essa passagem é interessante, pois nos mostra quais seriam os autores clássicos “prediletos” por essa parcela social: No jardim, algumas plantas exóticas... passando entre ambos uma rua larga flanqueada de pequenas palmeiras. - É aqui, disse-me o velho, que havemos de ler Teócrito e Virgílio4. (ASSIS, 2002, p. 72) Entrando agora no âmbito do gênero romance, cito uma passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), no capítulo XXIV intitulado “Curto, mas alegre”, em que percebemos uma posição comum dada ao uso do latim, como elemento de cultura erudita, inclusive à necessidade de se conhecer pelo menos o mínimo do considerado “essencial” de cada uma das artes clássicas. [...] Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgilio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas de conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação [...]. (ASSIS, 1978, p. 54) Nessa citação percebemos um latim já encaixado como elemento acessório das elites, para o uso como a própria personagem cita “para as despesas de conversação”, talvez por isso a referência a Virgílio e Horácio, uma vez que na figura dos dois reconhecemos a chamada fase de ouro do latim. Também percebemos através desse trecho, que o latim ³ 4 Xenofonte foi historiador, filósofo e general grego (ateniense); Viveu na Grécia e foi dos discípulos preferidos de Sócrates. Teocrito e Virgílio: Teócrito foi poeta da Grécia Antiga, tendo morado em Alexandria. É considerado hoje o criador do gênero bucólico pastoril; Virgílio, em parte, seguiu seus passos na Roma Imperial, porém seu poema mais famoso é o épico que narra acerca da fundação de Roma, a Eneida. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 194 ÍNDICE poderia ser recorrente em meio às conversas entre pessoas mais instruídas, e que o “saber latim” fazia-se necessário em algumas ocasiões. Ainda em Memórias Póstumas de Brás Cubas, encontramos a seguinte passagem com referências a Cícero e a Virgílio: – Já sei, desta vez vai ler Cícero – disse-me ele ao saber da viagem. – Cícero! – Exclamou Sabina. – Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgílio de relance. Olhe que é Virgílio, e não Virgília . . . não confunda [...]. (ASSIS, 1978, p. 113) Na ocasião, a personagem Brás está partindo de viagem, e outra personagem, Garcez, usa o nome de Virgílio para fazer alusão ao envolvimento de Brás com a mulher da personagem Lobo Neves, Virgília, característica de um humor tipicamente machadiano. Observamos também que o próprio Brás, que já havia dito que sabia apenas o básico do latim, é tomado por Garcez como grande latinista. Entramos agora na análise do romance Dom Casmurro (1989), em que nos deparamos com a personagem Bentinho, que é preparado desde menino por sua mãe com o intuito de se tornar padre, razão pela qual encontramos diversas passagens ligadas ao estudo de latim no romance. A primeira passagem interessante aparece logo no capítulo XI do livro, em que Bentinho cita que aprendera latim desde pequeno, depois vai narrar a respeito de uma brincadeira que fazia com Capitu, que se tratava de “celebrar uma missa” em casa, em que ele fazia o papel de padre e ela de sacristão: No tempo em que brincávamos era assim, era muito comum ouvir à minha vizinha: “Hoje há missa?”Eu já sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia por outro nome. Voltava com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e precipitávamos a cerimônia. Dominus non sum dignus5... Isto que eu devia dizer três vezes, penso que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. (ASSIS, 1986,p. 22) Percebemos através dessa passagem que mesmo as crianças tinham contato com latim nessa época, devido à influência da Igreja, porém a expressão “engrolávamos” deixa claro que era apenas um contato de ouvido, o que configura um contato com “elementos práticos” da língua e não com o conhecimento estrutural da mesma. 5 Dominus non sum dignus: citação de um trecho do ritual católico da missa que, há alguns anos, era sempre oficiada em latim: “Senhor eu não sou digno ( de que entreis na minha casa)” Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 195 ÍNDICE Na próxima passagem, notamos mais uma vez o tom irônico de Machado, quando Bentinho vai contar sobre suas primeiras experiências românticas, lamentando posteriormente o fato de se tornar padre no futuro: “Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar, tinha orgias de latim e era virgem de mulheres. [...]” (ASSIS, 1986, p.26) Ainda no mesmo capítulo, temos uma passagem que nos mostra a caracterização da utilização desse latim pela Igreja. Trata-se de uma comparação que Bentinho faz entre o altar e Capitu, citando o latim como uma língua que ninguém aprende. Padre futuro estava assim diante dela como um altar, sendo uma das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o cálix, os lábios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém aprende, e é a língua católica dos homens. (ASSIS, 1986, p.26) Outra representação encontrada está no capítulo XXXI, que trata a respeito das curiosidades de Capitu. Em determinado momento, o narrador vai contando a respeito do que ela se interessava por aprender, quando faz a seguinte colocação a respeito do latim: No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina, e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, disse que não era língua de meninas. Capitu confessou-me que por essa razão acendeu nela o desejo de o saber. [...] (ASSIS, 1986, p. 44) Encontramos nesse trecho um discurso antigo, que caracterizava o latim como uma língua própria de homens, lembrando inclusive um provérbio português antigo: “Mula que faz him e mulher que sabe latim raramente há bom fim”; o que nos leva a perceber que nesse período o latim era estudado basicamente por seminaristas e por pessoas que frequentavam as universidades, em sua grande maioria composta por homens, uma vez que a mulher era basicamente instruída para os afazeres domésticos. Continuando ainda nesse mesmo capítulo, é interessante observar a curiosidade da menina Capitu em relação aos retratos de personalidades famosas na sala de visitas. Aparece a figura do agregado José Dias, que, como qualquer leitor do romance reconhece, não perdia oportunidade de demonstrar sua erudição, fazendo uso do latim para dar pompa a sua retórica, inclusive citando a famosa frase atribuída a Júlio Cesar: Até tu, Brutus ?: [...] José Dias dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que sua homeopatia de Cantagalo. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 196 ÍNDICE Um dia Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações e latins: - César! Julio César! Grande homem! Tu quoque, Brute? Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. (ASSIS, 1986, p. 45) José Dias aparece novamente no capítulo XXXV para fazer uma advertência a Bentinho sobre o aprendizado de latim, no momento em que o rapaz se encontra perto de tirar férias e de se ver “livre” das lições. Era muita felicidade para uma hora só. Um beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isso mesmo, porque tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas José Dias corrigiu a alegria: - Não tem que festejar a vadiação, o latim sempre lhe há de ser preciso, ainda que não venha a ser padre. (ASSIS, 1986, p.51) Esse posicionamento de José Dias não é o mesmo do de Bentinho, que no capítulo XCVI, quando está prometendo a Capitu que retornará de sua viagem à Europa, cita um discurso que é muito comum até os dias de hoje acerca da utilidade do latim, configurando a língua como necessária apenas pelo caráter religioso. -Também eu. Vou melhorar meu latim e saio; nem dou teologia. O próprio latim não é preciso; para que no comércio? - In hoc signo vinces6, disse eu rindo. (ASSIS, 1986, p. 110) Para finalizar essa primeira etapa de análise, encontramos, no romance Esaú e Jacó (1904), outra representação de uso do latim que nos é comum até os dias de hoje, que seria como ferramenta para “nomear” diversas coisas com a intenção de lhes atribuir valor: Quanto ao título, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir. Ab ovo, por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a idéia de lhe dar esses dois nomes que o próprio Aires citou uma vez: ESAÚ E JACÓ. (Assis, 2002, p.13) Ab ovo é uma expressão latina que significa “desde o ovo” ou “desde a origem”, que poderia servir de título ao romance fazendo referência aos gêmeos Pedro e Paulo, que tiveram conflitos desde antes do nascimento. Percebemos um indício dessa característica do latim de 6 In hoc signo vinces – “Por esse signo vencerás”: esta frase aparece junto de uma cruz no estandarte de Constantino, imperador romano que fixou o Cristianismo como religião do império, por volta de 313 a.C. É, pois, um símbolo religioso invertido ironicamente nesta passagem de Dom Casmurro, tomando o sentido de “Por este signo (o comercio) vencerás (na vida)”. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 197 ÍNDICE ser uma língua valorativa, quando observamos a expressão “apesar do latim”, ou seja, o simples fato de ser latim contaria como “ponto a favor” do título. Ao encerrar essa primeira etapa de análise das obras de Machado de Assis, encontramos alguns aspectos comuns relacionados ao uso de latim, como por exemplo, o conhecimento da “casca” da língua como instrumento de base para a conversação em ambientes cultos, como disse o próprio Brás Cubas; a famosa figura do padre que ensina latim, recorrente em diversos textos literários; a caracterização como uma língua própria de homens e frequentemente ligada à igreja; discussões sobre a utilidade do conhecimento da língua; diversas referências aos famosos escritores da literatura. Com isso tentamos traçar um panorama, ainda que inicial, de como o latim se comporta dentro da obra de Machado de Assis, entendendo a dificuldade de precisar essas representações devido à subjetividade que a própria literatura traz e ao fato de ser uma tarefa complexa, dadas as dimensões deste trabalho, a de pormenorizar referências ao latim em obras afastadas no tempo. Referências ASSIS, Machado de. Contos Reunidos. São Paulo: Ática, 2002. ASSIS, Machado de. O Alienista. São Paulo: Ática, 2002. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1986. ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Ática, 2002. CASTILLO GÓMEZ, Antonio. Historia de la cultura escrita: ideas para el debate. Revista Brasileira de história da educação nº5, jan./jun., 2003. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 198 ÍNDICE A LDB 4.024, de 1961 e sua influência nas representações da importância e da utilidade do latim em livros didáticos Shirlei Patrícia Silva Neves Almeida∗ Orientador: José Amarante Santos Sobrinho∗∗ Introdução O estudo objetiva analisar as representações sobre a importância e as utilidades do latim em variados prefácios de livros didáticos para o ensino da língua latina em circulação no Brasil desde a aprovação da 1ª LDB (Lei de Diretrizes e Bases para Educação nº 4.024, de 1961), cujos dispositivos tornam o ensino da língua facultativo na educação básica do país. O trabalho está inserido no projeto de pesquisa Em busca de fontes para uma História Social do Latim no Brasil, que se orienta pela linha de pesquisa do Grupo de pesquisa HISCULTE (História da Leitura e da Escrita no Brasil). As análises realizadas a partir do objeto escolhido pretendem evidenciar o princípio de alterações discursivas em relação a outro momento da história da disciplina, quando outro dispositivo legal interferiu na oferta de cursos de latim, o Decreto-Lei nº 4.244, de 1942, conhecido como Lei de Capanema, e se centra no período vigente da 1ª LDB. Desse modo, a partir das deliberações desses dispositivos, buscam-se ‘indícios’, nos textos dos prefácios observados, que apresentem indicações para o entendimento dos juízos de valor dados à disciplina Língua Latina, e demonstrem, através dessas representações, os progressos e retrocessos do latim enquanto objeto de estudo. 1 Lei de Capanema Durante o período de vigência da Lei de Capanema surgem iniciativas educativas voltadas para uma formação moral e ética, consolidada na crença em Deus, na religião, na família e na pátria. Devido a esse caráter humanístico, ocorre um prevalecimento das matérias relacionadas às humanidades, o que, por sua vez, promove o crescimento da ∗ ∗∗ Graduanda do curso de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia. Monitoria em Língua Latina. Docente e Pesquisador de Língua e Literatura Latinas da Universidade Federal da Bahia. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 199 ÍNDICE presença/oferta das línguas estrangeiras (latim, francês e inglês) em todas as séries do curso secundário. A fase, por um lado próspera (ao menos no que se refere à vasta produção didática), amplia para sete anos o ensino do latim no curso secundário, sendo quatro anos no nível ginasial e três anos no Curso Clássico do Colegial. Porém, se de um lado, há essa prosperidade do ensino de latim, por outro lado ocorre um aumento da demanda de profissionais habilitados, e devido à carência desses, há um crescimento pronunciado de publicações de livros didáticos direcionados ao ensino da disciplina. Observou-se, então, nas leituras dos prefácios desse período, a permanência dos discursos tradicionais sobre a representação da importância do latim para a ‘educação do raciocínio e da capacidade reflexiva do aluno’, para ‘o auxílio nos estudos linguísticos (filológicos, sintáticos e fraseológicos) do português e demais línguas românicas’ e para ‘a compreensão das influências culturais romanas à formação da cultura ocidental’. 2 A LDB 4.024 de 20 de dezembro de 1961 Com a 1ª LDB (Lei de Diretrizes e Bases para Educação) é criado o Conselho Federal de Educação; “composto pelas Câmaras de Educação Básica e de Educação Superior, terá atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Educação e do Desporto, de forma a assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional” (BRASIL, 1961). A partir de então, se inicia a descentralização do ensino, como estabelece o Art. 35, § 1º: Ao Conselho Federal de Educação compete indicar, para todos os sistemas de ensino médio, até cinco disciplinas obrigatórias, cabendo aos conselhos estaduais de educação1 completar o seu número e relacionar as de caráter optativo que podem ser adotadas pelos estabelecimentos de ensino. (BRASIL, 1961) Essa deliberação torna o curso de latim facultativo no ensino secundário, que continua sendo obrigatório apenas nos dois primeiros anos dos cursos de Letras das faculdades do país, o que acarreta a diminuição da sua carga horária e a sua extinção de quase a totalidade dos cursos ginasiais, como comprovado até mesmo nos prefácios: “passa o 1 Grifo nosso. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 200 ÍNDICE latim a uma matéria optativa, e, ipso facto, vai, paulatinamente, desaparecendo [...]”. (BRAGA, 1987. p. 5) Os prefácios das obras que circularam no momento escolhido demonstram como esses fatos históricos influenciaram nas manifestações discursivas dos autores dos métodos de ensino do latim, em que se vislumbram representações da importância e da utilidade da língua como disciplina curricular. Percebe-se a insatisfação e, muitas vezes, a indignação nas falas autorais, que dão seu veredicto sobre essas resoluções acerca do futuro do ensino do latim no Brasil. Então, é possível se notar em Nóbrega (1962) uma alusão à 1ª LDB e seus reflexos para a disciplina como uma campanha feita contra a presença do latim na formação cultural dos estudantes, o que, para ele, seria um atentado contra nós mesmos, a fase preliminar de um crime de lesa-cultura, e mais, ele dá o seu posicionamento em relação à supressão e, até mesmo, à aniquilação da língua nos cursos secundários, com o intuito de se introduzir nessa lacuna, ensinamentos técnicos, o que para o autor, “é pura ilusão, porque a substituição adotada poderá servir, quando muito, para formar homens-máquina, mas não homens-homem”. (NÓBREGA, 1962. p.18) Considerando esse contexto e suas consequências, foram elencados os principais e recorrentes aspectos dos discursos sobre a importância e as utilidades da disciplina a fim de se entender a construção dessas representações. Destarte, primordialmente, o Latim seria importante “porque ele nos fornece um dos elementos indispensáveis para que possamos sentir, em sua plenitude, as raízes e a própria essência de nossa civilização” (NÓBREGA, 1962. p. 33), ou seja, por ser “uma língua essencialmente humanizante, isto é torna o homem mais homem, mais idêntico consigo mesmo, tornando-o muito mais autêntico” (GUIMARÃES, 1967. p. 20); e quanto ao seu caráter linguístico, o idioma é importante, sobretudo por ser a língua-mãe dos chamados idiomas românicos e, dessa maneira, fornece explicações para fenômenos aparentemente inexplicáveis, ajudando no conhecimento histórico das línguas e na explicação de seus fenômenos linguísticos. (CARDOSO, 1997. p. 910) Em secundário, o Latim teria as suas utilidades como instrumento de cultura, por ser o principal veículo da Cultura Ocidental, continuando a ser a chave para o conhecimento, de primeira mão, dos credos, códigos, leis, Literatura, Filosofia e Ciência da Europa Ocidental e, assim, possibilitar o acesso aos inúmeros livros (Ciências, Filosofia e Direito) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 201 ÍNDICE escritos nessa língua; por permitir o contato com uma civilização, que constitui uma síntese de toda a cultura antiga, e devido a essa herança cultural e linguística, utilizar o passado como base para construir o futuro, sendo, desse modo, o elemento necessário e subsidiário aos conhecimentos práticos modernos, e, além disso, por seu caráter de língua universal, subsistindo como a língua das ciências até o fim do século XIX e atualmente, ainda recorrerse ao latim para facilitar o entendimento entre os sábios de todos os países. E seria útil, também, como instrumento de formação, por “[...] o Latim, entre as suas virtudes, possuir a de ser, por excelência, um idioma formativo, entendendo-se por essa expressão o poder, a ele mesmo inerente, de desenvolver a atenção, despertar a faculdade do raciocínio e aprimorar os hábitos da boa lógica.” (BARATA, 1977 apud MARTINS, 1987), e, desse modo, é “uma das disciplinas que mais poderosamente contribuem para a formação da boa mentalidade do aluno”, pois “[...] afina e aguça a inteligência, modela e caldeia a vontade, domina e subjuga a fantasia, enobrece e dignifica os sentimentos.” (ALMEIDA apud SMITH, 1972, p. 11) Esses atributos imputados à Língua Latina demonstram, de alguma forma, a necessidade de se engrandecer o idioma e o seu ensino no Brasil, visto a situação tão delicada em que se encontrava o destino da disciplina. Os discursos já expressam a existência de alguns estereótipos tão recorrentes na atualidade, como por exemplo, de que o latim “desenvolve o raciocínio lógico”; “amplia o saber, o conhecimento”, “auxilia no estudo do português” etc., fato que evidencia quão anteriores e subsistentes são essas representações da importância e das utilidades da Língua Latina. Assim sendo, a atual e mais detalhada análise dos prefácios dos métodos didáticos que circularam durante esse período permitiram uma reavaliação do que foi declarado no estudo anterior apresentado ao último SEPESQ (Seminário Estudantil de Pesquisa em Letras) - 2011, em que se afirmou que “o momento marcou o prenúncio do ‘desprestígio’, do ‘desapreço social’ aos estudos latinos, fato que se comprova nas análises dos prefácios de alguns livros didáticos do período, nos quais não se percebe nenhuma menção direta à importância e a utilidade do estudo da disciplina”. (ALMEIDA, 2011) Contrariamente a isto, se verificou a partir da leitura mais apurada em um corpus mais profuso, que, na realidade, a fase marcou o princípio da exagerada exaltação da Língua Latina e do seu estudo e, com isso, Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 202 ÍNDICE o consequente crescimento de ocorrências desses discursos em prefácios de métodos pedagógicos para o ensino da língua. Considerações Finais Os discursos autorais referentes ao momento histórico denunciam a redução da importância dada à Língua Latina pelos legisladores responsáveis pelas leis e decretos educacionais do país, de forma que se reflete em suas falas o crescente e excessivo engrandecimento da sua importância e utilidades. À medida que a presença da disciplina torna-se cada vez mais reduzida, aumenta a sua importância e mais utilidades lhe são atribuídas. Logo, pode se deduzir os motivos que causaram a existência quase totalizadora de capítulos inteiros dedicados à Importância do Latim, ou ainda, anexos permeando todo o livro didático, compostos de depoimentos, excertos de jornais e livros, palestras de personalidades ilustres (jornalistas, autoridades religiosas, escritores, poetas, mestres e alunos de Latim etc.) tratando sobre a temática e defendendo a manutenção da Língua Latina nos currículos escolares do Brasil e do mundo. A análise do material bibliográfico tem-se mostrado fecunda e carece de um maior e mais detalhado estudo, uma vez que a pesquisa permite a criação de novos rumos possíveis de serem seguidos num futuro trabalho: as representações dos discursos autorais em defesa do latim e da sua sobrevivência na contemporaneidade. Referências ALMEIDA, João Camilo de. O latim nos ginásios: 4ª série. Curso ginasial. São Paulo: Melhoramentos, 1961. BARATA, Fernando; SANTOS, Abílio dos. Curso de latim: Ciclo ginasial. 1ª série. 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Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 205 ÍNDICE ESTUDOS DE TRADUÇÃO Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 206 ÍNDICE Reverberação do mito: as abordagens do mito de Páris em José Feliciano de Castilho Joana Junqueira Borges∗ Introdução José Feliciano de Castilho – português que veio para o Brasil em 1847, mais precisamente para o Rio de Janeiro, e aqui viveu até seu falecimento em 1879 – tem uma vasta produção de filólogo e de tradutor de latim, além de ter participado ativamente da cena literária de D. Pedro II. Castilho José, como ficou conhecido na imprensa da época, traduziu cerca de cinquenta epigramas de Marcial distribuídos nos três volumes da Grinalda da Arte de Amar. Seus volumes seguem-se à tradução de seu irmão, Antônio Feliciano de Castilho para a Arte de Amar de Ovídio, sendo constituídos primordialmente por notas aos versos latinos. Essas anotações trazem informações de língua e cultura antigas, além de mitologia e religião como é o caso da nota que será analisada no presente artigo. Marcial é o expoente máximo em Roma do gênero epigramático, uma expressão poética marcada principalmente pela vis epigrammatica (a densidade poética, composta de brevidade, beleza e graça). Seus epigramas em especial são carregados de crítica social e bastantes ácidos. Segundo Pierre Laurens (1998) a principal problemática na tradução de Marcial, especialmente nos séculos em que a moral cristã era mais influente do que nos dias de hoje, incidia sobre a lasciva verborum veritas (ou em livre tradução, “a verdade lasciva das palavras”), essa lascívia era para Marcial, segundo Laurens, um importante elemento constituinte da linguagem epigramática. (LAURENS, 1998, p. 200) Acerca da dificuldade de traduzir Marcial, Laurens nos apresenta a primeira obra, que se tem notícia, de tradução completa de Marcial para o francês, a edição feita pelo Abade Marolles, intitulada de Toutes les epigrammes de Martial en latin et en français (par M. de Marolles) avec de petites nottes e datada de 1655. Não podemos negar que o Abade enfrentou um grande trabalho ao fazer a tradução dos livros de Marcial, no entanto, Laurens verifica que em alguns casos, como o do epigrama 46 do livro XI, Marolles simplesmente passa para o próximo epigrama, justificando “Cette épigramme de huit vers est la vingt-et-unième impossible à traduire.”1 (LAURENS, 1998, p. 201), ou ainda se vale de metáforas para ocultar ∗ 1 Mestranda em Estudos Literários na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. Tradução nossa: “Esse epigrama de oito versos é o vigésimo primeiro impossível de traduzir”. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 207 ÍNDICE as palavras mais baixas usadas por Marcial, como para traduzir Gallo turpius est nihil Priapo, que literalmente para o francês fica “rien plus laid qu’un Priape eunuque!”2 e Marolles opta por verter: “Il n’y a rien de si vilain que le visage d’un prête de Cybèle”3 (LAURENS, 1998, p. 201), apelando para o conhecimento de que os sacerdotes de Cibele precisam cortar os testículos para exercerem essa atividade. Considerando a dificuldade apresentada para a realização de traduções dos livros de Marcial, além do descaso com que os epigramas de Marcial eram tratados, pela moral vigente no período e a dificuldade de publicação de seus livros, seja em latim ou traduções, sem contar a falta de notícias de traduções de Marcial no século XIX, tudo isso nos leva a tomar o conjunto das traduções de Castilho José como um raro exemplar antológico da poesia de Marcial, e é a transcrição e estudo dessa antologia o objeto central de nossa dissertação de mestrado em andamento. Nos epigramas traduzidos, ainda que o tema mitológico não seja tão recorrente, aparecem muitas vezes comparações ou metáforas com relação aos deuses. Um levantamento prévio mostrou que da totalidade das notas elaboradas por Castilho José na Grinalda, ou seja, das 420 notas, ao menos 29 tratam clara e unicamente de mitologia. Sendo assim, aproveitaremos uma nota em que há confluência entre Marcial e a temática mitológica para mostrarmos a abordagem que Castilho José dispensa ao tratamento do mito. Este artigo é resultado de reflexões e leituras da disciplina “Mito e Poesia”, ministrada pelo Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Sua principal confluência com o processo de produção de nossa dissertação final é a necessidade que sentimos de elencar as temáticas do corpus de epigramas de Marcial traduzidos por Castilho José. O que pretendemos é verificar se essas temáticas se realizam nas traduções estudadas ou se, ao traduzir, há desvio do propósito original do epigrama. É preciso um embasamento para a definição da antologia que está sendo concebida e, no presente artigo, procuramos investigar a temática das notas voltadas à Mitologia. 2 3 Tradução nossa: “nada mais feio do que um Príapo eunuco”. Tradução nossa: “Não há nada tão feio que a visão de um sacerdote de Cibele”. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 208 ÍNDICE 1 Mito e Poesia Chamamos de mito as histórias individuais que abarcam toda a humanidade. Também denominamos mito a maneira de entendermos e interpretarmos a realidade que nos cerca. Por outro lado, o mito pode ser um símbolo para a realidade, ou ainda podemos enxergar o mito como uma forma de vida, ou de conhecimento. Há ainda quem afirme também que a racionalidade e o mito não se interpenetram (MORAIS, 1988, p. 30). Enfim, fica claro que definir e explicar o mito de modo claro e conciso é bastante complicado, ainda que se encontrem diversas definições para esclarecer o que é mito, e cada uma dessas definições abarque à sua maneira uma das especificidades do mito, nenhuma delas consegue fazer o que o mito faz: condensar significado. Foram estudados na disciplina diversos vieses de estudo do mito, tais como diretrizes apontadas por Jean Pierre Vernant em As razões do Mito que o divide em visões: como a visão do Mito e Linguagem, do Mito e Evolução Social e visão do Mito e História Literária. Já E. M. Mielietinski, teórico russo, traça em seu livro A poética do mito um panorama sobre as maneiras com que se estudou o mito através dos séculos, e a presença da mitologia na literatura, que é onde entendemos que o Mito tem sua melhor forma de expressão. A literatura é a maneira como os mitos e suas significações chegaram até os dias de hoje. E é através da literatura que o mito se retransforma, se reelabora e se manifesta novamente. Isso se dá pela similaridade de linguagem de ambas as expressões, a construção simbólica, a utilização de metáforas, a forma não objetiva de recortar a realidade; todos esses aspectos colocam a poesia como a forma de manifestação do mito. Desdobrando um pouco a visão da literatura como instrumento de permanência do mito, o que pretendemos colocar nesse artigo é como a anotação de Castilho José sobre o mito de Páris se insere em uma leitura que evidencia a permanência do mito. Verificaremos que Castilho José aborda, pelo menos, dois aspectos do Mito de Páris, se valendo para isso não somente do epigrama de Marcial que nos levou ao contato com sua anotação de Páris, mas com uma narrativa própria acerca do personagem, além de outros poemas, sendo um deles em francês, ou seja, Castilho José não nos fornece simplesmente uma explicação sobre o Mito de Páris, ele o apresenta sob diversos vieses e de modo atento sobre como se deu sua leitura através dos séculos. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 209 ÍNDICE 2 Os frutos colhidos A nota de Castilho José que apresentaremos aqui se intitula Páris e o Pomo e relaciona-se com o verso 248 do primeiro livro da Arte de Amar de Ovídio. Para uma melhor contextualização transcrevemos e atualizamos os dísticos anteriores e posteriores traduzidos por Antônio Feliciano de Castilho , como se pode verificar a seguir: Desconfia, porém, das ilusões que às vezes das lampas vem sutis unir-se a embriaguezes. Quando Páris julgou a deusas três sem véu, e deu a Cípria o fruto, havia sol no céu. (OVIDIO, 1862, p. 19, v. 246-249) Esses versos estão inseridos no poema de Ovídio quando ele começa a discorrer sobre os perigos da noite, esse assunto alonga-se na estrofe seguinte: A encobridora noite é co’os senões piedosa; há mui feia de dia à noite é bem formosa. (OVIDIO, 1862, p. 19, v.250-251) A presença de Páris é inserida para defender a tese de que sua escolha, uma vez que tenha sido feita à luz do dia, foi uma escolha sóbria e calculada. Castilho José inicia sua nota com uma narrativa própria sobre o Mito de Páris, remontando ao nascimento do belo menino que causou o estopim da Guerra de Troia, em suas palavras: “[...] achando-se Hécuba grávida, respondeu o oráculo que aquele menino seria a ruína de sua pátria [...]”. (OVIDIO, 1862, v.2, p. 140) A reação do rei de Troia, Príamo, foi a de mandar matar o menino, mas segundo Castilho José, a criança acabou sendo salva “por uma pia fraude”. (OVIDIO, 1862, v.2, p. 140) Após esta breve narração acerca de Páris, Castilho José rememora as bodas de Tétis e Peleu, onde a Discórdia colocou sobre a mesa do banquete um pomo com a inscrição Á mais bela. Por sua formosura, Júpiter designa Páris para julgar qual das três deusas, entre Vênus, Juno e Minerva, era merecedora de tal prêmio. Assim sendo, quando do veredito “[...] Páris sentenciou a favor de Vênus, ficando as duas outras capazes de o devorarem [...]”. (OVIDIO, 1862, v.2, p. 141) Castilho José cita referências a Homero e a Virgílio, colocando-os como uma fonte antiga em relação a Marcial, uma vez que insere o epigrama deste comentando a passagem Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 210 ÍNDICE do tempo: “Até parece que as vencidas deusas continuaram a estomagar-se pelos séculos adiante [...]”. (OVIDIO, 1862, v.2, p. 141) Verificaremos de que modo o anotador se vale da afirmação “através dos séculos” já que utiliza versos traduzidos, e até mesmo transcritos em latim, para exemplificar e mostrar como este mito foi tratado em diversos autores. Mas, antes disso, apresentaremos a versão portuguesa para o epigrama 103 do livro I de Marcial. Sendo este epigrama parte do nosso corpus do projeto de Mestrado, foi ele quem nos colocou em contato com o tratamento mitológico realizado pelo anotador. O epigrama apresentado aqui está transcrito com as devidas atualizações: Olha-me bem esta Vênus! O corpo, o semblante observa! O pintor, que pintou esta, foi peitado por Minerva. (OVIDIO, 1862, v.2, p. 141) Para que possamos ter uma melhor visão analítica do epigrama de Marcial em questão, forneceremos abaixo a versão latina, tal como se encontra na versão da Panckoucke de 18344 e uma tradução de serviço que realizamos para nosso melhor entendimento. Ad Lycorim Qui pinxit Venerem tuam, Lycori, Blanditus, puto, pictor est Minervae (MARTIAL, 1834, v. 1, p. 137) Para Lícoris Aquele que pintou tua Vênus, Lícoris, julgo que foi o pintor que acariciou Minerva. Analisando brevemente o epigrama e sua tradução, podemos observar a versão de Castilho José se vale do verbo “peitar” (que Caudas Aulete define como “enfrentar”) para significar o que no texto latino temos como blanditus est (“acariciou”), o que não causa tanto estranhamento por se tratar de uma deusa com características tão várias que permite o entendimento de significados também vários. Encontramos esse grande número de 4 Adotamos as edições da Panckoucke por ser provavelmente a fonte de Castilho José para o texto latino, principalmente porque há convergência de numeração e de datas entre os livros de texto latino e as traduções. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 211 ÍNDICE definições para Palas em dicionários da época como o Dictionnaire de la Fable de Noel (1803)5 que utilizaremos aqui. Noel coloca como primeira acepção no verbete Minerve “filha de Júpiter, era a deusa da sabedoria, da guerra, das ciências e das artes.” (Noel, 1803, v.2, p. 144)6 Dessa forma, com o simples contraste entre o verbo que Marcial utilizou e a escolha que o tradutor fez para verter esse verbo nos leva a interpretar diferentemente cada um dos textos, além de nos apresentarem duas facetas importantes da personalidade de Minerva. Na versão portuguesa é ressaltado o caráter guerreiro, e até irritadiço de Palas. Entendemos da tradução que provavelmente Vênus não foi retratada com beleza pelo pintor, uma vez que este sofreu ameaças de Minerva, ora, esta deusa nasceu da cabeça de Júpiter já vestida para a batalha, ser “peitado” por ela evidentemente faz com que o pintor ceda aos seus pedidos. Contrariamente à visão que relaciona Minerva à guerra, Marcial parece ter sugerido a existência de uma comunhão do pintor com a deusa, já que não podemos esquecer as qualidades de “deusa das artes úteis e ornamentais” (BULFINCH, 2006, p. 113), e podemos concluir que foi essa faceta adotada pelo poeta latino, sem deixarmos de lado a rixa entre as deusas, a leitura que podemos fazer do texto latino nos leva a concluir que um pintor que quer agradar Minerva, não retrata a deusa Vênus com beleza. Voltando para os detalhes da nota de Castilho José, seguindo o epigrama de Marcial traduzido por ele, vem novamente a referência a Ovídio. Segundo Castilho José, a defesa de Ovídio de que as vistorias precisam ser realizadas “de dia claro” (OVIDIO, 1862, v.2, p. 141) tem valor ainda nos dias de hoje, e cita como exemplo “[...] pois só os mercadores da Rua Augusta7 é que, para passarem baêta por pano superfino, inventam trevas artificiais.” (OVIDIO, 1862, v.2, p. 141), ou seja, os mercadores de tecido se valem da pouca luz para enganarem o comprador, uma vez que no escuro não conseguimos julgar com clareza. A segunda referência poética ao mito de Páris é de Miguel Leitão de Andrade, que produziu uma obra intitulada Miscelânea, de 1867, da qual o anotador extraiu o Diálogo XVI, em que se encontra um soneto, que Miguel Leitão credita a credita a Isabel, rainha da 5 6 7 Esse dicionário é citado na edição dos Amores, e por isso concluímos que também seja utilizado por Castilho José em outras ocasiões. Realizamos aqui, para melhor entendimento, a livre tradução desse trecho. Rua de Lisboa, que existe até os dias de hoje, famosa principalmente por seu grande número de estabelecimentos comerciais. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 212 ÍNDICE Inglaterra8. Pela falta de mais informações, e por ser parte integrante de seu Diálogo, acreditamos que a tradução do poema da rainha Isabel tenha sido feita pelo próprio Miguel Leitão de Andrada em decassílabos irregulares. (ANDRADA, 1867, p. 327-328) O Diálogo que é transcrito na nota é constituído de lisonjas do personagem Estela para a princesa Peralta, a corte que ele realiza para a princesa se baseia em Páris: “Tenho, senhora, por certo que, se Páris vira essa real presença e angélica face [...] com muita justiça lhe dera o preço do vencimento da formosura daquelas três deusas [...]”. (OVIDIO, 1862, v.2, p. 141) Estela envia para amada versos latinos, que não possuem nenhum tipo de crédito ao autor, relacionados com as deusas e a escolha de Páris, mas a princesa finge não compreender os versos, Estela acaba cedendo e traduz os versos para a amada, o que dá a deixa para que Miguel Leitão coloque os versos creditados a Isabel, rainha da Inglaterra. Tanto o diálogo de Miguel Leitão de Andrada que resumimos rapidamente aqui, quanto o poema creditado a Isabel, que transcreveremos em seguida, constroem um importante dado sobre a leitura do mito no século XIX, além de nos mostrar sobre qual viés ele é utilizado na poética da época. O poema de Isabel, rainha da Inglaterra, está devidamente atualizado, as palavras em negrito correspondem às palavras que Castilho José destacou em sua anotação com o itálico, uma vez que em Miscelânea não há tal marcação: Juno, Vênus e Palas grã porfia nos vales do monte Ida entre si têm, a qual a maçã de honra mais convém por palma de beleza e galhardia. Mas se vós, quarta deusa, nesse dia entre elas vos achareis, quanto aquém de vós todas ficaram! Sois a quem da formosura o preço se devia. Ficaria em jejum a deusa Juno; de palha a deusa Palas se ficara; Vênus sem vênia de formosa mais. Pois vossa grã beldade em tudo rara (não falo lisonjeiro ou importuno) dá mais que elas de deusa mil sinais. (OVIDIO, 1862, v.2, p. 142) 8 Trata-se, provavelmente, da Rainha Elizabeth I. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 213 ÍNDICE Aqui não há a preocupação em elencar as características das três deusas ou em destacar a rixa entre elas, seguindo o raciocínio do Diálogo XVI de Miguel Leitão, o soneto se limita a cantar a beleza da tal princesa Peralta e a falar sobre a certeira escolha de Páris, se, por acaso, a princesa estivesse entre as deusas na ocasião do julgamento. Acreditamos que as palavras que Castilho José destacou façam referência justamente ao jogo de palavras formado pela poetisa: Juno – jejum, Palas – palha e Vênus – vênia. A última referência poética ao mito de Páris utilizada por Castilho José se trata de um madrigal (segundo Caudas Aulete é um gênero de poesia pastoril que surgiu no século XIV na Itália com o propósito de ser musicado) do poeta francês Voltaire (1694-1778). Voltaire dedica seu poema às princesas da Prússia, Ulrica e Amélia. Castilho José não traduz os versos de Voltaire aqui transcritos e por isso apresentaremos uma tradução em versos de oito sílabas, para uma melhor compreensão: Si Paris venait sur la terre Pour juger entre vos beaux yeux, il couperait la pomme en deux et ne produirait plus de guerre. (OVIDIO, 1862, v.2, p. 143) Se Páris sobre a terra viesse P’ra julgar seus belos olhos A maçã em dois cortaria e a guerra não mais causaria A versão de Voltaire acerca do Mito de Páris, bem como Miguel Leitão de Andrada e a princesa Isabel, se volta para a inserção da personagem no contexto do julgamento de Páris e a mudança na decisão dele caso isso acontecesse, ainda que no madrigal de Voltaire não haja a presença das deusas e a escolha de Páris tenha que ser entre as duas princesas prussianas, Voltaire apresenta uma inteligente solução, ao dividir-se o pomo, não haverá mais o motivo para a guerra. O que é notável na anotação de Castilho José é que ele não somente discorre sobre o mito citado por Ovídio na tradução de Antônio Feliciano de Castilho, como também nos apresenta poemas, notícias e narrativas de autores de diferentes épocas e nacionalidades, estando presente desde Virgílio até a rainha da Inglaterra. Sendo assim, temos a presença de Páris em Ovídio, do século I a. C que nos diz que o julgamento da beleza entre as três deusas se deu durante o dia, de modo a explicar os Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 214 ÍNDICE perigos da noite. A intenção de Ovídio parece ser a de mostrar que é na luz do dia que se julga com seriedade e sobriedade, quando se consegue enxergar com mais clareza. Marcial, poeta latino do século I d. C., é utilizado com a intenção de ilustrar a rixa decorrente da escolha de Páris, que acarretou não somente a Guerra de Troia, como também a fúria de Juno contra Eneias, narrada na Eneida de Virgílio, do século I a. C. , e o rancor de Minerva. Ainda que o anotador não cite versos ele menciona Homero e Virgílio. Dessa maneira já começa a se evidenciar a distância temporal entre um e outro autor que aproveita a temática do Mito de Páris ainda na Roma Antiga, o que continua a acontecer “séculos adiante”, nas palavras do próprio Castilho. Dessa forma, passam-se os séculos e ainda no século XVIII temos os versos de Voltaire para nos mostrar outra releitura do Mito de Páris. Em seus versos o poeta francês apresenta a solução se por acaso Páris tivesse que escolher, dentre as duas princesas prussianas, a mais bela. Da mesma maneira, os versos que foram atribuídos à rainha Isabel, inseridos por Miguel Leitão de Andrada no século XIX, também garantem que as três deusas não seriam escolhidas por Páris se a amada princesa Peralta estivesse no julgamento, ficando então Juno de “jejum”, Palas com “palha” (o que Caldas Aulete define como ninharia) e Vênus sem “vênia” (também em Caldas Aulete, a definição que se dá é reverência), tudo por conta da beleza e qualidades da princesa, que superariam as das deusas. Conclusão Na anotação de Castilho José, mais do que percebermos a permanência do mito, percebemos sua reverberação através dos séculos, além das diversas abordagens que a mesma história pode ter. Algumas vezes o mito foi apresentado a partir de Páris e seu julgamento, outras vezes sobre as consequências de sua escolha, ou seja, o mito se preserva por completo, uma vez que se apresenta em todos os seus matizes. Ainda que a intenção de Castilho José não tenha sido a de apresentar um panorama diacrônico do Mito de Páris, ele nos apresenta esse mito em tempos diversos. E mesmo que não pretenda fazer um estudo aprofundado sobre todas as abordagens que coloca acerca desse mito, as abordagens apresentadas em sua anotação nos colocam frente a frente com o mito em si. Temos na anotação de Castilho José a evidência cabal de que a preservação do Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 215 ÍNDICE mito se dá através da reverberação de suas essências através dos séculos, tendo para tanto a literatura como forma fundamental para sua preservação e disseminação. Referências ANDRADA, Miguel Leitão de, Miscellanea (1629), Lisboa, Imprensa Nacional, 1867 AULETE, Caldas. Aulete Digital – Dicionário contemporâneo da língua portuguesa: Dicionário Caldas Aulete, Lexikon, 2007. Disponível em: <http://www.auletedigital.com.br/> BULFINCH, Thomas O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. 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Tradução de Carmem Campello. Rio de Janeiro: José Olímpio, [1992]2010. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 216 ÍNDICE José Feliciano de Castilho, tradutor de Lucano: da prática à teoria tradutória Débora Cristina de Moraes Orientador: Prof. Dr. Brunno V.G. Vieira∗ Introdução Nesse projeto estuda-se a obra de José Feliciano de Castilho, um português que viveu no Brasil, que traduziu excertos de autores latinos na Grinalda Ovidiana e na Grinalda da Arte de Amar (apêndices de notas culturais e exemplos literários romanos relativos às obras de Ovídio: os Amores e A Arte de Amar, respectivamente, vertidas por seu irmão Antônio Feliciano de Castilho). Acredita-se que a diversidade de poemas e passagens trabalhadas por José Feliciano pode ter contribuído para fazê-los conhecidos a autores seus contemporâneos. O presente trabalho faz parte de um projeto maior que inventaria e analisa todos os textos trasladados por José Feliciano de Castilho. Dentro dessa vasta obra, nosso córpus compõe-se de um excerto do canto sexto da Pharsalia, de Lucano, presente na Grinalda Ovidiana que perfaz um total de 131 hexâmetros latinos que foram vertidos em 140 decassílabos portugueses. A leitura minuciosa dos dois textos nos colocou à frente de uma dupla perspectiva linguística, poética, histórico-cultural, ou seja, crítica de ambos os idiomas, o latim e o português. A base de uma parte significativa do trabalho são as obras do francês Antoine Berman: A tradução e a letra ou o albergue do longínquo e o capítulo “A tradução em manifesto”, que está inserido em A prova do estrangeiro. No primeiro livro, Berman teoriza sobre as práticas da “tradução literal” (e não servil), na qual a forma ocupa um lugar privilegiado, pois ela se volta para o jogo dos significantes. Ele explica ainda que literal não é a tradução palavra por palavra, esta é servil, mas sim a tradução da letra, que leva em conta as relações estabelecidas no texto artístico para a construção da rede de significados, ou seja, a forma. ∗ Débora Cristina de Moraes é graduanda da Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Araraquara. É bolsista da FAPESP com a pesquisa de Iniciação Científica intitulada José Feliciano de Castilho e a tradição clássica no século XIX; versões da Farsália, de Lucano. O Profº Dr. Brunno V.G. Vieira é docente na mesma instituição, atuando na área de Língua e Literatura Latina. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 217 ÍNDICE Mais à frente, ele propõe que a ciência tradutória, tradutologia, é uma reflexão da tradução sobre si mesma a partir da sua natureza de experiência, ou pensamento da tradução. Para ele a duplo binômio vigente nos meios tradutórios, a saber, teoria/prática, deve ser substituído por experiência e reflexão. Afirma também que a tradição que preconiza o “equivalente”, corre o risco de apagar as marcas do texto de partida, pois muitas vezes a busca pela equivalência neutraliza as construções próprias daquele texto, as quais deveriam ser mantidas, em um trabalho peculiar de tradução, para que o texto de chegada seja digno e condizente com a construção artística daquele com o qual se relaciona. Nesse livro ainda, o teórico postula um pensamento que consideramos fundamental: “Não existe a tradução (como postula a teoria da tradução), mas uma multiplicidade rica e desconcertante, fora de qualquer tipologia, as traduções, o espaço das traduções, que cobre o espaço do que existe em todo e qualquer lugar para traduzir”. (BERMAN, 2007, p. 24) Embora tais palavras possam parecer um tanto revolucionárias para o entendimento da tradução até há pouco tempo, para nós parece apontar para uma crítica aprofundada e autoconsciente do ato de traduzir. Por fim, o teórico escreve sobre a “Analítica da Tradução e a Sistemática da Deformação”, capítulo em que explicita as tendências deformadoras de um texto traduzido. Essa expressão (tendências deformadoras) pode ser entendida de forma pejorativa, mas quando entendemos o que o autor pretende solucionar com elas, tais se tornam válidas e pertinentes aos estudos tradutórios. São treze as tendências: racionalização; clarificação; alongamento; enobrecimento; empobrecimento qualitativo; empobrecimento quantitativo; homogeinização; destruição dos ritmos; destruição das redes significantes subjacentes; destruição dos sistematismos; destruição ou exotização das redes de linguagens vernaculares; destruição das locuções e apagamento das superposições das línguas. Cada uma delas parece uma ameaça à letra (todas as particularidades do texto de partida), mas em algum grau elas são praticadas, por necessárias que são ao exercício tradutório. Em “A tradução em manifesto”, Berman defende que “A constituição de uma história da tradução é a primeira tarefa de uma teoria moderna da tradução, pois o olhar suspeito que deitamos sobre obras traduzidas deve ser o mesmo que lançamos sobre quaisquer outras obras. (BERMAN, 2002) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 218 ÍNDICE Se uma época ou vertente literária com toda sua diversidade se oferece a seus críticos por meio de sua sistematização presente nas “histórias da literatura”, sobre as traduções de literatura clássica — nosso objeto — não temos essa disponibilidade. Isso dificulta uma crítica consistente na medida em que não possuímos nesse campo uma sistematização tão extensa quanto possível, do nosso acervo tradutório. Pois como todas as ciências sempre se iniciam pelos primórdios, criando paradigmas, estabelecendo relações e, então, acrescentando novos conhecimentos, isso não deve ser diferente no tocante à tradução. (BERMAN, 2002) Quando um crítico (um leitor ou um tradutor) vai até o século XIX, época que nos interessa particularmente, em busca de um exemplo ou de um modelo tradutório, seu juízo é prejudicado pelo grande desconhecimento dos paradigmas e das relações intrínsecas da produção tradutória do período. Berman chama essa crítica sem respaldos sólidos, de intuitiva, e é justamente esse tipo de análise que procuramos evitar. Essas afirmações de Berman nos norteiam no tocante a nosso objetivo de colaborar para a História da Tradução, no que concerne aos clássicos latinos, em nossa literatura. O filósofo e tradutor Walter Benjamin apresenta um postulado mais rígido quanto à relevância da autonomia do texto artístico, para ele o leitor, se for o norteador, o objetivo principal da tradução, pode prejudicar a qualidade do texto, ou seja, não deve ser essencialmente considerado no trabalho tradutório. A responsabilidade do tradutor diz respeito aos textos, constituições lingüísticas e artísticas, pois a obra de arte carrega mais do que comunica, ela é um conjunto de tangível e não tangível. Essa dicotomia é o desafio do tradutor. Por esse motivo, o autor afirma que o tradutor poeta é o mais eficiente, ele pode atentar não apenas ao que o texto comunica, mas sim como ele o faz. O poeta seria capaz de perceber e intentar manter a forma guardada pelo original, é por isso que ele afirma que “a tradução é uma forma”(BENJAMIN, 2001, p.191). No entanto, ele frisa que ambas as tarefas diferem. Pois as regras da tradução são distintas das da composição inédita da poesia. O texto de Benjamin suscita reflexões sobre a questão relativa a uma suposta pureza da língua, a língua pura seria a Poesia, por esse motivo, o texto poético é passível de tradução de sua manifestação física em todos seus aspectos: idiomas e construções próprias, a Poesia e as regras das poéticas seriam uma espécie de idioma universal, compartilhado. Afirma o estudioso: o trabalho de tradução mantém a vida das obras. Ainda que a cada versão em determinada época e determinado país o texto se relacione com o contexto Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 219 ÍNDICE em que é produzido (o mesmo ocorre tanto com textos traduzidos quanto com os inéditos devido às especificidades da tradição literária em que nasce). Note-se que esse preceito é também defendido por Burke (2009, p.16) que ressalta a importância de se relacionar obras e contextos, pois as normas, regras e convenções que governam as práticas tradutórias se alteram na linha temporal. Benjamin preconiza um aspecto que consideramos de extrema relevância, em que Berman também concorda. A tradução amplia as fronteiras da língua de chegada, ao tentar alcançar a magnitude da linguagem poética considerada pura: “redimir na própria (de chegada) a pura língua, exilada na estrangeira, liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação — essa é a tarefa do tradutor”. (BENJAMIN, 2001, p.211) Entre nós, figura Haroldo de Campos teorizando e praticando essas modernas concepções de tradução. De Ezra Pound, Haroldo assumiu a prática de recriação do texto traduzido, que “desenvolveu uma teoria da tradução e toda uma reinvidicação pela categoria estética da tradução como criação”. (CAMPOS, 1967, p.24) Como Berman e Benjamin, Pound e Campos também elevam a tarefa tradutória como construção de um texto original. A elevação do trabalho à crítica, superior ao de interpretação, atribui à tradução a tarefa de por em circulação novas formas e de “produtos poéticos básicos, reconsiderados e vivificados”. (CAMPOS, 1967, p.25) Para Campos, o que alguns denominam impossibilidade de tradução da poesia, é exatamente o que permite ao tradutor dialogar e recriar a forma de um texto estrangeiro. O texto traduzido é então criativo ou “criação paralela, autônoma, porém recíproca”. (CAMPOS, 1967, p. 24) Alerta o crítico que a tradução não se prende ao significado e sim ao “tom” de uma obra, como afirma o poeta Boris Pasternak e, como partidário de Pound, atribui grande valor à logopeia textual, ou seja, “a dança do intelecto entre as palavras”. A elevação do trabalho de crítica — atento à logopeia —, superior ao de interpretação, atribui à tradução a tarefa de por em circulação novas formas e de “produtos poéticos básicos, reconsiderados e vivificados”. (CAMPOS, 1967, p.25) Assim, o trabalho do tradutor é fazer renascer a obra na atualidade, não como se houvesse sido escrita hoje, mas relacionando-se com sua vida através do tempo, e com as mudanças que essa trajetória acarreta para seu entendimento. A obra é nova enquanto Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 220 ÍNDICE tradução presente, mas essencialmente conectada ao texto e língua de partida e com as peculiaridades dela. Com esses preceitos e sua prática tradutória em grego e latim, Haroldo de Campos, no Brasil, iniciou a valoração da tradução criativa. Desafiando a crítica tradicional, resgata a teoria e as traduções de Odorico Mendes, lançando à obra deste um olhar revisitado elencando não apenas as vicissitudes dela, mas justificando a legitimidade das traduções odoricanas, principalmente por serem feitas de forma coerente, aliando teoria e prática, ou seja, um projeto de tradução. Por fim, a defesa fundamentada de Campos de que a tradução é um trabalho minucioso de crítica literária embasa-se nas experiências do movimento modernista, que justamente por pretender lançar novas bases ao trabalho dos poetas brasileiros, considerou o trabalho de tradução um meio de aprofundamento e aquisição de manejos poéticos patentes em textos de partida e de chegada. A contribuição das traduções e, principalmente, de sua prática consciente e minuciosa nos estimula a seguir os passos do trabalho de Haroldo, no que concerne à perda da ingenuidade diante do texto traduzido ou a traduzir. Procuramos, nos versos abaixo, tecer alguns comentários ilustrativos do tipo de análise que fizemos do excerto estudado. Como já citado, esse excerto está inserido nas notas da Grinalda Ovidiana que José Feliciano de Castilho compôs como apêndice para a versão parafrástica de Os Amores do poeta Ovídio. Refere-se à Canção VIII (Tomo I, p.83), que trata de certa “tartárea velha”, bruxa comerciante de feitiços amorosos, mais especificamente ao verso 07: “entende a fundo os mágicos segredos”. Nessa extensa nota José Feliciano de Castilho faz alusão às práticas de magia que figuram em diversas obras da Antiguidade, além de pertencerem ao universo mítico-cultural dos povos. Ele cita a VIII Écloga de Vírgílio; as bruxas Canídia e Sagana, que estão na Sátira VIII do Livro I e nos Epodos V e XVII, de Horácio. vv. 438-442 (Ovídio, 1858, pp. 454-455)1 Thessala Quin eTiam Tellus herBasQue noCenTes Rupibus ingEnuit, sEnsurAquE sAxA cAnEntEs Arcanum ferale Magos. Ibi plurima surgunt Vim factura Deis, et terris hospita Colchis Legit in Haemoniis, quas non advexerat, herbas. 1 440 Os grifos e destaques nos versos são de nossa autoria e visam à melhor identificação dos comentários feitos acerca deles. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 221 ÍNDICE Nutre a Tessália, em seus horrendos flancos, Mil simples venenosos; da magia Os próprios montes os arcanos sabem. Nascem plantas aí que aos deuses forçam; E a bárbara Medeia à hemônia terra Ervas foi descobrir, em Colco ignotas! [440] Iniciemos comentando o verso 438, em que é notável a aliteração do texto de partida (TP) em /t/ que se encontra 04 das seis palavras (Thessala; eTiam; Tellus e nocenTes). As outras duas palavras possuem o som /k/ e ainda a oclusiva /b/, tais recursos atribuem ao TP a dureza e cadência típicas da poesia épica, além de marcarem solenemente o início do episódio de Ericto. No verso 439, ainda no TP, o destaque vai para as três palavras finais que aliteram em /s/ e possuem assonância em /e/ e /a/, casando perfeitamente em rima consonante com o verso anterior (nocentes/canentes). Embora saibamos que esse tipo de rima não era utilizado pelos antigos, aqui ela é vista e não foi reproduzida no texto chegada (TC). José Feliciano de Castilho (doravante, Castilho José ou CJ) traduz os cinco hexâmetros iniciais por seis versos decassílabos. No entanto, no TC, notamos que Castilho José preocupa-se em manter tanto quanto possível a sonoridade do texto com que se relaciona. Nessa abertura da tradução, o destaque vai para as consoantes nasais /m/ e /n/ que permeiam os quatro primeiros versos do TC. O que podemos considerar um prenúncio da inserção de “Medeia à hemônia”, no quinto verso; ali há o acréscimo do nome Medeia, feiticeira amplamente conhecida, enquanto no TP temos hospita Colchis (forasteira da Cólquida) que é uma metonímia. Vale destacar que CJ acrescenta “horrendos flancos”2 que também é metonímia na medida em que atribui as características “horrendas” das ervas ali encontradas e das moradoras feiticeiras para o espaço por elas habitado. Ele também diz que na Cólquida tais plantas eram desconhecidas (“em Colco ignotas”), enquanto no TP a informação é de que Medeia não as havia trazido o que pode ser uma clarificação de Castilho, em termos bermanianos — na medida em que afirma explicitando que ela não as trouxe justamente por lá não serem conhecidas. 2 Horrendos flancos: horrendas regiões, terrenos. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 222 ÍNDICE Nota-se um rearranjo vocabular nos segundos e terceiros versos do TC com as palavras “magia” e “arcanos”, que retomam mago e arcanum do terceiro verso do TP. Esses pontos que salientamos brevemente aqui tentam fornecer um pequeno exemplo de como as teorias utilizadas são aplicadas ao texto estudado. Conclusão Este trabalho de pesquisa se mostrou muito profícuo no sentido de estimular a reflexão sobre o fazer tradutório. Não podemos ainda deixar de pensar que cada texto foi produzido em determinado ambiente cultural, o que os torna originais em essência no que concerne às práticas tradutórias que eles serviram quando da sua feitura. Temos que destacar a percepção que tivemos das práticas tradutórias previstas pelos teóricos lidos. As perdas quantitativas e qualitativas, nos termos bermanianos, foram sensivelmente notadas na análise do excerto do projeto, assim como a compensação — estratégia que busca manter o ritmo e o parentesco (ou a afinidade) vocabular entre os dois textos. Lembremos que o que se deve buscar não é a tradução palavra a palavra. Mas antes as relações que elas estabelecem entre si na construção da forma do texto poético. Em alguns versos, como se comentou, isso acontece. No entanto, em muitos prevaleceu a economia poética. Comprovou-se ainda que o texto, embora apresente perdas, não sofreu dois importantes desvios considerados por Berman (2007, p.28): transformar-se em tradução hipertextual ou etnocêntrica. Isso atesta mais uma vez sua qualidade de tradução e não de paráfrase. Assim, em etapas posteriores do projeto, pretendemos aprofundar ainda mais tais aspectos do nosso embasamento teórico, pois esse exercício nos educa para a sensibilidade necessária à tarefa tradutória, que busca ser experiência e reflexão. Referências AULETE, Caldas. Aulete Digital – Dicionário contemporâneo da língua portuguesa: Dicionário Caldas Aulete, Lexikon, 2007. Disponível: http://www.auletedigital.com.br/ Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 223 ÍNDICE BENJAMIN, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor”. In: Clássicos da teoria da tradução. Org. Werner Heidermann. Florianópolis: UFSC, Núcleo de Tradução, 2001. BERMAN, Antoine. “A tradução em manifesto”. In: _____. A prova do estrangeiro. Trad. M. E. P. Chanut. 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Eles tentam explicar as possíveis semelhanças e diferenças entre eles, como as provas eram praticadas, quais os prêmios que eram dados, onde eram realizados, entre outras coisas. As Olímpiadas são mais um exemplo da importância da cultura grega no mundo moderno ocidental. A Política, também, deve muito ao mundo grego, sem esquecer o quanto é universal a relevância da Grécia para a as Artes em geral, principalmente para o Teatro, Pintura e a Literatura. É exatamente a relação entre a herança grega na Literatura, mais especificamente na peça As Rãs de Aristófanes e o livro Contra o Brasil de Diogo Mainardi, o objeto de análise final do meu curso de graduação, que busco, utilizando o viés do cômico, explicitar neste artigo. Esse viés cômico, acima referido, no estudo de uma obra literária, foi motivado depois de eu ter participado do Projeto de Iniciação Científica “O Cômico na Literatura Brasileira1”, com início em 2008, sob a orientação da Profª Drª Jacqueline Ramos. Nele fui exposto a diferentes teorias, especialmente, as de Bergson (2007), Freud (1977) e Jolles (1976). Foram esses os conhecimentos basilares para a análise da comicidade em obras da literatura brasileira quando do desenvolvimento do projeto de pesquisa supracitado. Conforme, escrito anteriormente, neste trabalho eu procuro estabelecer uma relação entre uma passagem do livro Contra o Brasil de Diogo Mainardi e a peça As Rãs de Aristófanes. Eu entendo que essa relação é estabelecida pela presença do escravo carregadorde-bagagens, como veremos adiante. Cabe ressaltar, ainda, o caráter polêmico de Diogo Mainardi e da obra em questão. O primeiro contato que tive com esse escritor foi através de uma entrevista dele para a revista “Isto É” onde já dava para perceber a sua verve irônica. * 1 Graduado em Letras-Português pela UFS-Universidade Federal de Sergipe. Desenvolvido no Campus Alberto Carvalho da Universidade Federal de Sergipe, “O Cômico na Literatura Brasileira” é um projeto de pesquisa que tem como objetivo o estudo dos modos e formas da comicidade na produção literária de autores canonizados. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 226 ÍNDICE Importante ressalvar que os escritos de Mainardi para a revista “Veja” ou suas falas no programa “Manhattan Connection” não foram levadas em consideração e nem estudadas quando da feitura do trabalho monográfico. Depois de ter lido o Contra o Brasil, Arquipélago e Polígono das Secas, acabei optando pelo primeiro. Apesar dos outros livros também apresentarem elementos relacionados ao cômico, entendi que o Contra o Brasil se adequasse mais aos propósitos da monografia. É um livro onde são mostradas várias reações a respeito do país pelo ponto de vista estrangeiro. É um olhar de fora sempre pelo viés da crítica negativa. O Brasil grandioso, pujante existe, mas essa grandeza é mostrada pelo lado negativo, em tudo aquilo que pode ser considerado de pior no país. Seria a apoteose das mazelas e problemas brasileiros. E sem dúvida nenhuma essa inversão de valores, esse sinal trocado é um procedimento típico do cômico. Lembra aquele adágio que diz algo “como perder o amigo, mas não perder a piada”. Assim, entendi que esse livro seria mais viável para compreender o processo de composição, quais os procedimentos utilizados pelo autor quanto ao uso do cômico e o que, possivelmente, ele queria retratar, confirmar ou atingir com sua escrita. A escolha de uma obra de Diogo Mainardi foi motivada pelo fato de entender que a temática de sua produção literária apresenta elementos ligados à comicidade como a ironia, paródia, analogia. Além disso, a sua visão sobre o país é feita de forma satírica e, muitas vezes, ácida e, também ajuda a explicitar as possíveis influências literárias de escritores como Cervantes, Swift, Voltaire. Essas influências foram declaradas pelo próprio autor em entrevistas. Outro motivo relevante, mas talvez arriscado, é o fato da contemporaneidade de sua obra. Essa contemporaneidade, a qual faço referência de Mainardi, está relacionada ao fato de ele ser um escritor que ainda é jovem, que está produzindo, enfim não faz parte, ainda, do cânone literário. Provavelmente pode ser a causa de ele ser, ainda pouco estudado, com referência aos seus livros. Fato que não acontece quanto a suas crônicas. Além desse aspecto de ser pouco estudado há que se considerar uma quase ojeriza que Mainardi desperta, é imensa a quantidade de pessoas que falam mal do escritor, especialmente, por causa de suas posições políticas. Confundindo assim a pessoa física com a obra. Se bem que é difícil separar uma coisa da outra, de se conseguir ler a obra do escritor de forma a separar sua vida pública de sua produção literária. Para discutir os processos e funções do cômico na obra de Mainardi, conforme citamos anteriormente, nos valemos dos trabalhos por Bergson (2007), Freud (1977) e Jolles Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 227 ÍNDICE (1976). Em seu livro O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade, Bergson analisa o cômico como um fenômeno social, destacando que “não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano” (2007, p. 3), além disso, ele defende a insensibilidade, isto é, a necessidade de distanciamento do objeto de derrisão, afinal “o riso não tem maior inimigo que a emoção” (2007, p. 3) já que nós não rimos daquilo que nos desperta a compaixão. Bergson, também, vincula o cômico à ideia de correção dos vícios, como forma de enquadrar o indivíduo ao meio social no qual está inserido. Isto é quando alguém sai do “padrão”, daquilo que se espera da pessoa no convívio em sociedade, ele sofre retaliação. O riso dos outros é a arma utilizada para disciplinar a pessoa em um determinado modelo de comportamento. Com interesse em outro foco, Freud em seu estudo O chiste e suas relações com o inconsciente associa o cômico ao prazer libertador. Segundo ele, a energia que seria represada em decorrência do uso da censura, com o riso ela pode ser extravasada, funcionando desse modo como uma válvula de escape e, consequentemente, proporcionando alívio de tensão. Para ele, os chistes acionariam os mecanismos no processo pela busca de prazer e sua possível relação com a repressão sexual. Freud percebe uma ação correlata entre o sonho e o chiste, que ambos utilizam os mesmos mecanismos de transformação de pensamentos represados em atos concretos, no processo de liberação de conteúdos reprimidos. Para ele, o cômico traz de volta sensações de contentamento vividas na infância, mas que com o decorrer do tempo se esmaecem e que com o uso de elementos relacionados ao cômico podem ser reavivadas. Para ilustrar sua teoria do desconcerto e esclarecimento proporcionado pelo chiste, Freud toma como exemplo o termo “familionariamente” e escreve que “a palavra veículo desse chiste parece, a princípio, estar erradamente construída, ser algo ininteligível, incompreensível, enigmático. Em decorrência, desconcerta. O efeito cômico é produzido pela solução desse desconcerto através da compreensão da palavra”. (1977, p. 25) Em um primeiro momento, há um desconcerto em virtude do ouvinte não identificar o sentido da palavra, mas no momento em que ele entende o seu significado, consegue compreender toda a situação vivenciada. Para Freud, os principais processos de produção do chiste são a condensação e o deslocamento. A primeira é um processo pelo qual surge uma nova palavra a partir de palavras anteriores, no exemplo citado acima temos a junção de dois termos “familiar” com Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 228 ÍNDICE “milionário” e o resultado final é o “familionariamente”. Desse modo, o deslocamento está associado à possibilidade de transferência da representação de uma determinada ideia para outra. Freud argumenta que “o deslocamento habitualmente ocorre entre um comentário e uma réplica que prossegue o curso do pensamento em direção distinta da iniciada no comentário original”. (1977, p. 71) Na condensação, dois elementos obtêm equivalência a um único elemento, assim “o resultado da condensação (...) é a interpenetração dos constituintes dos dois elementos” (1977, p. 38), enquanto o deslocamento trabalha com a memória de ambos os elementos. Assim, de um modo geral, Freud chama atenção para o caráter revelador e libertador do cômico que permite dizer o proibido, o censurado, o absurdo, o oculto. Finalmente, André Jolles, em seu livro Formas Simples defende que o chiste é a expressão de uma disposição mental cuja finalidade é “desatar os laços, desfazer os nós” (1976, p. 206) e que pode ser utilizado em diferentes áreas seja “da linguagem, da lógica, da ética e das coisas semelhantes”. (1976, p. 20) Conforme já havia escrito, foram esses os principais teóricos que embasaram o trabalho a respeito do Contra o Brasil. Este é um livro curto, apresenta 214 (duzentas e quatorze) páginas, subdivididas em cinco partes. Cada uma dessas partes possui 10 (dez) curtos capítulos de três a quatro páginas. O livro parece um roteiro de filme ou de uma peça de teatro, com uma presença muito grande de frases curtas, com muitos diálogos e poucas descrições, fato esse que torna a leitura ligeira do texto. Somente um capítulo não está estruturado dessa forma. Além dessa grande quantidade de diálogos, encontramos no Contra o Brasil uma estrutura que dialoga principalmente com o Tristes Trópicos de Claude Lévi-Strauss. Sabemos que essa obra registra as expedições do etnólogo belga, especialmente, entre os índios brasileiros, nas primeiras décadas do século passado. Tristes Trópicos é considerado um marco nas Ciências Humanas. Importante ressaltar a existência de uma relação intertextual entre os livros, com um sistema de conexões múltiplas. Eles não funcionam como uma espécie de “espelho”, nem mesmo como leitura complementar. São obras autônomas e independentes. O que não poderia ser diferente. Afinal são obras de épocas diferentes, de períodos distintos da história e a possibilidade de Lévi-Strauss ter sabido da existência de Mainardi está descartada. O autor, Mainardi, utilizou várias informações, elementos, personagens presentes na obra, que Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 229 ÍNDICE eu chamaria de “guia”, mas não faz uma mera repetição da história, ele não a reconta dentro de outro contexto. Percebemos que o jogo intertextual de Mainardi não para por ai. Se utilizarmos, por exemplo, o aspecto extensão, que é um elemento presente na paráfrase, este será mais um indicador de que o escritor não fez uso desse recurso para a composição de sua obra, pois ela tem a metade do tamanho físico do livro Tristes Trópicos, senão menos. Além disso, são várias as citações ao longo da narrativa do Contra o Brasil, mas elas não se vinculam unicamente ao texto produzido por Claude Lévi-Strauss. Utilizando esse critério para classificação, o procedimento observado com mais frequência no livro de Mainardi é o do deslocamento estilizado. Ele trabalha com o mesmo sentido do original, porém o faz com diferença quanto ao uso e, principalmente, quanto ao resultado final. Caso ele fizesse uma pura e simples paráfrase, perderia o sentido de autoria, tanto é que o personagem principal, Pimenta Bueno, sempre tem a preocupação de citar o autor da frase por ele proferida. Mesmo porque seus interlocutores não conhecem não somente a frase, assim como o próprio autor dela. Contra o Brasil é uma espécie de diário de viagem e retoma uma tradição desse tipo de literatura, que no Brasil começou com a própria chegada dos portugueses ao país, representada pela carta de Pero Vaz de Caminha. Mas não é só isso, eu citei o livro de LéviStrauss como uma espécie de base principal, mas em Contra o Brasil há uma retomada das crônicas e relatos de viagens, ele é construído, principalmente, através de inúmeras citações de pessoas de áreas díspares, como escritores, viajantes, políticos, etc. Tanto é que foi possível identificar quais as áreas do país que sofreram ataques com o intuito de obter a sua desqualificação. É um leque bastante abrangente, passa pelas Artes em geral como cinema, escultura, poesia, chegando até mesmo ao turismo e o trânsito. Essa compilação proferida por Pimenta Bueno tem como objetivo principal o rebaixamento do país. Com o objetivo de tornar tanto mais abrangente, quanto contundente o seu ataque, o herói acima citado, vai delineando um painel no qual explicita o motivo pelo qual o país é uma verdadeira nulidade em todas as áreas. A ideia é poder atingir com uma maior amplitude e profundidade e, para isso, ele vai citando, aquilo que estrangeiros disseram sobre o Brasil, podemos destacar Charles Darwin, Albert Camus, Montaigne, entre outros. É a trajetória de Pimenta Bueno que é relatada no Contra o Brasil. Ele é uma figura representativa de uma elite decadente, a quem podemos associar oportunismo, impunidade, falta de escrúpulos, entre outros adjetivos menos lisonjeiros. Para se ter uma ideia do que Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 230 ÍNDICE seja Pimenta Bueno, ele prefere atear fogo no prédio do cinema com os mendigos dentro, chegando a matar do que aproveitar o imóvel. Assim, para contornar a situação, ele decide fugir para o interior do Brasil e percorrer a linha telegráfica implantada pela expedição do marechal Rondon. Na segunda parte do livro denominada “Linha Telegráfica”, Pimenta Bueno, depois de incendiar o cinema, ele segue para o Brasil central. Durante esse momento, ele é acompanhado por Azor, que é um negro alto e forte, e justifica a sua escolha afirmando que “prefiro viajar apenas com o meu estimado escudeiro Azor, que substitui tanto os animais de carga como os tropeiros. Além disso, é um ouvinte ideal”. (MAINARDI, 1998, p. 53) Nesta passagem, o autor utiliza elementos que fazem parte do cômico com o intuito de rebaixar, depreciar o personagem de cor preta, estabelecendo uma associação entre um homem negro e um cavalo e, dessa forma, procura obter como resultado final dessa analogia algo que seja considerado risível, aquilo que Freud classificaria de chiste agressivo. Convém ressaltar que não é o objetivo principal do trabalho procurar entender o uso daquilo que é considerado ofensivo ou do que classificado como politicamente correto, mas a utilização de elementos que estejam relacionados à comicidade. E o uso do cômico muitas vezes é feita de forma lesiva, como nessa condensação entre o escravo e o animal. A cena interessa aqui porque entendida como retomada de um mote típico da comédia clássica promovida por Diogo Mainardi. O nosso intuito, então, é procurar estabelecer similaridades e as possíveis diferenças entre Xantias, o escravo carregador-de-bagagem presente na peça As Rãs de Aristófanes e o Azor, que também carrega bagagens no Contra o Brasil. Para tanto, partiremos do artigo intitulado Variações em cenas típicas da comédia aristofônica: o prólogo d’As rãs de Adriane da Silva Duarte, conforme o próprio título especifica, o recorte feito pela articulista se concentra na análise de modificações de cenas classificadas como típicas da comédia, afinal “cenas típicas da epopeia ou da tragédia só aparecem na comédia no registro paródico” (DUARTE, 2006, p. 174), cujo “objetivo é estabelecer a função de tais cenas na economia dramática”. (DUARTE, 2006, p. 173) As duas cenas utilizadas pela articulista são: o visitante que bate na porta de uma residência para pedir um favor e a do escravo carregador-de-bagagem. Será esta segunda o objeto de nossa análise. O título da peça de Aristófanes é por causa de um coro de rãs que coaxam enquanto Cáron, o barqueiro do inferno, transporta Dionísio através de um pântano. O objetivo de Dionísio é ir até o Hades e de trazer de lá ou Ésquilo ou Eurípides que são dois grandes Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 231 ÍNDICE autores trágicos gregos. Quando Dionísio chega ao Hades está acontecendo uma competição entre esses poetas pelo trono da Tragédia e Dionísio é convidado para decidir qual dos dois é o melhor. Segundo Mário da Gama Kury “cada um dos trágicos ataca as peças do outro, e a comédia apresenta um exercício de crítica literária (às vezes sob o disfarce de jocosidade), e uma paródia ótima dos métodos literários de ambos”. (KURY, 2004, p. 9) Ésquilo é escolhido porque sua poesia “pesou mais na balança”. Esta decisão não significa que Eurípides seja mau poeta aos olhos de Aristófanes, porém Ésquilo é o maior dos dois. (KURY, 2004, p. 9) Esse é o principal acontecimento da peça. Há outros fatos que podem ser destacados como o momento em que ocorre a troca de roupas entre Dionísio e Xantias, é quando um passa a agir como o outro e vice-versa, isto é, o deus passa a ser servo e o servo passa a agir como um deus, em uma inversão cômica. Recorrente na produção de Aristófanes, Xantias é um personagem presente nas três peças às quais tive acesso. Ele é um personagem mudo na obra As Aves e tem falas nas outras duas, As Vespas e As Rãs e, conforme já havia dito, será nessa última que iremos analisar e comparar com o Azor de Contra o Brasil. Na cena inicial de As Rãs existe uma indicação de que Xantias “está montado num jumento, carrega nas costas a bagagem de seu senhor”. (ARISTÓFANES, 2004, p. 189) Já em Contra o Brasil, o personagem Azor “ergue Pimenta Bueno, que se pendura em suas costas, com s braços em volta de seu pescoço e cingindo-lhe a cintura com as pernas” (MAINARDI, 1998, p. 40) isso ocorre depois dele saber da história do escultor Aleijadinho que possuía um escravo que o levava da mesma maneira. Ao contrário de Azor que é extremamente leniente, Xantias reclama do peso que carrega conforme diálogo abaixo entre ele e Dionísio: Xantias: Coitados de vocês, meus ombros! Vocês sofrem sem que possa fazer rir. Dionísio: Isto não é o cúmulo da insolência e da preguiça? Eu, Dionísio, filho de um jarro de vinho, vou a pé e me canso, enquanto este manhoso quer uma montaria para estar à vontade, sem ter o que carregar! Xantias: Eu não estou carregando nada? Dionísio: Como você carregaria, se está sendo carregado? Xantias: Mas com esta trouxa em cima de mim. Dionísio: Como? Xantias: E ainda por cima ele é surdo... Dionísio: Não é o jumento que carrega a trouxa que você está carregando? Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 232 ÍNDICE Xantias: É claro que não. Ele não carrega o que eu mesmo levo. (ARISTOFÁNES, 2004, p. 190) Na passagem citada acima, Xantias está montando em um jumento e reclama que está carregando muito peso, quando o normal seria o animal levar todos os objetos e o próprio Xantias. Já Azor, além de transportar Pimenta Bueno nas costas, é “obrigado a carregar uma lata com cerca de trinta litros de gasolina” (MAINARDI, 1998, p. 41) quando do incidente do cinema. Ele não reclama de nada, aceita todas as ações impostas por seu patrão. Esse é um exemplo do exagero da representação de Mainardi, quando o próprio Azor faz o papel de cavalo, como anteriormente já havíamos escrito. Tem um momento na peça que Dionísio chega a declarar para Xantias que “se você acha que o jumento não serve para nada, o que você tem a fazer é pegar o jumento e carregar ele também nas suas costas”. (ARISTÓFANES, 2004, p. 191) Essa fala acaba nos remetendo à fábula de Esopo intitulada “O velho, o menino e o burrinho” 2 que poderia ser entendida como mais um exemplo de relação intertextual. No trajeto para o Hades, Dionísio e Xantias se separam, por um momento, ao encontrarem Cáron porque esse “não transporta escravos, salvo se eles tiverem combatido no mar dos cadáveres”. (ARISTÓFANES, 2004, p. 203) Enquanto Xantias não é transportado por ser escravo, Azor cansado de carregar Pimenta Bueno cai de joelhos e começa a delirar. De imediato o patrão admoesta seu empregado proclamando que “é impossível que uma febre possa abatê-lo tanto assim! Chega de se autocomiserar! Erga-se e caminhe!” (MAINARDI, 1998, p.70). Ele, Pimenta Bueno, “reflete que não precisa mais de sua ajuda. Arrasta-o até o meio do mato, esconde-o atrás de um arbusto, rouba-lhe os sapatos, pega as 2 Um velho resolveu vender seu burro na feira chamou seu neto para acompanhá-lo. Montaram os dois no animal e seguiram viagem. Passando por umas pessoas, escutaram: “Como é que pode duas pessoas em cima deste pobre animal?!”. Resolveram que o menino desceria e o velho permaneceria montado. Prosseguiram… Mais adiante, um grupo de pessoas viu a cena e reclamou: “Que absurdo! Explorando a pobre criança, podendo deixá-la em cima do animal.” O menino montou e o velho desceu. Andaram mais um pouco, quando jovens falaram: “Que menino preguiçoso! Enquanto o velho senhor caminha, ele fica em cima do animal. Tenha vergonha!” O menino desceu e ambos foram caminhando e puxando o burro. Quando passaram na frente de alguns homens, estes proclamaram “São mesmo uns idiotas! Ficam andando a pé, enquanto puxam um animal tão jovem e forte!”. Então, o avô e o neto pegaram o burro e carregaram-no nas costas (texto adaptado). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 233 ÍNDICE duas malas e prossegue a viagem sozinho”. (MAINARDI, 1998, p. 70) Mais uma situação que demonstra a diferença existente na vida de ambos os escravos. O final da história para Azor é distinto do que ocorre com Xantias. O companheiro de Dionísio participa até a parte final da peça onde finalmente é travado o duelo entre os poetas Eurípides e Ésquilo para saber quem é o melhor, tendo Dionísio como juiz. Já Azor tem menos sorte e morre assassinado por engano, antes de sua morte, ele chega a declarar sobre sua procura por Pimenta Bueno “esquadrinhei o território até conseguir, finalmente, encontrá-lo. Pena que eu esteja com três flechas fincadas no peito, caso contrário este seria o dia mais feliz da minha vida [...]”. (MAINARDI, 1998, 144) Podemos considerar o texto de Mainardi, segundo Minois, como um representante do riso dos cínicos. De acordo com o pensador francês, “praticando a ironia de forma provocativa, eles perseguem, de fato, uma finalidade moral, aparentando amoralidade” (MINOIS, 2003, p. 62). Esse riso agressivo procurado por Mainardi, a sua suposta transgressão de princípios da sociedade, esse achincalhe geral contra o país em todas as áreas, pode ser entendido também, por um sinal trocado. Como define Jankélévitch, “o cinismo é, frequentemente, um moralismo frustrado e uma ironia extrema”. (apud MINOIS, 2003, p. 63) Suspeitamos que atrás de tanto ataque, Mainardi seja apenas um conservador, que busque um país que só existe/existiu para ele. Afinal, podemos considerá-lo um cínico. Já que ele é um representante da elite, que conhece as formas de exploração, que utiliza essa exploração e, com isso, ridiculariza o oprimido sem piedade. Pimenta Bueno – A fim de empreender a viagem de volta para a Guiana, através da floresta amazônica, Evelyn Waugh comprou dois cavalos em Boa Vista. Assim que partiu, o cavalo de carga começou a mancar, com a pata dianteira inchada. (...) Azor – Minha perna também está inchada... Pimenta Bueno – Algumas milhas adiante, Evelyn Waugh encontrou uma fazenda de mocinhas sorridentes onde um vaqueiro caolho aceitou substituir-lhe um dos cavalos. O novo cavalo era ‘péssimo’. Azor – Eu também sou um péssimo cavalo... Pimenta Bueno – Em Nova Cintra, um vaqueiro parecido com um retrato de El Greco deu-lhe um cavalo malhado em troca de uma lata de salsichas. O cavalo malhado se perdeu na floresta. Azor – Estou passando mal... Estou ficando doente...” Pimenta Bueno – Deu para entender? Azor – Não Pimenta Bueno – Cavalos tontos e preguiçosos como você conjuram para retardar nossa fuga do país! (1998, p. 61). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 234 ÍNDICE Referências ARISTÓFANES. As vespas; as aves; as rãs. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 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Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 235 ÍNDICE Ridendo castigat mores: comicidade em Martins Pena Ana Paula Rocha Vital Pereira∗ Riso: “ato, efeito ou modo de rir; alegria, contentamento”. (FERREIRA, 2001, p. 610) Esta é a definição contida no Dicionário Aurélio que resume de forma bastante simples um substantivo que suscitou, e ainda desperta em muitos homens, o interesse pela essência de seu significado, o interesse em desvendar o que subjaz a esse efeito que o corpo humano produz de modo aparentemente despretensioso. Eu, particularmente, nunca havia pensado sobre o assunto, sobre a nossa capacidade de rirmos, sobre o prazer que algo cômico nos proporciona, sobre a agradável sensação que uma risada provoca em nosso corpo. Também nunca havia refletido sobre a raiva, ou a vergonha sentida por um indivíduo quando, após sofrer uma queda, por exemplo, é motivo de riso do outro, ou por que as pessoas riem quando alguém cai, ou tropeça em algum objeto. A partir do meu envolvimento com o Projeto de Iniciação Científica “O Cômico na Literatura Brasileira3” (2008), orientado pela Profa. Dra. Jacqueline Ramos, minha perspectiva sobre o significado do riso e da comicidade foi ampliada. Diversas teorias contribuíram para isso, principalmente a teoria de Bergson (2007), Freud (1977) e Jolles (1976) a respeito do cômico. Essas teorias deram-nos suporte para a análise da comicidade em obras da literatura brasileira durante o desenvolvimento do projeto de pesquisa citado acima. Nesse projeto, selecionei para compor o corpus de minhas analises algumas obras teatrais cômicas do dramaturgo brasileiro do século XIX Martins Pena. Em suas obras percebemos a constituição de personagens cujos comportamentos são expostos de uma forma satírica ou irônica. A favor da manutenção dos “bons” costumes sociais Pena, por meio do tom cômico, leva à tona aspectos severamente repudiados por ele. Dessa forma, constatamos que a ∗ 3 Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Desenvolvido no Campus Alberto Carvalho da UFS, “O Cômico na Literatura brasileira” é um projeto de pesquisa que tem como objetivo o estudo dos modos e formas da comicidade em nossas letras, traçando-se um panorama da produção literária cômica nacional dos autores canonizados pela historiografia e pela crítica. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 236 ÍNDICE comicidade presente nas obras de Pena se aproxima da teoria do riso de Bergson, o riso como um ato de significação social que cumpre a tarefa de reajustar os indivíduos à sociedade. Revisitando os estudos clássicos sobre o riso em autores como Verena Alberti (1999) e Georges Minois (2003), verificamos que a definição do riso de Bergson remonta a uma vertente do cômico presente na tradição clássica que considera risível os vícios da humanidade, a exemplo da sátira latina cujos “alvos são ao mesmo tempo, morais, sociais e políticos, e seu espírito, essencialmente conservador”. (MINOIS, 2003, p. 87) Neste artigo, a partir da análise de algumas obras teatrais cômicas de Martins Pena, procuraremos discutir esse paralelo entre a teoria de Bergson e uma das vertentes da tradição clássica representada pela máxima latina ridendo castigat mores. Escritor do século XIX, Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) insere-se no cânone literário brasileiro como um dos principais representantes do Teatro Romântico. Ao lado de nomes como João Caetano – grande ator dramático e empresário teatral – e Gonçalves de Magalhães, Martins Pena esforça-se, segundo Afrânio Coutinho, “pela criação de fato do teatro brasileiro” (2004, p. 59) a partir da elaboração de novos textos caracterizados por temas locais, uma vez que as peças teatrais criadas nesse período no Brasil calcavam-se em traduções ou adaptações de composições estrangeiras. Nas peças teatrais de Martins Pena analisadas neste trabalho, percebemos a constituição de personagens cujos comportamentos são expostos de uma forma satírica ou irônica denunciando, assim, os vícios da sociedade urbana ou revelando os hábitos curiosos da gente da roça. É o que verificamos em O Juiz de Paz da Roça (1833), ambientada na zona rural da capital carioca, na qual se enfoca a vida simples da roça e a má atuação de um magistrado. Em O Judas em Sábado de Aleluia (1844), também ambientada na capital carioca, verificamos a caricaturização da menina namoradeira, a corrupção nas instituições oficiais e o casamento por interesse. Em O Noviço (1845), ambientada no Rio de Janeiro destaca-se temas como a bigamia, o casamento por interesse, a submissão e a ingenuidade de determinadas mulheres, e, sobretudo, a supressão vocacional dos jovens em prol das vontades familiares. Em Os Dous ou o Inglês Maquinista (1845), esboça-se um conteúdo mais profundo, mais mordaz sobre a estrutura social, política e econômica do Rio de Janeiro do século XIX na medida em que se focaliza as relações patriarcais estabelecidas entre senhores e escravos, na medida em que trata da ilegalidade do tráfico negreiro e da omissão do Estado diante de tal prática. Nessa peça, mostram-se os meios da contravenção e o envolvimento de Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 237 ÍNDICE autoridades como deputados, juízes, ministros e desembargadores com o comércio ilegal de negros. Todos esses aspectos sociais claramente criticados por Martins Pena atribuem às suas obras um caráter moralizante, traço pertinente à teoria de Bergson sobre o riso – cobrar a moralização da sociedade corrompida pelos vícios contraídos. Em sua obra O riso: ensaio sobre a significação da comicidade (2007), Bergson (18591941) expõe minuciosamente os mecanismos de produção da comicidade, mecanismos que, segundo tal filósofo, servem ao aperfeiçoamento do homem como ser social devidamente integrado a seu meio. Para este autor, o riso tem uma significação social cumprindo o papel conservador de corrigir as falhas de caráter dos indivíduos que estejam prejudicando a coesão do grupo social. Desse modo, a teoria de Bergson sobre o riso apóia-se na máxima latina: Ridendo castigat mores. De acordo com Minois, na tradição latina havia uma tendência a repreender os maus costumes, uma predisposição “a zombaria de tudo o que, defeito ou qualidade, parece nocivo ao sucesso”. (MICHAUD apud MINOIS, 2003, p. 86) Perspectiva bastante semelhante ao conceito de Bergson sobre o riso. Em O Riso, Bergson enfatiza que o cômico é um fenômeno exclusivamente humano e que se dirige à inteligência pura. Essa teoria intelectualista pressupõe que um aspecto fundamental do efeito cômico reside no fato de que as emoções são um obstáculo à produção da comicidade. Dessa forma, o riso só é possível a partir de “uma anestesia momentânea do coração” (BERGSON, 2007, p. 4), aspecto que já se encontra na obra De Oratore, escrita em 55 a.C., do grande orador romano Cícero. Nessa obra, a qual trata sobre a arte da retórica, Cícero coloca que os assuntos em que a zombaria é mais fácil são aqueles que não excitam nem grande horror nem grande piedade. Assim, o autor encontrará com que se distrair com os vícios da humanidade, desde que não ataque nem indivíduos cujo infortúnio os torne simpáticos nem celerados que deveriam ser condenados ao suplício. (apud MINOIS, 2003, p.108) Em De Oratore, Cícero estipula uma regra para a utilização do risível: não abordar assuntos que despertem nos ouvintes nem um “grande horror” nem uma “grande piedade”, ou seja, qualquer assunto que desperte a compaixão não provocará em um indivíduo o efeito do riso, uma vez que ele estará afetado emocionalmente pela dor alheia. Para Cícero, todos os vícios da humanidade são passíveis de se tornarem risíveis exceto àqueles que despertem forte emoção, como o ódio ou a misericórdia. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 238 ÍNDICE Outro ponto semelhante entre o estudo de Bergson e o de Cícero diz respeito ao objeto do riso. Bergson, em sua obra sobre o riso, esboça os procedimentos de obtenção do cômico. Um desses procedimentos, cujo estudo o autor considera a parte mais importante de suas análises, é a comicidade de caráter. A essência de tal procedimento cômico está na não integração da personagem à sociedade, no seu desvio comportamental, na sua inflexibilidade diante da vida cabendo a comédia papel fundamental no reajuste social dos indivíduos. Para Bergson o riso não é um prazer desinteressado. A ele subjaz a intenção de humilhar, de corrigir comportamentos desviados. O riso, assim, tem uma função moralizadora que age sobre os comportamentos viciosos da sociedade. Pensamento semelhante e anterior a este é verificado em De Oratore onde Cícero afirma que o “risível é sempre uma torpeza moral (...) e o seu uso estaria sempre subordinado a propósitos sérios: seu objetivo não é divertir, e sim ser útil ao cliente” (apud ALBERTI, 2003, p. 58), no caso o orador. O risível definido como “uma torpeza moral” por Cícero, por sua vez, remete à definição do cômico de Aristóteles, segundo o qual, o risível consiste em um “defeito ou torpeza que não causa dor nem destruição (...)”. (apud ALBERT, 1999, p. 46) Em Martins Pena, o riso, na medida em que mostra as falhas comportamentais e as ridiculariza, não só desvela um caráter negativo como também cobra a reabilitação desse caráter corrompido, ou seja, o reajuste do indivíduo à sociedade. Algo que de acordo com Minois, representa uma peculiaridade do cômico latino, um cômico “reacionário (...) que defende a tradição e o sagrado”. (2003, p. 83) Para Catão e Horácio, por exemplo, o riso funciona como um instrumento de moralização social, sendo a sátira, mecanismo mais utilizado pelos romanos para apontar e criticar os vícios sociais. Nas obras teatrais de Martins Pena já citadas neste trabalho, constata-se que os aspectos sociais nelas presentes são retratados, também, pelo viés satírico e moralizante, como se Pena propusesse a reestruturação de uma sociedade corrompida, seja pelo esfacelamento do casamento, pelo desvirtuamento das moças da cidade, pela má conduta dos agentes públicos ou pela sufocação dos jovens pela autoridade familiar, o que atribui a essas obras um cunho moralista, uma função coercitiva aplicada aos comportamentos humanos que prejudicam a manutenção de uma sociedade equilibrada e essa moralização social, que Martins Pena procura resgatar por meio de suas obras cômicas, se encaixa tanto na ideia central do teórico Henri Bergson a respeito do cômico: corrigir os desvios sociais, Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 239 ÍNDICE quanto no pensamento clássico latino que utiliza a comédia como meio conservador que ataca os vícios e os defeitos humanos. Na peça O Juiz de Paz da Roça, para a obtenção do efeito cômico desejado Martins Pena utiliza-se de recursos que são abordados por Bergson em seu estudo sobre a comicidade. Um desses recursos é a comicidade de palavras, um procedimento cômico que proporciona boas gargalhadas a partir do jogo ambíguo de alguns vocábulos, como podemos verificar na cena IX em que um sitiante apresenta sua demanda ao juiz: Ora, acontecendo ter a égua de minha mulher um filho, o meu vizinho José da Silva diz que é dele, só porque o dito filho da égua de minha mulher saiu malhado como o seu cavalo. Ora, como os filhos pertencem às mães, e a prova disto é que a minha escrava Maria tem um filho que é meu, peço a vossa senhoria mande o dito meu vizinho entregar-me o filho da égua que é de minha mulher. (PENA, 2010, p. 12) O cômico de palavras definido por Bergson no final do século dezenove está presente na tradição latina. Em Cícero, o risível de palavras corresponde a um modo de obtenção do riso “que consiste em uma expressão ou pensamentos picantes”. (apud ALBERTI, 1999, p. 59) Em Quintiliano, as palavras podem constituir instrumento retórico com a função de provocar o riso quando usadas, por exemplo, instigando o duplo sentido. Em uma das passagens da peça teatral citada logo acima, é o duplo sentido da expressão “a égua de minha mulher”, um trocadilho por tanto, que suscita o riso. Procedimento semelhante se encontra na peça Os Dous ou o Inglês Maquinista em que Clemência, uma das personagens, sabatina sua filha na frente de alguns convidados pedindo-lhe que traduza alguns termos da língua portuguesa para a francesa. Em um momento Clemência pede para Florência, sua filha, traduzir a palavra pescoço, e a menina diz: “cou”. A mãe fica perplexa e envergonhada. Nessa cena, então, a comicidade é construída a partir da ambiguidade provocada pela articulação dos sons da palavra pescoço em francês, já que em português sua pronúncia remete à imagem de outra parte do corpo. De acordo com Quintiliano, o riso também pode ser obtido por meio da pronunciação de palavras obscenas. Outro tipo de comicidade de palavras abordado por Bergson e verificado no estudo do riso e do risível na tradição latina é a transposição de baixo para cima, mecanismo que consiste em “Exprimir honestamente uma idéia desonesta, tomar uma situação escabrosa, um oficio humilde ou um mau comportamento e descrevê-los em termos de estrita respectability” (2007, p. 94). Algo que pode ser verificado em uma passagem da peça O Noviço Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 240 ÍNDICE em que Ambrósio, personagem que ascende socialmente casando-se com uma viúva rica, diz: No mundo a fortuna é para quem sabe adquiri-la. Pintam-na cega... Que simplicidade! Cego é aquele que não tem inteligência para vê-la e a alcançar. Todo o homem pode ser rico, se atinar com o verdadeiro caminho da fortuna. Vontade forte, perseverança e pertinácia são poderosos auxiliares. Qual o homem que, resolvido a empregar todos os meios, não consegue enriquecer-se? Em mim se vê o exemplo. Há oito anos, era eu pobre e miserável, e hoje sou rico, e mais ainda serei. O como não importa; no bom resultado está o mérito... Mas um dia pode tudo mudar. Oh, que temo eu? Se em algum tempo tiver de responder pelos meus atos, o ouro justificar-me-á e serei limpo de culpa. As leis criminais fizeram-se para os pobres [...] (PENA, 2010, p. 1) Nessa passagem, a personagem Ambrósio reproduz certa ordenação moral para a imoralidade, nomeando, como diria Cícero, com “palavras honoráveis uma ação repreensível”. (apud ALBERTI, 1999, p. 60) Em Os Dous ou o Inglês Maquinista também verificamos tal procedimento, como podemos observar na citação a seguir em que, a partir de um diálogo entre as personagens Felício e Negreiro, o autor traz à tona a questão da ilegalidade do tráfico e a corrupção das instituições representadas por autoridades inescrupulosas que facilitavam o contrabando. Vamos ao diálogo: FELÍCIO – Sr. Negreiro, a quem pertence o brigue Veloz Espadarte, aprisionado ontem junto quase da Fortaleza de Santa Cruz pelo cruzeiro inglês, por ter a seu bordo trezentos africanos? NEGREIRO – A um pobre diabo que está quase maluco... Mas é bem feito, para não ser tolo. Quem é que neste tempo manda entrar pela barra um navio com semelhante carregação? Só um pedaço de asno. Há por aí além uma costa tão longa e algumas autoridades tão condescendentes!... FELÍCIO – Condescendentes porque se esquecem de seu dever! NEGREIRO – Dever? Perdoe que lhe diga: ainda está muito moço... Ora, suponha que chega um navio carregado de africanos e deriva em uma dessas praias, e que o capitão vai dar disso parte ao juiz do lugar. O que há de este fazer, se for homem cordato e de juízo? Responder do modo seguinte: Sim senhor, sr. capitão, pode contar com a minha proteção, contanto que V. S.ª... Não sei se me entende? Suponha agora que este juiz é um homem esturrado, destes que não sabem aonde têm a cara e que vivem no mundo por ver os outros viverem, e que ouvindo o capitão, responda-lhe com quatro pedras na mão: Não senhor, não consinto! Isto é uma infame infração da lei e o senhor insulta-me fazendo semelhante proposta! – E que depois deste aranzel de asneiras pega na pena e oficie ao Governo. O que lhe acontece? Responda. FELÍCIO – Acontece o ficar na conta de íntegro juiz e homem de bem. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 241 ÍNDICE NEGREIRO – Engana-se; fica na conta de pobre, que é menos que pouca coisa. E no entanto vão os negrinhos para um depósito, a fim de serem ao depois distribuídos por aqueles de quem mais se depende, ou que têm maiores empenhos. Calemo-nos, porém, que isto vai longe. (PENA, 2010, p. 2) A partir da fala de Negreiro percebemos a construção de uma personagem inescrupulosa e corrupta que expõe de forma cínica sua opinião sobre o contrabando e a contravenção em termos de estrita respectability, como diria Bergson (2007), isto é, exprimindo uma situação escabrosa, um mau comportamento como algo moralmente aceito pela sociedade como um todo. A partir do cômico de palavras o mau caratismo do Sr. Negreiro nos é apresentado de forma explícita. Sua conduta corresponde a um tipo humano imoral, mas que, contudo, age como se estivesse de acordo com as regras sociais. A esse modo de agir, que retrata um hábito rigidamente contraído, Bergson define de vício, vício que representa um desvio de conduta comportamental moralmente inadmissível para a manutenção da ordem social, sendo o riso, segundo o filósofo francês, o meio pelo qual se pode castigar tal desvio, algo que vai ao encontro do pensamento clássico latino de que por meio do riso se corrigem os costumes. Na peça Os Dous ou o Inglês Maquinista, assim como nas demais peças de Pena, percebemos uma composição teatral cômica que visa à censura e à ridicularização de defeitos ou vícios, uma satirização de certos comportamentos, de certos tipos sociais que se faziam presentes na sociedade brasileira do século XIX. Para Lucilius, autor romano considerado o fundador do gênero satírico, por meio da sátira denuncia-se os vícios e os defeitos dos poderosos. Defendendo as tradições romanas, Lucilius ridiculariza comportamentos considerados por ele inapropriados para a manutenção da ordem social. De acordo com Minois, praticamente todos os autores latinos utilizaram a sátira como instrumento a favor da moralização social, da “defesa das tradições e da ordem estabelecida” (2003, p. 91). Mas, dentre os autores satíricos romanos destacam-se dois autores cujos “risos” são muito diferentes. De um lado, tem-se o riso descontraído de Marcial do outro, o riso austero de Juvenal “(...) explodindo de indignação diante dos vícios de sua época”. (MINOIS, 2003, p. 91) No teatro brasileiro do século dezenove Martins Pena se destaca como um dos melhores autores cômicos da época, utilizando mecanismos cômicos como a sátira, a ironia e a caricaturização para criticar aspectos da sua sociedade, repudiando certos caracteres humanos. Na peça Os Dous ou o Inglês Maquinista, por exemplo, Pena, a partir de um humor Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 242 ÍNDICE ameno suscitado basicamente por meio da ironia, faz uma severa crítica a influência estrangeira no Brasil, à cultura francesa mal assimilada e enaltecida em detrimento da cultura nacional, algo que também se faz presente na peça O Juiz de Paz da Roça. De acordo com Minois a sátira latina também recaiu “de bom grado sobre os estrangeiros, os gregos em particular”. (2003, p. 89) Ainda em Os Dous ou o Inglês Maquinista, Pena, aponta outro aspecto negativo da sociedade de seu tempo: a atuação inescrupulosa de certos juízes, algo também verificado em O Juiz de Paz da Roça, na qual Pena chama a atenção do espectador para um tipo humano que atuava de forma desonesta nas províncias remotas do Segundo Império, o Juiz de paz que, por meio de seu abuso de poder, adquiria “presentinhos” de seus requerentes e julgava os casos de acordo com os seus interesses. Martins Pena, por meio do cômico, rebaixa essas personagens ridicularizando-as, ridicularização que, de acordo com Bergson, direciona-se aos desvios, às excentricidades sociais, levando os homens a se colocarem em constante vigília, por medo ou receio de serem ridicularizados. O riso constitui-se, então, como “certo gesto social que ressalta e reprime certa distração especial dos homens e dos acontecimentos”. (BERGSON, 2007, p. 65) Para Cícero, o ridículo se dirige à deformidades morais ou físicas, sendo o “meio mais poderoso, se não o único, de provocar o riso ressaltando uma dessas feiúras”. (apud, MINOIS, 2003, p. 106) Em Martins Pena, essas “feiúras” são ressaltadas por meio da caricaturização. A caricaturização é um mecanismo cômico presente nas obras teatrais cômicas aqui analisadas. Em O Juiz de Paz da Roça temos a caricaturização de um juiz inescrupuloso. Em O Judas em Sábado de Aleluia, a caricaturização da menina namoradeira. Em O Noviço, caricaturiza-se tanto um tipo masculino inescrupuloso que se casa por dinheiro quanto às viúvas ingênuas que se envolvem com qualquer um. E em Os Dous ou o Inglês Maquinista a caricaturização recai sobre o estrangeiro, sobre o traficante de escravos e sobre a senhora endinheirada que vive a margem da lei sustentando o contrabando ilegal de negros. Enfim, nessas obras presenciamos uma gama de personalidades que vivem indignamente, trapaceando e explorando pessoas inocentes. Mas, Pena não deixa que estas personagens saiam impunes e impõe-lhes uma lição modelar rebaixando-as e ridicularizando-as. Na tradição clássica latina também era comum o rebaixamento de personagens consideradas imorais, personagens que representavam soldados, magistrados, velhos, traficantes de moças, o “pater familias” que regia despoticamente sobre a vida de seus filhos, a mulher idosa e apaixonada, etc. Cícero, em De oratore, elenca quatro modos do cômico, dentre os Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 243 ÍNDICE quais aquele que mais faz rir “consiste em representar o próprio caráter do homem de que rimos: o rabugento, o supersticioso, o desconfiado, o glorioso, o extravagante”. (ALBERTI, 2002, p. 59) Rimos, nesse caso, do vício condenável, e o cômico cumpre, assim, o papel conservador de corrigir comportamentos desviados. A partir da análise de algumas obras teatrais de Martins Pena, verificamos que as falhas de caráter de determinadas personagens adquirem uma perspectiva generalizante na medida em que levam à reflexão os comportamentos de um grupo social. Dessa forma, Martins Pena, desvelando as mazelas da sociedade carioca, os costumes sociais, os vícios, o corrompimento de alguns indivíduos, propõe a moralização de todos aqueles que estão a prejudicar a coesão social, de todos aqueles que estão imersos em hábitos rigidamente contraídos e que se fecharam em seus mundos de trapaça e desonestidade. Destarte, suas obras adquirem um cunho moralista, uma função coercitiva aplicada aos comportamentos que prejudicam a ordem social, que corrompem a construção de uma sociedade que se pretende calcada em princípios morais. E essa moralização social, que Martins Pena procura resgatar por meio de suas obras cômicas, vai ao encontro da ideia central dos estudos de Bergson sobre o risível: corrigir os desvios sociais. E, como pudemos observar nesse trabalho, essa peculiaridade da obra de Bergson remonta ao pensamento sobre o risível presente na tradição clássica, pensamento que pode ser representado pela máxima latina: ridendo castigat mores. Referências ALBERTI, Verena. As “origens” do pensamento sobre o riso. In: O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: FGV, 1999, p. 39-78. BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 42ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1994. COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil: Era Romântica. 7ª. Ed. São Paulo: Global, 2004. FERREIRA, Aurélio B. H. Miniaurélio Século XXI Escolar: O Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 610. FREUD, S. O chiste e suas relações com o inconsciente. Edição Standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1977. JOLLES, André. O Chiste. In: Formas Simples. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 205-222. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 244 ÍNDICE PENA, Martins. O Juiz de Paz da Roça. Disponível em: <http://www.dominiopublico .gov.br /dowload/texto/bn000103.pdf>. Acesso em: 27 de julho de 2010. PENA, Martins. O Judas em Sábado de Aleluia. Disponível em:<http://www.dom iniopublico .gov.br/dowload/texto/bn000142.pdf>. Acesso em: 27 de julho de 2010. PENA, Martins. O Noviço. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/dowload/texto/bn000032.pdf>. Acesso em: 27 de julho de 2010. PENA, Martins. O Dous ou o Inglês Maquinista. Disponível em: <http://www.dominipublico .gov.br/dowload/texto/bn000032.pdf>. Acesso em: 25 de jan. de 2011. MINOIS, Georges. O Riso Unificado dos Latinos. In: História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003, p. 77-109. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 245 ÍNDICE A ironia cômica nas narrativas de José Cândido de Carvalho Danielle da Silva Andrade∗ Introdução A comicidade sempre foi e continua sendo uma importante temática cotidiana, usada em diferentes contextos e de forma diversificada. Visto, a princípio, como meio de fazer rir, o cômico apresenta-se de modo complexo quando abordado criticamente. Importantes estudos realizados por intelectuais como Freud, Bergson e Jolles, dentre outros, apontam para o caráter ambivalente do riso. Segundo tais autores, o riso adquire determinadas funções sociais que estão além do senso comum que vê este elemento apenas como meio de divertimento. Pode-se notar a efetivação das funções sociais discutidas pelos autores acima citados no acervo bibliográfico do escritor brasileiro, pertencente à terceira geração modernista, José Cândido de Carvalho, possuidor de rico acervo de obras cômicas que abordam em sua representatividade problemáticas sociais inerentes a questões históricosociais do Brasil. Dono de um cômico requintado, Cândido de Carvalho diverte-nos na medida em que denuncia as mazelas sociais de sua época. Sua escrita é comparada a do conceituado escritor Guimarães Rosa, por seus neologismos e regionalismo universal. Apesar de ser um autor pertencente ao cânone, graças à sua obra O coronel e o lobisomem, seu segundo, último e mais famoso romance, que rendeu a ele também um lugar na Academia Brasileira de Letras (ABL), Cândido de Carvalho parece não ter a devida atenção da crítica no que concerne as obras seguintes a esta, quais sejam: seus livros de contos Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon e Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, ambos sucedidos pelo subtítulo: contados e astuciados sucedidos ao povinho do Brasil. Para este trabalho foi escolhido o livro de contos Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, essa escolha vem do desejo de analisar os citados livros de contos tendo em vista a observação da riqueza de procedimentos cômicos existentes neles, bem como da representação das funções ∗ Graduanda em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), bolsista PIBID e atua como voluntária total no projeto desenvolvido pela professora Jacqueline Ramos: O cômico na literatura brasileira. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 246 ÍNDICE sociais ambivalentes atribuídas ao riso e que, neste autor, parecem ser efetivadas através, principalmente, do uso da ironia. 1 Referencial teórico Segundo Minois “O riso é um caso muito sério para ser deixado para os cômicos”. (2003, p.15) Desde o período clássico até os nossos dias o riso é um tema inquietante, mesmo estudado com afinco durante séculos, ainda está envolto em certo mistério. Ora agressivo, sarcástico, escarnecedor, ora amigável, angélico, o riso adquire inúmeras funções, representando as sociedades e dando-lhes certa especificidade. Desde a época arcaica, o riso é algo polêmico. O próprio vocabulário distingue duas formas de riso: gelân e katagelân, o riso simples e o riso agressivo sucessivamente. Considerado em determinado período subversivo e revolucionário, o riso passará por diversas mudanças que acompanham as mudanças sociais. Contrários ao adoçamento do riso e anteriores a esse processo existiram os bufões. Eles eram figuras que apareciam nos jantares sendo convidados ou não e que tinham como função animar as cerimonias em troca de comida. A esses homens era dado o papel de fazer rir aos convidados dos donos das festas. Os bufões são caracterizados pelo riso grosseiro, maldoso, desmedido; pelo riso sem limites. Os bufões, portanto, são portadores do riso desenfreado. Esse tipo de riso, que durante muitos anos circulou por toda a alta sociedade clássica, passará por um processo de desconfiança, de preconceito, sendo sucedido pela ironia sutil. Nesse momento, o teatro cômico sofre essa mudança, acabam as partes íntimas, as grosserias, as agressões verbais contra os políticos. Esse novo tipo de teatro cômico é dirigido a um novo público, um público mais seleto, que não vai ao teatro para ver-se diminuído, antes, e pelo contrário, espera exorcizar o medo da subversão. Para Menandro, um representante dessa nova comédia, o riso agora é um meio pelo qual será possível livrar-se das angústias, aliviar tensões. Nessa nova comédia, a moral sempre é preservada. Não só no teatro, a literatura também reflete essa mudança na forma de rir, agora a literatura possui um riso mais sutil. Ainda no contexto do adoçamento do riso encontramos nos oradores do século IV a. C. a inserção desse riso mais sutil e velado que culminará com o surgimento da ironia. Com o aparecimento da ironia serão ironizados vícios e defeitos, ou seja, a ironia será Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 247 ÍNDICE usada para ensinar através da afirmação da moral. A esse riso Minois dará o nome de riso pedagógico, já que será através dele que as pessoas serão ensinadas. O riso grotesco, zombeteiro e desenfreado deverá ser extinto dando lugar à ironia. A partir do século V a.C., o riso zombeteiro e desenfreado passou por um processo de desconfiança. Esse tipo de riso passou a ser considerado indecente, manifestação de um instinto ainda selvagem e, por isso, era necessário que fosse aprisionado, domesticado e que passasse por um processo de civilização. Como sucessor desse riso aparece “o riso velado, símbolo de urbanidade e de cultura, o riso finamente irônico que Sócrates põe a serviço da busca da verdade” (MINOIS, 2003, p. 49). É esse riso irônico que comporia o tipo de comicidade que identificamos na obra de José Candido de Carvalho. Vejamos esse procedimento em um de seus “minicontos”. O alfabetizador de empregadas ou o idealista Seabra E dona Rosália Seabra, professora jubilada e autora do célebre soneto “Rui Barbosa, a Águia de Haia”, diante de retrato do marido, todo de preto, com a faixa de congregado mariano no peito: - Não é por ter sido meu marido. Mas igual a Seabra não vai ter outro em muitos anos. Patriota estava ali mesmo. Pelo seu gosto, todo mundo marchava de boné e espingarda no ombro pelas ruas de Umbuzeiros. Tanto que uma ocasião inventou Corpo de Bombeiros só para andar fardado por baixo de um capacete de quatro quilos. Mas a grande obra de Seabra foi o ensino. Quando o governo lançou a campanha de ensinar a ler e escrever, Seabra pegou uma resma de livros, meteu os calhamaços debaixo do braço e saiu desentocando alunas. O exemplo começava em casa. Não teve empregada que não saísse de nossa cozinha sabendo botar o preto no branco. Uma até exagerou, uma tal de Arlete não sei de quê. Foi posta no olho da rua porque deu de falar difícil e escrever cartas anônimas. Seabra não tinha mãos a medir em favor do ensino. Dava aulas até fora de hora. Por mais de uma vez, alta noite, fui encontrar Seabra no quarto da empregada, em fraldas de camisa, dormindo sobre os livros junto da aluna. De leve, como compete em tais ocasiões, eu acordava Seabra que deixava o sono dizendo: “A ave é do vovô”, “O vovô viu a ave”, “A uva é da viúva”. Um devotado! (CARVALHO, 2003, p. 56) A ironia socrática é usada a favor da busca da verdade, como dissemos, ela se opõe a uma comicidade mais grosseira e agressiva. Sabe-se que o período que contextualiza as obras de Cândido de Carvalho é caracterizado pela repressão, pela censura a tudo que fugia do âmbito permitido pelo regime vigente. Nesse momento, falar de questões relacionadas à política era praticamente impossível, haja vista o sistema autoritário vigente. Nesse contexto, José Cândido de Carvalho procura, através da ironia, revelar o que acontecia no meio social, mas assim como no período socrático a ironia nesse autor é uma ironia fina, sutil, que revela Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 248 ÍNDICE de forma velada, de modo a driblar a censura. No conto citado, podemos notar que essa ironia sutil se constitui por meio da inversão, a esposa do idealista, exprime sua visão (equivocada) das qualidades de seu marido. Se para ela Seabra era uma alma caridosa, patriota, devotada e idealista, para nós leitores, a imagem que temos dele difere totalmente das colocações da viúva, embora seja por meio da visão dela que chegamos a tal colocação. Sobre a ironia reveladora temos em Minois que o uso da ironia no período clássico simbolizava um refinamento por parte do orador, quem usava a ironia para fazer rir era considerado superior em relação aos outros, principalmente em relação aos antigos bufões, considerados portadores de um riso grotesco, baixo e agressivo. O riso durante o período clássico se dá como “um meio de afirmar a própria potência e questionar a de outrem” (MINOIS, 2003, p. 55), não podemos afirmar que o autor está afirmando sua própria potência, contudo podemos afirmar que ele através dessa narrativa está questionando a potência de outrem, quais sejam: as normas sociais, principalmente no que concerne aos valores morais impostos à sociedade. “Sua maneira de rir e caçoar é fina e tem qualquer coisa de nobre. Ele tem uma maravilhosa facilidade de manejar a ironia. Seus gracejos não são frios nem rebuscados como os dos falsos imitadores do estilo ático, mais vivos e opressivos. Ele dedica-se a eliminar as objeções que lhe fazem e torna-las ridículas, ampliando-as. (...) é pródigo em tiradas de espirito que sempre acertam o alvo.” (MINOIS, 2003, p. 54) Superficialmente, esta narrativa é a história de uma mulher traída por um esposo esperto que consegue enganá-la sem muito trabalho. Contudo, se olharmos mais profundamente, veremos que é possível ler esse texto também como uma crítica à moral, critica sutil, e que se faz presente por meio dos acontecimentos narrados. O exagero na descrição do então bondoso marido nos faz perceber a ingenuidade dessa esposa que está a todo o momento sendo enganada e não consegue perceber este fato, já o marido consegue se sair bem em todas as suas investidas e traições, já que a sua mulher não enxerga a realidade; por ser ela uma pessoa de índole irrepreensível, acredita ser assim também seu marido. Poderíamos perguntar por que Seabra não deixa sua esposa se o que ele quer na verdade é cair na gandaia? Uma resposta possível está ligada a manter as aparências. Nisto consiste a crítica à moral, mesmo numa situação de traição que, como vimos, não acontece uma única vez, mas se repete, é necessário manter as aparências. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 249 ÍNDICE Não encontramos nesse texto nenhuma fala que diretamente agrida ou denigra as instituições governamentais, no entanto, temos nesse a representação de várias dessas instituições, como o Corpo de Bombeiros, a polícia, a alusão ao MOBRAL, a figura de Rui Barbosa etc. Veja-se que as imagens das instituições são colocadas em segundo plano na narrativa, já que a informação que parece ser a principal se dirige a Seabra e suas traições. Vê-se que nosso autor consegue através da ironia ridicularizar as investidas do governo, ao dar voz a dona Rosália, que como podemos perceber tem seu discurso exagerado, no que concerne à ingenuidade, como vimos ela encontra mais de uma vez seu marido em “fraldas de camisa” no quarto das empregadas, e não percebe o que realmente está acontecendo, é risível ainda o fato de uma das empregadas alfabetizadas por nosso “idealista” ter tentado alertar sua patroa e ter sido demitida por ter ficado tão inteligente que passou a escrever cartas anônimas. A ironia é notada, sobretudo, nesse momento em que a viúva fala das cartas “anônimas” revelando a remetente, ou seja, mostrando não existir anonimato. Ao exprimir a visão de dona Rosália Seabra, uma visão que parece-nos “ingênua”, Cândido de Carvalho consegue acertar os seus alvos: a censura, as instituições sociais, os políticos e a própria ingenuidade dessa esposa. Nesse autor a ironia é usada a favor do que se acredita correto, através da inversão, encontrada no discurso das personagens, é mostrada a realidade. Segundo Lélia Parreira Duarte (2006) a ironia é uma figura de linguagem em que se diz o contrário do que se diz, assim, podemos entender a ironia como uma inversão, não uma inversão de papéis, mas uma inversão de cunho discursivo. Nota-se em Minois que a evolução do uso da ironia em detrimento do antigo uso da bufonaria se dá como um momento em que se privilegia o discurso. Em Cândido de Carvalho é possível observar que o discurso é totalmente importante em suas narrativas, a ironia reveladora tem a seu serviço o discurso das personagens, desde o narrador, que nesse texto tem uma pequena fala, até o discurso direto que dá voz a personagem manifestando seu ponto de vista. É possível perceber no próprio discurso da personagem que há algo de estranho em suas colocações, o que é visivelmente claro para nós leitores parece fugir do campo de visão da personagem. Tudo está claro e ao mesmo tempo escondido em seu discurso. Segundo Duarte isso ocorre graças ao uso da ironia: “a ironia congrega aqueles que a usam ou a percebem” (2006, p. 30), ainda segundo esta autora “a comunicação irônica obedece a um código particular: não se endereça ao Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 250 ÍNDICE objeto da ironia, mas a um terceiro elemento real ou supostamente presente ao ato da palavra irônica - o leitor”. (2006, p. 29) É ao leitor que a ironia revela. Como vimos a esposa é cega, inocente; o leitor é que consegue perceber por trás do discurso inocente da esposa, o marido traidor. Durante o período clássico o riso era visto como meio pelo qual seria possível ensinar as pessoas, o mesmo acontece nas narrativas de José Cândido de Carvalho. Em suas obras ele procura explicitar questões ligadas ao social, não mostrando como poderiam ser resolvidas essas questões, mas questionando a situação. Pode-se exemplificar a afirmativa partindo do princípio que no conto citado se vê a ironia tanto na esposa subserviente e submissa relacionada à imagem do marido traidor, quanto nas questões sociais da época. Atreladas às questões sociais aparecem os âmbitos do privado e do público. Como visto, existem nessa narrativa, mesmo que em segundo plano, a representação de instituições governamentais das quais o falecido fazia uso para conseguir se dar bem. Ele usava o público para privilegiar o privado. Todas as suas investidas para ajudar o crescimento social só serviam para que ele conseguisse alcançar seus objetivos privados: trair sua esposa. A representação dessa esposa cega, ingênua e a inocente, pode estar representando também a crítica à cegueira das representações sociais. Apesar disso não encontramos uma possível indicação de solução, ou seja, um meio pelo qual seria possível solucionar a situação, o que vimos é apenas a exposição da situação, a indagação, indagação esta que consegue pôr em xeque as nossas ideologias, posto que não seja possível afirmar que ele, o autor, está criticando mais o marido que a esposa, ou o contrário. O que existe é a ironia, ou a dupla ironia. Sobre isso Jankelevitch nos diz que “(...) la sabiduria socrática desconfia tanto del conocimiento de si mismo como del conocimiento del mundo, y llega al saber de su propia ignorancia”. (JANKELEVITCH, 1986, p. 17) 2 Riso pedagógico “fingindo ignorância ou ingenuidade, ele leva seus interlocutores a demolir, eles próprios, suas convicções e crenças, conduzindo-os a insolúveis contradições que os deixam suspensos sobre o abismo do absurdo, em lugar de ajuda-los a sair dessa situação. O riso é parte integrante dessa situação. O riso é parte integrante do processo; trata-se do riso pedagógico”. (MINOIS, 2003, p. 64) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 251 ÍNDICE O discurso de dona Rosália Seabra nos parece semelhante a essa imagem socrática, segundo a visão de Minois. Veja-se que o discurso dessa personagem tenta nos convencer da bondade de seu falecido marido e que acabam nos revelando suas traições e espertezas. É interessante notar que o riso em Cândido de Carvalho pode ser considerado um riso pedagógico, já que ensina através da ironia, como bem afirma Jolles a ironia ensina enquanto a sátira destrói. Nesse autor, podemos observar o uso do riso como instrumento de ensino assim como na idade clássica. As narrativas de Cândido de Carvalho trazem o riso pondo em xeque a autenticidade dos valores sociais. Este autor questiona ainda a rigidez de caráter encontrada em certas personagens. Dona Rosália estaria representando uma personagem rígida e esta rigidez está sendo ironizada através de sua própria fala, posto que seja por meio de seu discurso que conseguimos ver as traições de seu marido. Partindo dos princípios de Bergson, veremos que dona Rosália Seabra é uma personagem rígida, pois ela age segundo os padrões e normas sociais sem contudo questioná-los, ela é levada pela sociedade, não consegue adquirir certa maleabilidade necessária para a convivência social, por isso podemos afirmar que ela representa um não-exemplo. Na verdade a figura dessa viúva consiste um questionamento sobre os padrões sociais, Jankelevitch (1986) já afirmava: “La ironia socrática es una ironia interrogante”. (JANKELEVITCH, 1986, p. 12) Nesse sentido, podemos observar que a ironia nesse texto (conto), desempenha o papel pedagógico de questionar as crenças, sobretudo os normas sociais, é possível afirmar que “ninguém, entre nós, conhece coisa alguma, e não sabemos sequer se sabemos ou não sabemos”. (MINOIS, 2003, p. 62) A narrativa leva o leitor a questionar os padrões sociais revelando os falsos moralismos. Será que o padrão é mesmo o correto? E o diferente é mesmo o incorreto? Para Minois: “pode-se com razão duvidar. A grande lição do riso socrático é que nós acreditamos saber das coisas quando não sabemos nada. Preconceitos, convenções, erros, crenças infundadas: tudo isso é solúvel na ironia socrática. E o que resta? Apenas a ironia”. (MINOIS, 2003, p. 65) Considerações finais A partir da leitura do “miniconto” de um autor contemporâneo como José Cândido de Carvalho é possível observar que a ironia introduzida no período clássico por Sócrates com o intuito de revelar a verdade de forma mais velada e sutil, tem ainda hoje uma função Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 252 ÍNDICE muito próxima a que Sócrates atribuiu a ela, contudo, agora não só para revelar, ou buscar a verdade, mas, também como forma de driblar a censura vivida pelo autor no momento de criação. Dessa forma, podemos notar que a ironia é bastante presente em nossos dias. De uma forma ou outra, ela sempre se faz presente nas narrativas produzidas pelos autores da nossa literatura (seja ela local ou universal), ora revelando, ora sutilizando, que não é mais que revelar de forma discreta. Neste breve trabalho podemos notar que a presença do período clássico se faz ainda muito presente em nossos dias. Referências BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007; Coleção Trópicos. CARVALHO, José Cândido de, Porque Lulu Bergantim Não Atravessou O Rubicon. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; São Paulo: Alameda, 2006. FREUD, Sigmund. Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente. Rio de janeiro: Imago editora LTDA, 1906, volume VIII. JANKELEVITCH, Wladimir. La ironia. Espanha: Taurus Ediciones, S.A., 1986. JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Editora Cultrix LTDA, 1976. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). 7ª Edição. São Paulo. Editora Ática, 1994. MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Georges Minois; tradução Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 253 ÍNDICE A constituição da linguagem em A maçã no escuro Malane Apolonio da Silva (UNEB)∗ Pollyana Correia Lima (UNEB) Orientadora: Maria Aurinívea Sousa de Assis (Doutoranda UFBA) Introdução Este artigo se propõe a dialogar com aspectos que compõem a linguagem da obra A Maçã no Escuro de Clarice Lispector, escrita na década de 50 nos Estados Unidos e publicada pela primeira vez em 1961, pela editora Francisco Alves, embora tenha ficado pronta desde 1956. Neste período, Clarice Lispector dividiu-se entre a escrita do romance, dos contos que mais tarde apareceram no livro Laços de Família e das crônicas que escrevia para os jornais da época, entre eles o Jornal Correio da Manhã. A obra privilegia uma inovação na escrita da autora que até então em seus romances, criava personagens centrais femininos. Ultrapassando os limites do inexprimível, cria um protagonista masculino chamado Martim que desde o início da narrativa apresentase como um ser em constante conflito e em reconstituição de sua própria existência. Romance mais longo e bem estruturado da autora, o livro é composto por três partes: “Como se faz um Homem”, “O Nascimento do Herói” e “A Maçã no Escuro”, subdivididos em nove, onze e sete capítulos e segundo a própria Lispector, “Eu copiei onze vezes para saber o que eu estava querendo dizer. Porque eu queria... quero uma coisa, não sei o que é ainda bem certo. Copiando eu vou... vou me entendendo”. (LISPECTOR apud GOTLIB, 2009, p. 419) Clarice Lispector, a partir da linguagem monologal do protagonista, cria um mundo que emerge do crime que Martim acreditara ter cometido, enaltece em Martim o poder audacioso de sua linguagem através do narrador em terceira pessoa que esbanja adjetivos e substantivos visando configurar as sensações mais primitivas do existir, contemplando toda a complexidade e desafio de criar uma língua ímpar como ambicionara. ∗ Discentes do Curso de Letras, 6º semestre, Universidade do Estado da Bahia - Departamento de Ciências Humanas e Tecnológias - Campus XVI – Irecê - BA. Professora Orientadora: Doutorado em andamento em Literatura e Cultura. Universidade Federal da Bahia, UFBA, Brasil. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 254 ÍNDICE 1 A invocação do “eu” A primeira parte do livro intitulada “Como se faz um Homem” narra o conflito sobre um crime que abala as leis sociais, o personagem Martim que acredita ter assassinado sua esposa, foge em atitude de transgressão e medo: “Há duas semanas aquele homem viera para o hotel, encontrado no meio da noite quase sem surpresa, de tal modo a exaustão tornava tudo possível.” (LISPECTOR, 1998, p. 10) Seu desejo inicial era encontrar o mar, símbolo de purificação, redenção frente ao pecado cometido, mas por acaso, foi parar em um hotel, onde desconfiado dos moradores, após recuperar suas forças, foge sem destino no meio da noite, como a diz a citação: Aquele homem andou léguas deixando o casarão cada vez mais para trás. Procurou andar em linha reta e às vezes se imobilizava um segundo agarrando com cautela o ar. Como andava nas trevas não poderia sequer adivinhar em que direção deixara o hotel. O que o guiava no escuro era apenas a própria intenção de andar em linha reta. (LISPECTOR, 1998, p. 14) A noite clamava o desconhecido e Martim era parte integrante do ritual, parecia esperar que o silêncio o julgasse, estava nu e submisso diante de si, experimentando não utilizar a visão, pois a escuridão era tamanha diante da potencialidade de enxergar. Iniciouse o primeiro contato com a sua consciência, seu primeiro conflito, lutando contra seus sentidos e experimentando a delicadeza da escuridão, momento de confabulações e devaneios, como afirma a citação: Já que não precisava de olhos, experimentou andar de olhos fechados, pois numa precaução generalizada ele economizava o que podia. De olhos cerrados pareceu-lhe que rodava em torno de si próprio numa tortura não de todo desagradável. (LISPECTOR, 1998, p. 14) Em atitude de cansaço, ele se debruçou sobre a terra que o deixava seguro como o primeiro filho a desfrutar do leito materno. Senti-la sem vê-la tornou-se para ele o refúgio de um foragido. Fazendo do tato, seu guia fiel e mensageiro do inexplicável, toda a inquietação de seu corpo pedia apoio, e meditava em busca da compreensão de si. O “eu” invocado por Martim, levou-o ao exílio do mundo mascarado, e o fez cair diante do “mundo que tão perfeito apodrecia”, transbordando sensações, a partir de um cotidiano inicialmente desanimador. A noite que Martim vivenciou desabrochou um silêncio que de tão grande enalteceu o silêncio de si próprio, toda a escuridão revalidava a necessidade de tocar no seu próprio mistério, pois “a essa altura já se havia habituado à Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 255 ÍNDICE música estranha que de noite se ouve e que é feita da possibilidade de alguma coisa piar e da fricção delicada do silêncio contra o silêncio”. (LISPECTOR, 1998, p 15) Benedito Nunes, em seu livro O drama da linguagem, considera ser esta atitude de Martim uma fuga dupla, pois o protagonista quebra um vínculo social que o sufocava, excluindo seu passado e o crime que cometera, na tentativa de renascer para outro mundo. Agora não sentia mais medo da transgressão cometida, e sim do se reconhecer humano: “Porque desistir de nossa animalidade é um sacrifício”. (LISPECTOR, 1999, p. 127) Sua presença se fazia superior, pois conviver consigo mesmo, harmonizando e saudando a solidão com seu existir, era doloroso, sentia medo do mundo, porém sabia da necessidade desse contato maior com o universo mineral, buscando nas suas raízes o seu desejo mais primitivo, a busca de si. Ao despedir-se da noite secular, Martim recebe o esplêndido nascer do dia e uma nova cegueira o arrebatou, tanto tempo no escuro de si o fez estranhar a claridade que lhe era oferecida. Oco, de pé, percebe a unicidade que seu ato lhe concedera, ele era o seu próprio início meio e fim, tinha um mundo constituído de nada ao seu redor e qualquer direção a ser tomada lhe daria orgulho. Para o autor Afrânio Coutinho, em A Literatura no Brasil, “Martim procurara estabelecer um abismo entre a vida passada e os dias a construir”. (COUTINHO, 2001, p. 543) Acreditando na possibilidade de ter assassinado sua mulher que supostamente o traíra, Martim utiliza-se desse ato para se penitenciar diante da atitude de transgressão, morrendo simbolicamente e se despedindo da sociedade. Iniciando sua trajetória de conhecimentos, o nascer de novo na obra clariceana, é concebida na possibilidade de outra vida a Martim, pois ele decide matar o eu existente, “o Martim que apenas imitava”, e a partir de um isolamento de reflexão interior esforça para se reconstruir. Assim como Nicodemos, e com tantas outras personagens bíblicas, Martim precisa nascer de novo, simbolicamente deve-se despir da capa do velho homem para tornase nova criatura. Para Nádia Battella Gotlib, a primeira parte do romance, “Narra justamente a primeira fase de uma ressurreição, quando o homem passa a ter consciência do seu ato – o crime como necessária desobediência, quando rejeita a imitação – o agir segundo um modelo – e se arrisca, sem nenhuma garantia.” (GOTLIB, 2009, p. 419) A percepção desta nova vida Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 256 ÍNDICE reflete-se em um novo conflito: o que fazer do existir? A liberdade é muitas vezes uma parcela grande e problemática quando se é iniciante no jogo do tornar-se humano. Ao avistar um passarinho na imensidão desértica, Martim o agarrou, e lutou para compreender porque se mata a quem se ama, o que seria feito a partir de então? Apertou o passarinho preto na mão, e o matou, outro ato a ser esquecido. Matou a liberdade de alguém em troca da sua, e não sabia o que fazer dela, pela primeira vez sentira o inferno, todo seu. Martim era essencialmente uma maçã no escuro, que quando tocada poderia desapontar alguém, ele figura a armadilha de ser homem social, constituído de bem e mal, de luzes e escuridão, agora lutava contra o seu lado obscuro, na busca de humanizar-se, como cita Clarice Lispector em seu livro de crônicas A descoberta do mundo, acerca da temática do renascimento espiritual: “Em menos de dois segundos pode-se viver uma vida e uma morte e uma vida de novo.” (LISPECTOR, 1999, p. 126) Ao descrever o conflito experimentado por Martim, Lispector cria um ambiente de mudez e dor e é também por meio do silêncio que o protagonista inicia o processo de reconstrução do mundo. Dessa maneira, o abandono da linguagem vivenciado por Martim faz com que o personagem enfrente a força e o medo da palavra, pois a linguagem, muitas vezes, mostra-se radical e insuficiente frente a sensações, vindo a se completar com o silêncio. Martim decide trocar a palavra crime por ato, isso o deixava mais seguro, queria ser novo em todos os sentidos e continuar a falar como antes não lhe permitia tal travessia. Ele sabia, desde quando fizera o sermão às pedras, da conseqüência de seu crime, e a busca de um novo mundo negava seu passado pecaminoso, ele se sentia um rato, truculento diante do seu passado, e a cada instante esse corpo crescia a ponto de renegar a dor do outro, único, abstrato, Martim fora de encontro ao purgatório de si. Em sua caminhada, ao avistar um casarão rodeado por uma encosta de “atmosfera de júbilo [...] Era um lugar pobre e pretensioso” (LISPECTOR, 1998, p. 43), Martim percebe a beleza e a atração do lugar, sentindo o mundo em sua pulsação. A experiência assemelha-se a saída do útero materno e a respiração do ar da vida, toda a mudez era signo de representação da magnitude da natureza que naquele instante era exaltada. Dessa Forma, o protagonista Martim sentira em carne viva a dor da morte e a latência do nascer, assim como cita Joseph Campbell em seu livro intitulado O herói de mil faces afirma: “Tendo obtido essa vitória preliminar antes do pôr-do-sol, o conquistador Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 257 ÍNDICE obteve, na primeira vigília noturna, o conhecimento de suas existências precedentes; na segunda vigília, conheceu o divino olho da visão onisciente.” (CAMPBELL, 1997, p. 19) A perspectiva mítica da obra permite analisar a palavra maçã, que culturalmente é relacionada ao pecado original bíblico, dialogando com o paradoxo bem e mal. A negação ao “paraíso” dá-se em Martim por um ato transgressor. A sua chegada e permanência no sítio de Vitória possui uma dimensão simbólica de representação do purgatório, como se este aguardasse ali a sua sentença, e a cada instante exigia de si próprio o pagamento desta penitência, sentia o gosto e o prazer, o horror e o temor de pertencer ao mundo e de se humanizar. Assim como Adão do livro Gênesis, que ao cometer o seu crime perdera as regalias do paraíso, passando a conhecer o mal, a dor e a morte, Martim ao quebrar as regras sociais, perde o seu perfil de homem de bem e “[...] retorna ao mundo da fome e da dor, onde os sentidos, os gestos e o pensamento precisam ser de novo usados”. (COUTINHO, 2001, p. 547) Para se resguardar ali, Martim respeitara as regras de Vitória, proprietária do sítio, que figurando a autoridade de um grande senhor, fizera de cada momento do protagonista uma saga. Inicialmente, em uma de suas tarefas do dia, fora induzido a cuidar do terreno terciário, ele que se apresentara como engenheiro, e se considerara leigo de plantas. Abstendo-se do uso da linguagem, passando a grunhir como um animal utilizando a consciência para renovar seus sentidos, o universo vegetal proporcionou um silêncio que o revigorou. Toda a quietude das plantas, o ensinava a estar em vigília, buscando alimento em si próprio: “O que estava acontecendo era um desses períodos dos quais, depois que passam, se diz: nada aconteceu.”(LISPECTOR, 1998, p. 73) Outra tarefa, o direcionou a um imenso curral, e as vacas o fizeram penar, o contato com a animalidade fez surgir naquele homem abstrato as formas de um bicho grande, as vacas davam-lhe repúdio, e Martim sentindo a ferocidade, em júbilo, tornou-se parte do curral, como afirma a citação: “Enfim pôde olhá-lo como uma vaca o veria.”(LISPECTOR, 1998, p. 85) Por um momento, a vinda de Martim ao sítio assemelhava-se a um ritual, tudo seria organizado por ele, para celebrar uma apoteose, todos aguardavam a chegada da chuva, então o tempo era curto. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 258 ÍNDICE 2 A constituição da linguagem A permanência de Martim na fazenda, narrada no segundo capítulo intitulado “O Nascimento do Herói”, expressa a consequência de um erro que se tornou no chamado a uma aventura, e ele comungou de todas as circunstâncias que lhe eram oferecidas nesse processo de purificação da alma. A redenção, diante de todo o seu itinerário, trouxe para Martim a energia vital que antes lhe abandonara, vindo das entranhas de si, ele agora necessitava falar: “E pela primeira vez desde que fugira tinha necessidade de se comunicar.” (LISPECTOR, 1998, p. 107) A palavra dita é um ato de liberdade que permite o julgamento do outro, ao excluí-la da nossa existência, percebe-se a potencialização da imaginação. O ensaio Línguas de Fogo, de Claire Varin, discorre sobre o valor da palavra em Clarice Lispector “Numa linguagem real, numa linguagem que é fundo-forma, a palavra é na verdade um ideograma”. (VARIN, 2002, p. 30) Segundo Gabriela Lírio em artigo publicado na revista Unisinios, a missão do herói dá-se em Martim pelo desejo de “encontrar o mistério da palavra”. Nesse jogo “da palavra ao silêncio e do silêncio à palavra”, o protagonista se reconstrói como ser, porém a sua libertação efetua-se em uma “língua abstrata, na palavra sem nome.” Seu julgamento havia chegado ao fim e sua liberdade era posta diante de seus olhos, toda potencialização de estar “por conta própria” fez Martim perceber a grandiosidade de seu ato, pois tudo fora desconstruído com a esperança do recomeço. Ele poderia falhar naquele mosaico de possibilidades, mais ele não estava voltando atrás, estava juntando as peças espalhadas no labirinto de si no qual poderia se perder, desistir. Porém na busca de ordenar tamanha angústia frente ao mundo virgem, vê-se diante de um lápis e uma folha em branco, fracassa ao tentar transpor para o papel as suas pretensões, a intenção não se transforma em ação, o ato aparentemente singelo machuca, produz feridas, e soa como uma proibição. Martim sente-se como “um jovem analfabeto, ou como um velho que não aprendeu a ler”, representando a distância que o separa da palavra. “Em desespero ele apela para Deus, porém devido à falta de hábito e de crença, decide não tocar na rosa proibida do jardim” (LISPECTOR, 1998, p. 171), pois escrever sem dúvida seria um ato divinizador do ser humano. A tortura de enxergar dentro do “eu”, arriscar-se a compreender, meditando e inevitavelmente encontrando-se com o Deus, concebeu em Martim o heroísmo de si próprio, ele reinava em seu pedestal. Na obra Esboço para um possível retrato, de Olga Borelli, vê-se Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 259 ÍNDICE como, para Clarice Lispector: “Deus significa o alcance de si-mesmo para o sem matéria. Deus significa o encontro de si-mesmo com o próprio mistério.” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 37) Estava pronto. Aceitar o chamado a aventura foi seu desterro, e semear todo itinerário, desde os conflitos com o universo das coisas ao convívio consigo, proporcionou a Martim aceitar o outro e ver-se no outro, assim como aconteceu no seu contato com Ermelinda, a mulher que na fazenda estivera em seus braços e que sentia medo da morte, ou Vitória que fugia da exuberância da vida. Por esta razão, a frase que escreve “Coisas que preciso fazer” e logo “Coisas que tentarei saber: numero 1” o faz chegar a ponta da encruzilhada pois o que ele queria se reduzira em “aquilo”, como diz no seu item seguinte: “2: Como lidar com “aquilo”. Martim abarcara o mundo com essas palavras pois “aquilo” é inexplicavelmente grande, distante e desconhecido. 3 O retorno ao “eu” social A terceira parte, “A maçã no escuro”, diz respeito à última fase do itinerário de Martim no qual sua odisséia simbólica chega ao fim culminando na sua conversão espiritual. O seu espírito que antes estava posto em um labirinto alcança a saída e, sentindo-se pronto para retornar, tem seu primeiro contato com a sua verdade, desaguando em eloquência em meio ao bosque escuro onde não se vê, apenas se sente, tudo era escuridão e ele se sente uno. Sabendo que Vitória já o teria denunciado, Martim procura refúgio e, a lembrança de seu crime, Martim teve medo: Face a face com a palavra crime, recomeçou a tremer e a sentir frio, sem conseguir desmanchar o riso que ressurgira. E o criminoso teve tanto medo que pela primeira vez compreendeu em todo o seu inexprimível sentido o que significava a salvação. (LISPECTOR, 1998, p. 195) O medo pareceu instituir uma harmonia em Martim que, compreendeu o círculo percorrido como sendo perfeito, embora tenha sido percorrido por caminhos tortuoso, agora ele “se encontrava, no mesmo ponto de partida que era o próprio ponto final” (LISPECTOR, 1998, p. 195). A dor e o medo evidenciaram a humanização daquele homem que saia do estágio de criatura para o lugar de filho de Deus em espera da salvação, como afirma a citação: E com o coração ferido de surpresa e alegria, pareceu-lhe por um instante que acabara de encontrar a palavra. Seria à procura dessa palavra que ele Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 260 ÍNDICE saíra de casa? Ou de novo seriam apenas os restos de uma palavra antiga? Salvação --- que palavra estranha e inventada, e o escuro o rodeava. (LISPECTOR, 1998 p, 195) Foi nesse momento que de repente ele confessou a si mesmo seu crime: “eu matei, eu matei”, finalmente se encontrara pronto para tal admissão. Considerando sua trajetória como um sacrifício cujo sofrimento que lhe traria a saída para sua purificação. Ele, de início, não se deixou ser julgado pelas autoridades seculares, mas fez de seu itinerário uma purificação para sua alma. Embebido com a insônia, oriunda do bosque, Martim volta à fazenda e recebe ordens de Vitória para cortar a macieira, árvore que produz o fruto que simboliza o bem e o mal. Era como se Vitória quisesse arrancar Martim de sua vida, e ela o fez de forma lenta e dolorosa. Para ela, Martim ao mesmo tempo em que lhe fizera se sentir bem, pois ao estar perto de Martim ela percebia a “mulher” que existia dentro dela, lhe fizera também se sentir insegura, perdendo o controle de suas emoções, do seu eu interior. Através dele, ela se revelara. Enquanto Martim hesitava cortar a macieira, Vitória assistia a tudo. A macieira era a raiz de Martim em latência, cravada no sei da terra, se alimentando do que essencialmente faz o mundo vigorar. (LISPECTOR, 1997, p. 244) Foi então que intuiu que estava na hora de ser preso e julgado, pois “ele já fizera uma lenda de si próprio”. O contato posterior com o fogo embebia sua sede de oração, as chamas que se faziam, enaltecia o desejo da prece, ele se amava, herói de si mesmo, como afirma a citação: Em pé cheio de si, com um ar misterioso, magnânimo, bestial. Lidar com o fogo fora uma tarefa de homem, e ele estava orgulhoso e calmo. Tudo estava redondo e realizado que até um pouco de digna tristeza havia em Martim. E a promessa que nos foi feita --- a promessa estava ali. Ele a sentia ali --- seria só estender a mão enfim queimada no exercício de sua função de homem. (LISPECTOR, 1998 p, 260) Chegado o momento da prisão de Martim, ele estava grande, potencialmente grande, tanto que os investigadores assemelhavam-se a anões que guardavam o grande desfecho. Martim soube no escuro reconhecer o valor do inicio, meio e fim, esteve nesta missão, entre o bem e mal, destruir-se para humanizar-se, e por um instante, a notícia dos investigadores o fez surpreender, sua mulher não morrera e escondera do filho sua tentativa de assassinato. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 261 ÍNDICE Ele mergulhou na imensidão do amor, se amava e amava o mundo, descobriu que o universo interno que carregou dentro de si, agora, poderia expor sem ferimentos, pois compreendeu o nascer, a dor, o amor, a falta e a morte em que todo humano é submetido. Agora sua prisão seria mais um degrau, assim como sempre poderá lutar pelo que se deseja, pois a liberdade atrelada à experiência do viver esconde o mistério da vida. A palavra que aprendeu a utilizar e a desconfiar seria sua nova missão social, suas angústias seriam escritas em um livro. Fascinado, ele festejaria a glória, adicionando a si o que já existe, em busca do que ainda não tem nome. Conclusões Percebem-se, em A Maçã no Escuro, duas grandes questões, o mítico e a linguagem, que apresentam muitos aspectos ligados a certos tópicos do existencialismo, pois se vê no personagem Martim o interesse apaixonado pela existência: vida, morte, liberdade, condenação, salvação, bem e mal que o levam a uma capacidade de inquietude e reflexão que constituem traços necessários na busca da consciência de si, do outro e do mundo. Portanto, nesse buscar algo a mais, é notável o impulso ao dizer, ou seja, a relação entre o sujeito e a realidade exige o dizer expressivo que expõe os personagens ao fracasso e à reconstituição de si. Viver exige de mais e requer riscos, contudo, o homem precisa buscar compreender a si e ao outro, o mundo que existe a seu redor e saber que, querendo ou não, está sendo constituído pelos seus atos e ressignificado pela linguagem. Referências BÍBLIA SAGRADA. Gêneses. São Paulo: Edição Loyola, 2001. BORELLI, Olga. Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento LTDA, 1997. COUTINHO, Afrânio dos Santos. A Literatura no Brasil. São Paulo: Global, 2001. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: Uma vida que se conta. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 262 ÍNDICE LÍRIO, Gabriela. Uma conversa com Clarice Lispector. IHU- On-Line: revista do Instituto Humanista Unisinos. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=228. Acesso em 10 de abril de 2012. LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. São Paulo: Circulo do livro, 1998. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. NUNES, Benedito. O drama da linguagem. São Paulo: Ática, 1995. VARIN, Claire. Línguas de Fogo: ensaio sobre Clarice Lispector. São Paulo: Limiar, 2002. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 263 ÍNDICE INTERLOCUÇÕES COM A ANTIGUIDADE Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 264 ÍNDICE Circuito Cine-Mito: por uma investigação das apropriações mitológicas pela sétima arte Luciene Lages∗ “Vejo as dez musas (sim, há uma décima, nascida neste século, a Musa Cinemática) fugirem espaventadas com o passível renascimento de todos os poetas". Mário de Andrade Tomamos de empréstimo a citação de Mário de Andrade. Visionário, o escritor evidenciou o lugar de destaque que passaria a ocupar a arte cinematográfica, antevendo, inclusive, as relações dialógicas que o cinema desenvolveria com a literatura. Nesse sentido, o projeto Circuito Cine-Mito, organizado pelo Grupo NALPE - Núcleo de Antiguidade, Literatura e Performance - é resultado de pesquisas realizadas com os alunos da disciplina Mitologia na Cultura Clássica e visou, num primeiro momento, promover uma interlocução entre alunos e professores através de um ciclo de debates resultantes de sessões comentadas de filmografia que tem como pano de fundo a temática mitológica. Tal projeto privilegiou o trânsito entre saberes de diferentes áreas que puderam contribuir para a compreensão da apropriação de mitos clássicos pelo mundo contemporâneo. O objetivo inicial foi motivar os alunos, não só do curso de Letras Clássicas, mas de todos os demais cursos, a perceber a influência da mitologia clássica em nosso tempo. A utilização de um recurso contemporâneo, o vídeo, e das especificidades da arte cinematográfica buscou também aproximar os discentes de conceitos e formas de representação simbólicas do mundo antigo. No estágio atual, o projeto inicia seu terceiro ano e está focado na formação de estudantes para atuação em escolas públicas da periferia de Salvador, organizando sessões e debates, de forma a contribuir para a inserção dos temas do mundo antigo na formação básica da comunidade externa. Do corpus selecionado, destacamos, para efeito de demonstração o filme Tiresia de Bertrand Bonello. ∗ Universidade Federal da Bahia. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 265 ÍNDICE 1 O cinema e a mitologia Na era da globalização, a TV, o vídeo, a internet, enfim, a tela, tornou-se um modo impositivo de se ler o mundo. Tal imposição não será tratada aqui como uma crítica às escolhas que fazemos hoje como espectadores e, é claro, àquelas escolhas que também não fazemos. Defendemos apenas a constatação de que continuamos sendo seduzidos pela imagem e motivados também pela premissa do antigo e do contínuo diálogo da literatura com outras artes. No que diz respeito à narrativa cinematográfica, a abordagem de mitos gregos consolidou-se como um dos temas mais privilegiados. Desde os primórdios do que hoje conhecemos como cinema, registram-se variadas produções que tematizam mitos greco-latinos. A primeira de que se tem conhecimento é um curta preto e branco de apenas 28 segundos, do norte-americano Thomas Edson, intitulado Eros e Psique, exibido em 1897. Nessa época, Edson já era conhecido como o inventor do cinetógrafo, criado em 1888, uma máquina de filmar que registrava imagens animadas como danças e teatro e que propiciou a Thomas Edson o acúmulo de uma verdadeira fortuna, visto que as pessoas tinham que colocar uma moeda para assistir a apresentação. Ainda na era do cinema mudo, é digno de nota o trabalho de um dos mais importantes pioneiros do cinema e dos efeitos especiais cinematográficos, o francês George Méliès, que dirigiu e atuou em muitos curtas-metragens em PB inspirados pela mitologia grega, tais como Pigmalião e Galatéia (1898); Netuno e Anfitrite (1899); O Tonel das Danaides (1900), As Três Bacantes (1900); O trovão de Júpiter (1903); A Casa das Musas (1903), A Profetiza de Tebas (1908); e Galatéia (1910)1. A partir de 1960, proliferaram versões cinematográficas das tragédias gregas, inúmeras Electras, Medéias, Antígonas, Fedras e Efigênias foram inspiração para cineastas de várias partes do mundo. Se nos concentrarmos apenas nas duas últimas décadas do último século, é possível elencar mais de vinte produções cinematográficas que se inspiraram na mitologia grega. Algumas delas foram mega-produções de excelência tecnológica com efeitos especiais grandiosos e roteiros questionáveis como o filme Tróia, do diretor americano 1 Veja-se o artigo de Jiménez Lara: El mito de Prometeo: pervivencia e influencia em el cine em que autor apresenta uma panorâmica cuidadosa acerca da mitologia greco-romana e o cinema, elencando vários filmes e ciclos eleitos pelos cineastas desde o nascimento do cinema até os nossos dias. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 266 ÍNDICE Wolfgang Petersen, exibido em 2004, em que a infidelidade à narrativa mítica tradicional causou verdadeira indigestão a alguns estudiosos do tema. Tivemos também produções como 300, de Zack Snyder, em 2006, que teve como fonte de inspiração não a narrativa de Heródoto sobre as guerras médicas, mas a adaptação para os quadrinhos feita, anteriormente, por Frank Miller. Ainda é necessário lembrar das minisséries para TV que foram transpostas para a grande tela do cinema, como Odisséia de Andrei Konchalovsky, de 1997, e Jasão e Os Argonautas de Nick Willing, de 2000. Muitas dessas produções são nomeadas como versões de um mito, mas se entendermos que as versões de um mito é o próprio mito, percebemos a necessidade de nos dedicarmos a uma investigação que leve em conta não só como o cinema se apropria dos mitos, mas também de que modo os perpetua ou como se apropria e os recria em pleno século XXI. Talvez pudéssemos compartilhar com a idéia de Boyer2 sobre a narrativa mítica, de que ela representa um conteúdo do saber sem autor e com um leitor que não é sujeito da sua própria leitura. O leitor do mito seria, segundo este autor, muito mais objeto do que sujeito de seu enunciado. A narrativa mítica só se poderia transcrever ao ser o discurso de um outro. E é também esse contínuo exercício de recriação que mantém vivo o mito, mesmo que alguns casos suscitem o velho ditado: “Falem mal, mas falem de mim!” 2 O mito de Tirésias Tirésias era filho do mortal Éveres e da ninfa Cariclo. A explicação para a sua cegueira e seu dom profético, no entanto, se apresenta em duas versões. Uma, que afirma que o jovem Tirésias foi cegado por Palas Atena por tê-la visto, sem querer, banhando-se nua. E é a própria deusa Atena que lhe compensa com o dom profético a falta da visão. Em outra versão, encontramos o jovem Tirésias passeando pelo monte Citerão. Em dado momento, se depara com duas serpentes copulando, tenta separá-las, ferindo a fêmea e, por isso, imediatamente, é transformado e condenado a viver sob o corpo de mulher durante sete anos. Depois desse período, depara-se novamente com a mesma cena, intervindo do mesmo modo. Tirésias mata dessa vez o espécime macho e retorna ao seu antigo sexo. Como mortal, 2 BOYER, 1997, p.83. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 267 ÍNDICE o jovem teve o privilégio ou a desgraça de viver sob os dois sexos e é por essa causa que Zeus e Hera o convidam a resolver certa querela: afinal, é o homem ou a mulher que desfrutam de maior prazer nas delícias do sexo? Tirésias afirma que se se dividisse as delícias do amor em dez partes, ao homem caberia apenas uma, enquanto à mulher nove partes desse gozo. Hera, encolerizada por tal revelação vir à tona, cega o jovem, e Zeus decide conceder-lhe o dom profético e uma vida bem longa como compensação pela cegueira que lhe foi imputada3. Nas duas versões, a cegueira de Tirésias é consequência de um capricho das deusas, e seu dom profético, uma compensação pela ação impensada de Atena e da furiosa Hera. É fato que o mito de Tirésias se cristalizou por meio desse paradoxo: a cegueira e a vidência, aquele que é cego vê mais que os outros. Parece-nos que podemos mapear dois momentos significativos que contribuíram para a construção do mito de Tirésias. O primeiro encontra-se no canto XI da Odisséia, em que Odisseu, a conselho de Circe, vai até ao Hades para consultar Tirésias sobre a maneira de voltar a sua terra Ítaca. Tal episódio realça a característica profética de Tirésias, que mesmo depois de morto não perde tal habilidade, apesar de na Odisséia não haver referência à cegueira do adivinho. O segundo momento célebre do mito se encontra na tragédia de Sófocles, em que a figura do adivinho cego ocupa lugar de destaque nas peças Édipo-Rei e Antígona e que moldaram seu estatuto de detentor do saber. Sófocles, ao contrário de Homero, explora profundamente essa faceta no Édipo-Rei, nas palavras do filho de Jocasta ouvimos: Tirésias, tu que penetras tudo, o dito e o silenciado, o celeste e o rasteiro, quanto à cidade, ainda que não vejas, percebes a doença que a molesta. Contra ela, só em ti, Senhor, procuramos salvação e proteção. (vv. 300-4, tradução de Donaldo Shüller) Tirésias é reconhecido como aquele que sabe, e o próprio Tirésias afirmará mais adiante (v. 356): “Cultivo a verdade poderosa!" 3 Cf. GRIMAL. 1997, p.450-1. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 268 ÍNDICE 3 Tiresia de Bertrand Bonello O filme Tiresia, sob direção de Bertrand Bonello, foi lançado em 2003 e não encontrou número significativo de espectadores (figura 01). Na França, foi visto por aproximadamente 30 mil espectadores na época do lançamento e no Festival de Cannes (2003) recebeu duras críticas. O diretor Bertrand Bonello parece privilegiar a temática da sexualidade, característica já evidenciada em seu filme anterior O pornógrafo (2001). Em entrevista à Revista Continente, questionado se há um desejo pessoal seu de mapear a sexualidade como imagem de cinema, responde: Eu não penso muito sobre isso, pelo menos, não de maneira racional. Estive recentemente num debate sobre “a sexualidade filmada”, participei, falei, respondi a perguntas, mas, de qualquer forma, sempre fico surpreendido comigo mesmo, de me ver em situações desse tipo. Não é o que me interessa. Pornografia ou transexualidade são apenas pontos de partida. Em O Pornógrafo, a pornografia era o que menos me interessava. Em Tiresia, a transexualidade é apenas “um personagem”, e não o tema que carrega o filme. Leio muitos artigos sobre “sexo no cinema”, concordo que meus filmes sejam encaixados em análises do tipo, mas não as considero preocupações centrais deles. No filme, Tirésias, representado pela brasileira Clara Choveaux (figura 02), é um transexual brasileiro que ganha a vida se prostituindo no Bois de Boulogne, famoso ponto de prostituição em Paris. Terranova, representado pelo ator Laurent Lucas, é um personagem enigmático, um homem solitário e reservado, que possui um jardim sem flores habitado por um porquinho da Índia. A sequência do Bois de Boulogne apresenta, sob as sombras da noite e das árvores, Tirésias, que canta “Terezinha de Jesus”, enquanto prostitutas e travestis se oferecem seminus a possíveis clientes. Terranova se encanta por Tirésias e o leva para casa. Aparentemente, o que seria um programa comum torna-se uma estadia permanente, já que Terranova mantém Tirésias em cativeiro. Com o passar das semanas, sem tomar devidamente os hormônios, Tirésias, pouco a pouco, vai recuperando suas feições masculinas (figura 03). Frustrado com a transformação, Terranova se vê dividido entre libertar seu prisioneiro e ser denunciado pelo mesmo, vendo como saída a possibilidade de poupar a vida de Tirésias, mas deixá-lo cego. Após cegá-lo (figura 04), Tirésias é abandonado em uma estrada e abrigado por Ana, uma jovem adolescente muda. Ana passa a cuidar de Tirésias, que assume totalmente as formas masculinas, representado agora pelo ator Thiago Teles (figura 05). Assim como no mito, após cegueira, passa a ter dons divinatórios, sendo Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 269 ÍNDICE consultado e querido pela população da região. A partir daí, o filme apresenta uma revelação curiosa: Terranova é um padre da igreja ortodoxa grega e é atraído novamente para Tirésias por causa das revelações que faz aos mesmos fiéis de sua Igreja. Entre uma e outra visita, o padre Terranova discute com Tirésias acerca da vida, da morte e da fé. A atração física se perdeu, mas o reencontro parece exercer em Terranova uma certa admiração pelo guia espiritual, e uma certa frustração também, visto que o padre percebe que os fiéis de sua igreja confiam mais suas vidas e suas intimidades ao adivinho cego. Se no mito grego, Tirésias recebe de Zeus uma longevidade que lhe permite viver por mais gerações, no cinema, a Tirésias será negado a velhice, pois o jovem morre atropelado pelo seu sequestrador. A maioria dos críticos acusa o diretor de apresentar um roteiro demasiadamente fragmentado, apesar de elogiarem a fotografia e a atuação dos atores brasileiros que compartilham o papel do protagonista. De qualquer modo, o filme de Bonello reatualiza o mito, explora a dualidade do homem que busca aparentar a tentativa de ser um e outro, da cegueira e da vidência, do sagrado e do profano, de uma sociedade em que tudo parece ser permitido, mas com escolhas que muitas vezes se traduzem em “barbarismos inimagináveis”.4 4 Veja-se o artigo O mito de Tirésias revisitado: Ética & estética na ótica do cinema de Latuf Isaias Mucci, que se que explora as aproximações e distâncias entre ética e estética nessa adaptação contemporânea. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 270 ÍNDICE Figura 01 Figura 03 Figura 02 Figura04 Figura 05 Referências BONELLO, Bertrand. Tiresia. França, 2003. Produção Carole Scotta, 115 minutos. BOYER, Philippe. O mito no texto. In: ______A atualidade do mito. GENNIE Luccioni. São Paulo: Duas Cidades, 1977. GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. LARA, Paco Jiménez. El mito de Prometeo; pervivencia e influencia en el cine. Lic. Humanidades – Cultura Griega a través de los textos II. Disponível em: http://blogs.ua.es/santiago/files/2008/06/el-mito-de-prometeo-pervivencia-e-influenciaen-el-cine-paco-jimnez-laralic.pdf Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 271 ÍNDICE MENDONÇA FILHO, Kleber. Tiresia – O terceiro sexo. Revista Continente, 01/02/2004, ed. 38. Disponível em: http://www.revistacontinente.com.br/index.php/component/ content/article/64-cinema/1453.html MUCCI, Latuf Isaias. O mito de Tirésias revisitado: Ética & estética na ótica do cinema. Amaltea. Revista de mitocrítica, 2010, Vol 02 , pp. 199-207. SÓFOCLES. Édipo-Rei. Tradução e estudo crítico de Donaldo Schüler. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2004. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 272 ÍNDICE O mito de Ulisses na tradução da Odisseia de Theo Angelopoulos em Um olhar a cada dia Ricardo José Maciel Lemos∗ Introdução Esse trabalho pretende analisar a forma como Angelopoulos, em seu filme Um olhar a cada dia, aqui entendido como uma tradução intersemiótica da Odisseia, dialoga tanto com discursos existentes nos Bálcãs em relação à Europa, quanto com discursos existentes na Europa em relação aos Bálcãs, e como esse diálogo influencia a ressignificação do mito de Ulisses presente na tradução. Utilizaremos, em nossa análise, a “metodologia comparativa” proposta por Robert Stam e baseada na análise do tempo da narrativa de Genette, principalmente nas categorias: ordem, duração e frequência. Stam propõe um método de estudo de traduções de obras literárias para o cinema que investigue, entre outras coisas, eventuais mudanças em partes da obra e personagens, afinidades e diferenças temáticas e estilísticas existentes entre escritor e cineasta, e também o contexto em que foi feita a tradução. A esse trabalho interessa, sobretudo, a investigação do contexto discursivo, quando da realização do filme, e como Angelopoulos, ao dialogar com esse contexto, ressignifica o mito de Ulisses em Um olhar a cada dia. Bakhtin vê o próprio pensamento como diálogo entre o sujeito e o contexto do qual faz parte. (BAKHTIN, 1997) Para ele, a prosa, os enunciados e os discursos realizam-se apenas como respostas, e tanto um falante ao proferir enunciados como um escritor ao criar obras interagem com enunciados e obras anteriores. As obras devem, portanto, ser consideradas em relação ao espaço e ao tempo e estão em diálogo não apenas com o passado, mas também com o futuro, pois é a vida póstuma que as enriquece em sentido, em significado. Elas possuem então sentidos infinitos, mas apenas em contato com outros sentidos, sob a visão de outras culturas, em um novo contexto, outros ∗ Mestrando em Literatura e Cultura (Tradução intersemiótica) pela Universidade Federal da Bahia. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 273 ÍNDICE momentos da infinidade de seus sentidos são revelados. A cada novo contexto, as obras e os discursos renovam-se em significado. Assim, a autoria e a obra vistas como diálogo proporcionam uma outra forma de se ver o “autor” e o “original”. Logo, o dialogismo proporciona também uma diferente perspectiva em relação à tradução, pois sendo esta a observação de uma obra em um novo contexto, discursivo, temporal ou cultural, o que implica, para Bakhtin, renovação de sentido, pode ser vista não mais como apropriação de obra alheia ou traição dos propósitos de um autor, mas como diálogo, interação, encontro entre épocas, culturas, meios, como reveladora de sentidos, potencializadora de significados e intenções. Em 1995, Theo Angelopoulos filma Um olhar a cada dia (O olhar de Ulisses, em tradução literal), tradução da Odisseia em que o mito de Ulisses é transposto para a Península Balcânica, então mergulhada na Guerra dos Bálcãs (1992-1995). O filme ganhou, entre outros, o Grande Prêmio do Júri e o Prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes (1995). A Odisseia, poema épico de Homero colocado na forma escrita por volta do século VI a.C., é uma das obras fundadoras da literatura ocidental e narra o longo e dificultoso retorno (nóstos) de Ulisses para casa após o fim da guerra de Troia. O herói enfrenta a fúria de Posêidon, povos hostis, gigantes, ninfas, até enfim conseguir retornar a Ítaca após vinte anos. Dez anos durou a guerra e mais dez o retorno, sete anos passados apenas em Ogígia, a ilha de Calipso. Homero nos traz, em narrativa não linear, além das aventuras de Ulisses, também as dificuldades passadas por Penélope, sua esposa, e Telêmaco, seu filho, durante a sua ausência. O palácio está repleto de pretendentes que desejam o leito de Penélope e o governo de Ítaca. Eles se recusam a partir até que Penélope decida-se por um deles. Após intervenção de Zeus e com a ajuda da Deusa Atena, Ulisses consegue por fim retornar a Ítaca e retomar seu reino, seu nome e sua identidade. Em Um olhar a cada dia, Angelopoulos trata do retorno de A., cineasta grego exilado, à Grécia, após trinta e cinco anos, para o lançamento do seu mais recente filme. Porém seu verdadeiro objetivo é procurar os três rolos de um mítico filme dos irmãos Manakis, filme que seria o primeiro a ter sido realizado nos Bálcãs. Ele perdeu a capacidade de filmar e espera que esse primeiro olhar sobre o século que então se iniciava traga de volta a sua visão. Ele viaja em busca do filme perdido por toda a região dos Bálcãs em plena guerra da Bósnia. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 274 ÍNDICE A guerra encontrava-se em seu apogeu, quando do processo de feitura do filme. Em 1992 e 1993, se espalhava por toda a Bósnia, Sarajevo estava sitiada e toda a região, perplexa, já vivia o drama dos refugiados. (ALBERÓ, 2000) 1 Os Bálcãs exilados Para os Bálcãs, diz Iordanova (2001), a Europa é sinônimo de Democracia, liberdade de empreendimento e de expressão, de direitos humanos, individualismo, de Ocidente, de Civilização, de Mundo. Entendem ser a sua “europeinidade” uma profunda característica de sua essência que lhes foi arrancada e deve ser recuperada. Mas como recuperar essa característica e retornar à Europa? Talvez restaurando o ponto de saída. Seria então o fim da Segunda Grande Guerra ou o momento imediatamente anterior à invasão do Império Otomano? Diante da impossibilidade dessa restauração, recorre-se então a um projeto de restauração ideológica. Países então como Bulgária e Sérvia enfatizam suas histórias e a preservação de suas identidades culturais e nacionais durante cinco séculos de domínio Otomano. Com a contribuição de historiadores, mídia e políticos, a Europa é então retratada como sobre permanente ameaça de uma invasão islâmica, e os Bálcãs seriam a última barreira, o escudo. (Ibid) Para Iordanova, então, o medo de uma possível expansão do fundamentalismo islâmico tornou-se essencial para o nacionalismo nos Bálcãs. É ideia corrente que os Bálcãs só têm importância para a Europa quando vistos como caminho para uma possível invasão islâmica. 2 Bárbaros e Terceiro Mundo Por outro lado, desde o final da Guerra Fria, com o remapeamento da Europa, começa uma crescente associação dos Bálcãs tanto com os “bárbaros” Otomanos quanto com o Terceiro Mundo. Maria Todorova mostra bem esse processo em que os Bálcãs são mais e mais identificados com o primitivo, o bárbaro otomano. Ela mostra também como escritos de viajantes, desde o séc. XVII até hoje, vêm contribuindo de forma importante na construção dessa imagem. (TODOROVA, 2009) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 275 ÍNDICE A literatura sobre os Bálcãs comumente mostra um viajante europeu que atravessa ou explora a região, ou ainda passa por experiências controversas, relatando-as, depois, da segurança de seu lar. (IORDANOVA, 2001) Sempre a visão do estrangeiro. E no cinema tem sido assim também. Geralmente os filmes sobre a região retratam um protagonista ocidental que vai aos Bálcãs e encontra diferentes experiências. A normalidade do Ocidente frente à extravagância e ao colorido locais. Os personagens locais, diz Iordanova (2001, p. 60), parecem existir apenas quando necessários a um estrangeiro, em um eterno “esse is percipi” (ser é ser percebido) de Berkeley. Para Todorova, o discurso a respeito dos Bálcãs foi construído no período de dois séculos e cristalizado em torno das Guerras Balcânicas e da Primeira Guerra Mundial, em um processo, diz, muito bem descrito por Nietzsche (2007, p. 69, tradução nossa): A reputação, o nome e a aparência, as medidas e os pesos habituais de uma coisa, o modo como é vista, originalmente quase sempre errados e arbitrários, [...] tudo isso cresce a cada geração, simplesmente porque as pessoas acreditam nisso, até tornar-se gradualmente parte da coisa e seu próprio corpo. O que era no início aparência torna-se no fim, quase invariavelmente, essência e é eficaz enquanto tal. 3 Fronteiras, viagem e diálogo Lasse Thomassen (2004) pensa serem o nacionalismo, a xenofobia e o racismo, vistos na Guerra dos Bálcãs e ainda existentes na Europa, nostalgia por uma casa perdida. E Um olhar a cada dia seria uma resposta a isso. (THOMASSEN, 2004) Ele parte de uma declaração de Angelopoulos (apud LEVIEUX, 1998, tradução nossa): “Para mim, o exílio é interno, não é aquele que vem de fora que é o estrangeiro”. Ora, se não há estrangeiro que vem de fora, não há casa em relação à qual haveria o lado de fora. Então a distinção entre casa e estrangeiro é imprecisa, pois nem um nem outro possuem limites claros. Consequentemente, não se é estrangeiro em relação a uma casa ou local de origem, mas se é estrangeiro sempre. O estrangeiro está em nós como parte do que significa estar em casa. (THOMASSEN, 2004) Angelopoulos diz (apud HORTON, 1997, p. 106, tradução nossa): “Casa é onde estamos à vontade”. Sem constrangimento. Isso permite então, uma mudança na categoria “casa”. Para Thomassen (2004), então, viajamos não para chegar a casa, mas para criar Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 276 ÍNDICE diálogos com os estrangeiros, os outros, os de dentro e os de fora de nós. A viagem traz conhecimento ao criar diálogo com o outro. E as mudanças no mundo e o desaparecimento de velhas fronteiras fazem necessária a dúvida em relação à necessidade e à essencialidade das identidades e das próprias fronteiras. Para Thomassen (2004), a importância da viagem no filme de Angelopoulos está não em ser uma resposta à nostalgia mas em trazer a dúvida sobre a necessidade de uma casa. 4 O olhar de Ulisses Mas Um olhar a cada dia evidenciaria apenas a nostalgia de uma casa e a essencialidade das identidades? E como se livrar dessa nostalgia e dessa essencialidade? Através da dúvida? Angelopoulos, em seu filme, traz apenas a necessidade do perceber? A. chega finalmente a Sarajevo, encontra os rolos do filme perdido e consegue finalmente revelá-los. Estavam com o conservador da cinemateca. Eles assistem ao filme, mas não é mostrado o que assistem. Uma cena foi filmada e nela se vê Ulisses saindo do mar, como se chegando a Ítaca, e caminhando em direção à câmera, seus olhos aproximando-se. Angelopoulos desistiu de usar a cena e ela foi depois incluída em um filme do mesmo ano que homenageou os irmãos Lumière (Lumière e companhia). Após revelarem o filme, o conservador e sua família são mortos, durante um passeio, por tropas sérvias. Na última cena, após o assassínio, vemos A. chorando, enquanto assiste ao filme. Nenhuma imagem, tela em branco. Angelopulos parece nos convidar a participar da narrativa, preencher o branco da tela. A cena não incluída, Ulisses aproximando-se, parecia sugerir e desejar provocar um reconhecimento. As várias faces do mesmo Ulisses e Ulisses de muitas faces. Polýtropos Ulisses. Ulisses de muitas faces, maneiras, modos, costumes, sentimentos. Angelopoulos, ao deixá-la de fora, parece convidar a narrar. Como lembra Pomeroy (2011), diferentemente de outros filmes sobre a região, em Um olhar a cada dia, o olhar refletido na câmera é um olhar indígena. Um olhar a cada dia não seria antes então uma proposta? Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 277 ÍNDICE Um pouco adiante da parte citada por Todorova (2009), no mesmo texto, Nietzsche diz do modo de combater a essencialização da reputação, do nome, da aparência, do modo como é vista uma coisa, a essencialização de um discurso. Não basta perceber, pois apenas a criação é capaz de combater essa essencialização. É necessário, antes, diz Nietzsche (2007, p. 70, tradução minha), “criar novos nomes e avaliações, novas apresentações da verdade, a fim de criar novas ‘coisas’”. Discurso contra discurso. François Hartog, em Memória de Ulisses (2004), diz da importância de ser Ulisses também o narrador das suas aventuras, o portador do próprio mito. Angelopoulos parece, em seu filme, querer lembrar da importância de narrar, da importância de portar o próprio mito, o próprio discurso. Parece dizer que ser não é apenas ser percebido (esse est percipi), como queria Berkeley, ou perceber (esse est percipere), mas que ser é, também, narrar (esse est narrare). Mito contra mito. Referências ALBERÓ, Pere. Estudio crítico de Pere Alberó. Barcelona: Ediciones Paidós, 2000. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga. Tradução: Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. HOMERO. Odisseia. Tradução: Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007. HORTON, Andrew (Ed.). The Last Modernist: The films of Theo Angelopoulosp. Wiltshire: Flicks Books, 1997. IORDANOVA, Dina. Cinema of Flames: balkan film, culture and the media. London: British Film Institute, 2001. Levieux, Michele. Pour Théo Angelopoulos, l’exil a toujours été intérieur. Disponível em: www.humanite.fr/node/327244. Acesso em: 20 jun. 2012. NIETZSCHE, Friedrich. The Gay Science. Translated by Josefine Nauckhoff. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade.Ilha do Desterro. Florianópolis, n. 51, p. 019-053, jul/dez 2006. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 278 ÍNDICE THOMASSEN, Lasse. Heterogeneity, representation and justice: borders and communities in Angelopoulos’s Balkan trilogy. Disponível em: www.isak.liu.se/acsis/publikasjoner/1.91947/lassethomassen.pdf . Acesso em: 06 fev. 2012. TODOROVA, Maria. Imagining the Balkans. New York: Oxford University Press, 2009. Um olhar a cada dia. Theo Angelopoulos. Grécia/França/Itália: 1995. 176min, COR. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 279 ÍNDICE Sêneca: ponte entre o teatro antigo e o contemporâneo Renata Cazarini de Freitas∗ Reconhecido como autor de oito das dez tragédias latinas supérstites, Sêneca (I d.C.), recorreu a uma técnica de composição calcada na força oratória e pouco ortodoxa em termos de representabilidade (performability), desenvolvendo, por exemplo, longos monólogos ou seções narrativas e expondo ações cruentas em cena. O desafio da encenação dessas peças estabelece vinculação estreita com a dramaturgia contemporânea pós-dramática. Há certo teatro contemporâneo que revela alto grau de independência em relação ao plot (intriga), o que o levou a ser chamado de “pós-dramático” pelo pesquisador Hans-Thies Lehmann. Uma dramaturgia calcada na construção do discurso e não centrada no encadeamento de ações. Esse teatro, que se identifica em obras da inglesa Sarah Kane (19711999) e do alemão Heiner Müller (1929-1995), é um importante canal de interlocução com a tragédia de Sêneca. Ambos os autores assumiram terem se baseado em algum grau no predecessor latino para recriar, nos anos 1980-1990, a partir de Fedra e de Medeia, respectivamente, peças que, também expressando profundo ceticismo, retomam um arsenal retórico de que Sêneca fizera uso: tanto os solilóquios que se desprendem da sequência natural das cenas, como os diálogos de forte caráter agonístico, com estratégia de retomada de palavras-chaves pelo antagonista, que pouco colaboram para o desenrolar da trama. Nossa pesquisa sobre essa construção dialógica agonística na poesia dramática antiga, desde o teatro grego clássico, chamada “esticomitia” (troca de falas verso a verso), permitiu descrever suas características e, assim, abriu caminho para identificá-las posteriormente nos citados dramaturgos contemporâneos, desvelando uma estratégia discursiva que resiste já faz 2.500 anos. Nossa aproximação aos corpora desses autores se dá em duas frentes: verificando os elementos formais – como o uso de figuras de linguagem e estilo: altercatio, ∗ Mestranda strictu sensu no programa de Letras Clássicas da FFLCH-USP e lato sensu (EAD) em Estudos Clássicos da UNB-Archai. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 280 ÍNDICE repetitio, poliptoto – e as práticas de estruturação do texto dramático – a mera justaposição de cenas frente à preceituação da poética aristotélica do encadeamento de ações. No caso da dramaturgia de Sêneca, não há comprovação de que as peças tenham sido alguma vez encenadas durante sua vida. A circunstância de performance é controversa: desde a encenação em teatro público até a primazia da circulação do texto escrito, nada se pode excluir. O discurso se sobrepõe à ação de tal maneira que a peça se apresenta mais naturalmente como obra literária do que teatral. Mais recentemente, dramaturgos de grande envergadura na cena europeia, como Kane e Müller, situaram a personagem menos como protagonista de uma ação em progresso e mais como uma fonte de exposição de ideias. Na nomenclatura da dramaturgia moderna, ela assume uma “função de enunciação”, por vezes, de enunciação de “verdadeiros tratados de argumentação”.1 A dramaturga inglesa Sarah Kane tem sua obra marcada pelos desafios de encenação de um texto que se afasta da narração rumo à fragmentação, com cenas de extrema violência, que críticos chegaram a tratar como uma “litania de quebra de tabus”.2 Ela é um destaque do movimento rotulado “In-yer-face”, definido como “any drama that takes the audience by the scruff of the neck and shakes it until it gets the message”3, considerado um ponto de inflexão na dramaturgia inglesa contemporânea: An avant-garde that explored theatrical possibility, they pioneered a new aesthetic – more blatant, aggressive and confrontational – that opened up new possibilities for British drama. In doing so, they helped revive playwriting, exploring new areas of expression and suggesting daring new experiments. (SIERZ, 2001, p.xii)4 Kane concebeu sua Phaedra’s Love a partir de uma encomenda do diretor do pequeno e inovador Gate Theatre, de Londres, em 1996. O pedido era que fosse feita uma adaptação de um clássico europeu. Ela recebeu de David Farr, o diretor, um livro das tragédias de Sêneca, do qual escolheu Fedra. A peça estreou em maio de 1996, no Gate, sob a direção da autora. 1 2 3 4 FERNANDES, Silvia. “Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo.” In: Revista Sala Preta, p.70 (2001). GREIG, David. “Introduction”. In: KANE, Sarah. Complete plays. (p.x) SIERZ, Aleks. In-yer-face, British Drama Today: “qualquer peça que pegue o público pelo colarinho e o chacoalhe até que ele entenda a mensagem.” (p.4, minha tradução) “Uma vanguarda que explorou a alternativa teatral, eles foram pioneiros de uma nova estética – mais estridente, agressiva e confrontativa – que abriu novas possibilidades para o drama britânico. Ao fazerem isso, eles ajudaram a resgatar a dramaturgia, explorando novas áreas de expressão e sugerindo novos experimentos ousados.” (minha tradução) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 281 ÍNDICE Um ano antes, ela havia estreado na cena teatral londrinense, sob muita polêmica, com a peça Blasted – argumento da própria Kane, então com 23 anos, do qual se pode dizer que, no mínimo, chocou crítica e público. A dramaturga, que sofria de depressão e esteve internada algumas vezes, matando-se aos 29 anos, figura como verbete nos mais recentes dicionários sobre teatro e tem importante histórico de encenação na Europa, em particular na Alemanha. É pertinente observar que, no obituário publicado no jornal The Independent (23/02/1999), o dramaturgo e amigo Mark Ravenhill afirma que Kane era uma escritora contemporânea com uma sensibilidade clássica, que criou muitos momentos de beleza e de crueldade, e chega a mencionar Shakespeare, Sófocles, Racine como sensibilidades afins à dela, mas não cita Sêneca. A própria autora, que se propunha a manter as preocupações clássicas do teatro grego como o amor, o ódio, a morte, a vingança, o suicídio, mas fazendo uso de uma poesia urbana completamente contemporânea5, relata assim seu tratamento das fontes: I read Euripides after I’d written Phaedra’s Love. And I’ve never read Racine so far. Also, I only read Seneca once. I didn’t want to get too much into it – I certainly didn’t want to write a play that you couldn’t understand unless you knew the original. I wanted it to stand completely on its own. (SAUNDERS, 2002, p.72)6 A despeito da afirmação de Kane, não é difícil constatar o muito que foi preservado da peça senequiana e até mesmo paralelos expressivos com o Hipólito euripidiano: por exemplo, o suicídio de Fedra pela forca, fora do palco, antes do regresso de Teseu. Um importante diferencial no texto de Sêneca é justamente que Fedra se mata com a espada de Hipólito enfiada no ventre na presença de Teseu. Na obra de Kane, Hipólito tem proeminência – o que se revela em uma das duas leituras possíveis para o título da peça – e é um misantropo com tintas hedonistas, não um misógino celibatário como em Eurípides e Sêneca. Mas a cena inicial, muda, em Kane, reveladora do perfil caprichoso do príncipe herdeiro, pode ser naturalmente lida como um equivalente do monólogo de Hipólito que abre a peça de Sêneca. 5 6 Citada em SIERZ. (p.109) “Li Eurípides depois que tinha escrito Phaedra’s Love. E até agora não li Racine. Também, só li Sêneca uma vez. Eu não queria me envolver muito – certamente eu não queria escrever uma peça que não se pudesse entender a menos que se conhecesse o original. Eu queria que ela se sustentasse sozinha.” (minha tradução) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 282 ÍNDICE O enredo de Kane é transportado para a época atual e introduz homens, mulheres e crianças do povo como personagens cruciais para o desfecho escatológico, do qual Teseu participa. São eles que conformam o monstro senequiano – originalmente o touro euripidiano – que destroça o príncipe Hipólito. A ação dos súditos, uma vingança pela morte de Fedra, é antecipada na peça por uma personagem também inédita, a filha da rainha, Strophe ou Estrofe, que assume claramente a função da personagem típica da amaconselheira. Uma imagem das mais importantes na peça de Kane, a da revolta dos súditos diante da imoralidade de Hipólito (excerto 2), ecoa muito claramente uma passagem do coro de mulheres cretenses de Sêneca (excerto 1): 1. Res humanas ordine nullo Fortuna regit sparsitque manu munera caeca, peiora fouens; uincit sanctos dira libido, fraus sublimi regnat in aula; tradere turpi fasces populus gaudet, eosdem colit atque odit. 980 A Sorte governa sem ordem a vida humana e com mão cega distribui dádivas, favorecendo os piores. A terrível luxúria prevalece sobre a pureza e o embuste reina nos imponentes palácios. A populaça regozija-se por entregar o poder aos infames, homenageia-os e, ainda assim, odeia-os.7 2. Man 1 String him up, they should. Woman 2 The bastard. Man 1 Whole fucking pack of them. Woman 1 Set an example. Man 1 What do they take us for? Woman 1 Parasites. Man 2 We pay the raping bastard. Man 1 No more. Man 2 They’re nothing special. Woman 1 Raped his own mother. Woman 2 The bastard. Man 2 She was the only one had anything going for her. 7 SÊNECA. Fedra. Trad. Ana Alexandra Alves de Souza. (p.73) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 283 ÍNDICE Homem 1 Deviam enforcá-lo. Mulher 2 O filho da puta. Homem 1 Todos eles, foda-se. Mulher 1 Que sirva de exemplo. Homem 1 Pensam que somos o quê? Mulher 1 Parasitas. Homem 2 Pagamos ao filho da puta do violador. Homem 1 Agora chega. Homem 2 Não são nada de especial. Mulher 1 Violou a própria mãe. Mulher 2 O filho da puta. Homem 2 Era a única que tinha qualquer coisa a favor dela.8 A apropriação tão evidente da temática do coro de Sêneca por Kane deve nos permitir uma analogia também quanto à forma, admitindo que o coro unívoco foi transposto para um jogral agonístico de tom bastante contemporâneo, até pela linguagem livre. Como alerta o dramaturgo Ken Urban, a colega inglesa não estava em busca de opor o certo ao errado, nem mesmo flertava com a amoralidade, mas dramatizava “a busca pela ética”.9 Heiner Müller, que estreou em 1957 com O Achatador de Salários, trabalhou com Bertolt Brecht e foi diretor do Berliner Ensembler, conhecia a obra de Sêneca, tendo até composto um poema acerca da morte um tanto espetacularizada do autor latino. Em 1982, escreveu a peça Margem Abandonada Medeamaterial Paisagem com Argonautas, uma experimentação radical com o mito, ecoando, no entanto, as tragédias antigas. Pode-se distinguir no texto o recurso ao diálogo agonístico nos moldes de Sêneca, assim como dois longos monólogos, atribuídos a Medeia (150 linhas) e a Jasão (112 linhas). A obra dramatúrgica de Müller, incluindo peças inspiradas no Hamlet e no Macbeth de Shakespeare, tem sido analisada como um teatro que se ergue a partir da desconstrução e da intertextualidade, um tipo de composição fragmentária, despreocupada com a linearidade. Seu teatro seria uma “arqueologia das enunciações mitopoéticas” num mundo às voltas com a violência política10 – Segunda Guerra Mundial, nazismo, Stalinismo são referências para ele. 8 9 10 KANE, Sarah. Phaedra’s Love. Trad. Pedro Marques. (p.144) URBAN, Ken. “An Ethics of Catastrophe: The Theatre of Sarah Kane.” PAJ: A Journal of Performance and Art 23, no. 3, p.36. RÖHL, R. O Teatro de Heiner Müller. (p.22) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 284 ÍNDICE Sobre as fontes a que recorreu para compor Medeamaterial, Müller afirmou em sua autobiografia que, à parte a experiência pessoal de um rompimento emocional retratada ali, utilizou, sobretudo, Sêneca, além de Eurípides, Hans Henny Jahnn11 e Ezra Pound na terceira parte:12 Em Eurípides, há bastante filosofia em jogo e a tragédia é relativizada. De qualquer forma, coloca-se a pergunta do trabalhador imigrante: Medeia, a bárbara, mesmo que do ponto de vista do senhor de escravos. Nossa legislação relativa aos exilados, que permite a separação de mães e filhos, o rompimento dos laços familiares, baseia-se no modelo da sociedade escravocrata, que é descrita em Sêneca. Sêneca escreve cenas terríveis ou maravilhosas. (MÜLLER, 1997, p.233) A peça de Müller Margem Abandonada Medeamaterial Paisagem com Argonautas é a justaposição de três textos autônomos: o primeiro, uma descrição de imagem de extrema degradação; o segundo, uma reapropriação da tragédia clássica, com diálogo agonístico seguido de monólogo de Medeia; o terceiro, um inusitado solilóquio de Jasão. O diálogo de Müller (excerto 5) tem a elocução que se pode identificar em Sêneca – com uso da retomada de palavras-chave entre a Ama e Medeia, no início, depois a altercatio entre Jasão e Medeia – em particular comparando-o a dois trechos da Medeia latina (excertos 3 e 4) que tratam de poder, identidade, paternidade, exílio, morte: 3. Nutrix Abiere Colchi, coniugis nulla est fides, nihilque superest opibus e tantis tibi. Medea Medea superest: hic mare et terras uides ferrumque et ignes et deos et fulmina. Nutrix Rex est timendus. Medea Rex meus fuerat pater. Nutrix Non metuis arma? Medea Sint licet terra edita. Nutrix Moriere. 11 12 165 Autor alemão (1894-1959), que compôs uma Medeia. MÜLLER, Heiner. Guerra sem batalha. Trad. Carola Zimber. (p.233) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 285 ÍNDICE Medea Cupio. Nutrix Profuge. Medea Paenituit fugae. 170 Nutrix Medea— Medea Fiam. Nutrix Mater es. Medea Cui sim vides. Nutrix Profugere dubitas? Medea Fugiam, ut ulciscar prius. Ama Está longe a Cólquida, a fidelidade do teu marido é nenhuma, e nada te resta de tão grandes riquezas. Medeia Resta Medeia; nela vês mar e terra e ferro e fogo e deuses e relâmpagos! Ama Deves recear o rei. Medeia Também o meu pai era rei. Ama Não tens receio do seu exército? Medeia Nem que nasça da terra. Ama Vais morrer. Medeia É isso que eu quero. Ama Foge! Medeia Já me arrependi de fugir. Ama Medeia... Medeia Sê-la-ei. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 286 ÍNDICE Ama Tu és mãe. Medeia Vê para que pai. Ama Hesitas em fugir? Medeia Fugirei, mas primeiro hei-de vingar-me.13 4. Iason Perimere cum te uellet infestus Creo, lacrimis meis euictus exilium dedit. Medea Poenam putabam: munus, ut uideo, est fuga. Iason Dum licet abire, profuge teque hinc eripe: grauis ira regum est semper. Medea Hoc suades mihi, praestas Creusae: paelicem inuisam amoues. Iason Medea amores obicit? Medea Et caedem et dolos. Iason Obicere crimen quod potes tanden mihi? Medea Quodcumque feci. Iason Restat hoc unum insuper, tuis ut etiam sceleribus fiam nocens. Medea Tua illa, tua sunt illa: cui prodest scelus, is fecit. omnes coniugem infamem arguant, solus tuere, solus insontem uoca: tibi innocens sit quisquis est pro te nocens. 490 495 500 Jasão Creonte, embora te quisesse mandar matar, na sua hostilidade, vencido pelas minha lágrimas, acabou por decretar o teu exílio. Medeia Pensava eu que era um castigo: afinal o exílio é uma recompensa, estou a ver. 13 SÊNECA. Medeia. Trad. Ana Alexandra Alves de Souza. (pp.46-8) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 287 ÍNDICE Jasão Enquanto te é permitido partir, foge, escapa-te daqui. A ira dos reis é sempre pesada. Medeia Estás a dar-me esse conselho, mas é Creúsa que proteges: desembaraças-te de uma amante odiosa. Jasão Medeia censura os meus amores? Medeia E a carnificina e os ardis. Jasão Mas de que crime podes realmente censurar-me? Medeia De todos os que cometi. Jasão Só faltava mais esta: eu ser culpado dos teus delitos. Medeia Eles são teus, sim, eles são teus: quem tira partido deum delito pratica-o. Mesmo que todos acusem a tua mulher de infâmia, sozinho tens de a defender, sozinho tens de a declarar inocente. Tu deves considerar como inocente todo aquele que por ti se tornou nocivo.14 5. Medea Jason Mein Erstes und mein Letztes Amme Wo ist mein Mann Amme Bei Kreons Tochter Frau Medea Bei Kreon sagtest du Amme Bei Kreons Tochter Medea Hast du gesagt bei Kreons Tochter Ja Warum bei Kreons Tochter nicht die Macht hat Wohl über Kreon ihren Vater der Uns geben kann das Wohnrecht in Korinth Oder austreiben in ein andres Ausland Gerade jetzt vielleicht umfaßter Jason Mit Bitten ihre faltenlosen Knie Für mich und seine Söhne die er liebt Weinst oder lachst du Amme 14 Idem. (pp.67-9) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 288 ÍNDICE Amme Herrin ich Bin alter als mein Weinen oder Lachen Medea Wie lebst du in den Trümmern deines Leibs Mit den Gespenstern deinerJugend Amme Bring einen Spiegel Das ist nicht Medea Jason Jason Weib was für eine Stimme Medea Ich Bin nicht erwünscht hier Daß ein Tod mich wegnähm Dreimal fünf Nächte Jason hast du nicht Verlangt nach mir Mit deiner Stimme nicht Und nicht mit eines Sklaven Stimme noch Mit Händen oder Blick Jason Was willst du Medea Sterben Jason Das hörtich oft Medea Bedeutet dieser Leib Dir nichts mehr Willst du mein Blut trinken Jason Jason Wann hört das auf Medea Wann hat es angefangen Jason Jason Was warst du vor mir Weib Medea Medea Du bist mir einen Bruder schuldig Jason Jason Zwei Söhne gab ich dir für einen Bruder Medeia Jasão Meu primeiro e meu último Ama Onde está meu homem Ama Com a filha de Creonte mulher Medeia Com Creonte tu disseste Ama Com a filha de Creonte Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 289 ÍNDICE Medeia Tu disseste com a filha de Creonte Sim Por que não com a filha de Creonte tem o poder Decerto sobre Creonte seu pai que O direito de moradia em Corinto pode nos dar Ou expulsar para outro país Bem agora talvez abrace ele Jasão Com súplicas seus joelhos sem rugas Por mim e seus filhos que ele ama Tu ris ou choras ama Ama Senhora eu Sou mais velha que meu chorar ou rir Medeia Como vives nas ruínas de teu corpo Com os espectros de tua juventude ama Traz um espelho Esta não é Medeia Jasão Jasão Mulher que voz Medeia Eu Não sou desejada aqui Que uma morte me leve Três vezes cinco noites Jasão tu não Me quiseste Com a tua voz não E não com a voz de um escravo nem Com mãos ou olhar Jasão O que queres Medeia Morrer Jasão Isto eu ouvi muitas vezes Medeia Este corpo não significa Mais nada para ti Queres beber meu sangue Jasão Jasão Quando isso vai acabar Medeia Quando começou Jasão Jasão O que eras tu antes de mim mulher Medeia Medeia Tu me deves um irmão Jasão Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 290 ÍNDICE Jasão Dois filhos eu te dei por um irmão15 Fernando Peixoto, homem de teatro e tradutor de Müller, afirmou que “Medeamaterial é um jogo poético de palavras, ações e comportamentos frequentemente interrompidos ou incompletos, que levam à criatividade cênica mais incerta e aberta”.16 Também as peças de Sêneca se prestam a ser analisadas como possível experimento dos limites da dramaturgia antiga, ousado exercício de composição calcada na força oratória, subsídio, acreditamos, para avaliação do emprego de elementos retóricos na produção teatral contemporânea de Sarah Kane e Heiner Müller. Sêneca revela-se não-convencional em mais de um aspecto no trato com a matéria teatral: ele subverte preceituações poéticas clássicas, dá tratamento menos ortodoxo à mitologia antiga, estabelece com a sociedade de sua época uma interlocução baseada em um discurso inovador, como é possível entrever na crítica de Quintiliano:17 Deliberadamente deixei Sêneca à parte de todo gênero de expressão linguística, em decorrência da opinião falsamente divulgada, segundo a qual se acredita que eu o queira condenar e até mesmo tê-lo por detestado. Isto acabou acontecendo a mim, na circunstância em que me lançava, com toda a força, a chamar para um julgamento mais severo um gênero de discurso corrompido e aviltado por todos os tipos de defeitos. Naquele momento quase que exclusivamente Sêneca esteve nas mãos dos adolescentes. Eu não me esforçava completamente para lançá-lo de todo fora, mas não consentia que ele fosse colocado à frente de outros mais vigorosos, aos quais ele não desistia de atacar. Ele tinha consciência de que a forma de eles escreverem era diferente da sua. Sendo assim, ele não confiava que pudesse, pela própria maneira de dizer, agradar aos leitores a quem esses outros autores agradavam. Os adolescentes, porém, amavam-no mais do que o imitavam; dele andavam mais abaixo, na mesma proporção que ele descia dos antigos. (REZENDE, 2010, p.227) Como argumenta Roland Mayer, referindo-se à dramaturgia de Sarah Kane: “We can see the grounds for the appeal of Seneca to a modernist sensibility, for he too chose to confront an unconventional theme as directly as his society allowed”.18 15 16 17 18 MÜLLER, Heiner. Medeamaterial e outros textos. Trad. Fernando Peixoto. (pp.14-6) Idem. (p.10) Cf. InstitutioOratoria, X.I.125-131. MAYER, Roland. Seneca: Phaedra: “Podemos entender os fundamentos do apelo que Sêneca tem a uma sensibilidade modernista, já que ele também escolheu confrontar um tema não convencional tão diretamente quanto a sociedade de seu tempo permitiu.” (p.87, minha tradução) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 291 ÍNDICE Referências bibliográficas FERNANDES, Silvia. “Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo.” In: Revista Sala Preta, p.70 (2001). KANE, Sarah. Complete plays. Londres: Methuen Drama, 2006. ___________. Phaedra’s Love. Trad. Pedro Marques. Porto: Campo das Letras, 2007. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007. MAYER, Roland. Seneca: Phaedra. Londres: Duckworth, 2002. MÜLLER, Heiner. Verkommenesufer Medeamaterial Landschaftmitargonauten. Berlim: Henschel Schauspiel, 2006. __________. Guerra sem batalha. Trad. Carola Zimber. São Paulo: Estação Liberdade, 1997. __________. Medeamaterial e outros textos. Trad. Fernando Peixoto. Rio: Paz e Terra, 1993. REZENDE, Antonio Martinez de. Rompendo o silêncio: a construção do discurso oratório em Quintiliano. Belo Horizonte: Crisálida, 2010. RÖHL, Ruth. O Teatro de Heiner Müller. São Paulo: Perspectiva, 1997. SÊNECA. Tragedies. The Loeb Classical Library. Cambridge/Londres: Harvard UP, 2002. ________. Fedra. Trad. Ana Alexandra Alves de Souza. Lisboa: Edições 70, 2003. ________. Medea. Trad. Ana Alexandra Alves de Souza. Coimbra: CECH, 2011. SIERZ, Aleks. In-yer-face, British Drama Today. Londres: Faber & Faber, 2001. URBAN, Ken. “An Ethics of Catastrophe: The Theatre of Sarah Kane.” PAJ: A Journal of performance and Art 23, no. 3, pp.36-46, 2001. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 292 ÍNDICE Antiguidade e modernidade nas piazze de Giorgio de Chirico∗ Juan Müller Fernandez (UFBA)∗∗ E, em momentos de desespero ou de exaltação, quem entre nós consegue impedir-se de invocar o tempo do destino, do mito, dos deuses? David Harvey, 1998. A passagem da exposição “De Chirico: o sentimento da arquitetura” pelo Brasil1, no ano vigente, se constitui uma sólida oportunidade para dar relevo ao trabalho de Giorgio De Chirico (1888-1978), pintor que, no turbulento século XX, desafiou seus contemporâneos ao revolver o período clássico. Diante da voga opressiva da estética modernista e das angustiantes renovações paradigmáticas presentes em tal momento, não apenas invocou o tempo das enigmáticas esfinges e dos heróis, o (re)viveu. Ocorre que essa viagem ao tempo do maravilhoso não deve ser compreendida como alheamento ao presente, nem poderia ser considerada uma fuga da realidade, pois De Chirico buscou na Antiguidade alicerces que possibilitassem suportar a vida imposta pela Modernidade e transmitissem, ao observador, a sensação, já em estado líquido, de segurança. A crença na Antiguidade, de certo, provinha das experiências existenciais vividas e da formação em Munique e em Milão. De modo a consolidar essa ligação com o antigo, seu percurso de vida poderia ser lido conforme a trajetória evolutiva da cultura clássica no mundo Ocidental, visto, coincidentemente, ser nascido em Vólos, na Tessália grega, e “eternizar-se” em Roma. Dessa forma, a invocação de um tempo antigo durante a Modernidade se configura um gesto de fidelidade às próprias referências e ao universo da introspecção. O valor atribuído a essa “origem mítica” fica evidente em muitas pinturas, ∗ ∗∗ 1 No Caderno de Resumos publicado como fruto deste evento, o título e o resumo deste trabalho apresentam a palavra “piazzas” equivocadamente. Portanto, é necessário retificar: onde há “piazzas”, leia-se “piazze”. Especializa-se em Estudos Linguísticos e Literários pela UFBA, possui formação complementar em História da Arte e integra o grupo de pesquisa “Literatura e Ensino: Tecendo Identidades, Imprimindo Leituras”, registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil/ CNPQ. E-mail: juan_muller168@hotmail.com. A exposição itinerante passou por três cidades brasileiras, a saber: Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte, permaneceu no País desde dezembro de 2011 a setembro de 2012 e integrou as comemorações do “Momento Itália/Brasil 2011-2012”. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 293 ÍNDICE desde os primeiros trabalhos (1909-1910), em que personagens e temas mitológicos são abordados, como a viagem dos Argonautas e figuras como o Centauro, Ulisses, Ariadne, Édipo e a Esfinge, Heitor e Andrômeda. A passos curtos, esse retrato experimental da mitologia se descola de sua pintura e emerge um sujeito metafísico que marcaria a pintura desse artista. Nesse momento, De Chirico alcançou a maturidade artística e conseguiu imprimir nas pinceladas, sua identidade, isto é, baseado numa nova estética, produziu um conjunto de obras singulares, cuja temática era o sentimento de angústia causado pela imposição dos processos de modernização nas cidades. A terceira fase, também denominada fase das “Piazze Metafísicas”, corresponde, em parte, ao período intitulado pelo pintor, em um escrito autobiográfico, “época de Paris” (1911-1915), se caracteriza ainda por fixar o espaço moderno das piazze de Turim como ambiente propício à instalação da metafísica, pela substituição da figura de Ulisses por Ariadne, por constantes jogos de luzes, pela utilização de iluminações oblíquas, perspectivas distorcidas e predominância de linhas retas. Todo esse elenco confere um caráter inovador ao tratamento das categorias de tempo e espaço, no ambiente urbano, de maneira a permitir uma forte vinculação ao modernismo que “[...] tem como uma de suas missões a produção de novos sentidos para o espaço e o tempo num mundo de efemeridade e fragmentação”. (HARVEY, 1998, p.199) No citado manuscrito autobiográfico, encontram-se as seguintes palavras do artista acerca dos trabalhos produzidos naquele momento: “eu pintei paisagens urbanas; composições nas quais o elemento arquitetônico desempenhou um papel importante e ainda naturezas-mortas no mesmo estilo, então toda a minha pintura, desse momento, é uma lembrança da Itália”. (CHIRICO, 2012, p.1) A função da arquitetura, nesse conjunto de telas, seria traduzir a dualidade do sujeito Giorgio de Chirico, dividido entre a Idade dos deuses e a Idade Moderna. A um só tempo, as muitas arcadas projetadas nos quadros abrigam o clássico, a inegável origem etrusca-romana e a feição da vida moderna, plena de incertezas e angústias. Em palavras distintas, Victoria Noel-Johnson (2011), afirma que De Chirico produziu “[...] oníricas e evasivas paisagens urbanas, que transmitem uma sensação de desconforto e inquietação – um mundo silencioso e desolado onde o tempo parece ter parado, onde o passado, presente e futuro coabitam ad infinitum”. (NOEL-JOHNSON, 2011, p. 47) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 294 ÍNDICE O cenário da confluência dos tempos e espaços ambivalentes, ou seja, desse “extraordinário fenômeno”, é a cidade de Turim, assolada pela modernidade. Movido pela memória, De Chirico buscou representar as piazze italianas, sobretudo daquela cidade, conforme suas impressões, deixando-se levar pela intuição. O espaço das praças lhe despertavam sensações estranhas e o clima tépido da urbe italiana par excellence agia intensamente sobre o pintor, impulsionando-o a aprofundar a temática Metafísica, lançada anteriormente. O relato do artista permite compreender como o ambiente de Turim sustenta a estética da époque de Paris: Esta nova qualidade é uma estranha e profunda poesia, infinitamente enigmática e incomparável, evocada pelo ambiente de uma tarde de Outono, quando os céus estão límpidos e as sombras crescem mais do que no Verão à medida que o sol começa a perder altura...a cidade italiana par excellence em que este extraordinário fenômeno ocorre é Turim. (CHIRICO, *1985 apud HOLZHEY, 2006, p. 23) Essa cidade, desde o século XIX, passou por grandes transformações econômicas e recebeu investimentos tecnológicos suficientes para se transformar no espaço de modernidade da Itália. Já naquele tempo, tornou-se o segundo polo industrial do País, por ter instalada uma das principais fábricas automobilísticas do mundo, a Fiat, e possuir o centro ferroviário de maior importância para a Itália, com linhas diretas para Milão, França e Suíça. Portanto, como se observa, o encontro entre o antigo e o moderno se torna possível nas obras desse artista, visto o constante e profundo diálogo entre o mundo interior, das experimentações e sonhos do artista, e mundo o exterior, da percepção da geografia urbana. Embora o par se harmonize nas obras de De Chirico, o estudo de Jacques Le Goff (2003) mostra quão conflituosa já foi a relação entre o binômio antigo/moderno. Como o autor relata, desde a Antiguidade, até o século XVIII, existe a querela entre antigos e modernos e, em cada tempo, os pensadores procuraram privilegiar um dos termos. Nessa direção, Le Goff (2003) aponta que a forte oposição entre antigos e modernos pode ser verificada na Antiguidade, nas personas Ovídio e Horácio, os quais se congratulavam por viverem não na era dos escritores antigos, mas no seu tempo. Todavia, o embate se consolidou a partir do séc. XII, com a emergência de um saeculum modernum, concebido pelos carolíngios, e seguiu desenrolando-se até o séc. XVIII, pois, no século vindouro, apareceram os problemáticos conceitos de “modernismo”, “modernização” e “modernidade”, que Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 295 ÍNDICE provocaram uma transformação no modo dos sujeitos lidarem com tal dualidade, de modo a fazê-los “esquecerem-se” do elemento antigo. Mesmo sem apagar as referências clássicas, De Chirico logrou a modernidade, fazendo dos opostos, conceitos complementares. A pintura, intitulada “Viagem Ansiosa” (1913) (Figura 1), ilustra, sobremodo, o liame dos tempos ao abordar a angústia vivida no limiar do séc. XX, fixando numa mesma composição, os símbolos da ansiedade contemporânea e da incerteza antiga: a locomotiva (Moderno) e o labirinto (Antigo). O título não é fortuito. Anuncia uma perigosa incursão no tempo, possível de resvalar na errância, caso faltem pontos de referência, ou alicerces, para o viajante, risco semelhante à experiência de um labirinto. O viajante dessa obra embarca no comboio para viver a Modernidade, mas reconhece a total desorientação dessa era, por isso recorre a símbolos remotos para encontrar o fio das certezas salvador. À esquerda do quadro, encontra-se um grande arco, compreendido como a entrada do labirinto, através do qual se vê a locomotiva ameaçadora. Esta nada lembra o encantamento de um William Turner, antes parece furiosa, expele fumaça com vigor, como se estivesse à caça do observador, disposta a romper o muro, invadir a confusa construção, ou mesmo, sair da tela. O interior do labirinto, à direita da composição, é formado de linhas retas, muitas arcadas misteriosas e pela sobreposição absurda dos caminhos, o que confere um laivo de confusão, medo e espanto. Não se pode desprezar que esses sentimentos também compareciam aos virgens convidados a entrar na invenção de Dédalo e foram apenas vencidos pela coragem e eloquência de Ariadne. Ademais, os dois labirintos parecem bastante semelhantes, visto não apresentarem qualquer possibilidade de saída, mas caminhos extremamente embaralhados. Tal aproximação pode ser visualmente concretizada a partir da seguinte descrição da construção cretense, feita no estudo de Bulfinch (2006): “Era um edifício com inúmeros corredores tortuosos que davam uns para os outros e que pareciam não ter começo nem fim, como o Rio Meandro, que volta sobre si mesmo e ora segue para adiante, ora para trás, em seu curso para o mar”. (BULFINCH, 2006, p.157) Para o homem antigo, em particular o grego, esses caminhos obscuros tratavam-se de impulsos para os atos de coragem e de descobrimento, mas os tempos modernos ressignificaram tais ações: a coragem cede lugar ao medo e o desejo de conhecer transforma-se na ansiedade do encontrar as referências da vida. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 296 ÍNDICE Antigo e Moderno, nesse quadro, ainda se encontram na transformação, particularmente desenvolvida por De Chirico, do ícone do Minotauro. Enquanto o labirinto do rei Minos contava com esse monstro selvagem, aquele retratado pelo artista possui a locomotiva como sentinela. Esta pode representar a tendência Surrealista de recusar a lógica, bem como o sentimento de agouro em relação ao início da automatização da vida e dos gestos, o que relacionaria as duas figuras, pois a guardiã moderna conservaria a irracionalidade atribuída ao monstro antropozoomórfico. Nesse sentido, a predominância de tons sombrios de preto e cinza reforçam a escuridão à qual os indivíduos começavam a se assujeitar. Embora Magdalena Holzhey (2006), aponte o comboio como elemento autobiográfico da pintura de De Chirico, a autora reconhece que este, somado aos fragmentos embaralhados da construção e à perda da noção de profundidade, colabora com a impressão de um labirinto lúgubre. Com o intuito de escapar desse ambiente sinistro, o pintor busca as “certezas” da Antiguidade no mito de Ariadne. Esse tema foi ricamente explorado por De Chirico2 numa tentativa de traduzir os sentimentos de solidão, melancolia e a “alienação” do ser moderno. Para tanto, o artista inspirou-se em muitas fontes3: no próprio mito da filha de Minos e Pasífae, em Nieztsche e na escultura “Ariadne Adormecida”, do Vaticano. Em “Ariadne” (1913) (Figura 2), a noção de espaço da piazza é trabalhada na composição de modo a evidenciar aqueles sentimentos. Observa-se que os elementos, em primeiro plano, estão posicionados em extremidades e nenhum objeto os relaciona, o que sugere uma sensação de vazio, tanto espacial, quanto existencial. No primeiro plano, à esquerda, encontra-se a Ariadne Adormecida “dequiriquiana”, num gesto ilustrativo de total abandono, enquanto à direita, os arcos enigmáticos que abrigam e expelem a escuridão do desconhecido na direção da estátua. No segundo plano, atrás do extenso muro, apresenta-se uma composição estranha, 2 3 A representação da princesa de Cnossos não foi inaugurada por De Chirico. Como observa André Peyronie (1997), a figura de Ariadne tornou-se popular após o sucesso da cançoneta carnavalesca do século XV, composta por Lourenço de Médicis, intitulada “Trionfo de Baco e Arianne”. A partir desse impulso, eclodiram, nas pinturas Renascentistas, retratos das núpcias heroína com o deus do vinho e da desordem. Do grande elenco que abordou este mote, destacam-se Botticelli, Conegliano, Cosima, Ticiano e Tintoreto. De acordo com Maddalena d’Alfonso (2011), De Chirico inspirou-se também na água-forte de Dürer, Melancolia I, visto o gesto da mulher ser muito próximo ao de Ariadne e a inscrição “MELANCOLIA”, presente na água-forte, constar na base de algumas estátuas pintadas por De Chirico. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 297 ÍNDICE de carga profundamente enigmática: a locomotiva sem destino claro, dessa vez menos ameaçadora; uma torre branca, numa condição de epifania entre os objetos, e as velas de um navio. Essa combinação não poderia se materializar no espaço real, mas nessa piazza onírica obteve total permissão para existir. Além desse caráter “irreal”, a tela possui uma perspectiva distorcida e múltipla, tão fragmentada quanto a Modernidade, evidenciada por meio da comparação entre os espaços representados. A estátua é vista de cima, enquanto os elementos em segundo plano frontalmente, o que provoca sensações diversas ao observador. O estado no qual Ariadne é fixada, claramente, faz alusão ao momento em que a jovem foi desprezada, ainda adormecida, por seu amante Teseu, na ilha de Naxos, pouco antes de ser desposada por Baco. Ao inserir a imagem de Ariadne adormecida na pintura, De Chirico valeu-se das metáforas do abandono e do sono para sugerir o estado em que se encontrava o homem de seu tempo e para compreender essa aura seria preciso desvelar o signo de Ariadne. Nesse sentido, o abandono da heroína traduziria, igualmente, a solidão do homem moderno, cuja sociedade na qual vivia transformou-se intensamente e ele não sabia como lidar com tantas novidades, nem conhecia ainda as consequências das inovações. Assim, o homem estaria relegado a viver “adormecidamente” o próprio destino, sem possuir o pleno conhecimento da condução. Tais avanços logrados pela modernidade aparecem nessa pintura de De Chirico representados não apenas pela locomotiva, mas também pelo espectro que se alarga desde as arcadas, visto a posição da sombra criar uma impressão ameaçadora, como se a modernidade pudesse oferecer perigo a este homem ≈ Ariadne adormecido. O sono, por sua vez, pode ser entendido como uma alegoria da alienação, isto é, da aceitação passiva dos frutos da modernidade, tais como a Primeira Guerra Mundial. O homem que dorme não analisa os fatos pela razão, por isso não tem propriedade para distinguir o bom do mau, nem mesmo é capaz de transformar de alguma maneira a realidade, porque se encontra numa posição de fragilidade e de dominação. Com efeito, o mito de Ariadne pode ser visto como um retrato do homem moderno, que aceitou um destino que se impunha, resignado, sem resistir, nem lutar contra o medo e a guerra iminente. Na leitura de Holzhey (2006), o tema de Ariadne, Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 298 ÍNDICE [...] forneceu a De Chirico o símbolo que pode ser entendido como central no estilo e composição dos seus quadros: estes dão forma visual à noção de um retorno ao labirinto e de uma confrontação com os mistérios do mundo. As Piazze d’Italia são, em si mesmas, nada menos que labirintos dentro dos quais os sistemas de perspectivas se multiplicam e as leis da natureza se contradizem umas às outras. São quadros cujos espaços possivelmente não podem existir na forma que aparentam e onde espaços e tempos diferentes coexistem em aparente harmonia. (HOLZHEY, 2006, p. 28) Muito embora o presságio (da Guerra) compareça expressivamente também a essa tela, nota-se que esta deixa a sensação de que o retorno ao labirinto não se trata de uma experiência essencialmente negativa, afinal, Ariadne ainda detém o fio condutor, a certeza da saída, e, com sua constelação, ilumina os caminhos tortuosos e obscuros de muitos labirintos. Dessa forma, nesse quadro, o mito de Ariadne serviu de apoio e sustentáculo ao homem para que este resistisse aos meandros da vida Moderna. Em “Enigma de um Dia (I)” (1914) (Figura 3), esse sentimento de amparo apresentase numa composição mais rica em objetos e destituída do tom ameaçador, lúgubre e agourento das obras anteriores, o que não a isenta de sugerir enigmas. À esquerda, encontrase uma arcada, semelhante à construção do Hofgarten (Munique), notável pelo branco iluminador das paredes, enquanto na outra extremidade, um prédio completamente sombrio, através do qual se pode enxergar uma longínqua locomotiva, projeta um longo espectro pela área inferior da tela. Entre as construções, encontram-se uma estátua, entrecortada pela sombra do prédio negro; um transportador de móveis, aparentemente sem razão de estar abandonado na piazza e, ao longe, notam-se duas pessoas de tamanho reduzido. Num segundo plano, duas grandes torres vermelhas, signos da industrialização, se impõem. O arranjo desses objetos, sem a priori nenhuma relação direta, demonstra como a praça, na pintura de De Chirico, seria, também, o local da irrealidade e do absurdo. A coexistência do binômio passado/presente comparece no plano simbólico das cores atribuídas às construções, bem como na matéria das torres e da estátua. O branco do prédio à esquerda alude ao mármore das esculturas clássicas da Grécia e conserva toda carga relacionada à luz, ou à razão, enquanto o prédio negro abriga o clima de dúvidas tão presente no limiar do século XX4. Apesar de localizarem-se nas extremidades, de modo a 4 Na leitura de Jole de Sanna (2004), mencionada por Noel-Johnson (2011), a oposição luz/sombra revela outra dualidade encerrada pelas piazze de De Chirico, que seria, por sua vez, os princípios masculino (pai, bom, luz, Ohrmazd) e feminino (mãe, mau, escuridão e Ariadne). Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 299 ÍNDICE figurar a distância cronológica, um diálogo entre os prédios (tempos) e cores (claro-escuro) é mediado pela estátua − pai. O homem de mármore, da altivez do nascedouro clássico grego, estende rigidamente a mão direita à escuridão, como num gesto de amparo, tal qual um pai dirigindo-se a um filho. Essa aproximação com a escultura grega da era clássica torna-se possível ao se considerar o suporte no qual parece ter sido moldada (mármore) e o gesto solene e humilde da estátua, que apresenta os vestígios dos primeiros sinais de vida das obras desse período, expressos em feições mais sérias e meditativas, conforme lembram Janson & Janson (1996). A resposta do filho − modernidade não chega prontamente, mas a presença de sombras na estátua sugere a realização de um contato, bem como a disposição do pai − antiguidade em acolher o filho perdido, em virtude de um caos em instauração (industrialização já desenfreada e a surpresa da Guerra). Como Noel-Johnson (2011) observa, na pintura de De Chirico, a estátua representaria uma metafísica do tempo por apresentar uma forma semelhante a do relógio solar. Assim, a autora sustenta que: [...], a sua verticalidade e longas sombras resultantes podem ser lidas como simbolizando uma forma alternativa de ponteiro: a parte de um relógio de sol que projeta a sombra. Ele funciona como uma medição de luz (Tempo ≈ imagem em movimento da Eternidade). Nas praças de de Chirico, o ponteiro atua como o pivô temporal e espacial em torno do qual os edifícios arquitetônicos parecem girar em movimento circular: “a imagem é uma esfera em rotação [...] do movimento imparável”. O ponteiro estátua é destinado a viver uma existência que sempre oscila entre a luz (presença ↔ tangibilidade) e sombra (ausência ↔ intangibilidade) com os dois estados de luz, denotando dois momentos diferentes no tempo. (NOEL-JOHNSON, 2011, p. 47-48) Não restam dúvidas de que os “dois momentos diferentes no tempo” aos quais a autora se refere tratam-se do passado/ presente, Antiguidade/Modernidade e, ainda, a partir de sua afirmação, entende-se que a estátua ≈ relógio transborda a função de mediadora de luz por apontar, simultaneamente, um tempo decorrido, mas também um devir, de maneira a indicar um continuum do qual o homem não pode se esquecer. Em “Mistério e Melancolia de uma Rua” (1914) (Figura 4), o tratamento do binômio se apresenta igualmente expresso num contraste entre o claro-escuro das construções, bem como, na coexistência de dois pontos de fuga que as delimitam, porém, diferencia-se da pintura anterior por voltar a sugerir uma paisagem lúgubre. Tal qual “Enigma de um Dia Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 300 ÍNDICE (I)”, os prédios foram distribuídos nas mesmas extremidades e conservam a mesma carga simbólica. Todavia, a noção de espaço da piazza foi reduzida, de modo que não é mais possível enxergar integralmente a estátua − ponteiro − pai, apenas sua sombra fica à mostra. Essa redução deve-se à sobreposição absurda do prédio negro ao ambiente da praça, localizado à direita da composição, cuja perspectiva encontra-se extremamente oblíqua. Essa manipulação das linhas confere à obra um caráter tridimensional e indicia a impressão de que duas cenas coabitam no mesmo plano, de modo a torná-la hermética. A configuração misteriosa, inquietante e incongruente dessa pintura clássica de De Chirico, segundo Janson & Janson (1996), impediria uma explicação do próprio artista. Ocorre que a falta de harmonia, apontada por tais historiadores da arte, apresentase apenas no plano da perspectiva, visto toda a composição convergir para o contato entre os tempos, por ora representados na menina − filha − modernidade e na sombra − pai − antiguidade. Na mesma zona iluminada, estão situados pai e filha. Esta joga com um arco, que faz referência ao continuum temporal, isto é, à mescla concomitante entre passado, presente e futuro, e corre na direção do pai. Deste, enxerga-se apenas a sombra, cujo movimento da estátua da obra anterior é repetido, de modo a revelar a proximidade do encontro. Tal sensação é amplificada pela ausência do muro de alvenaria, presente nas demais obras analisadas, cuja função, na pintura de De Chirico, seria delimitar as ambivalências: real/onírico; passado/presente; finito/infinito. Nesse sentido, a queda do muro representaria a completa possibilidade de invocação de uma Idade de Ouro em uma Idade de Ferro. Além dessa função primeira de apontar o dual, o muro vincularia, por analogia, a praça de De Chirico às cidades da Grécia, pois, de acordo com Glotz (1988), a cidade grega teve de incorporar, para defender-se, extensas muralhas, as quais foram, sobretudo, adotadas pelas urbes baixas, em situação de vulnerabilidade, de modo que isso tornou o muro um elemento comum aos espaços urbanos. Para Maddalena d’Alfonso (2011), o encantamento produzido pela arte de De Chirico provém dessa multiplicidade de significados atribuídos ao espaço urbano: A cidade de de Chirico é cidade grega, renascentista e moderna ao mesmo tempo, por isso foi amada por Breton como o espaço surreal, onde atravessam simultaneamente o vapor de uma locomotiva e a vela quadrada de uma trirreme homérico. A cidade é alçada por ele a motivo principal de suas representações, como se devesse desvelar sua raiz etimológica: civitas, a Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 301 ÍNDICE mesma de civilização; e, de fato, ela não é contemplada, contrariamente às aparências, em seu aspecto monumental: a praça, a rua, a perspectiva em claro-escuro do pórtico, o despontar da torre se inspiram não só em referências históricas concretas, mas também em arquétipos, aos topoi que subjazem a qualquer figura arquitetônica, densos de valor semântico, iconográfico, simbólico e cultural. (D’ALFONSO, 2011, p. 16) Assim, a cidade de De Chirico e suas piazze, por meio da fantasia e do onírico, conjugam Antigo e Moderno, passado e presente, dando mostras de um sujeito divido entre o tempo dos deuses e o seu. Apesar de, inicialmente, ter sido acolhido e venerado pelos surrealistas, foi logo banido do grupo de André Breton, certamente, por atender ao ímpeto chamado do Clássico, evidente desde os primeiros trabalhos. Em conformidade com tal afirmação, encontra-se a confissão, não fortuita, do artista: “Orgulhosamente reivindico as três palavras que gostaria de ter como marca verdadeira em cada uma das minhas obras: Pictor classicus sum.” (CHIRICO, 1919 apud HOLZHEY, 2006, p. 60) O mundo antigo sempre lhe inspirou e, quando ligado ao tempo contemporâneo, fez brotar muitos dos enigmas perseguidos. A fase das “Piazze Metafísicas” assim elenca passado e presente, em composições mais harmoniosas do que incongruentes, cuja mescla entre o lirismo e a insensatez conferiam-nas inquietude e beleza. As seguintes palavras de De Chirico explicitam esse caráter dual e hesitante dessa estética: A beleza tranquila e insensata da matéria é, para mim, ‘metafísica’... [A minha arte é] um talento aterrador, ressurge de além dos horizontes inexplorados para se fixar na eternidade metafísica, na terrível solidão de um inexplicável lirismo: um biscoito, o canto formado por duas paredes, um desenho que evoca a natureza do mundo idiota e insensato. (CHIRICO, 1919 apud HOLZHEY, 2006, p. 57) Para De Chirico, as referências do mundo clássico facilitavam a compreensão do mundo moderno, na medida em que aquelas histórias eram concebidas como “seguras” e plenas de certezas, ao contrário da época em que vivia. Toda a sensatez da Antiguidade, na sua pintura, serve de alicerce à fragilidade da Modernidade e pode ser comparada à figura de um pai, cujo dever seria amparar o filho e indicar-lhe as diretrizes do caminho a percorrer. Essa imagem, por sua vez, encontra base na historiografia de Janson & Janson (1996), quando afirmam: “Assim que chegamos ao século VI a.C., na Grécia, nossa atitude passa por uma transformação: sentimos que esses não são estranhos, mas estamos ligados a Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 302 ÍNDICE eles por alguma forma de parentesco – são membros mais velhos de nossa própria família”. (JANSON & JANSON, 1996, p.46) Se por um lado, essa relação familiar começou a ser desenvolvida nos pormenores simbólicos e metafóricos das pinturas analisadas, na série intitulada “O Filho Pródigo”5, De Chirico retratou, sem barreiras, muros, nem labirintos, o ápice desse encontro entre os tempos, como se observa no dramático quadro “O Filho Pródigo” (1922) (Figura 5). Nessa pintura observa-se que a estátua − ponteiro − pai desce do pedestal e, mesmo com a rigidez do mármore, esboça um movimento na direção do manequim − filho. Nota-se, no abraço, demasiada expressividade, possível de ser comparada a uma escultura grega helenística, pois dispensa quaisquer traços faciais dos entes envolvidos e, apenas pelo gesto, consegue comunicar tamanha sensação de alento, conforto, mas também de melancolia. O manequim representaria a modernidade por, sobretudo, ser constituído de fragmentos insólitos de múltiplos objetos e por necessitar de uma estrutura que o mantenha de pé, localizada atrás dele. Isso revela a ideia, trabalhada por De Chirico, de fragilidade da modernidade, cujo sujeito, em face de um destino espectral, necessitava de apoios para seguir seu caminho, isto é, voltar ao lar ≈ Antiguidade para retomar as diretrizes da própria vida. Referências ARTE greco-romana. Pocket Visual Encyclopedia. Florença: Itália, 2011. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. CHIRICO, Giorgio de. Autobiographie. 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Adail Ubirajara Sobral; Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1998. HOLZHEY, Magdalena. Giorgio De Chirico: o mito moderno. Trad. António Mendes. Köln: TASCHEN, 2006. JANSON, H.W.; JANSON, Anthony F. Iniciação à História da Arte. 2.ed. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1996. LE GOFF, Jacques. Antigo/moderno. In:______. História e memória. 5.ed. Trad. Bernardo Leitão et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 173-206. NOEL-JOHNSON, Victoria. O mundo todo é um palco: o protagonista chiriquiano & seus arredores arquitetônicos (1910-1929). In: D’ALFONSO, Maddalena (Org.). De Chirico: o sentimento da arquitetura – obras da Fondazione Giorgio e Isa de Chirico. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2011, p.45-60. PEYRONIE, André. Ariadne; Labirinto. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Trad. Carlos Sussekind et al.. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, p. 82-88; 555-581. Lista das pinturas citadas no texto (em ordem de entrada) Viagem Ansiosa, 1913. Tela, 74,3 x 106,7cm. Nova Iorque, The Museum of Modern Art, EUA. Ariadne, 1913. Tela, 135,6 x 180,5cm. Nova Iorque, The Metropolitan Museum of Art, EUA. Enigma de um Dia (I), 1914. Tela, 185,5 x 139,7cm. Nova Iorque, The Museum of Modern Art, EUA. Mistério e Melancolia de uma Rua, 1914. Tela, 87 x 71,5cm. Coleção Particular. O Filho Pródigo, 1922. Tela, 87 x 59cm. Milão, Civico Museo d’Arte Contemporanea, Itália. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 304 ÍNDICE ANEXOS 1. Viagem Ansiosa, 1913. Tela, 74,3 x 106,7cm. Nova Iorque, The Museum of Modern Art, EUA. 3. Enigma de um Dia (I), 1914. Tela, 185,5 x 139,7cm. Nova Iorque, The Museum of Modern Art, EUA. 2. Ariadne, 1913. Tela, 135,6 x 180,5cm. Nova Iorque, The Metropolitan Museum of Art, EUA. 4. Mistério e Melancolia de uma Rua, 1914. Tela, 87 x 71,5cm. Coleção Particular. 5. O Filho Pródigo, 1922. Tela, 87 x 59cm. Milão, Civico Museo d’Arte Contemporanea, Itália. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 305 ÍNDICE Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 306 ÍNDICE “Trimalchio in west egg” ou The great Gatsby Jassyara Conrado Lira da Fonseca∗ Introdução Quando Francis Scott Fitzgerald trabalhava no rascunho de seu romance The Great Gatsby cogitou chamá-lo de Trimalchio ou Trimalchio in West Egg, em uma evocação direta à personagem do Satíricon de Petrônio (? -65d. C.). O editor Max Perkins que o acompanhou por toda a sua carreira, dissuadiu-lhe da ideia de manter tal título, pois intuía no fracasso comercial que este lhes traria. No entanto, em 2000 a editora da Universidade de Oxford lançou o romance que deu origem ao texto conhecido como The Great Gatsby atualmente, com o título pretendido pelo autor, uma obra que se diferencia da popular o suficiente para justificar sua publicação e seu valor. Um enorme intervalo de tempo separa Fitzgerald do escritor romano, que segundo a tradição teria vivido na época de Nero; no entanto foi o Satíricon, mais especificamente o episódio “O Banquete de Trimalquião”, que inspirou a personagem título do romance de 1925. A editora Cosac Naify, ao lançar a tradução do professor Cláudio Aquati em 2008, publicou em seu site um comentário sobre a edição e uma entrevista com o tradutor. Respondendo a uma pergunta sobre a relevância e aceitação de uma obra com vinte séculos de existência o tradutor responde: Acredito que o que chamou a atenção foi uma quebra de paradigmas empreendida por Petrônio, da qual resulta uma interpretação de seu tempo, tão inteligente e tão talentosa que nela não se vê qualquer traço de julgamento. Talvez o que vem promovendo a aproximação entre Satíricon e seus leitores modernos seja justamente o que os repele ou lhes causa aversão: quanto maior a repulsa, com maior atenção o leitor examina. O caráter irônico que em Petrônio interessa o leitor e lhe causa repulsa se dá também em The Great Gatsby, contudo de forma mais sutil. A caracterização do protagonista pode levar o leitor ao riso, mas ao certo o emocionará pela sua qualidade ingenuamente romântica. A ideia de uma análise em paralelo das duas obras parte da própria narrativa de ∗ Mestre em Estudos Literários pela UNESP/Araraquara. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 307 ÍNDICE Fitzgerald. Ao declarar o fim da temporada de festas na mansão Gatsby, o narrador do romance – Nick Carraway – evidencia a semelhança entre Gatsby e Trimalquião: “It was when curiosity was at the highest about him was that his lights failed to go on one Saturday night – and as obscurely as it had begun, his career as Trimalchio suddenly ended.” (FITZGERALD, 2000, p. 88)12 Essa informação concedida pelo próprio narrador não poderia ser ignorada, contudo, as semelhanças encontradas nos dois textos ultrapassam o fato explicitado na leitura do romance norte-americano: o de se tratar também de um anfitrião famoso e novo rico. Um outro dado curioso vem do fato de haver na narrativa de Petrônio uma personagem chamada Nicerote, conhecido como um grande contador de histórias, que no Satíricon é apresentada pelo próprio Trimalquião: “Você costumava ficar animado num banquete, sei lá [...] Você está tão quieto, não fala nada... Quer me deixar satisfeito? Então eu estou lhe pedindo: conta um caso que aconteceu.” (2008, p.82) A semelhança dos nomes Nicerote e Nick é pouco representativa para as narrativas, no entanto consta como uma possível inspiração para o nome dado por Fitzgerald ao seu narrador. E também surge como um indício de que a aproximação entre os dois romances extrapola a simples caracterização das personagens Jay Gatsby e Trimalquião. As histórias contadas por ambos os narradores, no entanto se afastam na temática: enquanto Nick narra as experiências vividas ao lado de Gatsby no verão de 1925, Nicerote narra histórias que se aproximam do fantástico, mesmo dizendo tê-las presenciado. De qualquer forma, com a análise em paralelo dos dois romances, outras semelhanças se mostram possíveis, e algumas delas, serão apresentadas neste artigo. 1 Petrônio e o Satíricon As dimensões da obra de Petrônio são desconhecidas, assim como determinadas características de sua identidade também nos chegam de maneira imprecisa. (HARVEY, 1998) A estrutura do Satíricon contém temas que ainda são enigmáticos para os estudiosos, 1 2 Foi quando a curiosidade acerca de Gatsby atingiu o ápice, que as luzes de sua casa deixaram de acender-se em uma noite de sábado – e, tão obscuramente como começara, sua carreira como Trimalquião assim terminava. As traduções de Trimalchio apresentadas neste artigo são de nossa autoria. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 308 ÍNDICE no entanto, esse fato não impede de situá-lo em um período histórico, o principado de Nero. E quanto mais forte é sua ligação com o período e o espaço, maior é a liberdade em relação à temática e à forma. O autor inclui em sua obra a história de personagens marginalizadas, deixando-as retratadas e marcando seu lugar na literatura universal. Dentro dos gêneros literários antigos, a obra parece se enquadrar na tradição da sátira menipeia (CONTE,1999), relativamente ao tema moralizante e à mistura de partes em prosa alternadas com partes em verso características desse gênero literário. O texto nos chegou fragmentado, todavia o que restou dele é suficiente para classificá-lo como uma obra literária essencial e de incomparável valor para a contextualização da vida na Roma antiga. “O Banquete de Trimalquião” é o episódio mais longo entre os fragmentos que compõem o Satíricon. Do romance como um todo provêm imagens de uma cidade em decadência, e do episódio em especial, cenas de orgias e depravações. Para compreender melhor a inserção do episódio na narrativa petroniana, é importante conhecer, brevemente, a jornada das personagens até o momento em que se dá o banquete: dois jovens viajam na região onde hoje é Marselha, Encólpio (narrador e personagem principal) e Gitão. Ao profanar o culto ao deus Priapo, Encolpo desperta a sua ira e passa a viver sob a maldição de uma impotência sexual intermitente. Após o castigo conhece Gitão, apaixona-se por ele e passa a viver movido por um feroz sentimento de ciúme. Juntos vivem muitas peripécias até que conhecem Ascilto, com quem passam a integrar um triângulo amoroso. A história segue com vários episódios eróticos e pitorescos até o momento em que eles se juntam a outras personagens no trecho mais conhecido e integralmente conservado da obra: “O Banquete de Trimalquião”. 2 Francis Scott Fitzgerald e The Great Gatsby O livro que rendeu mais fama a Francis Scott Fitzgerald – The Great Gatsby – revelanos a frenética vida levada pelos americanos de Long Island na década em questão. Os anos 20 foram marcados por características muito específicas, facilmente observáveis na moda, nas danças, tipos de comida e bebida e, principalmente, na música. A década de 20 ficou conhecida, nos Estados Unidos, como a “Era do Jazz”, e a cadência que regia o estilo de vida dessa geração assemelhou-se muito ao ritmo ouvido e dançado nos salões de baile naquela época. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 309 ÍNDICE A efervescência dos anos 1920 testemunha a história de Jay Gatsby. Um mundo preenchido por excentricidades e extravagâncias em que viveu esse exemplar representante da “Era do Jazz”. Um homem que para recuperar o amor de sua namorada da juventude, dedica cinco anos de sua vida a fazer fortuna, o que acreditava necessário para reconquistar Daisy. Nunca chegando a desistir, nem mesmo quando ela se casa, nem mesmo quando percebe que a mulher com quem sonhou por tanto tempo jamais existiu. A capacidade de Gatsby de manter, ingenuamente, uma ilusão em relação à perfeição de Daisy alimenta sua busca obstinada e, por fim, autodestrutiva, para retomar esse romance. Essa obsessão que move o protagonista no sentido de mudar a sua história, construir para si uma personagem feita de seus sonhos de garoto, é a mesma que o faz jamais desistir de reviver sua história com Daisy. O apego obstinado ao passado o impede de vivenciar plenamente o presente e o leva ao final trágico. 3 A aproximação entre as obras As semelhanças entre as duas obras parte das personagens que as protagonizam, por se tratar de dois excêntricos emergentes que ao enriquecerem bruscamente passam a adotar uma postura de ostentação de luxo, requinte e poder, postura essa mostrada em festas espetaculares por eles organizadas. Porém a aproximação entre as duas obras não se restringe apenas às personagens o que será mostrado a seguir com exemplos dos dois textos. 3.1 Carnavalização A fim de nortear as análises comparativas das duas obras utilizou-se a teoria de Mikhail Bakhtin para a carnavalização na literatura. Conceito proposto pelo filósofo russo em seu livro Problemas da Poética de Dostoiévski (1981). No qual o autor apresenta o tema do carnaval, afirmando que uma de suas manifestações mais antigas se deu nos primórdios da Idade Média, sobre uma representação religiosa (uma procissão), relatada por Orderico Vital, um historiador do século XI. O autor, no entanto alerta para o fato do termo “carnaval” não ser mencionado nos relatos medievais. O tema é desenvolvido pelo filósofo por meio da análise da obra de Rabelais, onde aparece a carnavalização do inferno. A interpretação do texto rabelaisiano como carnavalesco confirma-se na lógica das permutações – inversão de papéis – característica mais imediatamente ligada ao conceito. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 310 ÍNDICE Mais adiante, Bakhtin passa a analisar duas obras do escritor russo Fiódor Dostoiévski: O Jogador e Memórias do Subsolo. E da seguinte forma utiliza o espetáculo do carnaval para criar conceitos passíveis de interpretar a literatura: O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto elas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual3, e em certo sentido uma “vida às avessas”, um mundo invertido. (1981, p.105) De acordo com o teórico no primeiro autor o riso – característico dessa inversão de papéis num espetáculo e do inacabamento dos diálogos – se dá de maneira estridente, enquanto no romancista russo acontece através da função do cômico-sério e do riso reduzido. Ele também difere entre riso exterior e interior, sendo os dois exemplos encontrados nas obras mencionadas acima, respectivamente. Os textos literários analisados neste artigo representam as duas manifestações propostas do espetáculo carnavalesco: enquanto em Satíricon tem-se um espetáculo público – no jantar oferecido por Trimalquião – com caráter cômico marcado e explícito, o espetáculo oferecido por Gatsby aos seus convidados esconde um riso, que mesmo velado não deixa de aparecer nos comentários maledicentes dos frequentadores de seus bailes. Interessa, portanto, para esse estudo observar não apenas a característica carnavalizada das personagens, como também a construção do espaço das festas sob a ótica carnavalesca. Bakhtin inclusive trata da sátira menipéia em sua obra, citando o Satíricon como exemplo e analisando mais largamente o texto Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, satírico que viveu na Grécia no século II d. C. A composição de personagens por meio de pares de opostos também integra a carnavalização, Bakhtin mais uma vez, cita um exemplo do escritor Dostoiévski para ilustrar a composição de um herói que vai de miserável a milionário da noite para o dia, na obra O Idiota. Nesse romance ainda tem-se a ridicularização do herói que tido como tolo quando 3 Grifos do autor. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 311 ÍNDICE pobre é “aceito” como muito sabido após o enriquecimento, caso semelhante ao de Trimalquião e de Gatsby. 3.2. A caracterização das personagens Nesta análise temos exemplos dos dois tipos de personagens carnavalizadas propostas por Bakhtin: o primeiro, mais caricato, ocasionando o riso fácil e o segundo menos obviamente engraçado, todavia sem excluir a ironia. Jay Gatsby é em si uma figura carnavalesca, visto que tranforma-se em outro homem para ser aceito por Daisy, inverte seu status para tornar-se digno de seu amor. A inversão de papéis é um conceito essencial para a teoria da carnavalização bakhtiniana, a caracterização de personagens invertidas pode acontecer por meio de figurinos e cenários, assim mostra-se na narrativa de 1925. O protagonista tem sua elegância contestada sempre que faz uma escolha mais ousada em seu figurino, causando estranheza, despertando o riso de algumas personagens e ofendendo os olhos tradicionais de sua amada. Já em Satíricon a maneira como o anfitrião aparece na festa extrapola as barreiras da ironia. Trimalquião e Gatsby são apresentados aos que participavam das reuniões pela primeira vez por outras personagens, por algum convidado que já conhecia o interior de suas casas e a natureza de suas festas. No trecho citado a seguir, pertencente ao Satíricon, há um comensal assíduo aos banquetes de Trimalquião que o apresenta aos aventureiros já no começo do episódio. E no excerto de The Great Gatsby tem-se a primeira visita que o narrador faz a seu vizinho e protagonista da história, no momento em que pede à Jordan Baker informações sobre o seu anfitrião. – O quê? Vocês não sabem na casa de quem vai ser o banquete hoje? Trimalquião, homem cheio de luxos! Até um relógio ele tem no triclínio, mais um tocador de trompa equipado, para saber a qualquer instante o quanto perdeu da vida. (PETRÔNIO, 2008, p.41) When he was gone I turned immediately to Jordan, constrained to assure her that I rather liked him. “He says he’s an Oxford man,” she remarked. “Have you got some prejudice against Oxford?” “I don’t think he went there.” “Why not?” Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 312 ÍNDICE “I don’t know,” she insisted. “I just don’t think he did.” (FITZGERALD, 2000, p.41)4 A entrada de Trimalquião no banquete acontece como um espetáculo, todavia a aparição de Gatsby se dá de forma discreta, quase sorrateira. E isso não acontecia porque esse anfitrião não desejasse ser notado, e sim porque não queria ser notado por qualquer um. Gatsby tinha intenções muito claras ao promover essas festas, queria tornar-se famoso de modo a atrair Daisy a uma delas, ou mesmo para que notícias dele e de seus bailes chegassem até ela. Fato que acaba acontecendo em determinado momento da narrativa quando Jordan e Nick se referem a ele em uma conversa na presença de Daisy. O público dos dois anfitriões era muito parecido, mas o foco era totalmente diferente. Jay Gatsby é uma versão diluída de Trimalquião. A distinção entre as duas personagens deriva dos diferentes efeitos de sentido buscados nas duas obras, enquanto o Satíricon possui descrições comprovadamente grotescas, que causam o riso “estridente” (BAKHTIN, 1981), em The Great Gatsby também há efeitos carnavalescos, mas derivados da ironia, provocando o que o teórico russo denomina riso “reduzido”. Trimalquião é descrito de maneira irônica, o que o torna uma personagem carnavalizada. Ao passo que a Gatsby – mesmo com comprovadas marcas de carnavalização – é conferida uma elegância romântica que não lhe salvava totalmente do ridículo de passarse por um grande herdeiro educado em Oxford, contudo preservava seu charme de homem apaixonado e extremamente determinado. 3.3 Os cenários No “Banquete de Trimalquião” até mesmo a comida é apresentada de forma indiscreta, os comensais sentam-se à mesa como quem toma parte em uma encenação cuidadosamente ensaiada. A comida servida nas festas de Gatsby é descrita de forma muito 4 Quando ele saiu, eu me virei para Jordan para assegurá-la de que havia gostado dele. – Ele diz ser um homem de Oxford. – ela afirmou. – E você tem algo contra Oxford? – Eu não creio que ele tenha estudado lá. – E por que não? – Eu não sei – ela insistiu. – Apenas não acredito. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 313 ÍNDICE detalhada, de maneira a criar um quadro rico em imagens e sensações. Os pratos são arranjados de modo a formarem com o resto do ambiente uma conjugação de requinte e abundância. Há nessas cenas os sinais de fartura característico dos novos ricos, mas há também uma delicadeza na escolha das palavras utilizadas pelo autor, como se ele fosse criando um quadro para os leitores, as imagens são belas e quase palpáveis. E dessa forma, combinam-se com outros elementos na ambientação das ostensivas festas. Outra característica comum às duas narrativas – e que se revela também durante as festas – é a presença de um objeto de valor inestimável: uma biblioteca. Mais do que um objeto, um local capaz de assegurar as maiores inquietações e provir informações acerca de enorme variedade de assuntos. Esse espaço, que é ao mesmo tempo um templo do conhecimento e da arte, funciona como mais um item de ostentação de monumentosa riqueza. O cômodo, dessa forma, participa da ambientação das duas casas e auxilia na definição das personagens, que provavelmente não faziam uso de suas bibliotecas, todavia sabiam o valor social de ser um homem de cultura, ou o peso de se ser inculto. É como se por meio de suas bibliotecas conseguissem uma prova física de seu conhecimento e valor. Agora quero juntar a Sicília às minhas terrinhas, para quando eu entender de ir à África eu navegue pelos meus domínios. [...] E não pense que eu despreze os estudos: tenho três bibliotecas, uma grega e uma latina. (PETRÔNIO, 2008, p.67) “What do you think?” he demanded impetuously. “About what?” He waved his hand toward the bookshelves. “About that. As a matter of fact you needn’t bother to ascertain. I ascertained. They’re real.” (…) “Absolutely real – have pages and everything. I thought they´d be a nice durable cardboard. Matter of fact, they’re absolutely real.” (…) “It’s a bona-fife piece of printed matter.” (…) He snatched the book from me and replaced it hastily on its shelf, muttering that if one brick was removed the whole library was liable to collapse. (FITZGERALD, 1994, p.51-52)5 5 − O que você acha? – ele perguntou impetuosamente. − Acerca do quê? Ele apontou para as estantes de livros. − Acerca disto. Você não precisa se dar ao trabalho de conferir. Eu já o fiz. Eles são reais. (...) Absolutamente reais ... com páginas e tudo. Pensei que fossem feitos de papelão. Mas não, são absolutamente reais. (...) Uma amostra genuína da matéria impressa. (...) Ele arrancou-me o livro das mãos e recolocou-o apressadamente na estante, murmurando que, se um tijolo fosse removido, a biblioteca toda poderia desmoronar. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 314 ÍNDICE Em uma constante tentativa de mostrar erudição, Trimalquião faz comentários que chegam a ser hilários de tão confusos, mistura narrativas clássicas e faz citações errôneas despertando risos velados em seus convidados. No trecho do banquete acima, Trimalquião coloca o conhecimento como um bem passível de compra, quando diz que possui três bibliotecas. A biblioteca de Gatsby é apresentada a Nick por outro convidado da festa, que ao se mostrar surpreso com o fato de deparar-se com livros reais, revela a opinião que tem a respeito de seu anfitrião. Os dois anfitriões são − para muitos ali presentes e para eles mesmos – retratados pelos bens que possuíam. Essa característica de refletir-se em suas posses, nas escolhas de decoração e de cardápio, cria um ambiente muito significativo e fértil para a análise das personagens. O leitor as reconhece na maneira que os narradores descrevem seus bens, seus hábitos e principalmente seus espaços. 3.4 A festa como um tema As reuniões sociais promovidas pelas duas personagens são pontuadas de características exageradas e atraem o leitor por seu caráter cômico. Esse tom irônico é muito mais comum em “O Banquete de Trimalquião”, por tratar-se de uma obra satírica, o riso fazse um elemento fundamental. Mas mesmo no romance de 1925 existem personagens e cenas que são tão exageradamente caracterizadas, que tornam a aproximação entre as duas obras, no que se refere à ambientação das festas, mais obviamente possível. O ponto que mais aproxima as personagens – o fato de serem anfitriões de famosas reuniões sociais – está refletido na descrição dos espaços. Com proporções diferentes, as obras apresentam dois homens que, na tentativa de firmarem-se socialmente, oferecem grandes e fartas festas. A maneira como o fazem é tão exagerada, a ostentação de seus bens é tão evidente, que o texto ganha um sentido cômico e carnavalizado. Os cenários são descritos com características circenses, como grandes espetáculos à procura de um público. Tanto o banquete de Trimalquião quanto as festas de Gatsby são ambientes bastante democráticos. Na verdade, a mistura de diferentes pessoas em um mesmo evento aumenta o Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 315 ÍNDICE interesse pela festa. A forma como Nick Carraway narra as festas na mansão do protagonista assemelha-se muito aos acontecimentos narrados no banquete: o ambiente, as iguarias oferecidas aos comensais, os incidentes grotescos que ocorrem durante o jantar, as conversas cômicas, a embriaguez dos convidados e principalmente, a interação das personagens durante as reuniões. Bakhtin explica que essa ausência de barreira entre as pessoas é fundamental para a criação de um espaço carnavalizado. Nick compara os jardins da casa de Gatsby e a forma como ali se comportam os convidados a um parque de diversões. O caráter carnavalesco em The Great Gatsby dá-se de maneira mais discreta, porém acontece também com a mistura de personagens representantes das diferentes classes sociais que no livro se dividem em West Egg, East Egg e The Ashes Valley. Todos são bem vindos à mansão Gatsby, já que o anfitrião realmente não se importa com a presença das pessoas individualmente, é a aglomeração delas que interessa ao protagonista. No banquete, o “mundo invertido” pensado por Bakhtin começa na figura do anfitrião – um escravo liberto que enriqueceu subitamente, passando a senhor – e atinge os convidados, pertencentes a diferentes classes sociais. Ao final da festa os escravos também comem e bebem do mesmo que foi servido aos demais convidados. Há uma disputa entre um desses escravos e Fortunata (mulher de Trimalquião), comprovando mais nitidamente a relação que existia entre as personagens, invertendo a ordem comum entre escravos e senhores – esse escravo monta nas costas de Trimalquião e brincam de cavalgar na frente de todos os convidados e da ciumenta mulher. No final do banquete, quando outros convidados entram em um banho público, esse caráter de “vida carnavalesca”, sem diferença entre atores e espectadores, se intensifica. Tais cenas abertamente cômicas garantem ao texto um caráter de humor ausente na obra de Fitzgerald, ao invés do riso estridente encontra-se a ironia em The Great Gatsby, de forma mais delicada e velada. Nota-se, no decorrer do banquete, através dos discursos proferidos, que as pessoas vão gradativamente se embriagando. Isso acontece de tal maneira que a coerência nas conversas fica excluída. Assim como assuntos íntimos chegam até a mesa, podendo ser discutidos por todos. O casal – Trimalquião e Fortunata – brigam e as mulheres se defendem em uma demonstração de carinho bastante vulgar. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 316 ÍNDICE −Ah!... então o vinho vive mais que o pobre do homem. Por isso devemos é tomar um porre. Vida é vinho. Estou oferecendo um opimiano autêntico. Ontem não servi um tão bom, e ceavam pessoas muito mais importantes. (PETRÔNIO, 2008, p.50) − Ora! Essa biscate não se lembra do que era? Eu a tirei do estrado onde ela estava exposta à venda! Eu fiz dela um ser humano! [...] Mas então: quem nasceu numa cabana não tem sonhos com palácios. (PETRÔNIO, 2008, p.101) Em Fitzgerald, o gradual efeito do álcool fica evidente na passagem que se refere a uma cantora lírica, cuja embriaguês beira a indignidade: The large room was full of people. One of the girls in yellow was playing the piano, and beside her stood a tall, red-haired young lady from a famous chorus, engaged in song. She had drunk a quantity of champagne and during the course of her song she had decided, ineptly that everything was very, very sad – she was not only singing, she was weeping too. Whenever there was a pause in the song she filled it with gasping, broken sobs, and then took up the lyric again in a quavering soprano. The tears coursed down her cheeks – not freely, however, for when they came into contact with her heavily beaded eyelashes they assumed a deeply inky color, and pursued the rest of their way in slow back rivulets. A humorous suggestion was made that she sing the notes on her face, whereupon she threw up her hands, sank into a chair, and went off into a deep vinous sleep. (FITZGERALD, 2000, p.43)6 A embriaguez evidencia-se também nas danças – Trimalquião oferece sua esposa Fortunata como par de um tipo de dança popular e erotizada – e no banho grupal que decidem tomar ao final do banquete, características bem marcantes de uma construção de cenário carnavalizado. As danças em The Great Gatsby também são sensuais e o álcool intensifica seu caráter erótico. Mesmo não sendo explícito no romance norte-americano, ambas as festas apresentam o álcool como um catalisador para cenas espetaculares. 6 O salão estava cheio de gente. Uma das moças de amarelo tocava piano, enquanto ao seu lado, uma jovem senhora alta e ruiva, integrante de um coro famoso, estava envolvida com uma canção. Bebera considerável quantidade de champanhe e durante sua apresentação, decidira, ineptamente, que tudo era muito, muito triste – ela não apenas cantava, mas também chorava. Sempre que havia uma pausa na canção, ela a preenchia com soluços e suspiros. E então, retomava a letra em trêmulo soprano. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto – mas não livremente, já que elas demoravam-se nos cílios excessivamente maquiados, adquirindo assim uma cor bastante escura, e continuavam seu caminho como um lento riacho. Alguém sugeriu, ironicamente, que ele entoava as notas estampadas em seu rosto, e assim ela ergueu as mãos, afundou-se em uma cadeira e mergulhou em sono profundo. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 317 ÍNDICE Considerações finais As duas obras partilham, ao final, mais um cenário ambientado sob a mesma temática: um funeral. No caso do banquete, um falso funeral que contribui para o caráter cômico da obra. Trimalquião ordena aos seus escravos que chorem sua morte, ao lado de sua esposa, como que para garantir com esse ensaio o sucesso da última reunião social oferecida em sua homenagem. A algazarra chama a atenção dos guardas da vizinhança, que ao chegarem criam uma confusão maior do que a inicial. Assim, os aventureiros, Encólpio e Gitão, podem sair sem serem notados. Da mesma forma que Trimalquião, a morte pairava próxima a Gatsby. Ele precisou deixar de ser a pessoa que era no passado, renascer e reinventar-se na figura de um novo homem. Jay Gatsby morreu muito jovem, no começo dos seus trinta anos. Trimalquião, ao contrário, tinha a previsão de viver mais trinta e quatro anos. A grande vantagem que o anfitrião de Fitzgerald teve em relação ao de Petrônio foi o fato de ter um amigo que sinceramente lhe dedicava carinho e consideração, que por ele disse as últimas palavras num belo discurso sobre a morte como parte da vida e, portanto como um pequeno passo em direção ao futuro. O respeito que Nick dedicou a Gatsby, de certa forma validou seu esforço e conferiu à vida do protagonista um pouco mais de sentido. Assim como o tema da morte apresenta-se nas duas narrativas, a exaltação da vida importa para ambas as histórias. −Mas então, já que a gente sabe que vai morrer, porque não ... viver? Então eu quero ver todo mundo contente ... (2008, p.98), esse é o convite feito por Trimalquião aos seus comensais. E esse apelo/convite é o mesmo que esteve rondando toda a década de 1920, sendo The Great Gatsby um emblemático exemplo de como as pessoas buscavam o entretenimento e de como se formava o estilo de vida dessa geração à qual se convencionou chamar “geração perdida”. Referências BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. In:__Os pensadores. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia doValle Santos Leal.São Paulo: Ed. Victor Civita, 1984. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiésvski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 318 ÍNDICE CONTE, Gian Biagio. Latin Literature: a history. Translated by Joseph B. Solodow. London: Johns Hopkins University Press,1999, p. 453-465. FILHO, Ozíris Borges e BARBOSA, Sidney. (Orgs.) Poéticas do espaço literário. São Carlos: Claraluz, 2009. FITZGERALD, Francis Scott. O grande Gatsby. Trad. Brenno Silveira. Rio de Janeiro: Record, 1980. __________________. The great Gatsby. New York: Penguin, 1994. ________________. Trimalchio: An Early Version of The Great Gatsby. New York: Cambridge University Press, 2000. GRANT, Michael. História de Roma.Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. MEYERS, Jeffrey. Scott Fitzgerald: Uma biografia. Trad. Mauro Gama. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. PETRÔNIO. Satíricon. Trad. Cláudio Aquati. São Paulo: Cosac Naify, 2008. SILVEIRA, Brenno. A Era do Jazz e F. Scott Fitzgerald. In: FITZGERALD, F. S. 6 Contos da Era do Jazz. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 41-48. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 319 ÍNDICE Liber ad usum cisterciensium: a presença do latim em um manuscrito quatrocentista Lisana Rodrigues Trindade Sampaio (UFBA/CAPES – ME) Orientador: Américo Venâncio Lopes Machado Filho (PROHPOR/UFBA) Introdução A Última flor do Lácio, que é “a um tempo, esplendor e sepultura”, como bem define Olavo Billac em seu poema Língua portuguesa, ainda permanece, em grande parte, “desconhecida e obscura”. Na tarefa de investigar a constituição histórica do português, motivados pela abertura de novos caminhos para o seu conhecimento, especialmente após a revolução informática, muitos estudiosos têm-se dedicado a observar períodos recuados do passado, cuja base empírica é a matéria escrita. Em seu reconhecido esforço em perscrutar a história da língua portuguesa, a renomada estudiosa Rosa Virgínia Mattos e Silva, da Universidade Federal da Bahia (2008), sublinha a importância da Filologia para a Linguística Histórica, uma vez que, a primeira é a base de dados para a segunda. Em outros textos, como no livro O português Arcaico: fonologia, morfologia e sintaxe (2006), a autora, antes referida, ressalta também a importância do conhecimento do latim para o estudo da história do português, já que aquela língua clássica foi-se transformando aos bocados até virar o que Caetano Veloso ousou chamar de “latim em pó”. É nessa perspectiva que se pretende, aqui, apresentar alguns aspectos concernentes à presença significativa da língua latina, em especial, no códice intitulado Livro dos Usos da Ordem de Cister, de 1415, cuja edição é objeto de investigação de mestrado, em curso na Universidade Federal da Bahia. 1 O códice e o contexto histórico de sua produção O florescimento das línguas românicas, oriundas do latim, como se sabe, se deu no decorrer da Idade Média, período marcado pelo surgimento de um novo cenário sociopolítico e pelo domínio, sobretudo cultural e econômico, da Igreja. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 320 ÍNDICE A Igreja ocupou um lugar de destaque no desenvolvimento da sociedade do medievo e a sua supremacia lhe garantiu posição e poder. Veja-se o que diz Arruda (1976, p. 350): A Igreja teve um papel importante na vida da sociedade medieval, não somente na condução de almas para a salvação, mas também no domínio material, quando se identificou com a própria sociedade feudal. Data venia quanto a alegada “condução de almas para a salvação”, é certo que a Igreja deteve grande parte das riquezas materiais desse período, e por isso mesmo, marcou inexoravelmente sua importância na sociedade da época. Aliás, a relação entre a Igreja e o Estado começou no Império Romano; depois da oficialização do cristianismo, o Estado passou a proteger a Igreja, recebendo em troca a legalização divina do seu poder. (ibid., p. 351) Essa “legalização do poder” se estendeu por séculos, ganhando força no cenário feudal, em função do atomismo social que caracterizou esse período histórico. Quando começaram a se firmar as línguas românicas em torno desse contexto, o latim continuou sendo a língua da cultura e, sobretudo, da escrita durante longo tempo, já que as línguas surgentes não carregavam consigo, ainda, o prestígio sociocultural. Em Portugal, o romance só é oficializado nos finais do século XIII, mais especificamente em 1295, por D. Dinis, com a criação da Universidade de Coimbra. Entretanto, não se pode deixar de registrar que anotações em língua portuguesa surgem, intermitentemente, nos primórdios desse mesmo século1, em que o Testamento de Afonso II (1214) e a Notícia de Torto (1214-1216) podem figurar como exemplos. Essa intermitência se inverte posteriormente, ou seja, as produções textuais das chancelarias reais, que inicialmente eram mais regulares em latim, passam a utilizar com maior frequência o português e, eventualmente, sua matriz linguística. Não obstante o processo de afirmação da língua portuguesa em textos escritos, o latim continuará a “assombrar” com a sua força de língua de cultura por muitos séculos, 1 Questão ainda em debate, já que a Professora Ana Maria Martins (1999) propõe um recuo para o século XII (1175), não ser sem contrariada por outros autores, como António Emiliano (2001). Sobre essa questão ver Mattos e Silva. (2006, pp. 21-26) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 321 ÍNDICE quer insinuando-se nos aspectos grafemáticos de representação lexical do português, quer com esta se alternando na conjuntura morfossintática, à guisa de code switching2. Dessa forma, infiltrando-se pela ação de sua tradição discursiva na língua portuguesa ou quiçá por ser próprio à humanidade a insurreição contra o novo, a presença latina vai-se perpetuando em algum grau durante muito tempo na produção escrita, já que a língua perpassa a fronteira da Escola, da Liturgia, do Direito, da vida social, enfim. Os textos históricos comprovam essa assertiva. Se se observar o patrimônio documental da língua portuguesa, pode-se constatar que, até mesmo no presente, o latim continua a estender seu espectro de ação, sobretudo lexical. Para ilustrar o que aqui se afirma, pode-se citar, o Flos Sanctorum3, documento trecentista, de natureza hagiográfica4, que apresenta um português embebido de latinismos gráficos e diversos trechos em que o latim se alterna com o português. Note-se que, como já dito, com a desintegração do império romano, a língua se transforma mais livremente e o latim escrito também se altera significativamente. Assim, sua presença em alguns documentos, especialmente naqueles produzidos na România Nova, não mais reflete os usos clássicos, mas o que tardiamente se passou a denominar de latim medieval. O estudo do latim patente na história de documentos escritos pode contribuir para a investigação das mudanças estruturais por que passou em direção ao português, assim como para o estudo das variantes da língua clássica que não foram documentadas, como o latim vulgar, do qual não há registros escritos. Conforme afirma Parera (1953, p. 25): El carácter arcaico de estos documentos tiene un especial valor si se considera que no existen textos que puedan dar-nos una idea clara de lo que debió ser el latin vulgar y tardio [...].5 2 3 4 5 Code Swintching é a alternância de código linguístico. Cf. Poplack, Shana (2004). O Flos Sanctorum é um dos Manuscritos Serafim da Silva Neto, que juntamente com o Livro das Aves e os Diálogos de São Gregório, compõe o conjunto dos documentos mais antigos escritos em língua portuguesa, no Brasil. Tais obras integram, desde 1964, o acervo da Divisão de Coleções Especiais da Biblioteca Central da Universidade de Brasília. (MACHADO FILHO, 2009, p.19) A edição do Flos Sanctorum (Diplomática e Interpretativa), estudo linguístico e glossário exaustivo foram tema da tese de Machado Filho (2003). A edição Interpretativa foi publicada em 2009, pela Editora UnB. “O caráter arcaico destes documentos tem um especial valor se se considera que não existem textos que podem dar uma ideia clara do que pode ter sido o latim vulgar e tardio [...]”. (tradução livre) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 322 ÍNDICE Esse espólio linguístico sobrevivente pertence em sua grande maioria ao ambiente eclesiástico, uma vez que, as invasões bárbaras pouparam em algum grau suas bibliotecas dos Mosteiros. Veja-se que a maior biblioteca medieval portuguesa pertencia à Abadia cisterciense de Alcobaça que em seu apogeu contou com cerca de 500 volumes – os conhecidos códices alcobacenses.6 Esses códices, hoje arquivados na Biblioteca Nacional de Lisboa, constituem precioso filão para conhecer-se a história cultural portuguêsa em suas origens. A importância avulta não só pela quantidade, pois representa valioso acervo [...], mas também pelo material inédito que se entesoura naqueles pergaminhos e que, pouco a pouco, vem iluminando o passado e esclarecendo o presente, em particular no que diz respeito à história da língua portuguesa. (VEIGA , 1959, p. 9) Dentre esses documentos remanescentes, identificou-se um manuscrito intitulado Livro dos Usos da Ordem de Cister, do qual, em uma pesquisa preliminar, se tem revelado não existir qualquer edição. Reconhecido seu valor religioso, histórico e linguístico, considera-se sua edição e o estudo do seu léxico uma tarefa que pode contribuir em alguma instância para a investigação da trajetória histórica do português. Composto de 113 fólios, em reto e verso, escrito em letra gótica com iniciais filigranadas a azul e vermelho, possui, além do Prólogo, quatro partes: Tauoa de capitulos, o Liber ad Usum cisterciensium, Distinctio quinta Da commemoraçam de santa, Estas som as horas que os frades confessos da Ordem de Cister deve dizer. Com base na segunda parte do códice, isto é, o Liber ad usum cisterciensium, é que se pretende apresentar uma observação sobre a presença do latim nesse texto do século XV. 2 Liber ad usum cisterciensium O Liber ad usum cisterciensium representa a maior parte do códice, contando com cerca de 90 fólios, em reto e verso (4v-101v), de um total de 113 fólios. Note-se que dos quatro títulos que compõem o códice, apenas este se encontra totalmente em latim, já que dois outros estão em português e o terceiro oscila entre o latim e o português. O emprego dessa estratégia de alternância de código nos títulos já se configura como uma denúncia ao que se quer aqui comprovar. Em todos os fólios há trechos em latim, 6 Embora possa parecer diminuto esse número de obras, na Idade Média, o livro era bastante caro. Para se ter ideia, um código penal custava 50 bois ou 200 carneiros. (Cf. Silva Neto, 1956) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 323 ÍNDICE que variam em extensão. Logo no primeiro, como se pode observar na ilustração abaixo, a antífona, isto é, a resposta cantada durante a liturgia Católica, é indicada em latim com abreviatura. (Figura 1: excerto do fólio 4v, retirado de < http://purl.pt/15004/1/>) Numa tradução livre, pode-se ler ‘O Senhor viu Pedro’. Uma vez que, mesmo não se tratando do latim clássico, é possível identificar algumas formas morfológicas correspondentes, é o caso das palavras que compõe a antífona vidit dominus petrum: o verbo vidit é a forma da 3ª pessoa do singular do Perfeito (indicativo/ativo) do verbo videre (‘ver’). Em seguida vem a palavra dominus abreviada, que em latim significa “o Senhor, Deus”7 e é provável que esteja no nominativo, para concordar com Petrum, ambas palavras da 2ª declinação, Petrum, que por exercer a função sintática de objeto direto, está no caso acusativo, concorda com dominus, que exerce função sintática de sujeito (caso nominativo). Nesse período um conhecimento básico da morfologia do latim clássico permite a sua leitura. O mesmo acontece em outros períodos, como por exemplo, em outras antífonas que aparecem no decorrer do documento, como se pode ver na figura abaixo: (Figura 2: excerto do fólio 5r, retirado de < http://purl.pt/15004/1/>) Não é dificil verter para o português a antífona apresentada na figura 2, onde se lê: “Esta antífona: Nollite timere”. Nolite é a forma do imperativo do verbo Nolo “não querer” e timere é o infinitivo do verbo timeo ‘temer, recear’. Assim, Nolite timere pode ser traduzido por ‘Não temas’. Esses trechos apresentam um grau relativamente baixo de dificuldade de leitura haja vista um conhecimento básico de morfologia latina permitir a sua compreensão. No entanto, a variação morfológica vai paulatinamente sendo marcada em outros trechos 7 Para as traduções livres foram consultados os dicionários que se encontram nas referências. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 324 ÍNDICE chegando a figurar em formas que exigem um profundo conhecimento do latim medieval ou eclesiástico e de filologia clássica para a sua interpretação. Veja-se o trecho apresentado na figura 3: (Figura 3: excerto do fólio 8r, retirado de < http://purl.pt/) Nesse trecho pode-se ler: “Sempre na primeira dominga que veer depos dia de Natal seja dita a missa da prima. dum medium silencium. Semelhavilmente.” A expressão latina Dum medium silencium, que aparece no meio da segunda linha, pode ser traduzida8 como “durante o silêncio”, dado que a conjunção latina dum, exprime a ideia de simultaneidade e pode ser traduzida como “enquanto, durante o tempo que”, o adjetivo medius, a, um tem entre as suas acepções o sentido de intermediário e silencium, provavelmente é uma variante da forma clássica silentium “silêncio”. Nos registros consultados da liturgia católica não houve qualquer informação acerca do rito da missa da prima, há apenas um introito gregoriano com o título dum medium silentium. Tal fato ressalta a importância desse documento, não só para o estudo do latim medieval ou do português arcaico, mas também, para o conhecimento dos hábitos desse importante ambiente monástico. (Figura 4: excerto do fólio 5v, retirado de < http://purl.pt/) Na figura 4 é apresentado o primeiro verso da Profecia de Isaias. Nesse trecho podese ler: “[...] A proficia de Isayas seja liida ante da pistola. D’alguum a que o cantor encomedar. 8 Tradução livre. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 325 ÍNDICE E quando esteverem acabidoo depois o primeiro vesso que se começa Jhesus Xrisptus filios dei in bethleem vide nascitur”. O trecho latino, assim como os excertos das figuras anteriores, permite uma tradução livre, este pode ser vertido para o português como “Veja Jesus Cristo, filho de Deus, nascido em Belém”, mas a sua compreensão não é imediata e exige um pouco mais de atenção. Essa atenção nem sempre culmina em uma compreensão do trecho latino, pois em muitos fólios há trechos em que o latim apresenta um grau maior de complexidade morfológica, além de apresentar abreviaturas que não seguem os padrões adotados pelos scriptoria da época. Para a compreensão desses trechos é preciso um profundo conhecimento desse latim, além de uma sólida formação em filologia clássica. Como se pode constatar na figura a seguir: (Figura 5: excerto do fólio 5v, retirado de < http://purl.pt/) Apesar de não poder sequer propor um tradução aproximada, notou-se que nesses trechos há a indicação da natureza dos fragmentos em latim (se se trata de uma antífona, um salmo ou um sermão). Uma observação cuidadosa da figura 5 permite a identificação de algumas palavras latinas, como por exemplo, crastina die, na linha 6; crastinum, i é uma palavras neutra, da 2ª declinação, que quer dizer “amanhã”, dies, palavra da 5ª declinação (masculina e feminina) que significa “dia”. Crastino die é uma expressão latina que quer dizer “o dia de amanhã”, crastina die deve ser uma variante. Outras palavras são identificadas e algumas abreviaturas Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 326 ÍNDICE são conhecidas também, como por exemplo, dominus que aparece diversas vezes no documento. Todavia, diferente do que ocorre nos excertos anteriores (figura 1, 2, 3 e 4), não se pode propor sequer uma transcrição quanto mais uma tradução do excerto da figura 5, em virtude da dificuldade de compreender os trechos latinos e desenvolver as abreviaturas. Como já dito, há a indicação da natureza do trecho latino, ou seja, o gênero a que pertence, já que o copista menciona se se trata de um sermão, ou um salmo, profecia, evangelho, hino ou pistola que deve ser lida, cantada etc., como se pode observar nas linhas 1, 5, 6 e 9 da figura antes referida. O excerto dessa figura ilustra bem o que ocorre em diversos outros fólios, isto é, o latim costurando o texto em português e tecendo uma obra que muito ainda tem para contribuir com o estudo da constituição histórica da língua portuguesa e com a investigação do latim medieval. Nos fólios 10v e 11r, abaixo apresentados, foram encontradas duas tabelas inteiramente em latim, que parecem tratar de um calendário litúrgico, com hábitos cistercienses e períodos em que devem ser realizados. Isso, porém, não passa de suposição. (Figura 6: Tabela do fólio 10v, retirado de < http://purl.pt/) Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 327 ÍNDICE (Figura 7: Tabela do fólio 10v, retirado de < http://purl.pt/) Com muitas abreviaturas e algumas anotações em latim nas margens, as tabelas apresentadas nas figuras 6 e 7 são fontes de estudo para o latim registrado pelos portugueses de quatrocentos. O estudo dessas tabelas, assim como dos trechos escritos em latim, ficará a cargo de algum curioso que se lance a tal empreendimento. Palavras finais O estudo do latim registrado pelos portugueses alcobacenses de Cister pode contribuir não só para o estudo do latim eclesiástico ou do latim medieval. Mas, também, para uma melhor compreensão da transição linguística que se operava, revelando em que pontos da estrutura linguística latina as tendências do português começaram a transparecer. Além do mais, tal investigação pode fornecer informações relevantes acerca dos hábitos dessa importante comunidade monástica que marcou significativamente o território português. Dessa forma, este trabalho teve o intuito não só de sublinhar a significativa presença da língua latina em uma obra quatrocentista portuguesa pertencente ao claustro da maior abadia cisterciense de Portugal, mas também de divulgar esse corpus para os curiosos que se aventuram a investigar o latim em uma perspectiva histórica. Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 328 ÍNDICE Referências ARRUDA, José Jobson de A. História antiga e medieval. São Paulo: Ática, 1976. BAGGIO, Hugo D. Institutos religiosos masculinos: espaços para viver o evangelho. São Paulo: Loyola, 1983. p. 24-25. EMILIANO, António. Sobre a questão d’os mais antigos textos escritos em português. In: CASTRO, Ivo; DUARTE, I. (eds.) Razões e emoções: miscelânea de estudos oferecida a Maria Helena Mateus pela sua jubilação. 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Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 330 ÍNDICE NOTA DOS ORGANIZADORES: Em volume impresso, foi publicado o livro “Mosaico Clássico: variações acerca do mundo antigo”, também disponível no site www.classicas.ufba.br, em que estão registrados os seguintes trabalhos: TEATRO ANTIGO Processo colaborativo de tradução de teatro antigo no Brasil Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa Concepções políticas em obras de Sêneca: De clementia e As troianas Zélia de Almeida Cardoso Antígona: o desafio do dever Mário Augusto da Silva Santos A tenda no Íon de Eurípedes: a observação do espaço como sujeito passivo e ativo da cena trágica Márcia Cristina Lacerda Ribeiro FILOLOGIA CLÁSSICA Apontamentos acerca da Biblioteca de Apolodoro Luciene Lages RETÓRICA As origens e o desenvolvimento da retórica romana William J. Dominik POESIA LATINA Expressividade na poesia latina: dois exemplos do Corpus Tibullianum João Batista Toledo Prado A engenhosidade de Horácio na composição de suas odes: a ode III,9 Heloísa Maria Moraes Moreira Penna Livro II da Eneida: um livro augural Milton Marques Júnior A “bela morte” simbólica de Eneias Alcione Lucena de Albertim ENSINO DE LÍNGUA LATINA Considerações sobre métodos e metodologias de ensino de latim no Brasil Fábio Fortes e Patrícia Prata Latinitas: leitura de textos em língua latina. Notícias sobre uma abordagem metodológica José Amarante Semiótica e Estudos Clássicos: o texto latino como objeto de significação Giovanna Longo Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 331 ÍNDICE INTERLOCUÇÕES COM A ANTIGUIDADE A biblioteca latino-portuguesa de Machado de Assis Brunno V. G. Vieira O crítico inscrito: momentos parabáticos na obra roseana Jacqueline Ramos Protágoras na filosofia brasileira Sílvia Faustino de Assis Saes Vt pictura poesis: apontamentos para uma comparação entre Ovídio e Ticiano Márcio Thamos Mito e tragédia no Édipo freudiano Carlota Ibertis Entre o oráculo e a esfinge: Freud e o Édipo Rei Suely Aires Considerações sobre a imagem do professor de latim no cinema Paulo Sérgio de Vasconcellos Anais do I Encontro de Estudos Clássicos da Bahia 332