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Ensino Híbrido: reflexões sobre a formação docente maio de 2021 Sobre o Instituto Península Não há país que tenha um ciclo virtuoso, de desenvolvimento, igualdade e justiça social, sem oferecer ao seu povo uma Educação qualificada e digna. Por isso, o Instituto Península, organização social fundada pela família Abilio Diniz em 2010, tem como foco a melhoria da qualidade da educação brasileira. A atuação do Instituto nas áreas de Educação e Esporte é pautada na crença de que os principais agentes de transformação da educação são os professores. Uma educação de qualidade para todos os alunos requer professores bem formados e desenvolvidos em múltiplas dimensões- cognitiva, social, emocional e relacional- , além respeitar os diferentes contextos nos quais eles estão inseridos. Ao se desenvolverem integralmente, ou seja, como profissionais e indivíduos, os educadores têm mais chances de aflorar todo o potencial, próprios e de seus alunos, para fazerem as melhores escolhas. Para concretizar suas ações, o Instituto Península acredita que é importante unir o melhor das teorias existentes sobre o professor com a prática do dia a dia. A organização é mantenedora de quatro iniciativas que estão conectadas ao propósito de transformar vidas por meio da educação, do esporte e do desenvolvimento integral do indivíduo, além de desenvolver projetos que auxiliam a formação qualificada do professor. NEP - Núcleo de estudos e pesquisas sobre o professor Iniciado em 2018, o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Professores tem o objetivo de consolidar e desenvolver conhecimento sobre a docência dada a importância da profissão para a garantia da aprendizagem de todos os alunos brasileiros. Somos um núcleo de pesquisa mão na massa que privilegia as análises de campo sobre os professores, propondo caminhos que façam sentido tanto para eles quanto para o contexto no qual as escolas estão inseridas. Instituto Península Ana Maria Diniz – Presidente do Conselho Heloisa Morel – Diretora Executiva Mariana Breim – Diretora de Desenvolvimento Integral Daniela Kimi – Diretora de Desenvolvimento Institucional e Parcerias Especialista Lilian Bacich Pareceristas Alexandre Schneider Caroline Tavares Eduardo Deschamps João Paulo Sampaio Marcelo Ribeiro Uma organização conceitual necessária O ano de 2020 transformou as experiências de aprendizagem nas instituições de ensino da educação básica ao ensino superior. Migrar para o ensino remoto significou transferir a sala de aula presencial para o ambiente online, de acordo com a possibilidade de conexão, realizando o chamado Ensino Remoto Emergencial, muitas vezes denominado de EaD ou de Ensino Híbrido. É importante reconhecer que se tratam de três modelos conceitualmente distintos. O Ensino Remoto Emergencial é a denominação dada à “mudança temporária na forma de ensinar, utilizando uma modalidade alternativa de transmissão de conhecimento devido a circunstâncias críticas. Envolve a utilização de soluções educacionais para um ensino totalmente remoto que seria, em outra situação, transmitido em formato presencial, e que retornará àquele formato assim que a crise for controlada” (HODGES et al, 2020). Não se trata de uma nova modalidade de ensino, mas de uma ação, em caráter emergencial e que pode, ou não, fazer uso de recursos digitais. No Brasil, ocorreu em diferentes formatos, com a transmissão online de aulas síncronas por meio de diferentes plataformas, como Meet, Zoom, etc; com o uso das mídias sociais, como o WhatsApp; por meio de programas de rádio e TV; com a utilização de materiais impressos. A Educação a distância (EaD), é uma modalidade de ensino que considera, como “característica essencial a proposta de ensinar e aprender sem que professores e alunos precisem estar no mesmo local ao mesmo tempo” (MILL, 2018), e difere do ensino remoto porque, além de se tratar de uma modalidade regulamentada por normas específicas (BRASIL, 2016) que precisam ser consideradas na organização de um curso, contempla um desenho instrucional construído de forma pedagogicamente consistente, planejada, intencional e não emergencial. Atualmente, é comum encontrarmos diferentes concepções de Ensino Híbrido, algumas delas embasadas no senso comum ou na definição literal do termo, em que híbrido se relaciona a qualquer mistura de tempos, espaços ou recursos e, outras, fundamentadas em estudos e pesquisas que enfatizam a abordagem como uma possibilidade de considerar o estudante no centro do processo, ou seja, que as experiências de aprendizagem possibilitem um papel ativo do estudante em diferentes ambientes de aprendizagem e que tenham como objetivo seu desenvolvimento integral. Neste documento, a concepção de Ensino Híbrido está pautada nas pesquisas de autores que estudam a abordagem na educação básica e no ensino superior (GARRISON e VAUGHAN, 2008; HORN e STAKER, 2015; BACICH, TANZI NETO, TREVISANI, 2015; BACICH e MORAN, 2017), e é definida como um programa de educação formal com a integração de momentos de aprendizagem mediados por tecnologias digitais e momentos supervisionados pelo docente, que ocorrem no espaço físico da escola ou em espaço educativo definido como tal, com algum elemento de controle, pelo estudante, do tempo, ritmo, percurso e local em que aprende. As experiências que ocorrem mediadas por recursos digitais e as que ocorrem com a supervisão docente no espaço físico da instituição de ensino se integram, mas não ocorrem ao mesmo tempo. No Ensino Híbrido, os papéis do estudante e do professor se modificam e os recursos digitais, mais do que enriquecer a aula, possibilitam a obtenção de evidências do aprendizado do estudante, que não é um mero espectador, mas que também produz nesse ambiente com algum elemento de controle do tempo, ritmo e espaço, sendo possível ao professor, assim, personalizar a experiência de aprendizagem acompanhando os avanços, identificando de lacunas e o desenhando propostas de intervenção que contribuam para o desenvolvimento integral dos estudantes. De acordo com essa definição, cabe ressaltar que aulas que acontecem no espaço físico da escola e são transmitidas ao vivo para quem está em casa NÃO se incluem na definição de ensino híbrido; aulas que acontecem no modelo remoto, completamente online, com alunos e professores em suas casas, mesmo que combinando momentos síncronos e assíncronos, NÃO se incluem na definição de ensino híbrido; apenas o fato de ter uma porcentagem de alunos frequentando a escola enquanto outros estão em casa NÃO se caracteriza como ensino híbrido; aulas presenciais enriquecidas com um recurso digital NÃO se incluem na definição de ensino híbrido. No Ensino Híbrido, é importante estabelecer uma conexão entre o que o estudante realizou no ambiente online, oferecendo ao professor evidências e informações sobre essa aprendizagem e, por meio dessas evidências, identificar quais aspectos são mais desafiadores para o grupo e quais aspectos os estudantes tiveram maior facilidade. No momento sob supervisão do educador, no espaço físico da escola, essas informações apoiam o professor no planejamento da aula. O momento desconectado propicia a oportunidade de aprimorar o que foi feito no ambiente online e favorece a realização de atividades que envolvem o desenvolvimento integral, como as trocas e interações tão importantes para a experiência educativa. De acordo com o exposto, portanto, são premissas para afirmarmos que estamos utilizando ensino híbrido na educação: 1. O retorno ao espaço físico das instituições de ensino (ou qualquer espaço educativo definido como tal), já que parte do trabalho requer a supervisão presencial do educador; 2. A integração do uso de recursos digitais de forma autônoma pelos estudantes com as propostas pelos adultos (considerando “o melhor dos dois mundos”); 3. A coleta de evidências para o planejamento de experiências de aprendizagem; 4. O protagonismo dos estudantes. Relevância do tema no panorama educacional O termo Ensino Híbrido, como tradução de blended learning tem sua origem no cenário educacional por volta de 1990 (FRIESEN, 2012) e seu impacto sobre a aprendizagem tem sido objeto de estudo de diferentes pesquisadores ao longo do tempo. No Brasil, em 2014, contando com uma proposta de pesquisa-ação, um grupo de educadores denominado Grupo de Experimentações em Ensino Híbrido, em um processo de formação em serviço, discutiu aspectos teóricos sobre o tema, planejou aulas colaborativamente, implementou propostas em sala de aula e refletiu sobre elas, identificando seu potencial na aprendizagem e no desenvolvimento integral dos estudantes. As experiências elaboradas pelo grupo ocorreram com todos os estudantes frequentando o ambiente físico da escola, com a integração de recursos digitais com foco na personalização das experiências de aprendizagem. Esse aspecto é fundamental para compreendermos o Ensino Híbrido como uma possibilidade que transcende o momento atual em que vivemos de pandemia da Covid-19, mas como uma abordagem que pode se tornar perene na educação, influenciado ainda mais pelas reflexões propiciadas pelo uso dos recursos digitais nesse momento pandêmico. Essa pesquisa desdobrou-se na tese de doutorado de Lilian Bacich e uma das gestoras do grupo de experimentação, e em um curso online e um livro que, lançados em 2015, já citado em mais de 1500 artigos, dissertações e teses de pesquisadores que estudam e implementam a abordagem em sala de aula da Educação Básica ao Ensino Superior. O que tem se observado, desde então, é que os modelos de Ensino Híbrido sistematizados por Horn e Staker (2015) a partir do que já ocorria em muitas escolas pelo mundo, são os que têm sido mais utilizados como exemplos da abordagem. Os autores sistematizaram modelos que atendiam três aspectos fundamentais: ● modelos em que os estudantes tinham algum controle sobre o tempo, o lugar, o caminho e o ritmo da aprendizagem; ● modelos em que ocorria a supervisão de um docente, no espaço físico da escola; ● modelos em que a aprendizagem ocorria de forma integrada (online e presencial). A partir desse levantamento dos autores, foram organizados os modelos de rotação, modelo flex, modelo à la carte, modelo virtual enriquecido. Eles estão agrupados em modelos sustentados, que visam aprimorar as práticas educacionais já existentes, combinando as vantagens do ensino online com os benefícios da sala de aula tradicional, e modelos disruptivos de Ensino Híbrido, que propõem uma inovação em relação ao que tradicionalmente ocorre em sala de aula. Cabe ressaltar que esses são os modelos identificados na literatura e que devem inspirar a construção de modelos autorais que favoreçam a integração adequada entre as experiências com mediação de recursos digitais e com supervisão docente que se pretende implementar. Podemos verificar na imagem a seguir como estão agrupados modelos possíveis de Ensino Híbrido: 1. Modelos de rotação Esta categoria engloba propostas em que os estudantes se revezam e alternam entre atividades planejadas pelo professor em que pelo menos uma delas é realizada online. . Esse revezamento entre as atividades previstas pode ocorrer por orientação do professor ou em um horário fixo e predeterminado, além de serem modelos que podem ocorrer apenas presencialmente, ou seja, sem considerar parte das atividades realizadas fora da escola. O modelo de Rotação tem quatro submodelos: Sala de Aula Invertida, Rotação por Estações, Laboratório Rotacional e Rotação Individual que serão detalhados a seguir: Sala de Aula Invertida Na Sala de Aula Invertida, os alunos realizam uma parte do estudo online em casa e sem a tutoria do professor e a outra parte do estudo de um objeto de conhecimento é realizada em sala de aula, com a assistência do professor. A primeira etapa visa otimizar o tempo da aula, propiciando ao aluno entrar em contato com o objeto de estudo por meio de vídeos, pesquisas, produção em ambiente online, realizando o estudo em casa de acordo com o seu ritmo de aprendizado e, na sala de aula, faz as atividades que geralmente eram enviadas como lição de casa, possibilitando tirar dúvidas com o professor ao longo da aula ou discutir sobre os aspectos estudados previamente, aprofundando o aprendizado e aplicando conhecimentos, além de ter a oportunidade de trocar com os pares e construir conhecimentos coletivamente. Neste modelo, o aluno estuda previamente o conteúdo e realiza em casa uma atividade de verificação de seus estudos prévios para que o professor consiga analisar as maiores dificuldades dos alunos para trabalhar em sala de aula, retomando-as e aprofundando o conteúdo abordado em sala de aula. Deste modo, o período em que o aluno está na sala de aula é dedicado às propostas de aprendizagem mais ativas, que desenvolvem processos cognitivos mais complexos, como discussões, resolução de atividades, entre outras (BACICH, TANZI NETO, TREVISANI, 2015). . Rotação por Estações A aula é organizada para que os estudantes realizem atividades diferentes em estações de trabalho relacionadas com os objetivos de aprendizagem sobre o tema central da aula. A turma é organizada em grupos, que passam por cada estação realizando as atividades dentro do tempo determinado e depois vão trocando de estação até terem feito todas as tarefas propostas. Em uma das estações, por definição, há uma atividade que independe do acompanhamento do professor e é realizada online. O professor pode atuar como mediador, levantando conhecimentos prévios no início da aula e sistematizando ao final da aula o que foi aprendido pelos estudantes. É importante que as estações sejam organizadas de maneira independente uma da outra, para que o estudante realize a atividade sem depender do que foi proposto em outra estação e que inicie ou finalize a aula no modelo de rotação por estações em qualquer estação de trabalho. Além disso, no planejamento das estações é oportuno considerar momentos em que os estudantes possam trabalhar individualmente e outros em que possam fazê-lo colaborativamente, bem como proporcionar uma variedade de recursos como vídeos, pesquisas, leituras, visando favorecer a personalização da aprendizagem (BACICH, TANZI NETO, TREVISANI, 2015; HORN e STAKER, 2015). Laboratório Rotacional No Laboratório Rotacional, a classe é dividida em dois grupos: um realizará atividade utilizando computador do laboratório de informática, para instituições que disponibilizam este espaço, e o outro grupo ficará com o professor em sala de aula realizando as propostas planejadas. Cada grupo fica um tempo determinado na atividade e depois troca de ambiente, possibilitando que os estudantes possam aprender de maneiras diferentes sobre o mesmo assunto. . . Essa proposta é semelhante à Rotação por Estações, porém parte dos estudantes são acompanhados por um professor tutor no laboratório de informática, onde realizam as atividades online e a outra parte está em sala de aula com o professor da turma (BACICH, TANZI NETO, TREVISANI, 2015; HORN e STAKER, 2015). Rotação Individual Na Rotação Individual, cada aluno recebe um roteiro personalizado de atividades planejadas pelo professor, que indica quais atividades são importantes serem feitas pelo estudante, de acordo com suas necessidades de aprendizado. Neste modelo disruptivo, a personalização do ensino é bastante valorizada, pois o estudante recebe uma lista de propostas de estudo para cumprir em sua rotina, sem precisar passar por todas as estações propostas e dedicando o tempo necessário para finalizar cada atividade. Além disso, a avaliação proporciona dados importantes para a personalização do percurso do estudante (BACICH, TANZI NETO, TREVISANI, 2015; HORN e STAKER, 2015). 2. Modelo flex No modelo Flex, os alunos seguem um roteiro personalizado de propostas a serem realizadas online e em alguns momentos realizam atividades presenciais. O professor tutor está disponível no local para oferecer ajuda ou iniciar projetos e discussões visando aprofundar a aprendizagem dos estudantes. Deste modo, a espinha dorsal do aprendizado está no ambiente virtual e o estudante realiza as propostas no seu ritmo, de modo personalizado e flexível e o professor oferece o apoio presencial, esclarecendo dúvidas ou propondo discussões em pequenos grupos. Os estudantes planejam sua rotina entre as oficinas propostas e são organizados por nível de autonomia, sendo que estudantes de diferentes idades realizam projetos juntos (BACICH, TANZI NETO, TREVISANI, 2015; HORN e STAKER, 2015). . 3. Modelo à la carte No modelo à la carte, os alunos realizam um ou mais componentes curriculares inteiramente online e com um professor responsável online, ao mesmo tempo em que estudam os demais componentes curriculares frequentando escolas tradicionais. A diferença entre este modelo e o Flex, é que o professor tutor está online e no Flex o docente está presencialmente na escola acompanhando os estudantes. Nessa modalidade, o estudante organiza seus estudos em parceria com o educador, conforme os objetivos gerais a serem alcançados, e pode escolher o local e momento mais adequados para sua aprendizagem, tornando sua experiência personalizada (BACICH, TANZI NETO, TREVISANI, 2015; HORN e STAKER, 2015). 4. Modelo Virtual enriquecido No modelo Virtual Enriquecido, os estudantes dividem o seu tempo entre o aprendizado online e outras propostas a serem realizadas presencialmente na escola. Neste modelo, os estudantes não necessitam ir todos os dias presencialmente à escola, pois organizam seu tempo entre aprendizado online e educação presencial. Assim, os estudantes podem ir à escola uma ou duas vezes por semana para realizar as propostas planejadas na sala de aula, com foco em discussões, reflexões, aplicação dos estudos feitos em casa, e nos outros dias estudam online de acordo com o seu ritmo de estudo (BACICH, TANZI NETO, TREVISANI, 2015; HORN e STAKER, 2015). Em 2016, com o intuito de verificar os impactos na aprendizagem de estudantes da educação básica ao ensino superior, o Instituto Península apoio a realização de uma pesquisa, conduzida por Bacich, com educadores que realizaram o curso online, que utilizavam modelos sustentados e disruptivos, como os citados e alguns dos resultados podem ser observados a seguir. Fonte: BACICH, Lilian & Instituto Península. Percepções do ensino híbrido na prática e formação dos professores, 2016. Disponível em: https://www.institutopeninsula.org.br/wp-content/uploads/2020/12/PesquisaEnsino-H%C3%ADbrido.pdf Em 2017, o Instituto Clayton Christensen, com apoio de institutos e fundações no Brasil, Malásia e África do Sul, realizou uma pesquisa para verificar o impacto da implementação dessas propostas (FISHER et al, 2017). No Brasil, alguns elementos essenciais foram identificados no relatório e que impactam nas reflexões sobre a implementação de um Ensino híbrido de qualidade: ● Enriquecer as aulas com recursos digitais não é o mesmo que implementar o Ensino Híbrido. O uso de recursos digitais, quando ocorreriam, envolviam o consumo de vídeos, textos e até mesmo jogos, mas sem intencionalidade pedagógica. Equipar as escolas com recursos digitais não é o suficiente se não ocorrer uma modificação da condução das experiências de aprendizagem que se oferece aos estudantes. ● Modelos de ensino híbrido são diversos e precisam ser documentados. Como não existe um único formato de implementação, cada instituição ou rede precisa compreender, a partir de sua realidade, o que faz mais sentido e, a partir dessa escolha e implementação, coletar dados para analisar os resultados do impacto e, dessa forma, gerar a troca de experiências entre diferentes atores do processo, incluindo toda a comunidade escolar forma, gerar a troca de experiências entre diferentes atores do processo, incluindo toda a comunidade escolar. ● Déficit de infraestrutura e de formação docente impacta nos resultados. O déficit de infraestrutura obviamente é algo que está relacionado a fatores sociais e econômicos, mas a formação docente, inicial e continuada, precisa ser reorganizada para que a implementação da proposta seja eficiente, e essa foi uma lacuna muito importante considerada na pesquisa. Nesse panorama, muitos são os desafios, mas é essencial a compreensão sobre as perspectivas para o futuro de uma implementação adequada da abordagem. Somente podemos contemplar a educação em uma perspectiva de futuro. Embora seja realizada no presente, sempre dará seus frutos não hoje, mas no futuro, em um momento que estará mais ou menos próximo do presente. Essa condição tem que nos importar, precisamente por isso, porque educar é fazer algo pelo “dia de amanhã”, que é dos outros que nos seguirão (SACRISTÁN, 2015). O retorno às aulas presenciais com foco no Ensino Híbrido pode ampliar as possibilidades de incluirmos o desenvolvimento integral dos estudantes se avançarmos para além das possibilidades dos recursos digitais, mas para a reflexão sobre as experiências de aprendizagem que pretendemos desenvolver. Ensino Híbrido na formação docente Um passo significativo rumo à qualidade e equidade na educação brasileira foi dado com a publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em dezembro de 2017. Este documento afirma seu compromisso com o ideal de Educação Integral, expresso nas 10 Competências Gerais para a Educação Básica. O documento convoca a uma transformação da educação brasileira através do olhar para o desenvolvimento multidimensional dos alunos, preparando-os para exercerem seu papel cidadão em meio a um mundo em rápida transformação – e o tema das tecnologias digitais ocupa lugar importante nesta discussão. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aborda temas de tecnologias digitais de maneira transversal em todas as áreas do conhecimento e componentes curriculares. Na Competência Geral número 5 é especificada a necessidade de trabalhar com os estudantes as tecnologias digitais de maneira ativa: Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. (BRASIL, BNCC, p. 9) Sabemos que o consenso que precisa ser criado em nosso país em torno da necessidade de alinhar tecnologia, ensino e aprendizagem abrirá cada vez mais caminhos para que práticas inovadoras possam ganhar espaço. Mas para que isso possa se tornar realidade, é preciso pensar na formação dos sujeitos que irão protagonizar essa nova Educação: os professores. Diariamente, os professores tomam decisões complexas que dependem de vários tipos de conhecimento e discernimento e que podem envolver resultados de alto risco para o futuro dos alunos. Para tomar boas decisões, eles devem estar cientes das muitas maneiras pelas quais a aprendizagem do aluno pode se desdobrar no contexto do desenvolvimento, nas diferenças na aprendizagem, nas influências linguísticas e culturais e nos temperamentos, interesses e abordagens individuais à aprendizagem. Além do conhecimento fundamental sobre essas áreas de aprendizagem e desempenho, os professores precisam saber como tomar as medidas necessárias para coletar informações adicionais que permitam fazer julgamentos mais fundamentados sobre o que está acontecendo e quais estratégias podem ser úteis. Acima de tudo, os professores precisam manter o que é melhor para a criança no centro de sua tomada de decisões. Isso soa como um ponto simples, mas é um assunto complexo que tem profundas implicações no que acontece com e para muitas crianças na escola. (BRANDSFORD, DARLING-HAMMOND e LEPAGE, 2019, p.1) A complexidade da tarefa docente exige que o professor seja ele próprio um aprendiz e ao longo da carreira se aproprie de novos saberes em conexão com sua prática. Desta forma, vale destacar que como a BNCC já prevê a necessidade de desenvolver nos estudantes da educação básica competências relacionadas ao uso de tecnologias digitais, nada mais natural que o professor esteja preparado para desenvolver o processo de ensino-aprendizagem utilizando recursos digitais, o que pode ser feito por meio do ensino híbrido. A partir dessa constatação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e, especificamente com a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada), apresentam a necessidade de reflexão sobre a formação docente em cursos de pedagogia e licenciaturas, na formação inicial, e que impactam no que precisa ser considerado nas instituições de ensino para a formação continuada dos docentes com foco na implementação do Ensino Híbrido. Todas as competências gerais indicadas no documento são essenciais para esse processo, mas destacamos a competência geral 5, que se articula diretamente à competência geral 5 da Base Nacional Comum Curricular. 5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas docentes, como recurso pedagógico e como ferramenta de formação, para comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e potencializar as aprendizagens (BNCFormação, 2020). Essa competência nos apresenta um alerta importante para a compreensão de como deve ocorrer a formação docente, inicial e continuada, para a implementação de um Ensino Híbrido que esteja apoiado nos recursos digitais, mas que se amplie para a elaboração de práticas pedagógicas que considerem aspectos relacionados aos papéis de educadores e estudantes, ao uso dos diferentes ambientes de aprendizagem e, sobretudo, ao acompanhamento dos estudantes com foco em uma avaliação formativa. Assim, os elementos essenciais da formação docente que envolvem as metodologias ativas e a homologia de processos, valorizando o conhecimento pedagógico do conteúdo, precisam estar atrelados ao uso dos recursos digitais para impactar no desenvolvimento das competências docentes de maneira geral e, em especial, da competência geral 5 da BNCC e da BNCFormação. São pontos de atenção para a implementação do ensino híbrido no âmbito da formação docente: 1. Oferecer oportunidades para que os profissionais façam uso integrado das tecnologias digitais em situações reais de aprendizagem durante o processo de formação, atuando de forma colaborativa e produzindo com o uso dos recursos, não como meros receptores de informações, mas vivenciando situações que possibilitem um posicionamento crítico e, consequentemente, favoreçam uma aprendizagem realmente transformadora. 2. Favorecer espaços de reflexão sobre o papel desempenhado por estudantes e educadores ao fazer uso de recursos digitais visando a escolha dos recursos a partir dos objetivos que se pretende atingir, valorizando as relações entre o conteúdo a ser ensinado e aprendido, o aspecto pedagógico, ou seja, a metodologia que norteará o processo ensino e aprendizagem, e a tecnologia digital que estará envolvida nele. 3. Valorizar discussões sobre a versatilidade e diversidade de uso de recursos digitais nas ações docentes, por meio de experiências práticas que possibilitem as reflexões teóricas e não o inverso. ¹ Para Mishra e Koehler (2006), a intersecção entre conteúdo, metodologia e tecnologia é um aspecto central a ser analisado nos processos de formação docente e o conhecimento da tecnologia não pode ser isolado do conhecimento da metodologia e do conteúdo. 4. Oportunizar reflexões sobre o papel do estudante que participa ativamente no Ensino Híbrido como protagonista do processo de aprendizagem, construindo o conhecimento de maneira significativa, enquanto o professor atua como um mediador desse processo, contribuindo para o desenvolvimento integral dos estudantes, orientandoos, estimulando-os e sistematizando conhecimentos com o grupo. 5. Organizar experiências em que o profissional em formação tenha condições de exercer uma análise sobre a curadoria de recursos digitais, aplicando essa seleção no desenho de planejamentos que se relacionem com competências e habilidades que se pretende desenvolver nos estudantes e com a possibilidade de relacionar os saberes escolares mediados por recursos digitais com seu cotidiano. 6. Propor situações em que a avaliação é repensada considerando sua abrangência e variedade a partir do uso de diferentes recursos digitais, além da coerência em relação às escolhas do que será avaliado e como os dados da avaliação serão utilizados. 7. Construir espaços para a experimentação e a pesquisa-ação, dando oportunidade ao profissional, em formação inicial ou continuada, refletir sobre o processo para que diversifique estratégias ao atender a diferentes perfis de estudantes, desenhando experiências de aprendizagem que possibilitem o desenvolvimento integral de todos os estudantes. Recomendações para o ensino híbrido na formação inicial Um estudante de pedagogia ou licenciatura que vivencia o ensino híbrido em sua formação inicial, experimentando como a tecnologia pode apoiar seu processo de aprendizagem, oferecendo informações úteis, rápidas e precisas para que seus professores organizem situações potentes de interação em diferentes formatos e ambientes – e se envolve na docência híbrida logo nos primeiros anos de estudo, em um ambiente seguro e controlado, certamente estará mais preparado para oferecer aos seus alunos semelhante experiência. Os currículos de formação inicial docente precisam focar no desenvolvimento de competências e habilidades que são essenciais para a integração dos recursos digitais em experiências de aprendizagem que favoreçam a personalização. Vários são os aspectos que precisam ser considerados para uma implementação qualificada da abordagem e eles envolvem uma reflexão sobre os seguintes aspectos: Papel do professor: Maior responsabilidade na mediação, curadoria e sistematização de aprendizagens que ocorrem em diferentes ambientes, planejando baseado em evidências e elaborando experiências de aprendizagem para atender a turmas heterogêneas. Autonomia do estudante: Papel mais ativo na construção de conhecimentos, apoiado pelo professor, desenvolve habilidades e competências a partir da ação direta sobre os objetos de conhecimento. Espaço: Exploração de múltiplos espaços de aprendizagem, tanto mediados por tecnologias digitais quanto os diferentes espaços físicos das instituições de ensino (ou outros espaços educativos definidos como tal) que ampliam as possibilidades de interação com os colegas, com o educador e com os objetos de conhecimento. Gestão: Apoio da gestão na formação continuada dos docentes que lecionam na formação inicial, que também precisam se adaptar à integração de ambientes de aprendizagem para que a formação inicial envolva o Ensino Híbrido na conexão entre teoria e prática. Avaliação: Aprofundar as possibilidades de uso da avaliação formativa como recurso para a coleta de evidências e organização do planejamento fortalecendo a personalização, aspecto central no Ensino Híbrido. Cultura: Valorização de ações que colocam o estudante no centro do processo, em que as experiências bem-sucedidas são compartilhadas e comunicadas com toda a comunidade para uma análise e conscientização sobre os impactos do Ensino Híbrido na aprendizagem. Tecnologias digitais: Utilização dentro e fora das instituições de ensino, sempre a partir de um diagnóstico das possibilidades dos estudantes e da instituição na oferta dos recursos e visando uma formação docente que não se restringe ao uso técnico do recurso, mas à seleção e à implementação de práticas pedagógicas mediadas por recursos digitais. Sugere-se o desdobramento desses elementos essenciais do Ensino Híbrido possam compor as competências e habilidades esperadas como resultado da formação inicial docente, assim como atenção para que a carga horária presencial e a distância nos referidos cursos não ocorram de forma desarticulada, mas que cada módulo ou disciplina incorpore a integração entre os momentos online e presencial com os aspectos acima listados na forma e no conteúdo. Vale ressaltar que essa nova forma de aprender e ensinar potencializada pela tecnologia, demanda a produção de conhecimentos de forma integrada e compartilhada, partindo da análise de contexto e demanda e da profunda e constante reflexão sobre a prática, ancorada na teoria - e não o contrário. Por se tratar de uma nova abordagem formativa, seria interessante contar com diferentes núcleos organizados de criação e experimentação de novas práticas em nível estadual e municipal. A interação dinâmica destes com universidades a fim de sistematizar metodologias formativas poderia oferecer informações relevantes para que gestores de formadores impactem positivamente programas de transformação. Sobre implementação nas escolas e a formação continuada A implementação do ensino híbrido nas escolas, para além do desenvolvimento de competências gerais nos alunos, permite o repensar da instituição de ensino e dos papéis de alunos e professores, podendo tornar a aprendizagem mais significativa e eficiente. Por meio do ensino híbrido, podese aproveitar melhor o tempo dedicado aos encontros presenciais, abrindo espaço para atividades complexas e colaborativas, estimulando nos estudantes o desenvolvimento do pensamento crítico, empatia, argumentação e colaboração entre pares. Os professores podem ampliar as estratégias pedagógicas de aprendizagem por meio do ensino híbrido, atuando nesta perspectiva como mediador da aprendizagem dos estudantes. A postura do professor se altera nesta abordagem, deixando o lugar de expositor de conteúdos para se tornar quem seleciona previamente os materiais, disponibiliza aos estudantes, analisa os dados e evidências da aprendizagem provenientes da avaliação diagnóstica e formativa e planeja experiências educacionais em que os estudantes coloquem em prática os conceitos aprendidos, avancem na construção de habilidades e competências mais aprofundadas e desenvolvam autonomia em seu percurso educacional. Assim, é importante que no planejamento o professor tenha clareza do objetivo de aprendizagem a ser alcançado pelos estudantes, para definir os tempos e espaços de cada proposta a ser realizada, bem como o papel do aluno e do professor na atividade planejada. A escola pode diagnosticar a realidade de sua comunidade escolar, conhecendo as características do espaço físico escolar, bem como analisando a necessidade e possibilidade de ajustes para dar subsídios para que docentes planejem a experiência de aprendizagem de seus estudantes em conformidade com o ensino híbrido. Porém, a implementação do ensino híbrido nas redes requer compromisso e ação integrada de diversos atores, desde técnicos da secretaria até equipes gestoras, educadores, família e comunidade. Basicamente, duas ações são relevantes nesse processo, principalmente partindo da constatação de que mais de 4 milhões de estudantes da educação básica não tiveram acesso à internet em 2019, fato que foi amplamente observado na implementação do ensino remoto em 2020. Nesse sentido, o espaço físico da escola tem a responsabilidade de oferecer infraestrutura para o desenvolvimento das competências digitais de estudantes e de educadores. 1. Elaborar um diagnóstico sobre as necessidades de infraestrutura das escolas, de adaptação curricular e de formação de profissionais da educação para a implementação do ensino híbrido. 2. A partir do diagnóstico, elaborar um plano de implementação do ensino híbrido, que articule investimentos em infraestrutura, currículo, formação, desenho de práticas de sala de aula e avaliação. A partir do diagnóstico e plano de ação, a rede poderá ofertar um programa de formação continuada que incorpore o ensino híbrido tanto como estratégia formativa como objeto de reflexão, sendo interessante estimular a criação de uma comunidade de aprendizagem continuada para docentes trocarem sugestões de práticas pedagógicas e relatarem as experiências vivenciadas com os modelos. A identificação dos formadores da rede é um outro ponto de atenção: além do conhecimento teórico, é fundamental que o formador tenha a experiência prática em sala de aula para que a experiência de formação continuada seja realizada por homologia de processos, apoiando os docentes na implementação qualificada do Ensino Híbrido. Conhecer tecnologias digitais é importante, mas ter experiência prática na metodologia mais adequada para a implementação da abordagem é fundamental. Lembrando que programas de formação continuada para educadores devem ser coerentes e contextualizados, com duração prolongada, de participação coletiva e incluindo métodos ativos de aprendizagem, organizados preferencialmente no desenvolvimento de trilhas formativas, ancoradas no ensino híbrido, mirando nas múltiplas competências docentes a serem desenvolvidas. Referências BACICH, Lilian; TANZI NETO, Adolfo; TREVISANI, Fernando de Mello (org). Ensino Híbrido: personalização e Tecnologia na Educação. Porto Alegre: Penso, 2015. BACICH, Lilian; MORAN, José. Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-prática. Penso Editora, 2018. BACICH, Lilian; HOLANDA, Leandro. STEAM em Sala de Aula: A Aprendizagem Baseada em Projetos Integrando Conhecimentos na Educação Básica. Penso Editora, 2020. BACICH MARTINS, Lilian Cassia. Implicações da organização da atividade didática com uso de tecnologias digitais na formação de conceitos em uma proposta de Ensino Híbrido. 2016. PhD Thesis. Universidade de São Paulo. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Ministério da Educação. Resolução nº 1, de 11 de março de 2016. Estabelece Diretrizes e Normas Nacionais para a Oferta de Programas e Cursos de Educação Superior na Modalidade a Distância. Brasília, 2016. COLL, C. & MONEREO, C. . Educação e aprendizagem no século XXI. In Coll, C. & Monereo, C. Psicologia da educação virtual: aprender e ensinar com as tecnologias da informação e da comunicação. (pp. 15-46). 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