Desigualdade, “Cuidado em Rede” e Saúde Mental Infantil
Lecy Sartori1
Resumo
Esta comunicação tem por objetivo explorar o modo de produção de um “cuidado em rede” em
um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij), em Campinas. O ponto de partida
é apresentar as estratégias terapêuticas da equipe CAPSij descritas em um documento entregue
ao Juiz da Vara da Infância. O documento detalha o itinerário terapêutico de uma adolescente
cuidada pela equipe e que vive em um abrigo, separada de sua filha de três anos. A estratégia
da equipe é produzir um agenciamento social, com a ajuda do Juiz da Vara da Infância, que
permita à adolescente e sua filha seguirem juntas no mesmo abrigo. Pretendo, com isso,
apresentar as estratégias de “cuidados em rede” que acionam diferentes instituições que
acompanham adolescentes institucionalizados em situação de sofrimento psíquico e de
precariedade social. Minha ideia é chamar a atenção para o trabalho minucioso de construir um
“cuidado em rede” a partir de uma relação de vínculo/proximidade/intimidade mediada por
experiências instáveis/frágeis/contingentes de uma adolescente em sofrimento que circula pela
cidade, abrigo e CAPSij.
Palavras-chave: “cuidado em rede”, saúde mental infantil, abrigo, desigualdade
Introdução
Julia e Sofia são profissionais do Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil
(CAPSij), em Campinas. Elas são mulheres sensíveis, atentas, preocupadas e muito
comprometidas com o trabalho que realizam no serviço. Ambas são firmes em seus
posicionamentos políticos expressos em uma postura crítica sobre a assistência em saúde mental
que deve evitar veementemente reproduzir antigas formas de institucionalização de crianças e
adolescentes. O texto foi escrito a partir das conversas, relatos e registros documentais que me
foram contados, indicados e confiados por meus interlocutores de pesquisa, os profissionais do
CAPSij. O objetivo do texto foi explorar o modo de produção de um “cuidado em rede” que
resulta de ações práticas de um “acompanhamento compartilhado”. Para isso, apresento os
1
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Docente da Universidade Metropolitana de Santos (Unimes).
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dados da pesquisa de campo2 realizada no CAPSij Carretel que compõem a Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira (SSCF), instituição em que faço
pesquisa desde 2008.
Minha ideia é apresentar o modo como demandas sociais (desigualdades, precariedades,
vulnerabilidades, situações de violência) produzem sofrimentos psíquicos que são identificados
individualmente e registrados em documentos. Pretendo detalhar o funcionamento de um
cuidado elaborado com o intuito de permitir que uma adolescente e sua filha sigam juntas no
mesmo abrigo. Minha intenção é jogar luz sobre as ações de cuidado que são compostas pela
produção de um registro documental que têm como alvo os usuários que circulam e que a todo
momento são capturados por uma rede formada por profissionais, por registros e objetos que
também estão em movimento e se deslocam por canais institucionais3.
Essa assistência elaborada em conjunto a partir de relações de vínculo com diversos
profissionais de diferentes serviços é denominada de “cuidados em rede”. Chamo a atenção
para a relação de vínculo entre os profissionais para explicitar os conflitos e dificuldades da
produção de ações de cuidado que em seus efeitos e agências tecem redes, ativam afetos e
provocam movimentos. O “cuidado em rede” apresenta a multiplicidade de pontos de vistas
dos profissionais de diferentes serviços sobre o mesmo usuário.
Em minhas pesquisas, busco analisar as transformações da assistência em saúde mental
que resultaram da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Na pesquisa de pós-doutorado procurei
mostrar como os profissionais, do CAPSij Carretel e do Centro de Convivência e Arte (CECO)
Espaço das Vilas, operam técnicas de identificação, racionalização, avaliação e registro da
demanda de cuidado em documentos burocráticos. Descrevi como as informações sobre as
práticas de cuidado eram digitalizadas em códigos burocráticos que permitiam a demanda local
ser percebida e financiada. Interessava-me entender como o Estado produzia intervenções (e
2
A pesquisa de campo foi realizada (durante três meses, de outubro a dezembro de 2016) com a equipe do CAPSij
e do Centro de Convivência (CECO) com o objetivo de compreender o funcionamento das práticas de cuidado e
de registro que compunham o relatório do convênio de financiamento municipal. O foco da pesquisa, realizada no
Programa Interdisciplinar em Ciências da Saúde (Unifesp), foi analisar a política de financiamento estabelecida
na parceria entre o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira (SSCF) e a Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
3
Os canais institucionais são configurados em rede por serviços de saúde (CAPSij, Pronto Atendimentos e Alas
Psiquiátricas em Hospitais Gerais), serviços de assistência social (como os abrigos, casas de passagens) e
instituições jurídicas (como o Conselho Tutelar).
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regulamentações da política de saúde) após identificar situações em que a população se
encontrava em precariedade e vulnerabilidade.
Em conversas com meus amigos do CAPSij, entendi que a equipe estava
problematizando um espaço de reunião criado para conseguir atender a demanda constante de
trabalhadores dos abrigos. Existia uma dificuldade em produzir um “trabalho em rede” com os
trabalhadores de serviços como os abrigos, que funcionavam em uma lógica de assistência mais
parecida com a lógica operada em escolas - com regras e horários que lembravam mais um
hospital psiquiátrico, manicômio, instituição total (GOFFMAN 1996) ou disciplinar
(FOUCAULT 2002). Essa diferença entre as lógicas de funcionamento da assistência ficará
mais explícita na descrição do material de campo.
Longe de ser uma reflexão acabada, este texto busca apresentar a relação entre um
serviço de saúde mental infantil e as instituições de acolhimento como os abrigos. Além disso,
o texto resulta de inquietações da autora sobre os efeitos da pandemia de covid-19 que em seus
efeitos vitimou muitas famílias deixando muitas crianças e adolescentes órfãos 4, necessitados
de acompanhamento, cuidados e assistência econômica. Tendo em vista que muitas vítimas da
pandemia eram pessoas que sustentavam economicamente suas famílias, muitas crianças e
adolescentes se encontram em situações de precariedade, vulnerabilidade e insegurança
alimentar.
A partir do material da pesquisa de campo, procuro apresentar o “cuidado em rede”
composto por uma multiplicidade de olhares/pontos de vista de profissionais e diferentes
serviços destinados às crianças e adolescentes em situação de desigualdade social. O texto está
dividido em três partes. Na primeira parte descrevo, de forma breve, o CAPSij e suas práticas
de cuidado. Para detalhar, em seguida, como os profissionais produzem um “cuidado em rede”.
Por fim, apresento o modo como a produção de documentos compõe as estratégias de um
“cuidado em rede” que transformam as subjetividades em fatos, registros e ações de uma
política assistencial.
4
Segundo o Imperial College, no Brasil, mais de 168.500 crianças e adolescentes perderam pai ou mãe vítimas da
covid-19. Esse número fica ainda maior (194.200) se contarmos os avós responsáveis pela guarda da criança (dados
coletados até o dia 12 de outubro de 2021). A Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (ArpenBrasil) afirma que 12.211 crianças (com até seis anos) ficaram órfãs (entre os meses de março de 2020 e setembro
de 2021) (OLIVEIRA 2021).
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CAPSij Carretel
O CAPSij Carretel foi implantado em uma grande casa, em um bairro nobre e central
de Campinas, ao lado do parque do Taquaral (utilizado para algumas atividades com as crianças
e adolescentes). Como muitos outros serviços de saúde mental em Campinas, o CAPSij não
teve o seu espaço construído pelo município. Ele funciona em uma casa adaptada, alugada e
que está localizada em um lugar de fácil acesso para a população assistida. Em uma região
central, o CAPSij funciona na lógica do território (que visa descentralizar a assistência) e possui
um raio de cobertura que atinge mais de 200 mil habitantes. Esse número é maior do que
preconiza a Portaria (nº 336 - de 19 de fevereiro de 2002) que estabelece a necessidade de
assistência de um CAPSII a cada 200 mil habitantes. A cidade de Campinas, com mais de 1
milhão de habitantes, possui apenas três CAPSij.
Na pesquisa de campo, observei o modo como é operada a produção de cuidado no
CAPSij. Sua equipe5 de profissionais, que são os meus interlocutores de pesquisa, elaboram um
cuidado singular para assistir às crianças e os adolescentes (de 2 a 18 anos). Dos 162 usuários,
101 são adolescentes (entre 13 e 18 anos) e 61 são crianças (menores de 12 anos). As práticas
de cuidado no CAPSij são apresentadas pelos profissionais, mas também registradas e
digitalizadas a partir da classificação por atividades. Desse modo, as atividades de cuidado são:
atividades educativas e de orientação em grupo de atenção especial, consulta de profissionais
de nível superior na atenção especial, acolhimento em terceiro turno (até às 21 horas) em CAPS,
acolhimento diurno em CAPS, atendimento individual, atendimento em grupo, atendimento
familiar, acolhimento, atendimento domiciliar, ações de articulação da rede, fortalecimento do
protagonismo do usuário, práticas corporais, práticas expressivas/comunicativas, atenção às
situações de crise, ações de reabilitação psicossocial, promoção de contratualidade no território
e matriciamento de equipes da atenção básica de saúde.
Na pesquisa de campo, acompanhei as atividades e os espaços onde se produziam o
cuidado no CAPSij (grupos terapêuticos6, reuniões de equipe, reuniões de supervisão) e
conversei com os profissionais sobre as estratégias elaboradas para atenção à crise. Segundo os
5
Em 2016, a equipe do CAPSij Carretel era composta por 19 profissionais, entre eles: 3 enfermeiros, 2 médicos
psiquiatras, 4 psicólogos, 2 terapeutas ocupacionais, 1 farmacêutico, 1 fonoaudióloga, 2 técnicos de enfermagem,
3 educadores, 1 assistente administrativo.
6
Grupos terapêuticos como rodas de conversas com crianças e adolescentes divididos por idade; oficinas
(culinária, beleza, caminhadas); terapia com animais e grupo com os familiares.
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profissionais, os contextos sociais são como gatilho que pode desencadear ou intensificar o
sofrimento e seu agravamento. Contextos sociais (como “famílias desestruturadas”, situações
de abandono familiar, crianças abrigadas, fugas de abrigos, crianças em situação de rua, em
situação de afastamento da família, em contexto familiar de abusos/violências e de uso de
substâncias psicoativas) são frequentemente acionados para justificar ou explicar as situações
de sofrimento psíquico de crianças e adolescentes.
Na elaboração das práticas de cuidado, os profissionais do CAPSij acionam a categoria
sofrimento7 para não “patologizar” as crianças. Em outras palavras, os profissionais assumem
uma posição política de evitar formalizar ou classificar as crianças por meio de um diagnóstico.
A posição política está em evitar a institucionalização e a medicalização da criança por toda a
sua vida8. Vale a pena ressaltar que a assistência no CAPSij visa prevenir as crises e os
sofrimentos dos usuários. Conforme a regulamentação, descrita na Portaria n. 336 (Ministério
Da Saúde, 2002), os CAPS assistem pessoas com transtornos mentais promovendo a
reabilitação psicossocial, cuidados clínicos e a inclusão social por meio do exercício de
cidadania. O CAPSij é descrito como um serviço de assistência à criança e adolescente
“gravemente comprometido psiquicamente” (Menezes 2008:140), ou seja, portadores de
diagnósticos como: autismo, psicose, neuroses graves e condições psíquicas que impossibilitam
a criança ou adolescentes de estabelecer ou manter laços sociais.
Em 2016, foi publicado o livro “Mostras de práticas em Saúde Mental. Reconhecer o
Patrimônio da Reforma Psiquiátrica: o que queremos reformar hoje?”, resultado de evento
organizado pelo Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira. Em um artigo intitulado “A
reestruturação da Rede de Saúde Mental: reflexões sobre suas consequências na prática clínica
em um Caps infantil na cidade – impasses e desafios seguindo preceitos da integralidade”,
Emelice Bagnola (enfermeira, psicanalista, especialista em saúde pública, que trabalhou e foi
gestora do CAPSij) destacou os sintomas mais recorrentes que apareciam no CAPSij como: “o
silêncio produzido por uma violência sexual, a agitação dos corpos, o terror noturno, a ausência
de fixação ocular, o ato agressivo de uma defesa, o encontro com a sexualidade, o uso abusivo
de cocaína e crack ou o ato infracional” (Bagnola 2016:76). Desse modo, pode-se afirmar que
7
Os termos grafados em itálico são palavras ou expressões dos meus interlocutores de pesquisa. Utilizo as aspas
para destacar falas dos meus interlocutores ou trechos de documentos, assim como citações de autores que se
seguirão das referências bibliográficas.
8
Os adolescentes ao completarem 18 anos são encaminhados para outros serviços como Unidades Básicas de
Saúde (UBS), projeto de geração de renda, Centros de Convivência e CAPS adulto.
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o sofrimento como uma demanda de cuidado é manifestado em “agitações no corpo”,
agressividades, silêncios e ausências. Além disso, o sofrimento é considerado um efeito de
problemas sociais como violências sexuais, uso abusivo de substâncias psicoativas, atos
infracionais, “famílias desestruturadas”.
A partir desse dado, observa-se que as ações de cuidado são pensadas
estrategicamente a partir do conhecimento sobre a singularidade do usuário que é atravessada
por contextos sociais de desigualdades, vulnerabilidades e violências. As intervenções
terapêuticas são localizadas no interior de um campo de ação de maior ou menor intensidade
conforme os riscos e as necessidades dos usuários (Sartori 2015). As ações de cuidados são
avaliadas, calculadas e produzidas a partir de dados e informações sobre os contextos sociais
registrados em documentos como o Projeto Terapêutico Individual (PTI), relatórios e o caso
clínico (documento que detalha a história de vida, as vicissitudes, desejos e as idiossincrasias
dos usuários, assim como as ações de cuidado e as avaliações da equipe).
Esses registros são anexados ao prontuário depois de apresentados em reuniões de
equipe ou reuniões de supervisão (reunião em que se discute o caso clínico de um usuário com
um supervisor convidado pela equipe). Os documentos apresentam a história de vida do usuário,
as informações pessoais sobre a criança/adolescente, seus desejos, suas dificuldades, as relações
com seus familiares e outras instituições como a escola, o abrigo, o Conselho Tutelar, o hospital.
Além disso, os documentos apresentam as ações consideradas efetivas ou não que são utilizadas
para elaborar as estratégias e para problematizar as ações de cuidado que não foram
satisfatórias. Observa-se que as informações registradas em documentos são acionadas para
compor as intervenções terapêuticas. Em outras palavras, as informações sobre a
singularidade/subjetividade são transformadas em fatos que são registrados em documentos que
compõem as ações de cuidado.
“Cuidado em Rede”
Os profissionais do CAPSij, com frequência, são solicitados por outras instituições
(como escola, serviços de assistência social, Conselho Tutelar) para produzir relatórios ou
avaliações de usuários. Esses documentos apresentam o itinerário terapêutico, a história de vida,
o histórico de encaminhamento e o trabalho em conjunto com outros serviços. O ponto de
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partida aqui é apresentar as estratégias de “cuidados em rede” que acionam diferentes
instituições que acompanham adolescentes institucionalizados. Para isso, aciono as análises de
Latour (2015) que apontam para a descrição dos vínculos que permitem identificar a “fonte da
ação” e o “efeito de distribuição da rede”. Ou seja, o vínculo que designa e permite observar o
que produz as afecções, os movimentos e o “faz fazer” (Latour 2015:143). O “cuidado em rede”
descrito a partir dos vínculos permite mostrar as ações de profissionais e cuidadores de
diferentes instituições que produzem a circulação de pessoas e objetos (documentos, usuários,
fotos, mapas do território) por meio de fluxos materiais e imateriais (carros, e-mails, celulares,
informações, relações) em emaranhados institucionais (rede de serviços, canais burocráticos do
território, administração municipal, Conselho Municipal de Saúde).
Em meu último dia de pesquisa de campo, já me despedindo dos profissionais da equipe,
encontrei Julia9 que voltava de uma reunião com o Conselho Tutelar. Conheci Julia em minha
pesquisa de mestrado no CAPS Esperança, em 2008 (Sartori 2010). Julia é enfermeira,
psicanalista, especialista em saúde pública, começou a trabalhar no SSCF em 1997, com
experiência de trabalho e gestão do CAPSij desde 2012. Ao me ver no CAPSij, ela me contou
que tinha apresentado no Conselho Tutelar o relatório de uma usuária junto com um pedido
para a Juíza da Vara da Infância. O pedido, que era uma estratégia terapêutica, visava
possibilitar a usuária adolescente permanecer com a guarda de sua filha de três anos. O relatório
foi escrito em conjunto com Sofia, psicóloga e profissional de referência, ou seja, que mantinha
um vínculo de proximidade com a usuária Dora e era responsável pelo seu cuidado e
acompanhamento.
O relatório tinha por objetivo apresentar a assistência e solicitar um “trabalho em rede”
que fosse capaz de possibilitar a adolescente Dora, que na época tinha 17 anos, ficar junto de
sua filha preservando esse “laço familiar”. Para que essa solicitação fosse concretizada, os
profissionais do CAPSij precisavam estabelecer uma relação de parceria/comprometimento
com trabalhadores de outras instituições de acolhimento. A partir da escuta terapêutica no
CAPSij, Julia e Sofia afirmavam a importância dos laços familiares, principalmente, para
crianças e adolescentes abrigados. Outro objetivo do relatório foi destacar como eram operados
os encaminhamentos dos serviços de assistência e proteção. Diferente do CAPSij que seguia as
9
Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos meus interlocutores, como firmado no Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp (CEP/UNIFESP n:
0931/2016).
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regulamentações da política de saúde mental, os serviços de proteção encaminhavam, segundo
o documento, a partir de “concepções pessoais de homem, mundo, universo, e que estas tanto
constroem, quanto destroem laços”.
O cuidado no CAPSij foi descrito como orientado pela pergunta: “o que essa adolescente
precisa da rede?”. Essa pergunta resumia a orientação que direcionava a formulação das práticas
a partir dos desejos, necessidades ou demandas da usuária. Em outras palavras, essa orientação
não partia da ideia de que um adulto deveria decidir ou impor o que julgava ser melhor, “mais
adequado” ou “socialmente esperado” para a adolescente.
A adolescente Dora acolhida na Casa de Passagem (do programa Além Rua) foi
encaminhada ao CAPSij, em 2013, por fazer uso de crack. Na época, Dora tinha 14 anos e
apresentava plenos recursos cognitivos, lucidez e inteligência que a fez perceber, logo de início,
que tinha sido encaminhada para um serviço de saúde mental. Sabemos, pelas informações
contadas por Dora, que sua mãe faleceu de forma súbita de um AVC hemorrágico, deixando 6
filhos, os três menores (L, Dora e F de 2, 3 e 7 anos) ficaram sob a responsabilidade do pai e os
três mais velhos ficaram com familiares maternos. O Conselho Tutelar é acionado quando F
levou os irmãos menores para morar em um carro abandonado após serem vítimas de
negligências e violências domésticas cometidas pela nova esposa do pai. Dora e L foram
acolhidos no Lar da Criança Feliz. Seu irmão F foi encaminhado para Cidade dos Meninos e
começou a circular pelas ruas, cometer atos infracionais e fazer uso de substância psicoativa. O
pai foi aos poucos se afastando. Os profissionais do abrigo informaram que Dora, aos 6 anos,
foi vítima de abuso sexual no Lar da Criança Feliz (por parte de um cuidador).
Em conversas, Dora afirmava a produção de vínculos afetivos e de pertencimento com
pessoas do Lar da Criança Feliz. Após uma reorganização dos serviços de acolhimento, Dora
foi transferida, aos 12 anos, contra a sua vontade. Ao contar sobre esse acontecimento, Dora se
revolta e afirma ser impossível manter laço afetivo sendo de abrigo, em suas palavras: “Quem
é de abrigo vai sempre mudar de lugar, vou gostar para quê? Para perder depois?” Segundo
Dora, no abrigo não se pode decidir, apenas vive. Começa a elaborar a possibilidade de construir
sua própria família, diferente da sua, com marido e filhos. Não se sentindo segura, começa a
evadir do abrigo. Nos dois anos que seguem, Dora se relacionou com homens mais velhos (mais
de 20 anos) que nomeou de maridos. “Vale dizer que os traficantes, donos de biqueiras e
gerentes sempre levaram vantagens e com presença familiar de mães, avós, tias, mulheres as
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quais ela nomeou como sogras”. Para Julia e Sofia, os adolescentes que crescem em serviços
de proteção ao se encontrarem com a “sexualidade e com as drogas” mudam de abrigo e se
desconectam de todos os projetos institucionais.
Ao chegar ao CAPSij, Dora havia retornado ao abrigo Casa Verde, levada pelo irmão
preocupado com sua desorientação no uso de crack e nos atos infracionais. Afirma sentir
saudades da escola, apresenta habilidade na escrita e leitura. Deprime e se angustia, vai ao Rio
de Janeiro em busca de sua família. Encontra um laço amoroso e engravida. Em suas palavras:
“Um homem casado com família inteira, eu é que não iria destruir”. Volta para o abrigo, que
tinha um vínculo de cuidado e proteção, e para o CAPSij, para contar as angústias e dúvidas da
gravidez. Ela fala do “medo de não conseguir dar à filha aquilo que ela não tinha, medo de ser
mãe, pois não teve a sua. Seu pior medo era a filha repetir a sua história, não ter mãe, ser de
abrigo, ser adotada e nunca saber onde estaria sua família de origem”. É encaminhada para o
abrigo “Lar Veneranda” para adolescentes grávidas.
Sua experiência de gravidez foi atravessada por pessoas que disseram que ela não
conseguiria cuidar de sua filha ou pediram para adotá-la. “Desejou morrer, desejou que a filha
não nascesse. Usou muito crack e cocaína”. Os profissionais do CAPSij analisavam como
estagnação “o tempo parado pela droga, a angústia da falta de resposta e de solução, o juízo
moral que recaia sobre ela”. Com sua vida e de sua filha em risco, com mais de 6 meses de
gestação permitiu ser cuidada pela pediatra do CAPSij, deixou as ruas e o uso de crack. Aceitou
a internação no CAISM (Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher) e se encontrou com a
maternidade, nomeou a filha e “passou a acreditar que algo seria possível”. A equipe de
profissionais do CAPSij e do CAISM buscavam fazê-la acreditar que seria possível. Mas o
abrigo Casa Veneranda (atualmente, fechado por vários problemas) “não conseguia
acompanhar o tempo de construção e exigia que ela se colocasse desde o início, mãe sem
nenhuma angústia”. Após o nascimento de sua filha, Dora se descobriu mãe cuidadosa e atenta,
mas menina com todas as suas questões.
Julia e Sofia destacaram que o abrigo Casa Veneranda tinha um programa de atenção
destinado às mães. Mas não voltavam as suas atenções para a adolescente, que precisava de
cuidados para conseguir sustentar a construção de ser mãe. Para sua filha “nada faltava, para
ela nada fazia sentido, pois não era capaz”. A instituição de acolhimento não conseguiu manter
a frequência dos atendimentos de Dora no CAPSij por diferentes motivos (falta de um carro
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para levá-la ao serviço ou a troca de cuidadores que não conheciam a sua história e não
reconheciam a urgência do contexto). A equipe do CAPSij avaliou que suas ações estavam
atentas ao uso de substâncias e aos atos infracionais que cessaram com o nascimento de Elis.
Faltou o acolhimento da adolescente: “para o abrigo, preguiça, para o CAPSij, depressão”. O
abrigo não proporcionava condições para Dora oferecer algo para si e para a sua filha. Sentindose desprotegida buscou novas possibilidades longe do abrigo. Nesta circulação, foi considerada
negligente. “Uma mãe que nunca faltou a uma consulta pediátrica, que identificou uma
bronquiolite na filha, enquanto a mãe social dizia não ser nada. Negligente?” Elas foram
separadas, Dora encaminhada para Casa Esperança e Elis para o programa de família
acolhedora. “Dora se revolta, quebra, bate, Boletins de Ocorrência foram feitos”. Nova
mudança de abrigo, a Casa de Passagem Betel sustentou a indicação de um Projeto Terapêutico
Singular (PTS) no CAPSij para reconstruir a possibilidade de reaver a guarda da filha.
Os profissionais do CAPSij acompanharam os movimentos da rede de proteção.
Atualmente, no Lar Nossos Sonhos, Dora é incentivada a estudar, estar preparada para
trabalhar, almejar uma profissão e a provar (em um curtíssimo tempo) “que pode ser mãe de
sua filha”. Dora sente um medo constante de perder a filha, a cada deslize nas regras
institucionais sente a angústia de ser insuficiente e não alcançar as expectativas. Os
trabalhadores do abrigo orientam Dora a entregar a filha para adoção para que ela tenha a chance
de um futuro menos incerto. Mesmo com essa orientação, Dora busca indicar pessoas de sua
família no Rio de Janeiro.
Julia e Sofia afirmam que assistem os movimentos dos serviços de acolhimento, uma
vez que as reflexões, as sugestões e as orientações da equipe do CAPSij não são levadas em
consideração, pois investem na garantia dos direitos para a mãe e para o bebê. Considerando a
assistência de usuários abrigados, os profissionais do CAPSij acompanham as experiências de
adoção e de “devolução”. Sabe-se que uma boa situação financeira da família não garante a
efetividade da adoção. Os serviços de acolhimento afirmam de forma explícita que Dora pode
não fazer bem a sua filha por ter vivido o rompimento de laços afetivos e familiares. Dora é
atravessada pelas decisões institucionais hostis e de pouco cuidado que não consideram as suas
necessidades e desejos. Ela resiste, silencia e em sua solidão busca saídas.
Acompanhar a adolescente e suas necessidades na transição para a fase adulta não é a
preocupação da rede de proteção. Dora é considerada mãe que pode ser negligente e sua filha,
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a criança que deve ser protegida. Julia e Sofia solicitam à Juíza da Vara da Infância que Dora
tenha a oportunidade de construir outras possibilidades junto com a filha no Programa Lua
Nova, para ser cuidada em seu desenvolvimento e independência econômica, tendo em vista
que ela possui capacidade para a maternagem. Observa-se que a indicação do abrigo em separálas aciona argumentos sociais como a falta de independência econômica, os laços afetivos e
familiares que foram rompidos.
O relatório começa com uma questão sobre o papel do CAPSij na produção de mais
usuários institucionalizados (“em que medida os CAPSis interferem e modificam os números e
tempos de permanência de uma criança institucionalizada?”). A posição da equipe do CAPSij,
naquele momento, foi a institucionalização de Dora e sua filha no mesmo abrigo. O CAPSij
acredita que a escolha por manter as duas juntas faria com que Dora buscasse alternativas
econômicas para sobreviver sem estarem institucionalizadas.
A partir das informações registrada no relatório, observa-se que o “trabalho em rede” é
produzido considerando os contextos de continuidade e contingências da experiência de vida
de Dora. Os diferentes serviços, as variadas racionalidades empregadas nas ações de assistência
e os diferentes pontos de vista dos profissionais implicam na elaboração de ações e
possibilidades de futuro para Dora ao lado de sua filha. Conforme o relato sobre o caso de Dora,
nota-se que as ações de cuidado dos profissionais do CAPSij são elaboradas por meio de
informações sobre a singularidade, intimidade, desejos e ideias de futuro de Dora. Julia e Sofia
apresentam
as
estratégias
da
equipe
do
CAPSij
mobilizadas
tanto
para
direcionar/dirigir/governar10 as ações de Dora para retomar a guarda de sua filha, como para
acionar o “trabalho em rede” ao solicitar à juíza da Vara da Infância as garantias de direitos da
mãe e filha de permanecerem no mesmo abrigo.
Observa-se o modo como os profissionais do CAPSij empreendem a construção de
vínculos com atores de outras instituições a fim de produzir um “trabalho em rede”. Ou, como
afirmou Júlia, os profissionais do CAPSij não pretendem estabelecer uma relação de
supervisão11 (ou orientação) com os representantes de outros serviços. A ideia é construir um
10
Governar, no sentido descrito por Foucault (2011), seria um procedimento estrategicamente formulado para
conduzir a conduta dos indivíduos, que inventa novas práticas, que se desenvolve, se contrai, se estende e atinge
determinado domínio.
11
Reunião dirigida por um supervisor (pessoa de fora da instituição, normalmente, um psicanalista ou especialista
com experiência em saúde pública) que visa promover uma discussão entre os profissionais com o objetivo de
resolver algum impasse que esteja impedindo o bom funcionamento da organização institucional (Sartori 2010).
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“trabalho em rede” que seria uma nova invenção denominada de “acompanhamento
compartilhado”. Dito de outra maneira, o “acompanhamento compartilhado”, considerado uma
invenção, é uma forma de operar a relação de vínculo entre os atores na produção de um
“trabalho em rede” para cuidar e assistir as crianças e adolescentes abrigados.
Registro, Sofrimento e Precariedade Social
O registro documental apresenta os diferentes serviços de abrigamento e cuidado em
sua multiplicidade de pontos de vista, além da multiplicidade e atravessamentos de Dora.
Observa-se os conflitos e as dificuldades dos profissionais em produzir um “acompanhamento
compartilhado” (como afirmam os profissionais do CAPSij). Tendo em vista que os serviços
partem de objetivos diferentes que resultam em possibilidades de futuros distintos. Se por um
lado, os abrigos consideram Dora despreparada e se preocupam com o futuro de sua filha, que
por ser um bebê teria mais chances de ser adotada por uma família adequada. Por outro lado,
as profissionais do CAPSij afirmam que Dora é capaz de cuidar de sua filha se tiver um
acompanhamento e suporte institucional. Dora pode estar despreparada para lidar com a
maternidade, mas não há nada que a impeça de aprender a lidar com essa experiência de ser
mãe se ela tiver o mínimo de suporte institucional (um lugar para morar, alimentação e a chance
de aprender uma profissão ou conseguir um emprego). Ou seja, um suporte institucional para
suprir as demandas sociais e econômicas que situam Dora em um contexto de precariedade.
Na descrição das ações de cuidado, nota-se o modo como o real está implicado no
político ao expor como a realidade está sendo produzida ou modelada de forma aberta e mutável
por meio da agência das práticas dos diferentes serviços. Ou seja, as práticas de cuidado e
assistência são fabricadas ao mesmo tempo em que produzem, atualizam e performam a
realidade. Esse argumento é fortemente inspirado nas análises da antropóloga Annemarie Mol
que afirma ser a realidade múltipla, uma vez que ela é manipulada por meio de diferentes
instrumentos, atividades e práticas que ajudam a performar [enacted] diferentes versões e
diferentes realidades que coexistem no presente. Para a autora, a realidade é reconhecida por
diferentes e múltiplos olhares que a observam, ao mesmo tempo em que se compõe como um
objeto múltiplo. Os diferentes pontos de vista multiplicam as realidades que são performadas,
como bem o faz a autora, ao descrever a anemia como doença performada de diferentes
maneiras por meio de diferentes sintomas manifestados e reconhecidos. Para a autora, existem
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diferentes formas de performar o desvio ou a doença em um diagnóstico estável. De forma
geral, a doença/desvio é detectada pelos profissionais por meio de exames, sistemas de rastreio,
observação e identificação da demanda. A forma de detecção produz fatos, argumentos e
escolhas políticas que deslocam as decisões para lugares legítimos como as “técnicas de
medicalização, considerações sobre as razões boas ou más para o tratamento e os orçamentos
dos cuidados em saúde” (Mol 2007).
Em meu campo de pesquisa, a ideia de analisar não apenas os diferentes pontos de vistas
dos profissionais sobre o sofrimento como múltiplo, parece-me importante analisar o próprio
sofrimento como múltiplo performando de diferentes modos nos diferentes contextos sociais.
Além disso, parece-me importante descrever os procedimentos técnicos que transformam as
informações observadas por diferentes pontos de vistas (que consideram o sofrimento uma
multiplicidade ou idiossincrasia singular) em fatos registrados em documentos. No CAPSij, os
profissionais elaboram o sofrimento como fato por meio da prática do cuidado que conecta de
forma técnica os aspectos psíquicos (manifestado nas angústias e depressão) e os aspectos
sociais (manifestados em comportamentos considerados não adequados, usos de substância
psicoativas, “famílias desestruturadas”, violência sexual). O sofrimento é transformado em fato
no grupo terapêutico mediado por meio da prática da escuta terapêutica do profissional, nas
reuniões de equipe, na prescrição da medicação, no relatório do juizado, na observação dos
comportamentos, nos encaminhamentos para internação.
Considerações finais
A partir dos dados da pesquisa de campo, descrevi como se configura “cuidado em rede”
entre o CAPSij e os serviços de acolhimento/abrigos de Campinas. Apresentei a lógica de
funcionamento de um cuidado singular elaborado pela equipe de profissionais do CAPSij
Carretel. Destaquei as atividades institucionais acionadas para estabelecer uma relação de
proximidade ou vínculo de confiança com o usuário para estabelecer a prática da escuta
terapêutica e identificar as situações de sofrimento. Indiquei o modo como o cuidado singular
é elaborado em atividades institucionais e em procedimentos técnicos como a escuta
terapêutica, a discussão em equipe, a construção do caso clínico e a produção de registros
documentais (como os prontuários, o Projeto Terapêutico Individual, os encaminhamentos, os
relatórios judiciais). No detalhamento das práticas de cuidado e do registro da singularidade,
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observa-se como o sofrimento é produzido ou intensificado por contextos sociais de
desigualdades.
O material etnográfico permitiu analisar os diferentes pontos de vista de profissionais
sobre um caso singular de uma adolescente assistida por diferentes serviços. A partir das
informações do relatório, apreende-se a configuração do “cuidado em rede” operado por meio
da relação de vínculo entre os atores que assistem crianças e adolescentes abrigados. Como
estratégia terapêutica, as profissionais do CAPSij buscaram possibilidades à adolescente reaver
a guarda de sua filha. As informações acerca da história de vida e sobre as intervenções de
cuidado destinadas a Dora expõem a dificuldade de produzir um “cuidado em rede”, os
diferentes pontos de vista e objetivos dos serviços que atravessavam a vida da adolescente
institucionalizada. Busquei com este texto apresentar como o contexto social de desigualdade
provoca sofrimentos que são identificados de forma singular por meio de práticas de cuidado e
transformados em fatos/informações/dados registrados em documentos institucionais.
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e
abrangência).
Disponível
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