A Ilicitude Penal No Fato Atipico
A Ilicitude Penal No Fato Atipico
A Ilicitude Penal No Fato Atipico
Agressor...?!?
Já vimos esse filme, ou melhor, esse exemplo em sala de aula uma centena
de vezes para ilustrar a legítima defesa putativa por erro de tipo. Normalmente, o
coitado do “inimigo mortal que entra no bar com cara feia” estava só puxando um
lenço (embora não estivesse resfriado) ou uma Bíblia (embora nem coubesse no
bolso de trás). Mas a verdade é que agressão mesmo não existia e, se o erro do
agente era de fato justificado pelas circunstâncias do caso concreto, ele não
responderá pelo crime de homicídio doloso porque, nos termos do art. 20, §1º, do
Código Penal brasileiro, lhe faltaria o dolo.
O fato, portanto, seria atípico e a discussão sobre o que, afinal, teria sido
praticado pelo agente em termos penais se resolveria no exame da primeira fase, ou
melhor, do primeiro requisito do crime: o fato típico. Ficaria prejudicada a análise da
antijuridicidade e da culpabilidade. A sentença que assim conclui, portanto, não
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Texto concluído em 29 de setembro de 2010.
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Juiz federal na Paraíba. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação do Centro
Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e do curso de pós-graduação das Escolas Superiores
Integradas do Nordeste (ENSINE). Mestre em direito econômico pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB).
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chega sequer a examinar a ilicitude daquela conduta, pois encerra a discussão ainda
no exame do primeiro requisito.
Responda você leitor por si mesmo: em razão de seu engano, o agente tinha
autorização do direito para atirar em alguém? Seu erro lhe conferiria o direito de
atirar contra outra pessoa? Claro que não, né? Sendo assim, embora tenha
praticado um fato atípico, penalmente falando, parece indiscutível que seu fato
(atípico) foi contrário ao direito e, portanto, antijurídico. Somente seria jurídico (ou
seja, lícito, autorizado, permitido ou conforme ao direito) se houvesse sido praticado
sob a proteção de uma das causas excludentes de ilicitude, certo?
Nesse ponto, há uma pergunta simples que deve ser feita: afora a óbvia
exclusão da tipicidade em relação ao agente, qual a relevância jurídico-penal da
conduta de quem age em legítima defesa putativa por erro de tipo? A resposta é
igualmente simples: uma vez que o agente não está verdadeiramente em legítima
defesa, ele pratica uma conduta que é, em si mesma, uma ofensa desautorizada a
um bem jurídico penalmente protegido e que, portanto, se enquadra com perfeição
no conceito de “agressão injusta, atual ou iminente”. Isso permite ao pseudo-
agressor (o cara do lenço ou da Bíblia) reagir em legítima defesa real contra o
pseudo-agredido. Na nossa historinha do primeiro parágrafo, o sujeito que entrou no
bar e que fora alvejado pelo protagonista poderia responder ao disparo para
defender sua vida. Sua conduta seria lícita por corresponder a uma verdadeira
causa de exclusão da ilicitude: a legítima defesa real.
Mas qual seria o ponto de divergência entre essas duas condutas que tem
como conseqüência o fato de que uma delas é penalmente irrelevante (autorizada
pelo Direito) e a outra é penalmente relevante (desautorizada e, portanto, proibida
pelo Direito, por ofender bens jurídicos protegidos)? Parece-me que a resposta está
em que, atendendo-se à teoria da função indiciária do tipo, a apuração da ilicitude
penal de determinado fato típico deve ser feita em total desconsideração ao
elemento subjetivo do tipo, ou seja, em abstenção ao exame do dolo ou da culpa do
agente.
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Daí nós termos, de acordo com o direito penal brasileiro, a figura do fato
penalmente atípico e penalmente antijurídico, muito embora a antijuridicidade seja o
segundo requisito do crime e sua verificação seja uma presunção relativa da
constatação da existência do fato típico. Haveria algo como uma inversão: embora o
segundo requisito decorra do primeiro (numa relação de presunção e indício, como
prega a idéia da função indiciária do tipo), teríamos aqui a constatação do segundo
requisito (ilicitude) apesar da inexistência do primeiro (fato típico).
Apesar da lógica do raciocínio, vejo tudo isso como um erro, ou melhor, como
uma equivocada escolha do legislador do Código Penal brasileiro que, talvez por
teimosia, resolveu adotar a teoria limitada da culpabilidade para admitir que o erro
sobre elementos de fato das causas justificantes (excludentes de antijuridicidade)
afastaria o dolo e não a culpabilidade (como prega a teoria extremada do dolo).
Vou explicar.
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Ocorre que o dolo, como elemento subjetivo, deve ser encarado como
consciência e vontade a incidir sobre os elementos objetivos do tipo. Mais
precisamente como consciência sobre toda a situação de fato circundante que diga
respeito a cada um dos elementos objetivos do tipo e vontade de agir conforme essa
consciência e em busca do resultado típico. O sujeito que atira em um homem
porque acredita que atira em um animal realmente erra sobre um elemento objetivo
do tipo penal do homicídio: a elementar alguém, que significa a pessoa humana. Se
ele erra sobre essa elementar, sua consciência que compõe o dolo não abrange
todos os elementos objetivos do tipo e, portanto, não se pode dizer que o agente
tenha agido com dolo. Não terá havido consciência e vontade de “matar alguém”.
Já o sujeito que atira em outro por acreditar que esse outro o está agredindo
atual e injustamente, assim age com plena consciência dos elementos objetivos do
tipo penal do homicídio. Ele tem consciência de que mata alguém e tem vontade de
matar esse alguém. Logo, eis o óbvio: ele tem dolo de “matar alguém”. Não
interessa ao tipo penal do homicídio se o agente, com consciência e vontade, matou
esse alguém para defender a si, a um terceiro, a um animal, a um bem patrimonial, a
sua honra ou a um simples ponto de vista. Não é preciso querer praticar o crime-
homicídio, mas apenas o fato-homicídio. Desde que assim tenha agido com dolo,
terá praticado o fato típico do homicídio.
Em suma, a legítima defesa putativa por erro de tipo, por conferir certeza ao
agente de que pratica conduta lícita, afasta a possibilidade de saber que é, na
verdade, ilícita sua conduta e exclui, consequentemente, o requisito da potencial
consciência sobre a ilicitude do fato. Exclui, pois, a culpabilidade e não o fato típico.
Qual o nome que se dá a isso?
Pensando bem, isso é bem óbvio. Estudando direito penal, lidamos com dois
tipos de erro: o erro de tipo, que incide sobre elementos objetivos (descritivos ou
normativos) do tipo penal, e o erro de proibição, que incide sobre a natureza proibida
do fato típico que se pratica. No erro de tipo, o sujeito pratica um fato típico, mas
acredita que não o pratica (v.g., atirar em um homem pensando que atira em um
animal). No erro de proibição, o sujeito sabe que pratica um fato típico mas acredita
que é permitido o que é, na verdade, proibido, o que equivale a dizer que ele erra
sobre a natureza proibida do fato típico que pratica. Daí a expressão: erro de
proibição, ou erro sobre a proibição do fato. O agente que atira em um outro ser
humano com intenção de matá-lo por acreditar que se defende, sabe que pratica o
fato-homicídio de “matar alguém”. Ele acredita, contudo, que esse seu “matar
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alguém” é um fato permitido por causa da agressão atual e injusta que ele sofre.
Como realmente não sofre qualquer agressão, ele na verdade pratica um “matar
alguém” proibido. Seu erro incide, portanto, sobre a natureza proibida do “matar
alguém” que pratica. Trata-se, portanto, de erro de proibição, não de erro de tipo.
Trata-se de causa excludente da culpabilidade, não do dolo.