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Relatório - Direito Constitucional

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

Doutoramento em Direito/Ciências Jurídico-Políticas


Disciplina Direito Constitucional

Aplicabilidade das Normas Constitucionais nas Relações entre


Terceiros

Trabalho apresentado ao PROFESSOR


DOUTOR JORGE MIRANDA como parte das
atividades da Disciplina Direito Constitucional, do
Curso de Doutorado da Universidade de Lisboa

Doutoranda: Ebe Pimentel Gomes Luz

Lisboa

2007/2008
1

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................ 2

2. EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DESDE O


ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO ................................... 5
2.1 A concepção liberal dos direitos fundamentais ................................... 5
2.2 Os direitos fundamentais no Estado Social .......................................... 12
2.3 Estado contemporâneo e a crise do Direito .......................................... 16

3. AS ELABORAÇÕES TEÓRICAS SOBRE VINCULAÇÃO


DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................... 21
3.1 Negação dos efeitos entre privados dos direitos fundamentais ........ 21
3.2 Teorias que negam a eficácia entre particulares dos direitos
22
fundamentais ...........................................................................................
3.2.1 Teoria da “convergência estatista” ......................................................... 24
3.2.2 State action doctrine ............................................................................... 25
3.3 Teoria da Eficácia Indireta ou Mediata (Mittelbare Drittwirkung) ........ 30
3.3.1 Delineamentos dogmáticos .................................................................... 31
3.3.2 O Caso Lüth ........................................................................................... 33
3.3.3 A mediação pelo juiz .............................................................................. 37
3.3.4 A mediação pelo legislador .................................................................... 38
3.4 A Eficácia Imediata ou Direta (Unmittelbare Drittwirkung) .................. 40
3.4.1 Delineamentos dogmáticos .................................................................... 41
3.4.2 A posição da doutrina brasileira ............................................................. 44
3.5 O modelo de Alexy .................................................................................. 48
3.6 As diferentes teorias se excluem? ........................................................ 51

4. CONCLUSÕES ...........................................................................................
53

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................


57
2

1. INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objetivo a análise da eficácia dos direitos


fundamentais entre particulares, bem como contribuir para a edificação de
aspectos muito importantes sobre a Teoria Geral dos Direitos Fundamentais.

Nos últimos tempos, a produção doutrinária sobre os direitos fundamentais


notadamente no tocante à eficácia desses direitos nas relações privadas, mostrou-
se terreno fértil1, haja vista a grande produção de artigos e obras sobre o assunto,
cujo ponto central é verificado na ênfase que conferida a essas garantias.

No Brasil, as desigualdades sociais são chagas abertas no espírito de seu


povo, facilmente identificáveis no seu cotidiano. Particulares protagonizam,
reiteradas vezes, abusos e transgressões a direitos fundamentais, diante da
fragilidade do Estado e de sua estrutura perversa. Em virtude disso, a produção
científica e jurisprudencial do Brasil deveria, há tempos, haver alertado para tão
importante tema e alcançado patamares bem mais relevantes de abordagem sobre
o assunto.

“Drittwirkung der Grundrechte” - “eficácia horizontal” dos direitos


fundamentais foi a denominação adotada pela Alemanha e visava na sua gênese,
em verdade a forjar a idéia de garantir um âmbito pessoal de imunidade à
ingerência e ao arbítrio estatal, pois era tido como seu maior transgressor. Esse
quadro, porém, mudou com o decorrer do tempo, uma vez que hoje tem como
objetivo garantir e salvaguardar as relações entre privados, ou seja, assegurar a
incidência dos direitos fundamentais no Direito privado e nas relações jurídicas
particulares.

Além da Alemanha, outros países, como Espanha, Portugal, Itália, França,


Holanda, Canadá, África do Sul, dentre outros, produzem debates ferrenhos na

1
“oferece terreno fértil para desenvolvimentos”, uma vez que “inobstante alguns estudos pioneiros
de inequívoco valor, ainda reclama o devido enfrentamento no direito pátrio. SARLET, Ingo
Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
p. 381 e 393.
3

jurisprudência e na doutrina sobre os direitos fundamentais e a relação entre


particulares. No Brasil, entretanto, o tema ainda está em fase de maturação, muito
embora alguns esforços já venham sendo despendidos no sentido de
desenvolvimento do assunto. O tema representa, portanto, a última fronteira da
Constituição normativa, na expressão de Bilbao Ubillos.2 São raras, porém, as
nações cujas cortes constitucionais ainda não acolheram, mesmo que
indiretamente, o pensamento de que os direitos fundamentais protestam proteção
também nas relações de Direito privado.

É no ambiente privado, que as ocorrências de violação aos direitos


fundamentais proliferam. As radicais mudanças na sociedade, impostas pela
“globalização” e pelo “pós-modernismo” ensejam aos poderes privados usurpar do
Estado sua condição de maior fonte mesmo que em potencial, de ameaças à
concretização material dos direitos fundamentais.3

A Constituição da República Federativa do Brasil é prodigiosa em fazer


referências valorativas à proteção à dignidade da pessoa humana em vários
dispositivos, como no artigo 1º, inciso III, no artigo 3º, inciso I, que expressa o
estabelecimento de uma sociedade livre, justa e solidária, e a redução das
desigualdades sociais, bem como no mesmo artigo 3º, III, segue ainda em vários
outros dispositivos que não se faz necessário reunir, uma vez que seria exaustivo
enumerar todo o catálogo.

Esse sentimento de proteção da dignidade da pessoa humana é muito


comum na atualidade e serve, de acordo com o pensamento de Carlos Roberto
Siqueira Castro, de estrutura ao edifício das constituições da era contemporânea,

2
UBILLOS, Juan María Bilbao. La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares:
análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 1997. p. 325.
3
“um mundo voltado à livre movimentação global de todos os fatores de produção que conduzem
ao lucro é também um mundo interessado em estancar a única forma de globalização
inquestionavelmente desejada pelos pobres, isto é, encontrar empregos mais bem pagos em países
ricos. Manifestação de HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes: uma vida no século XX. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 396-397. Sobre o país em que vivemos, o historiador inglês
assinala: “o Brasil continua a liderar a classificação mundial de injustiça social” Ibid., p. 418.
Observa ainda que a América Latina, como um todo, “permanece como era durante mais de cem
anos, cheia de Constituições e juristas, porém instável em sua prática política” Ibid., 2002. p. 417.
4

que venha a fundamentar a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às


relações privadas.4

Quando se reporta à eficácia dos direitos fundamentais, se faz referência de


maneira a identificar o fato de que esses direitos não regulam as relações verticais
de poder, que, via de regra, estão intrinsecamente vinculadas ao cidadão e ao
Estado, mas incidem também sobre as relações estabelecidas entre pessoas e
entidades não estatais, que se encontram em posição de igualdade formal. Hoje,
no entanto, é necessária a ampliação do raio de atuação dos direitos fundamentais
até às relações privadas.

Este estudo está divido em quatro capítulos, subdivididos em vários


subitens, de conformidade com a robusteza do assunto e com a sua necessidade.

Inicialmente faremos uma abordagem teórica sobre o tema, apresentando


os direitos fundamentais desde sua concepção no Estado Liberal, passando pelo
Estado Social até o Estado Contemporâneo e a crise do Direito.

No segundo momento, serão apresentadas as formulações teóricas sobre a


incidência, vinculação e eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Ato contínuo, demonstraremos a posição doutrinária brasileira.

Acreditamos que este estudo algum contributo trará para a elaboração de


um mundo melhor. Assim sendo, é necessário fincar uma meta e estabelecer
ordem normativa para que, com esses mecanismos eficazes, possamos limitar os
núcleos de poder e efetivamente dar aplicação aos direitos fundamentais nas
relações privadas.

4
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Dignidade da pessoa humana: o princípio dos princípios
constitucionais. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio. (Org.). Direitos fundamentais: estudos
em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 140.
5

2. EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DESDE O


ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO

2.1 A concepção liberal dos direitos fundamentais

Kelsen imaginou o estabelecimento de uma sociedade onde fosse


dispensável a ordem normativa coercitiva. Assinalava que até a concretização
desse desiderato muito tempo levaria, porquanto uma distância enorme havia de
ser percorrida. O grau de evolução do significado dos direitos fundamentais, no
entanto, desde sua primeira geração até nossos dias, é imensurável.

Não pairam dúvidas quanto à importância valorativa dos direitos


fundamentais no constitucionalismo moderno. Tal asserção foi constatada por
Peter Häberle, quando disse que, em nossos dias, há “uma impressionante
imagem de onipresença dos direitos fundamentais no Estado constitucional”.1

A elevação dessas garantias ao topo da hierarquia normativa dos


ordenamentos jurídicos do ocidente decorre sem nenhuma dúvida, das lentas
mudanças do Estado no decorrer dos tempos. Sobre o assunto se manifesta
José Joaquim Gomes Canotilho: “a ‘história das constituições é a história
apaixonada dos homens. Esta ‘paixão’ e esta ‘história’ marcam muitos capítulos
da evolução do direito constitucional. Saber ‘história’ é um pressuposto
ineliminável do ‘saber constitucional’”.2

Paulo Bonavides sustenta, em razão disso, uma análise contextual da


trajetória desses direitos. Mais especificamente em face do Poder Público,
impõe-se como necessária. Afirma ele que, desde sua inauguração até os
tempos correntes, o Estado constitucional ostenta três distintas modalidades
essenciais: a primeira é o Estado constitucional da separação de Poderes
(Estado Liberal), a segunda, o Estado constitucional dos direitos fundamentais

1
HÄBERLE, Peter. Efectividad de los derechos fundamentales: en particular relación contrato el
ejercicio del poder legislativo. In: PINA, Antonio Lopez. La garantia constitucional de los
derechos fundamentales: Alemania, España, Francia e Itália. Madrid: Civitas, 1991. p. 261.
2
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª. ed.
Coimbra: Almedina, 2003. p. 19.
6

(Estado Social) e, a terceira, o Estado constitucional da Democracia participativa


(Estado Democrático-Participativo).3

Limitaremos o estudo no momento ao período que engloba a passagem


do primeiro modelo para o segundo, ou seja, do Estado Liberal para o Estado
Social e, conseqüentemente, deste para o contemporâneo, uma vez que a
análise entre eles traduz exatamente o espírito de elasticidade dos direitos
fundamentais. É ponto pacífico na doutrina dizer-se que o que se chama de
direitos fundamentais clássicos representa garantias cuja manipulação se
concretiza principalmente em face do Estado.4

Vale ressaltar que essa concepção “clássica” mesmo hoje, é utilizada


como argumento hostil à incidência dos direitos fundamentais nas relações
privadas. Exemplo disso é o posicionamento de Virgílio Afonso da Silva, quando
anota que, com essa denominação, se quer muitas vezes não somente ressaltar
uma precedência histórica, mas também, e o que é mais importante, uma
precedência no que diz respeito à relevância. Aqueles autores que rejeitam
qualquer efeito dos direitos fundamentais nos outros ramos do Direito apenas
radicalizam e absolutizam esse argumento, para sustentar que direitos
fundamentais são, única e exclusivamente, direitos dos cidadãos contra o
Estado.5

Nossa opinião é contrária a essa idéia, pois não se sustenta no atual


estágio do constitucionalismo. Aceitar tal asserção é negar toda a trajetória de
desenvolvimento por que passaram os direitos fundamentais, bem como ignorar

3
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 41.
4
Na conhecida dogmática de Paulo Bonavides, a essa fase corresponde a primeira geração dos
direitos fundamentais: “têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como
faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais
característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”. Id. Curso de
direito constitucional. 13ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 563-564.
5
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais e relações entre particulares. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 70-71. O autor questiona, em contrapartida, a veracidade deste argumento,
ao obtemperar que “uma breve leitura da Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776,
especialmente em seu art. 3º [‘O governo deve ser instituído para o benefício comum, para a
proteção e para a segurança da população, da Nação ou da comunidade], e na Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, sobretudo em seu art. 2º [‘O objetivo de toda
associação política é a conservação dos direitos humanos naturais e imprescritíveis. Esses
direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão], pode dar uma
idéia do quanto a segurança dos cidadãos em suas relações entre si eram fortes elementos da
teoria e prática dos direitos fundamentais”. Ibid., 2005. p. 138.
7

a ampla irradiação de seus efeitos, fenômeno que representa a própria síntese


do sentimento constitucional no novo milênio.

Tem-se como marco divisor na relação de poder soberano entre


governantes e governados a inspiração da carta de “João Sem Terra” em 15 de
junho de 12156.

Havia uma preocupação de construir uma base teórica que


fundamentasse a limitação do Estado. Isto foi se fortalecendo no decorrer dos
séculos no pensamento Europeu, uma vez que a trajetória dos direitos
fundamentais está intrinsecamente ligada à história desse Continente, sendo
identificado o poder público como a besta bíblica do “Leviatã”, na célebre
analogia de Hobbes.7

Com o decorrer do tempo, uma nova categoria buscou espaço na


sociedade feudal, sedenta pela ascensão social que o acúmulo de riquezas
poderia proporcionar, toda inspirada nas idéias de Hobbes e Locke. Na ideologia
liberal burguesa, os soberanos devem manter o espaço livre para os cidadãos,
pois mais não podem fazer pela felicidade no interior do Estado do que
preservar os cidadãos de guerras internas e externas, permitindo que eles
gozem com sossego de sua fortuna, adquirida mediante o próprio esforço.8

Para Wilson Steinmetz, “três foram os acontecimentos históricos


decisivos para o triunfo da plataforma liberal: a Revolução Gloriosa inglesa
(1688), seguida do Bill of Rights (1689); a independência das colônias inglesas
da América do Norte (1776), à qual se seguiram a Constituição dos Estados
Unidos da América (1787) e o Bill of Rights (1791); e a Revolução Francesa
(1789), com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a

6
A Magna Cartha Libertatum serviu, apenas, “para garantir aos nobres ingleses alguns
privilégios feudais, alijando, em princípio, a população do acesso aos ‘direitos’ consagrados no
pacto”, no dizer de Ingo Sarlet. SARLET, Ingo, A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 49.
7
“O nome Leviatã é uma referência ao Livro de Jô, 41; ao medonho poder do grande monstro
marinho que para Hobbes era uma metáfora do terrível poder do estado soberano de sua tese. O
objetivo do Leviatã é descrever o preço que o ser humano paga pela sua conveniência,
segurança e paz” SEYMOUR-SMITH, Martin. Os 100 livros que mais influenciaram a
humanidade: a história do pensamento dos tempos antigos à atualidade. 5 ª. ed. Rio de Janeiro:
Difel, 2002. p. 317.
8
HOBBES apud HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 ª.
ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 1. p. 123.
8

primeira Constituição francesa (1791)”. Foram tais eventos, que criaram as


condições políticas para a construção, no oitocentos, do Estado Liberal de
Direito, também denominado ‘Estado Burguês de Direito’ (Carl Schmitt) ou
simplesmente ‘Estado de Direito’ (Rechtstaat, na linguagem da Escola de Direito
Público alemã do século XIX)”.9

Paulo Bonavides considera que fatores como as guerras de religião e as


competições econômicas que pautavam a política do equilíbrio europeu foram
decisivos para o crescimento político da burguesia. Narra, ainda, sobre a
Revolução Francesa, que “a queda da Bastilha simbolizava, por conseguinte, o
fim imediato de uma era, o colapso da velha ordem moral e social erguida sobre
a injustiça, a desigualdade e o privilegio, debaixo da égide do Absolutismo;
simbolizava também o começo da redenção das classes sociais em termos de
emancipação política e civil, bem como o momento em que a Burguesia,
sentindo-se oprimida, desfaz os laços de submissão passiva ao monarca
absoluto e se inclina ao elemento popular numa aliança selada com as armas e
o pensamento da revolução; simboliza, por derradeiro, a ocasião única em que
nasce o poder do povo e da Nação em sua legitimidade incontrastável”. 10

De acordo com Alexis de Tocqueville, a Revolução arrasou


completamente tudo o que, na antiga sociedade, era derivado das instituições
aristocráticas e feudais. Só se conservou o que sempre foi alheio a estas
instituições ou podia existir sem elas. A Revolução Francesa era inevitável, pois
que a estrutura social já não se sustentaria por si só.11

A burguesia, então com o poder nas mãos, passou a defender os direitos


fundamentais, primordialmente o direito de propriedade. O Estado não passava
de um instrumento de defesa dos proprietários contra aqueles que não dispõem
da propriedade do capital. O governo não tem qualquer outro objetivo que não
seja a preservação da propriedade.

9
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 67.
10
BONAVIDES, Paulo, Teoria do Estado. 6ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.p. 39-40.
11
TOCQUEVILLE, Alexis de. O antigo regime e a revolução. 4ª. ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 1997. p. 67-68.
9

Proteger a liberdade equivalia a proteger a propriedade. Dessa forma,


pode-se compreender a razão de as declarações de direitos, ícone jurídico da
época, voltarem-se com tanta ênfase para a proteção da esfera privada de
autonomia. Representavam tais documentos exatamente a projeção, no plano
técnico-jurídico, dos temores e preocupações da burguesia.12

A Constituição surgia como expressão última do liberalismo iluminista no


plano jurídico. Por isso, o primeiro princípio liberal é o reconhecimento da
constante necessidade de limitar o fenômeno do poder, onde se pode encontrar
sempre uma dose inata de desconfiança diante de sua natural tendência à
violência.

Vale ressaltar que o constitucionalismo não deveria se limitar a


encarcerar o Leviatã em sua projeção sobre a sociedade, o que fora o propósito
da primeira geração dos direitos fundamentais; era preciso fazê-lo também no
plano interno. Assim é que, sob inspiração decisiva da doutrina de Montesquieu,
a separação dos poderes assumia lugar nas declarações de direitos como [...] o
'complemento natural' ou mesmo o pressuposto lógico e prático da proteção
jurídico-institucional dos direitos fundamentais de liberdade-autonomia, que na
época se julgavam tanto mais garantidos quanto mais o poder estadual
estivesse limitado e impedido de atuar contra a esfera de autonomia dos sujeitos
privados.13

Supostamente assegurada a esfera de liberdade individual em relação ao


Estado, impôs-se a espinhosa tarefa de estabelecer regras para proporcionar a
tão almejada “convivência harmoniosa” dos cidadãos. A consecução deste
objetivo se daria com base no princípio da legalidade, cuja conseqüência, para
os direitos fundamentais, era de que fossem então sinônimos de ‘reserva de lei
ou reserva legal, de alta conta para os revolucionários, uma vez que o
Parlamento era basicamente dominado pela burguesia.14 A produção legislativa

12
VALE, André Rufino do. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004. p. 35-36.
13
PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional - um
contributo para o Estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Editora Coimbra, 1989. p. 146.
14
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 31.
10

voltaria atentamente seus olhos para o direito privado, iniciando a era das
“grandes codificações”.

Para Clóvis Beviláqua, os códigos operam como verdadeiros “sistemas


filosóficos, porque cada sistema filosófico concretiza, em forte síntese, uma
concepção de mundo”.15

E tinha razão, uma vez que a legislação em forma de código surgia para
desempenhar o mesmo papel das declarações de direitos, ou seja, submeter o
sistema jurídico aos interesses da classe economicamente mais forte. Apenas a
“concepção de mundo burguesa tinha importância”.

Como exemplo disso, o Código Napoleônico, de 1804, teve papel


relevante sobre o direito positivo de outros países, como Áustria, Prússia, Itália
e, posteriormente, Brasil, que teve seu Código Civil de 1916, elaborado por
Clóvis Beviláqua, mantendo fidelidade às mesmas ideologias liberais, do
indivíduo-patrimônio.16

No sistema jurídico burguês, convencido nesta visão distorcida de


proteção à propriedade e ao contrato, a autonomia da vontade e a liberdade
individual tinham o mesmo significado.

Eis a grande distorção a que levou o modelo liberal: imaginar que a


proteção formal conferida pela legislação privada à autonomia individual da
vontade bastaria para assegurar também a concretização efetiva dos direitos
fundamentais.

15
BEVILÁQUA, Clóvis. Em defesa do projeto de Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1906. p. 15.
16
“havia uma clara distinção entre o liberalismo europeu como ideologia revolucionária articulada
por novos setores emergentes e forjados na luta contra os privilégios da nobreza, e o liberalismo
brasileiro canalizado e adequado para servir de suporte aos interesses das oligarquias, dos
grandes proprietários de terra e do clientelismo vinculado ao monarquismo imperial. No Brasil, o
liberalismo expressaria a ‘necessidade de reordenação do poder nacional e a dominação das
elites agrárias’, processo esse marcado pela ambigüidade da junção de ‘formas liberais sobre
estruturas de conteúdo oligárquico’, ou seja, a discrepante dicotomia que iria perdurar ao longo
de toda a tradição republicana: a retórica liberal sob a dominação oligárquica, o conteúdo
conservador sob a aparência de formas democráticas. Exemplo disso é a paradoxal conciliação
‘liberalismo-escravidão’”. WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense, 1998. p. 75-76.
11

Em nada mudou, para as classes desfavorecidas, o aprisionamento do


Leviatã estatal, pois continuava a classe proletária submetida ao jugo da
burguesia capitalista.

Urgia outra visão de Direito, notadamente dos direitos fundamentais, para


que fosse a justiça realmente feita no tipo de sociedade criada pelo Estado
Liberal.

Até a Igreja Católica, abandona seu silêncio, quando se manifesta através


da encíclica Rerum Novarum, de 1891, em cujo texto reivindicava melhores
condições de trabalho e condenava todos os patrões que submetiam os
proletários a atividades iníquas, desproporcionais ou desumanas.17

Foi, porém, o teórico Karl Marx quem formulou a maior contraposição


jurídico-filosófica à ordem liberal e que, realmente,veio causar o maior impacto,
quando identificou a “história da sociedade” com “a história da luta de classes”.
Seu pensamento comunisto-socialista atacou de forma frontal a liberdade
supostamente proporcionada pelos códigos, ao argumento de que, na verdade,
eles não proporcionavam outra liberdade senão a “única e implacável do
comércio”.

Karl Marx assinalava que não há entre os homens outro laço senão o
interesse nu e cru pelo frio dinheiro vivo, e isso se manifestava pela exploração
disfarçada sob ilusões religiosas pela exploração aberta, cínica, direta e brutal.18

Apesar do grande desejo de regular de forma exaustiva todos os


aspectos da vida do homem, tendo como fundamento os conceitos liberais de
igualdade e liberdade, atrelados à promessa de garantir “segurança jurídica”, os
códigos quedaram por estimular injustiças sem precedentes, além de colaborar
para o distanciamento entre os direitos fundamentais e os atos da vida privada.

17
Encíclica de grande importância para o Direito do Trabalho, pois o trabalho é considerado uma
forma de expressão da dignidade humana. Daí advertir que “é vergonhoso e desumano usar dos
homens como vis instrumentos de lucros”, exigindo do Estado justiça e eqüidade nas relações
laborais, para que nos ambientes de trabalho “não seja lesada, nem no corpo, nem na alma, a
dignidade da pessoa humana”. A Igreja ratificaria esta doutrina em várias Encíclicas:
Quadragesimo Anno (1931), Mater et Magistra (1961), Pacem in Terris (1963), Populorum
Progressio (1967), Humanae Vitae (1969) e, contemporaneamente, na Centesimus Anus, de
1991 – centenário da Rerum Novarum.
18
MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L&PM, 2001. p. 27-28.
12

Por outro lado, plantaram as sementes que findaram por brotar no tema mais
versado nos tempos atuais, sobre a eficácia jusprivatística dos direitos
fundamentais.

O Estado Liberal, portanto, se desenvolveu num cenário em que havia


todo um aparato político-social propício para que a geração pioneira dos direitos
fundamentais assumisse natureza defensiva, impositiva de deveres de
abstenção ao Estado. Não se pensava na eficácia desses direitos entre
particulares, uma vez que a posição do Estado estava limitada a garantir que os
negócios fossem cumpridos.19

2.2 Os direitos fundamentais no Estado Social

A razão de ser dos direitos fundamentais, mas do próprio direito, é atingir


o ideal de justiça social, razão por que a crise do modelo liberal de Estado pôs
sob evidência a insuficiência da contenção do poder estatal.

Evidentemente, a noção liberal de “liberdade” era por demais fictícia, além


de injusta, pois propiciava grande margem para os negócios privados e a
realidade social acabava sendo ignorada.

O afastamento entre o Poder Público e sociedade e a falta de


normatividade que até então caracterizavam os direitos fundamentais –
reduzidos a meras “exortações” desprovidas de eficácia jurídica – tinham por
conseqüência jurídica direta o confinamento dos problemas de cada esfera ao
seu respectivo corpo legal: a Constituição e o Código Civil.

Não foram poucos os fatores históricos que contribuíram para a


necessária revisão do programa liberal. Na virada do século XX, a Europa foi
palco de um crescente fortalecimento do modo de produção industrial.

De acordo com o previsto por Karl Marx, as primeiras manifestações


sociais irromperam, alimentadas por uma classe trabalhadora insatisfeita com as
injustiças sociais que faziam aumentar o desemprego, as péssimas condições

19
A aplicação cega e irrestrita do brocardo pacta sunt servanda de há muito conduz a situações
de extrema iniqüidade. SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. 2ª. ed. Rio de
Janeiro: Lacerda Editores, 1999. p. 85.
13

de trabalho, o êxodo rural, além de inúmeros outros fatores. O liberalismo até


então reinante desmoronava diante da insurgência do homem comum.

Essa revolta contra a inércia do Estado espalhava-se. Em virtude dessa


influência, eclodiu a Revolução Russa de outubro de 1917. Foi por intermédio de
manifestações revoltosas, dessa natureza, que importantes documentos na área
dos direitos sociais surgiram. Em 5 de fevereiro de 1917, a Constituição
Mexicana e a “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado”
surgem em meio à Revolução Russa.20

Foi na Alemanha que nasceram as pioneiras elaborações, alçando os


direitos fundamentais à condição de fundamento normativo de todo o sistema
jurídico. Sob o referencial constitucional, a Carta Alemã de Weimar de 1919 foi
considerada o ponto de partida para a trajetória que determinaria o significado
contemporâneo dos direitos sociais.21

Derrotados na Primeira Guerra Mundial e também isolados


economicamente em virtude das sanções impostas no Tratado de Versalhes
pelas nações vencedoras, esse cenário desencadeava um grande sentimento de
insatisfação popular além de estarem com o orgulho nacional ferido.

Com a sublevação das massas na porta, medidas a serem tomadas eram


necessárias e urgentes. Assim surge a Weimarer Reichsverfassung, cobrindo
inúmero catálogo de direitos sociais.

O Brasil sentiu esse reflexo, pois, na década de 1930, surgiram as


primeiras regulações de proteção aos trabalhadores – Consolidação das Leis do
Trabalho, bem como a criação da Justiça do Trabalho.

20
A Revolução Russa foi também conhecida por Revolução Bolchevique de outubro de 1917, e
manifestava-se também como insurgência contra os czares. Foi evento de grande importância
para a história do século XX, bem como foi fundamental a Revolução Francesa para o século
XIX. Manifestação sobre o assunto verificar na obra de HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos:
o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 62.
21
Na Carta Constitucional de Weimar – assim nominada em razão da absoluta impossibilidade
de reunir o Poder Constituinte na capital, Berlim –, os direitos fundamentais sociais foram
elencados na Parte II - Direitos e Deveres Fundamentais dos Alemães. Era composta de cinco
seções: “A Pessoa Individual”, “A Vida Social”, “Religião e Ordens Religiosas”, “Educação e
Ensino” e “A Vida Econômica”. Também nela estava inserido o famoso artigo 153, bastante
lembrado em qualquer análise histórica da função social da propriedade: “A propriedade acarreta
obrigações. Seu uso deve visar o interesse geral”.
14

No âmbito jurídico, a segunda geração dos direitos fundamentais viabiliza


as expectativas exercidas contra o Poder Público, que almejava medidas mais
efetivas e concretas, na busca da igualdade social, haja vista a substancial
ampliação das responsabilidades. No Estado Social, é função da teoria dos
direitos fundamentais ir além, uma vez que entre a liberdade jurídica e a
liberdade real existe um fosso a ser preenchido, para assegurar
verdadeiramente a garantia jurídica de liberdade, que até então não era
suficiente para assegurar a liberdade real de todos.

As últimas barreiras à consolidação definitiva de um Estado de cunho


prestacional, não apenas omissivo – os regimes totalitários da Itália (fascismo) e
Alemanha (nacional-socialismo) – ruíram junto com os escombros de uma
Europa arrasada pelo maior conflito bélico de toda a história22. Segundo Jorge
Miranda, “podem ser apontadas como características comuns aos fascismos
mussoliniano e hitleriano as seguintes: a) como inspiração filosófica, Hegel e
Nietzche; b) como índole geral, o sentido romântico, muito concreto e avesso ao
racionalismo, a admissão e a exaltação da força, a ordem como um valor em si,
o transpersonalismo, o culto do chefe (levando ao Führerprinzip); c) como
manifestações políticas, o governo da minoria (justificado pelo carácter ou pela
pureza racial), a ditadura ideológica e o partido de massas elevado a partido
único”.

Hitler e seus exércitos horrorizaram o mundo e, em conseqüência, houve


a necessidade de ir além do juspositivismo dominante e rever o direito dos
valores, notadamente a primazia da dignidade da pessoa humana.

Ao Estado não mais se ajusta a carapuça de Leviatã, pois a ampliação de


seu campo de atuação já não mais é sinônimo de iniqüidade e supressão dos
direitos; muito ao contrário, ela passa a ser necessária para concretizá-los,
retificando as abissais diferenças dentro da malha social. Daí que, na Era
moderna, “assiste-se a um crescimento ‘horizontal’ do Estado, quer ao nível das

22
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.
130-131.
15

tarefas que este passou a desempenhar, quer ao nível dos meios utilizados para
sua utilização”.23

A propulsora da grande discussão doutrinária, instaurada na segunda


metade do século XX, sobre os fundamentos do novo Direito Constitucional,
mais uma vez, era a doutrina alemã. Os direitos do homem voltavam a ostentar
o prestígio que desde as revoluções liberais não lhes era conferido.

O massacre de milhares de judeus no holocausto teve o condão de


provocar a indignação mundial pela proteção dos direitos fundamentais.24 Aos
direitos fundamentais, por fim, seria reconhecida a condição de alicerces da
ordem constitucional no Estado Social. O ápice desse entendimento aconteceu
com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 10 de dezembro de
1948, proclamada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas.
A Carta da ONU tornou irreversível o reconhecimento internacional dos direitos
fundamentais.

Foram necessários dez anos, após a Declaração Universal, para que uma
Corte de Justiça, por fim, se pronunciasse, no campo jurisprudencial, sobre a
nova dimensão dos direitos fundamentais. Esse privilégio foi do Tribunal
Constitucional Federal alemão, uma vez que, em 1958, julgou o “Caso Lüth”,
considerado como o grande “divisor de águas” sobre o assunto.

Foi desde esse precedente que a dogmática dos direitos fundamentais


introduziu conceitos como “ordem objetiva de valores”, “dimensão objetiva” e
“força irradiante”. O sistema de direitos não pode mais ser garantido na base
tradicional de uma sociedade econômica liberada, que cresce de maneira
espontânea por meio das decisões particulares autônomas privadas, mas, ao
contrário, ser efetivado por intermédio das ações de um Estado que se porta de
23
SILVA, Vasco Manuel Dias Pereira da. Vinculação das entidades privadas pelos direitos,
liberdades e garantias. Revista de Direito Público, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº. 82, p.
43,1987.
24
“[...] em momentos de luta revolucionária ou de grande mutação política e precedendo a
estabilização orgânico-constitucional, têm sido proclamadas Declarações ou Cartas, definidoras
dos grandes princípios e objetivos dos novos regimes e em que avultam implicações no domínio
dos direitos fundamentais. Assim, a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado,
soviética, de 1918; a Carta do Trabalho, italiana, de 1927; em Espanha, o Foro do Trabalho e o
Foro dos Espanhóis, de 1938 e 1945, respectivamente; ou a Carta Nacional Argelina de 1976”.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2ª. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t. IV.
p.110-111.
16

conformidade com as exigências e necessidades da coletividade, preparando


infra-estruturas, afastando perigos, regulando, possibilitando e,
conseqüentemente, compensando.

O postulado da primazia da dignidade da pessoa humana previu a chegada


de um novo referencial jurídico, nas relações entre indivíduos e o Poder Público:
na função protetora dos direitos fundamentais foram acrescentadas as
obrigações devidas por um Estado que tem caráter promocional. A integração
dos direitos sociais nos textos constitucionais de vários países é uma
característica do constitucionalismo recente.

Desse modo, o direito a ações positivas por parte do Estado pode


significar tanto a exigência de uma ação normativa como fática, pois a eventual
inexistência de norma jurídica não mais pode impedir o cidadão de exigir
providências para a efetiva garantia de um direito fundamental ameaçado.

2.3 Estado contemporâneo e a crise do Direito

O esfacelamento da União Soviética no final do século XX concretizou os


Estados Unidos como sendo a única superpotência. Com o fim da “guerra fria”,
bem como a suposta vitória do capitalismo sobre o socialismo acenaram com a
consolidação de nova ordem internacional, desta feita, capitaneada pela
ideologia mercantilista.

Diante dessa situação, que ainda perdura, a característica mais decisiva


foi o estabelecimento de base sólida do poder de organizações de natureza
privada, nomeadamente as grandes multinacionais.

Tudo é feito para remover as barreiras, no sentido de dar suporte e


celeridade à internacionalização do mercado e atendimento aos interesses
financeiros, em detrimento,dos direitos fundamentais, negligenciados em nome
do desenvolvimento econômico, especialmente nas questões ambientais.

A Modernidade não atingiu seus objetivos, uma vez que não conseguiu
acabar, nem muito menos diminuir os problemas que realmente afligiam a
humanidade. Já a Era pós-moderna, que alguns costumam definir como o
17

colapso do Estado Social,25 vê novas e contundentes ameaças erguerem-se


contra a afirmação dos direitos fundamentais entre particulares, descrê da razão
e objetiva desconstruir as principais categorias conceituais da Modernidade,
como as idéias de sujeito, progresso, verdade e justiça.

No lugar de abandonar o ideal da Modernidade, e adentrar o que seria a


pós-Modernidade, deve-se, no entanto, aperfeiçoá-lo, em particular nas
sociedades periféricas e subdesenvolvidas como o Brasil, que ainda passam por
carências já superadas por países desenvolvidos. Vale ressaltar que ativo deve
ser o desempenho estatal na promoção e concretização efetiva dos valores
constitucionalmente objetivados.

A grande problemática política que afetava e afeta a humanidade não é


como multiplicar a riqueza das nações, mas como distribuí-la de forma a
beneficiar a maior parte dela. As leis do mercado podem conviver
harmoniosamente com o Estado, complementando-se. Os princípios de
liberdade, eqüidade e eficiência devem ser mecanismos de viabilização e
solução para a sociedade.

No Brasil, a política econômica adotada ao longo na última década e


advinda da década de 1990 pautou-se na submissão às regras impostas pelo
capital financeiro internacional, como o FMI e o Banco Mundial. Neste processo,
a capacidade estatal de impor-se como referência para a sociedade foi se
perdendo, ao tempo em que os grupos de pressão se expandiram, ganharam
espaço.

Concepções há muito consideradas velhas e ultrapassadas ressurgem,


dando sustentação ao atrofiamento do Estado. A idéia de um modelo ideal para
o atendimento das necessidades da sociedade, onde Estado e mercado
pudessem conviver harmoniosamente, pode não ter sido suficientemente eficaz.
A realidade nos apresenta de outra maneira a miséria em ascendência, se
alastrando pelos mais diversos segmentos da sociedade e atingindo cada vez

25
O conceito de pós-Modernidade é muito controverso, pois, de acordo com a intenção de
valorização ou de crítica, pode haver divergência e significados totalmente díspares. A
expressão pós-moderno”, “a um só tempo, tudo e nada pode significar”, como bem se refere
Grau, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto, São Paulo: Malheiros, 1996,
p.68.
18

mais a pessoa, bem como a riqueza cada vez maior concentrada numa parcela
mínima.

As informações se propagam atualmente numa velocidade


surpreendente. A era da “internet” nos proporciona a constatação freqüente com
que os direitos fundamentais são violados. Necessário é ter cuidado com as
declarações de direitos e seus textos tão propagados.

Organizações como a Amnesty International noticiam que agressões


maciças aos direitos humanos, como prisões arbitrárias, torturas, condenações à
morte e outras formas cruéis de punição, opressão de dissidentes políticos,
discriminação de minorias, limpezas étnicas, tratamento desumano de
refugiados, racismo e sexismo, exclusão social e miséria, continuam ocorrendo
em todos os continentes. Levando-se em conta toda essa realidade, é plausível
acreditar que, com algumas exceções, é claro, o apoio aos direitos humanos não
passe de retórica vazia.

A ONU - Organização das Nações Unidas não exerce seu papel na


proteção dos direitos humanos, uma vez que presencia inerte os massacres
étnicos que têm acontecido na África, além de comportamento idêntico diante
das inúmeras operações bélicas sob a batuta dos Estados Unidos da América
em diversos países. Esses fatos causam de certa maneira uma surpresa, pois
esse país tem tradição na proteção das liberdades civis.

Em nome da proteção ao cidadão e ao combate ao terrorismo, o governo


ianque viola um catálogo infindável de direitos individuais, antes havidos como
intocáveis.

Com a mesma idéia de combate ao terrorismo em 2001, a Câmara dos


Lordes inglesa aprovou uma lei. Referido diploma, além de outros ferimentos
aos direitos fundamentais, tinha o condão de autorizar a detenção sem prazo
determinado para estrangeiros suspeitos de terrorismo, a exemplo do que já
ocorre em Guantânamo.

Um dos magistrados que veio a público contra a norma, Lorde Hoffmann,


chegou a afirmar que “a verdadeira ameaça para a vida desta nação, entendida
19

como um povo que vive de acordo com suas tradições e seus valores políticos,
não vem do terrorismo, mas sim de leis como esta”.26

Não só nos Estados Unidos e na Inglaterra, porém, acontecem


desrespeito e violação dos direitos individuais. Na Alemanha, uma lei foi editada
contendo intervenções ilegais na vida privada, mesmo que cometendo agressão
aos princípios da legalidade e da proporcionalidade, ao admitir como meios
legais de prova gravações de conversas no âmbito mais estrito da vida íntima,
mas, em 3 de março 2004, o Tribunal Constitucional Federal a declarou
inconstitucional.

Nessa nova era, o Estado, mais do que nunca, tem que ter forte atuação
para que o sistema econômico realmente venha funcionar de maneira a ser um
mecanismo eficiente de mudança do perfil da sociedade, diminuindo assim as
iniqüidades sociais que caminham a passos largos. Essa atuação deve
acontecer na esfera dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, pois seria
insuficiente a ação de juízes e tribunais para garantir a efetivação dos direitos
fundamentais, bem como indispensável política de direitos fundamentais.

O ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos direitos


fundamentais na esfera das relações privadas é a constatação de que, ao
contrário do Estado clássico e liberal de Direito, no qual os direitos
fundamentais, na condição de direitos de defesa, tinham por escopo proteger o
indivíduo de interferências dos poderes públicos no seu âmbito pessoal e em
decorrência da recomendável separação entre Estado e sociedade, entre o
público e o privado, os direitos fundamentais atingiam significado somente nas
relações entre os indivíduos e o Estado, no Estado Social de Direito não apenas
o Estado alargou suas atividades e funções, bem como a sociedade tem uma
participação cada vez mais ativa no exercício do poder. Dessa forma, liberdade
individual não só necessita de proteção contra os poderes públicos, bem como
contra os mais fortes no âmbito da sociedade, pois é nesta área que as
liberdades estão efetivamente ameaçadas.

26
CONDE, Francisco Muñoz. As reformas da parte especial do direito penal espanhol em
2003: da “tolerância zero” ao “direito penal do inimigo”. Disponível em:
<http://www.pgj.ma.gov.br/ampem/artigos/artigos2005/TRADU%C3%87%C3%83O%20ARTIGO
%20MU%C3%91OZ%20CONDE.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2008.
20

Assim, procuramos desvelar o percurso evolutivo dos direitos


fundamentais, a partir de sua origem até a contemporaneidade. O assunto sobre
a eficácia horizontal resulta deste desenvolvimento. Vale ainda ressaltar que há
quem continue optando pela negação da irradiação dos direitos fundamentais
nas relações privadas. Adiante, passaremos a discorrer sobre o modo como os
direitos fundamentais incidem sobre as relações privadas, inclusive as correntes
doutrinárias que dão suporte a essas formulações teóricas.
21

3. AS ELABORAÇÕES TEÓRICAS SOBRE VINCULAÇÃO


DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.1 Negação dos efeitos entre privados dos direitos fundamentais

Apesar de a irradiação dos direitos fundamentais ao espaço jurídico


privado, atualmente, ser assunto pouco causador de polêmica doutrinal, ainda
existem posições contrárias.

A positivação constitucional da eficácia de normas na relação entre


particulares é ainda muito reduzida, pois poucos foram os textos que a
acolheram de forma expressa.27

A Constituição de Portugal de 1976 expressa, no art. 18, 1, que “os


preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são
diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. Na Suíça, o
novel Texto Magno que entrou em vigor no início do ano 2000 estabelece, no
art. 35.5, que “as autoridades públicas devem cuidar para que os direitos
fundamentais, na medida em que sejam aptos para tanto, tenham eficácia
também nas relações entre privados”.

27
Nenhum texto constitucional foi tão original quanto a Constituição da África do Sul, aprovado
em 1996. No Capítulo 2 (Bill of Rights), Seção 8 (aplicação), a Constituição daquela nação
dispõe expressamente sobre a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais:
1. The Bill of Rights applies to all law, and binds the legislature, the executive, the judiciary and
all organs of state.
2. A provision of the Bill of Rights binds a natural or a juristic person if, and to the extent that, it
is applicable, taking into account the nature of the right and the nature of any duty imposed by the
right.
3. When applying a provision of the Bill of Rights to a natural or juristic person in terms of
subsection (2), a court.
a. in order to give effect to a right in the Bill, must apply, or if necessary develop, the common
law to the extent that legislation does not give effect to that right; and
b. may develop rules of the common law to limit the right, provided that the limitation is in
accordance with section 36(1).
4. A juristic person is entitled to the rights in the Bill of Rights to the extent required by the
nature of the rights and the nature of that juristic person.
22

3.2 Teorias que negam a eficácia entre particulares dos direitos


fundamentais

Imediatamente após o surgimento, na Alemanha, da Teoria da “Eficácia


Horizontal” dos Direitos Fundamentais (Drittwirkung der Grundrechte), não foram
poucos os que se manifestaram contrariamente. Um dos argumentos
apresentados foi a necessidade de preservação da liberdade de decisão e a
autonomia dos indivíduos nas relações com seus semelhantes, igualmente
sujeitos privados, assim como os riscos que essa doutrina acarreta para a
liberdade contratual e a segurança jurídica.28 A idéia de sustentar a negação
ocorreu como um temor de que a Drittwirkung poderia minar, chegando até a
destruir todo o sistema civil, que havia sido erigido com sustentação na
autonomia privada.

De conformidade com essa teoria, a norma constitucional apenas garante


a liberdade se tomar a forma de lei, a partir de que sua análise só é possível sob
as regras tradicionais de hermenêutica. A autonomia privada representa um dos
componentes principais da liberdade, vista pelo pensamento jurídico-político
moderno.29 A Drittwirkung alçaria os direitos fundamentais a uma nova dimensão
lógica como “sistema de valores”, acarretando a inviabilização da sua adequada
interpretação, o que seria um verdadeiro desastre para o Princípio da Segurança
Jurídica. Ressalte-se, ainda, que o art. 1.3 da Constituição germânica determina
de modo expresso a vinculação dos poderes públicos apenas aos direitos
fundamentais.30

A Suíça, em sua doutrina, também demonstra aversão à aplicação dos


direitos fundamentais em relações entre particulares. Na jurisprudência,
importante foi o precedente firmado pelo Tribunal Federal, no caso Seeling,
apreciado pela Corte em 2 de fevereiro de 1954, em que se decidiu pela
supremacia da liberdade contratual ante o direito fundamental à liberdade de
28
UBILLOS, Juan María Bilbao. La eficacia de los derechos fundamentales frente a
particulares: análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1997 p. 283.
29
Essa autonomia significa o poder do sujeito de auto-regulamentar os interesses, de
autogoverno de sua esfera jurídica.
30
No texto da Constituição de Bonn, apenas um direito fundamental com eficácia horizontal de
forma expressa, que é a liberdade de associação sindical, prevista no art. 9.3, que tem de ser
acolhida pelos empregadores privados.
23

expressão. O caso sub judice se referia à proibição feita pelos donos de uma
sala de cinema a jornalista e crítico de cinema. Ficava o referido jornalista
proibido de ingressar na referida sala de cinema, uma vez que este havia feito
críticas à programação do citado estabelecimento. O Tribunal Federal Suíço
repeliu terminantemente a aplicação de direitos fundamentais ao caso,
fundamentado em que eles não regem relações entre particulares.

Adiante seguem os principais argumentos contrários à eficácia dos


direitos fundamentais nas relações jurídicas entre privados:

1. La Drittwirkung va en contra de la tradición histórica y el concepto de


los derechos fundamentales.
2. La admisión de la eficacia frente a particulares debe estar supeditada a
su reconocimiento expreso por el texto constitucional.
3. La Drittwirkung anula la autonomía privada, y terminaría por destruir el
derecho privado, al hacerlo por completo innecesario pues los jueces podrían
basar sus decisiones directamente en el texto constitucional prescindiendo de
las prescripciones legales existentes.
4. Por último, se acusa a esta doctrina de retirar importantes ámbitos de
la configuración social de las manos del legislador democrático, cuya libertad de
configuración resulta restringida a causa de la interpretación extensiva de la
Constitución, trasladándolos a los tribunales, donde por igual se sustraerían
tanto del debate liberal como de la corrección democrática. De este modo se
acabaría en un ‘Estado Judicial.31

A idéia principal desses direitos foi concebida como forma de assegurar


garantias contra o arbítrio e despotismo estatal, ou seja, tinha exclusivamente
como escopo direitos de defesa diante do Estado. Esses direitos fundamentais,
no entanto, têm papel principal no processo histórico-evolutivo, e vão se
alargando de acordo com as mudanças freqüentes pela quais a sociedade
passa.

31
ESTRADA, Alexei Julio, La eficácia de los derechos fundamentales entre particulares.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000. p. 98-99.
24

Há quem afirme ser necessário estar expresso no Texto Constitucional


para que exista eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre
particulares, ao que há veemente oposição, pois o que consta do teor da
Constituição Brasileira, no seu art. 5º, § 1º, uma vez que esse dispositivo
rechaça possíveis dúvidas sobre o assunto. Há uma vinculação íntima
estabelecida entre o Estado e seus poderes aos direitos fundamentais, relação
essa que dá sustentação ao que se considera como “fundamento normativo do
efeito horizontal”.32

3.2.1 Teoria da “convergência estatista”

A Teoria da Convergência Estatista é fundamentada na idéia de que


qualquer agressão a direito fundamental, mesmo que em relações jurídico-
privadas, deverá ser sempre atribuída ao Estado, uma vez que, se o Estado não
evita as transgressões ocorridas no seio da sociedade, de forma silente as
permite, sendo, portanto, responsável.33

Jürgen Schwabe, na sua dogmática, assevera que o próprio exercício da


autonomia da vontade pelos particulares resulta da permissão do Estado. Por
essa razão, as violações aos direitos fundamentais praticadas por particulares
devem ser sempre atribuídas ao Poder Público, pois em ocasiões como essas
falha o Estado em seu papel de proteger os direitos fundamentais.

Se a esfera jurídica de uma pessoa é limitada pela demarcação da esfera


jurídica do outro, os conflitos entre particulares, que lesam direito fundamental,
acontecem exatamente no momento em que o direito de defesa concedido pelo
Estado não oferece a proteção apropriada. A razão é que, nessas condições, “o
direito privado que permite esta violação é um direito produzido pelo legislador, e
o juiz que o aplica na situação litigiosa atua em decorrência da soberania
estatal”.34

32
MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria geral dos direitos fundamentais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 111..
33
Esta é a posição firmada por Jürgen Schwabe, a que Paulo Mota Pinto nominou teoria da
“convergência estatista” na obra Teoria geral do direito civil. 3ª. ed. Coimbra: Coimbra, 1958.
p. 133.
34
ESTRADA, Alexei Julio, La eficácia de los derechos fundamentales entre particulares.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000. p. 132.
25

Dessa maneira, entende-se que é inútil estabelecer diferença entre Direito


público e Direito privado, uma vez que toda lesão a direito fundamental pode ser
conduzida ao Estado. Jürgen Schwabe se mantém, portanto, fiel à tradicional
percepção em relação aos direitos fundamentais como sendo direitos públicos
subjetivos, unicamente oponíveis aos poderes públicos.35

O Estado, ao regular as relações privadas por meio do ordenamento


jurídico, a atividade judicial e a intervenção executiva, participa na lesão do
posicionamento jurídico jusfundamental; em conseqüência, se não proíbe
especificamente aquelas condutas privadas que podem causar possível
afetação dos bens jusfundamentais, não omite seu dever de proteção, sem que
simplesmente negue a efetividade do direito fundamental afetado como direito
de defesa. Por isso, o problema de proteção ante os particulares se converte em
um problema de defesa diante de intervenções realizadas pelos particulares,
mas, em última instância, imputáveis ao Estado.36

Mesmo a liberdade contratual não é senão uma manifestação do poder


do Estado, pois expressa a doutrina da convergência estatista. Isto se explica,
uma vez que todo e qualquer contrato crava suas raízes em uma norma do
Direito positivo.

A Teoria da Convergência Estatista, de certa forma, compactua com as


mesmas idéias que dão suporte à doutrina ianque da state action, assim
defendem alguns autores.

3.2.2 State action doctrine

A State Action foi desenvolvida pela Suprema Corte dos Estados Unidos
e é considerada uma das mais originais elaborações teóricas sobre a aplicação
dos direitos fundamentais em relações privadas.

35
CRUZ, Rafael Naranjo de La, Los limites de los derechos fundamentales en las relaciones
entre particulares: la buena fe. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000. p.
182.
36
ESTRADA, Alexei Julio, La eficácia de los derechos fundamentales entre particulares.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000. p. 133.
26

A Constituição Federal dos Estados Unidos de 1787 assegura e privilegia


a ideologia liberal, marcadamente no que tange às liberdades individuais. O
pensamento da direção única dos direitos fundamentais permanece estável no
espírito o povo estadunidense, uma vez que percebem existir somente um
destinatário, o Estado. Havendo apenas uma exceção, quando a conduta do
particular se equiparar, pelo menos em um determinado patamar, a uma “ação
estatal”, é que se tornará suscetível de sindicalização à luz dos princípios
constitucionais catalogados no Bill of Rights.

No sistema estadunidense, a autonomia privada desfrutou sempre de


absoluto status na hierarquia jurídico-axiológica. Nos Estados Unidos, é
considerada quase uma máxima do Direito Constitucional a idéia de que os
direitos fundamentais, previstos no Catálogo de Direitos (Bill of Rights), obrigam
limitações apenas para os Poderes Públicos, não atribuindo aos particulares
direitos diante de outros particulares, com exceção apenas da 13ª Emenda, que
proibiu a escravidão.37

É notório que, nos Estados Unidos, acatar os valores jusfundamentais


como mecanismo com capacidade de operar livremente no âmbito jurídico
privado é algo ainda inimaginável.

As bases ideológicas firmadas desde as guerras de independência foram


de suma importância para que sua sociedade se organizasse em torno de um
ideal de confinamento do arbítrio governamental, onde a filosofia de
transformação social pela igualdade jamais encontrou espaço para prosperar.
Por isso assinala Fioravanti, não sem razão, que a obra dos revolucionários
resultou numa Constituição “que es más lugar de competición entre los
individuos y las fuerzas sociales y políticas que proyeto común para el futuro”.38

Não se pode falar em uma “teoria geral de direitos fundamentais” nos


Estados Unidos sem que isto pareça estranho. A razão disso é a mentalidade

37
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p. 189.
38
FIORAVANTI, Maurizio Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las
constituciones. Madrid: Trotta, 1996. p. 94.
27

casuístico-pragmática anglo-saxônica, que atende ao caso concreto e que só


muito limitadamente admite abstrações e generalizações como as que são
próprias entre nós: o Direito consuetudinário parte de um método casuístico, em
que o verdadeiro Direito vem constituído por normas desenvolvidas para um
caso determinado ou para grupos determinados de casos e, na regra jurídica
específica, precede o principio abstrato. Além disso, o fato de que toda a ‘Parte
Geral’ pressupõe ‘um grau relativamente elevado de sistematização e coerência
interna que é alheio ao pensamento jurídico estadunidense. Como havia dito a
Corte Suprema, ‘generalizations do not decide concrete cases’ e é por isso que
não de pode encontrar demasiadas generalizações na doutrina nem na
jurisprudência dali, pois isso é algo inteiramente alheio a sua própria
mentalidade jurídica.39

Assim, é nesse ambiente único que, ajustados liberalismo, realismo


jurídico e direito fundamental, a Suprema Corte dos Estados Unidos produz a
Teoria da State Action, palco adequado para o desenvolvimento das doutrinas
de índole constitucional.

Com os precedentes estabelecidos no final do século XIX, a Suprema


Corte dos Estados Unidos delineou os contornos da Teoria da State Action,
onde os direitos fundamentais profetizados no Texto Constitucional só produzem
efeitos nas relações jurídico-privadas se for levado em conta o fato de que
alguma das partes está no desempenho, mesmo que parcialmente, de uma
“ação estatal”.

Os tribunais do País devem analisar a totalidade dos fatos e


circunstâncias que envolvem o caso para decidir. Assim é a lição de John
Nowak e Ronald Rotunda:

1) whether the harm caused to the victim was somehow traceable to the
private actor using a right granted to him by state law; 2) whether the connection
of the government do the private actor, and the harm caused by the private actor,

39
CAMAZANO, Joaquin Jorge. Algunos aspectos de teoría general constitucional sobre los
derechos fundamentales en los EEUU. Direito Público, São Paulo: Síntese, nº. 11, p. 57,
jan./fev./mar. 2006.
28

is such that it is fair to subject the private actor’s actions to constitutional


restrictions.40

A Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade do Civil Rights Act de


1875, que combatia a discriminação racial em lugares públicos, como hotéis,
restaurantes, teatros, meios de transporte, tendo como fundamento a 14ª
Emenda. Importava isso, conseqüências penais e civis contra particulares que
praticassem atos discriminatórios.41 Dessa maneira, foi excluído do Congresso a
possibilidade de decidir sobre as questões constitucionais que limitassem a
autonomia privada – mesmo levando-se em consideração o nobre propósito de
combater o preconceito em todas as suas manifestações.

O episódio de mais relevância de aplicação da State Action Doctrine foi o


caso Marsh v. Alabama julgado em 1946. G. Marsh, testemunha de Jeová, foi
presa em Chickasaw, subúrbio da cidade de Mobile, Alabama – cidade privada
(company-owned town) gerenciada pela Gulf Shipbuilding Co. –, por distribuir
literatura religiosa, apesar de ter sido expressamente proibida pelos
administradores da empresa que detinham a propriedade da área onde estava
inserida a “vila operária”.42. O juiz entendeu que, no caso as liberdades de
expressão e pensamento, foram violadas, dizendo que as garantias
constitucionais devem ter prioridade quando comparadas ao direito de
propriedade. 43

40
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional law. 5ª. ed. St. Paul: West
Publishing, 1995. p. 472-474.
41
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito
fundamental nas relações jurídicas entre particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.), op.
cit., 2006. p. 171. A Suprema Corte decidiu que “invasão individual de direitos civis não é matéria
concernente à emenda”.
42
Havia sido afixado em vários locais da private town um aviso com os dizeres: “This Is Private
Property, and Without Written Permission, No Street, or House Vendor, Agent or Solicitation of
Any Kind Will Be Permitted”. Mesmo assim, Marsh recusou-se a calar, e acabou encarcerada
pelo xerife local. Levada a julgamento, em sua defesa invocou a proteção das Emendas Primeira
e Décima-Quarta – em vão. O Tribunal estadual a condenou, ao fundamento de que cometera
crime por permanecer em terras de outro depois de advertida expressamente para se retirar
(trespass). A Corte Recursal do Alabama reafirmou a condenação.
43
Uma completa e detalhada síntese do julgamento encontra-se em ESTADOS UNIDOS.
SupremeCourtus.Disponívelem:<:http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?navby=CASE&court=US&vol=3
26&page=501>. Acesso em: 22 julho. 2008. O voto vencedor na íntegra:When we balance the
Constitutional rights of owners of property against those of the people to enjoy freedom of press
and religion, as we must here, we remain mindful of the fact that the latter occupy a preferred
position. As we have stated before, the right to exercise the liberties safeguarded by the First
Amendment 'lies at the foundation of free government by free men' and we must in all cases
29

Outro decisório de grande importância versou sobre a vinculação dos


particulares aos direitos fundamentais previstos na Constituição. Relaciona-se
aos casos em que há possibilidade de estabelecimento de conexão entre a
conduta do ente privado e alguma entidade governamental. O caso Shelley v.
Kraemer constituiu relevante exemplo.44 Em 1945, a família Shelley, toda
composta por pessoas negras, comprou um imóvel residencial em Saint Louis,
Estado do Missouri.

À época da compra, não atentaram para a cláusula restritiva que impedia


a aquisição por pessoas integrantes de minorias raciais. Insurgiram-se alguns
dos vizinhos que ajuizaram uma ação contra a família para que a cláusula de
vedação de alienação tivesse eficácia, no sentido de que a família não ocupasse
o imóvel.

O caso alcançou a Suprema Corte. A nova decisão, fundamentada no


argumento de que o caso era de ferimento à cláusula de igualdade inserida na
14ª Emenda; reconhecendo assim a presença de State Action no caso,
indeferindo o processo.

A crítica à doutrina da State Action pondera sobre as conclusões díspares


a que chega, uma vez que carecem de coerência dogmática. Sheila Kennedy
assevera que os tribunais, quando conferem a presença da ação de Estado,
inclinam-se a usar critérios de julgamento em razão da natureza do Direito
constitucional comprometido. “Tem sido mais fácil para a Suprema Corte
identificar a “ação de Estado”, nos casos envolvendo discriminação racial ou
pretensas violações à liberdade religiosa protegida pela 1ª Emenda”, explica.45

'weigh the circumstances and appraise ... the reasons ... in support of the regulation of (those)
rights.' In our view the circumstance that the property rights to the premises where the deprivation
of liberty, here involved, took place, were held by others than the public, is not sufficient to justify
the State's permitting a corporation to govern a community of citizens so as to restrict their
fundamental liberties and the enforcement of such restraint by the application of a State statute.
Insofar as the State has attempted to impose criminal punishment on appellant for undertaking to
distribute religious literature in a company town, its action cannot stand.
44
ESTADOS UNIDOS. Supreme Court. 334 U.S. 1 (1948). Disponível em:<http://www.
suppremecourtus.gov>. Acesso em: 23 mar. 2008.
45
KENNEDY, Sheila. When Is Private Public? State Action in the era of privatization and public-
private partnerships. Disponível em: <http://sheilakennedy.net/content/view/577/29/#_ftn7>.
Acesso em: 15 de maio de 2008.
30

Outro que se manifesta sobre a desordem jurisprudencial é Virgílio


Afonso da Silva, quando afirma que, embora não se discuta que a haste de
sustentação do constitucionalismo dos EUA seja a aplicação dos direitos
fundamentais somente quanto envolvem as relações Estado-particulares, a
“construção jurisprudencial da State Action tem por objetivo justamente romper
com essa limitação e, para alcançar esse objetivo, tenta definir – ainda que de
forma assistemática e casuística – quando uma ação privada é equiparável a
uma ação pública”.46

Quem bem contestou os pilares da Doutrine State Action foi Erwin


Chemerinsky. Em 1980, esse nacional publicou um polêmico artigo intitulado
Rethinking State Action, segundo o qual a Doutrine State Action está edificada
sobre dois fundamentos:: o primeiro é proteger a liberdade individual, definindo
um espaço de conduta privada que não tem de ser adequada à Constituição.
Sob esse aspecto, diz Chemerinsky, que cada vez que se reconhece a liberdade
de alguém para violar um direito fundamental de terceiro, ocorre uma restrição
ao direito desta vítima. O segundo aspecto é garantir a autonomia dos Estados,
preservando sua competência para regular o comportamento privado. Em
relação à autonomia dos Estados, afirma que esta autonomia tem limite na
Constituição do seu País – os EEUU - e por essa razão não pode ser invocada
contra ela. Em resumo, para Chemerinsky, a Doutrine State Action deve ser
totalmente eliminada, devendo ser substituída por um modelo de ponderação.
Assim, diante de cada caso em particular, os tribunais verificariam o que seria
mais importante proteger, se a liberdade individual do agente privado ou os
direitos da suposta vítima do seu ato.

3.3 Teoria da Eficácia Indireta ou Mediata (Mittelbare Drittwirkung)

Foi o alemão Günther Dürig que, em obra datada de 1956, desenvolveu


na doutrina alemã a teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos
fundamentais.47 Para a Teoria da Eficácia Mediata, os direitos fundamentais não

46
SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 100.
47
A Obra de Günter Dürig com o título “Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais”,
tornou-se a concepção dominante no Direito germânico, sendo hoje adotada pela maioria dos
juristas daquele País e pela Corte Constitucional.
31

adentram o contexto privado como direitos subjetivos, que possam ser


invocados a partir da Constituição. Isso significa dizer que a eficácia desses
direitos entre agentes particulares não seria retirada de forma direta da
Constituição, mas representada pelas cláusulas gerais e os conceitos jurídicos
indeterminados, aplicados pelos juízes.

3.3.1 Delineamentos dogmáticos

A Teoria da Eficácia Indireta se prende também à idéia dos direitos


fundamentais como direitos públicos subjetivos, sendo passível de oposição
somente ante o Poder Público. Vale ressaltar que, além disso, protege com
ardor a autonomia privada, que é considerada como o mecanismo propulsor do
Direito privado.48

Julio Estrada assevera que a elaboração teórica da eficácia indireta ou


imediata revela a preocupação de manter a distinção do modo de tutela dos
direitos e liberdades no campo juspublicista, como direitos de defesa, de sua
influência no Direito privado, negando-lhes neste último a mesma força operativa
imediata que os caracteriza nas relações entre particulares e poderes públicos.
Deste modo a aplicabilidade dos preceitos jusfundamentais nas relações de
Direito privado estaria sempre ligada a uma atividade dos poderes públicos: a
jurisdicional, sendo tarefa dos juízes introduzir os valores que eles expressam no
âmbito jurídico privado por meio das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos,
capazes e necessitados de ser preenchidos valorativamente.49

Submetido ao âmbito da eficácia indireta, o sistema constitucional de


valores que o catálogo de direitos fundamentais retrata é modelo a ser seguido

48
CRUZ, Rafael Naranjo de la, Los limites de los derechos fundamentales en las relaciones
entre particulares: la buena fe. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000. p.
173.
49
Transcrição original do pensamento de Estrada, Alexei Julio: “revela la preocupación de
mantener la distinción del modo de la tutela de los derechos y libertades en el campo
iuspublicista, como derechos de defensa, de su influencia en el derecho privado, negándoles en
este último la misma fuerza operativa inmediata que los caracteriza en las relaciones entre
particular y poderes públicos. De este modo la aplicabilidad de los preceptos iusfundamentales
en las relaciones de derecho privado estaría sempre ligada a una actividad de los poderes
públicos: la jurisdiccional, siendo tarea de los jueces introducir los valores que ellos expresan en
el ámbito jurídico privado, a través de las cláusulas generales y los conceptos jurídicos capaces
y necesitados de ser colmados valorativamente.” ESTRADA, Alexei Julio. La eficácia de los
derechos fundamentales entre particulares. Bogotá: Universidad Externado de Colombia,
2000. p. 115.
32

pelo legislador, bem como pelo aplicador do direito, notadamente sob o ponto de
vista da dignidade da pessoa humana.50

Apesar de, em Portugal, o Tribunal Constitucional ainda não haver se


manifestado sobre o sentido da eficácia dos direitos, liberdades e garantias nas
relações jurídicas privadas,51 José Joaquim Gomes Canotilho acata a eficácia
horizontal pela mediação do legislador de Direito privado, ressaltando que este
se vincula necessariamente aos direitos fundamentais quando edita novas
normas jurídico-privadas. O legislador também deve lançar mão, na sua
atividade legiferante, do Princípio da Igualdade, a fim de que “a lei, ao
regulamentar normativamente relações jurídicas privadas, não pode nem deve
estabelecer regimes jurídicos discriminatórios, a não ser que haja fundamento
material para um tratamento desigual”.52

Informa Vieira de Andrade que, na doutrina portuguesa, os


posicionamentos que defendem a teoria da eficácia indireta têm como objetivo
defender um âmbito de liberdade para os particulares e intitulou como um
“intervencionismo asfixiante ou um igualitarismo extremo”, o que atingiu a
autonomia privada, o livre desenvolvimento da personalidade, a liberdade
negocial.53

Outro que expressa preocupação com os prejuízos que a impetuosidade


dos direitos fundamentais pode causar na seara privada é Konrad Hesse,
sempre ardoroso defensor da Teoria da Eficácia Indireta ou Mediata ( Mittelbare
Drittwirkung ), Assevera ele que, nas lides entre particulares, ambos são titulares
de direitos fundamentais, uma vez que compete ao Direito civil, ante a colisão

50
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p. 198.
51
CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª. ed.
Coimbra: Almedina, 2003. p. 1292.
52
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª. ed. Coimbra:
Almedina, 2003. p. 1291.
53
ANDRADE, José Carlos Vieira. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976. 3ª. ed. Coimbra: Almedina, 2006. p. 261.
33

desses direitos, a tarefa de definir autonomamente a forma e o grau com que


ocorrerá a influência desses direitos, por meio da moderação do equilíbrio.54

A eficácia direta pode encaminhar a conflitos entre o Legislativo e


Judiciário, uma vez atribui aos aplicadores do Direito âmbito de decisão
consideravelmente amplo, possibilitando uma usurpação das competências
privativas dos órgãos legislativos.

Não há dúvidas de que tem os juízes a obrigação de garantir o maior grau


de eficácia possível aos direitos fundamentais em seus julgados, bem como
devem resguardá-los de todas as ameaças possíveis.

3.3.2 O Caso Lüth

Erich Lüth, presidente do Clube da Imprensa de Hamburgo e crítico de


cinema, expressou-se publicamente em virtude de um festival cinematográfico
celebrado na década de 1950, contra o diretor de um dos filmes do diretor Veit
Harlan, que fazia apologia às atividades do Terceiro Reich. Requerido pela
produtora do filme para que explicasse tais atitudes e justificasse seu
pronunciamento, Lüth respondeu com o envio de uma carta aberta à imprensa
em que exortava a sociedade alemã ativa no campo cinematográfico para que
não comprasse para comercialização a fita, bem como convocava o público para
que não a assistisse. A produtora impetrou na Justiça Civil de Hamburgo,
estribada no art. 826 do Código Civil Alemão (BGB),55 ação cominatória, na qual,
além de exigir a cessação do boicote, pedia o pagamento de indenização. Teve
êxito processual em primeira instância, em forma de medida cautelar e foi o
demandado condenado com a proibição de seguir criando problema, pedindo a
não-comercialização ou conclamando o povo para que não assistisse ao filme,
além da obrigação de suportar às custas processuais. Para o julgador, tratava-
se de incitação ao boicote contrário aos bons costumes.

54
Para Konrad Hesse, com o recurso imediato os direitos fundamentais “amenaza con perderse
la identidad del Derecho Privado, acuñada por la larga história sobre la que descansa, en
perjuicio de la adecuación a su propria matéria de regulación y de su desarrollo ulterior, para lo
cual depende de especiales circunstâncias materiales que no cabe procesar sin más con
criterios de derechos fundamentales”.HESSE, Konrad, Derecho constitucional y derecho
privado. Madrid: Civitas, 1995. p. 60-61.
55
“Aquele que dolosamente causa dano a outro de maneira contrária aos bons costumes está
obrigado a repará-lo”. ( Wer in einer gegen die guten Sitten verstossenden Weise einem anderen
Schaden zufügt, ist dem anderem zum Ersatze des Schadens verpflichtet)
34

Contra a sentença, Lüth interpôs recurso de apelação perante o Tribunal


Superior de Hamburgo, assim como ao Tribunal Constitucional Federal Alemão,
Verfassungsbeschwerde en Karlsruhe, tendo em vista a patente violação de seu
direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento, com estribo no
art. 5.1.1 da Lei Fundamental - GG.

O Tribunal Constitucional Alemão acolheu expressando, que “os direitos


fundamentais existem, em primeira linha, para assegurar a esfera de liberdade
privada de cada um contra intervenções do Poder Público; eles são direitos de
resistência do cidadão contra o Estado”. Também, admitiu, porém, que a Lei
Fundamental “não pretende ser um ordenamento neutro do ponto de vista
axiológico”, uma vez que estabelece, no seu rol de direitos fundamentais, “um
ordenamento axiológico objetivo, e que, justamente em função deste, ocorre um
aumento da força jurídica dos direitos fundamentais”.

O caso Lüth foi reconhecidamente o marco na condução da eficácia dos


direitos fundamentais nas relações privadas. Em virtude dessa importância, foi
feito anteriormente um resumido relato sobre o caso. Canaris atribuiu a esse
evento um significado inovador, onde atribui que o resultado “passou a ser de
fundamental importância para o tratamento da relação entre direitos
fundamentais e o direito privado na Alemanha”.56

“[...] só se pode ter uma idéia da importância e do alcance dessa decisão


quando se pensa no paradigma até aí vigente, segundo o qual uma lide entre
particulares só podia ser resolvida pelo direito privado, não tendo os direitos
fundamentais qualquer importância nesse âmbito, assim no mesmo sentido
opinou Benedita Mac Crorie.”57

Quando o alemão Erich Lüth tomou a iniciativa de conclamar o público


bem como as distribuidoras de cinema do País, no final dos anos 1950, a

56
CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na
Alemanha. In: SARLET, Ingo (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 229.
57
MAC CRORIE, Benedita Ferreira da Silva. A vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais. Coimbra: Almedina, 2005. p. 26.
35

boicotarem o filme “Unsterbliche Geliebte”, do diretor Veit Harlan,58 não


imaginava que seria protagonista de um dos mais relevantes episódios que
propiciaram à história dos direitos fundamentais uma evolução imensurável.

O Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht), ao


analisar minuciosamente o problema dos efeitos das normas jusfundamentais no
Direito Civil, deu provimento ao recurso de Lüth. Além disso, no entanto,
estabeleceu postulados que até atualmente – seis décadas após – são ícones
referenciais do Direito constitucional, razão por que a doutrina é unânime em
admitir na decisão o verdadeiro leading case no tema da eficácia inter-privados
dos direitos fundamentais. Não é à toa que a maioria das obras sobre a eficácia
dos direitos fundamentais nas relações entre privados citam a decisão do caso
Lüth.

O novo Direito necessita estar de acordo com o sistema axiológico dos


direitos fundamentais. Dessa forma, os litígios inter-privados que envolvem
direitos e obrigações decorrentes destas normas comportamentais do Direito
Civil influenciadas pelo Direito fundamental permanecem uma lide cível, tanto no
âmbito material como processual, uma vez que interpretado e aplicado deve ser
o Direito Civil, ainda que sua interpretação tenha que seguir o Direito Público, a
Constituição.

Sobre a influência dos parâmetros axiológicos jusfundamentais, a Corte


reafirmou que ela acontece, na maioria das vezes, nas normas civis de natureza
cogente, que tem relação íntima com o Direito Público. Por essa razão, carecem
estar subordinadas mais intensamente à influência do Direito Constitucional.

58
O cineasta em questão era considerado o “nº 1 da cinematografia nazista” e, com sua obra
“Jüd Süß”, fora um dos expoentes da agitação assassina dos nazistas contra os judeus, como
explica Leonardo Martins. Na Carta Aberta entregue à imprensa em 27 outubro de 1950, Lüth
escreveu: “Pode ser que dentro da Alemanha e no exterior existam empresários que não fiquem
repudiados com um retorno de Harlan. A reputação moral da Alemanha não pode, entretanto, ser
novamente arruinada por pessoas inescrupulosas, ávidas por dinheiro. Com efeito, a volta de
Harlan irá abrir feridas que ainda não puderam sequer cicatrizar e provocar de novo uma terrível
desconfiança que se reverterá em prejuízo da reconstrução da Alemanha. Por causa de todos
esses motivos, não corresponde somente ao direito do alemão honesto, mas até mesmo à sua
obrigação, na luta contra este representante indigno do filme alemão, além do protesto, mostrar-
se disposto também ao boicote”. MARTINS, Leonardo. 50 Anos de Jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal Alemão. Montevidéu: Konrad Adenauer Stiftung, 2005. p. 384.
36

O precedente em estudo consolidou a noção de que a Constituição é uma


ordem de caráter precipuamente valorativo, ao assinalar categoricamente que a
Lei Fundamental não tem por objetivo “ser neutra do ponto de vista axiológico”.
Além disso, vislumbra no sistema de direitos fundamentais uma “ordem objetiva
de valores” baseada na dignidade da pessoa humana, de modo que esses
direitos valem “enquanto decisão constitucional fundamental para todos os
ramos do direito”.

Teoricamente, Canaris expressa a opinião de que o conceito


desenvolvido pelo Bundesverfassungsgericht – de que os direitos fundamentais
se irradiam para o direito privado – “não é jurídico, mas apenas uma expressão
imagética da linguagem coloquial que pouco explica em termos dogmáticos”. De
acordo com Canaris, seria melhor que o Tribunal Constitucional Federal Alemão
tivesse considerado que o julgamento da primeira instância havia representado
uma intervenção no direito fundamental da liberdade de expressão de Lüth, uma
vez que os tribunais cíveis haviam desenvolvido uma norma não escrita que
vedava a Lüth o direito de expressar uma específica opinião, limitando a sua
liberdade de opinião.59

Apesar de ter incitado de forma decisiva a evolução da Teoria Geral dos


Direitos Fundamentais, admitindo a “irradiação” do direito fundamental à livre
opinião no Direito Privado, o Tribunal Constitucional Federal não encerrou à
querela entre Lüth e Harlan. A transgressão de direito fundamental conjecturada
pelo TCF quedou por ser atribuída ao Tribunal de origem, e não às partes. O
TCF ainda deixou expresso que nesta seara não seria “debatida em toda a sua
extensão a questão da assim chamada Drittwirkung de direitos fundamentais”.60

Dessa maneira, a sentença desviou a ponderação acerca dos valores


jusfundamentais em conflito. É tanto que a Corte reformou o julgamento por não
haver a primeira instância considerado o direito fundamental de Lüth, quando
analisou o caso. O TCF concedeu apenas o direito de liberdade de expressão e

59
CANARIS, Claus-Wilhelm. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito
privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo (Org.) p. 242-243.
60
BLANCO, A Jimenez; TORRES, J Garcia. Derechos fundamentales y relaciones entre
particulares: la Drittwirkung en la jurisprudencia del tribunal constitucional. Civitas: Madrid,
1986. p. 26-32.
37

autorizou que Lüth e Harlan continuassem com seus pontos de vista e


discordância.61

O caso Lüth e a importante decisão tiveram papel significativo para que a


Teoria da Eficácia Indireta ou Mediata se consolidasse na jurisprudência
constitucional da Alemanha. Atualmente, no entanto, há quem vislumbre uma
mudança jurisprudencial do TCF, discordando do acatamento da Teoria da
Eficácia Indireta de maneira tão clara.

3.3.3 A mediação pelo juiz

É notório que a atividade legislativa não consegue acompanhar a


permanente evolução da sociedade. Em virtude disso muitos países são
impelidos, quando da produção de normas jurídicas, de utilizar a técnica das
“cláusulas gerais”, possibilitando a amplitude da interpretação do aplicador do
Direito, no intuito de alcançar a justiça social.

Percebidos os direitos fundamentais como “decisões valorativas”,


“normas objetivas” ou “valores jusfundamentais”, como assevera Robert Alexy,
passam à forma de “princípios objetivos” capazes de influenciar a interpretação
das normas jurídico-privados pelo juiz, que pode, em casos especiais, decidir
contra a lei. A doutrina da eficácia indireta reclama do juiz a obrigação de
obrigatoriamente “ter em conta em sua interpretação a influência jusfundamental
nas normas de direito privado”.62

Há um certo temor no tocante a interpretação extensiva feita pelos juízes


e tribunais, uma vez que poderia desordenar o princípio da legalidade, havendo
a possibilidade de que estes poderiam atribuir à legislação em vigor um sentido
divergente daquele que idealizou o legislador. Dessa forma, as cortes teriam ao
seu dispor amplo espaço discricionário para decidir, retirando do legislador o
direito constitucional de solucionar as questões, sopesando o Direito privado e
os direitos fundamentais.

61
MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Obtenção dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 77.
62
ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 1993. p. 512.
38

No Brasil, o grande temor é o de que juízes e tribunais venham a alargar


ou diminuir normas jusfundamentais de maneira aleatória e à mercê de seus
humores, retornando o Estado de Direito num Estado Judicial em que esse
Estado estaria vulnerável à “possibilidade de substituir o Direito, em sua
poliédrica complexidade, pela simples projeção construtiva dos direitos
fundamentais”.63

3.3.4 A mediação pelo legislador

Quem assume a defesa da atividade legislativa para aquilatar a influência


dos direitos fundamentais no Direito Privado é Konrad Hesse. É enfático ao
afirmar que é ao legislador que “corresponde constitucionalmente a tarefa de
transformar o conteúdo dos direitos fundamentais, de modo diferenciado e
concreto, em direito imediatamente vinculante para os participantes de uma
relação jurídico-privada. A ele compete cuidar das múltiplas modificações que a
influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado acarreta.”64

Rafael Naranjo de la Cruz ressalta que, para os partidários da Teoria da


Eficácia Indireta ou Mediata, é a atuação do legislador responsável por levar o
conteúdo dos direitos fundamentais, ou seja, dos valores que lhes são
subjacentes, às normas jusprivadas.65 Da mesma forma assevera Bilbao Ubillos,
ao considerar que “qualquer que seja a postura que se mantenha sobre a
Drittwirkung, o protagonismo do legislador, em primeira linha, é um dado
unanimemente reconhecido”.66

63
GUTIÉRREZ, Ignácio Gutierrez. Introdução. In: HESSE, Konrad. Derecho constitucional y
derecho privado. Madrid: Civitas, 1995. p. 17.
64
HESSE, Konrad, Derecho constitucional y derecho privado. Madrid: Civitas, 1995. p. 63-64.
Por outro lado, salienta que o legislador deve ter em conta a noção de que tal incumbência não
se limita a reduzir a autodeterminação e a responsabilidade individuais, pois a autonomia privada
compreende também a possibilidade de contrair por livre decisão obrigações que os poderes
públicos não poderiam impor ao cidadão.
65
CRUZ, Rafael Naranjo de la, Los limites de los derechos fundamentales en las relaciones
entre particulares: la buena fe. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000. p.
180.
66
UBILLOS, Juan María Bilbao, La eficacia de los derechos fundamentales frente a
particulares: análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1997. p.291.
39

Vale ressaltar que este privilégio não quer dizer que a existência de
norma jurídica por si só, seja condição para que os direitos fundamentais
incidam sobre as relações entre particulares. Assim, observa Vieira de Andrade,
não se pode dizer que os direitos fundamentais só têm real existência jurídica
por força da lei ou que valem apenas com o conteúdo que por esta lhes é
dado.67

Não se vislumbra pensar de maneira contrária, uma vez que seria admitir
um retrocesso, e essa possibilidade é descartada pelo art. 5º, §1º da
Constituição Federal, haja vista seu conteúdo: ”as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Rafael Naranjo de la Cruz contribui, acentuando que “não fica claro, entre
os defensores da eficácia mediata, qual pode ser o alcance da autonomia da
vontade em relação com os direitos fundamentais”.68

Segundo Giorgio Lombardi, na doutrina italiana, os direitos fundamentais


funcionam como diretrizes hermenêuticas para as cláusulas gerais
jusprivatísticas ou as cláusulas gerais jusprivatísticas é que se reduzem à
condição de simples “normas de referência”, cujo teor deve ser moldado em
razão do conteúdo específico do direito fundamental em análise.69

Para Vieira de Andrade, a idéia da aplicabilidade mediata não foi bem


defendida em razão de seus partidários não haverem se libertado do fardo das
idéias liberais-individualistas, deixando-se influenciar pelo fato de terem sido o
Direito Civil e o Direito Penal que inicialmente regularam as relações privadas e
determinaram os termos que resguardariam os direitos na seara das relações
privadas.

Ressalta ainda, que aquilo que se deve entender por mediação na


aplicabilidade dos preceitos constitucionais às relações entre iguais é, afinal, a

67
ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976. 3ª. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 270
68
CRUZ, Rafael Naranjo de la, Los limites de los derechos fundamentales en las relaciones
entre particulares: la buena fe. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000. p.
174.
69
LOMBARDI, Giorgio. Potere privato e diritti fondamentali. Turim: G. Giappichelli, 1970. p.
73-75.
40

necessidade de conciliar esses valores com a liberdade “negocial” e a


autonomia privada no Direito Civil [...].” Não era, pois, feliz a expressão
aplicabilidade mediata, que se confundia com eficácia indireta, quando o que se
queria afirmar era um imperativo de adaptação e de harmonização dos preceitos
relativos aos direitos fundamentais na sua aplicação à esfera de relações entre
indivíduos iguais, tendo em conta a autonomia privada, na medida em que é
também constitucionalmente reconhecida.”70

Além do mais, a Teoria da Eficácia Indireta, ao requerer a mediação


judicial na aplicação dos direitos fundamentais aos negócios privados,
estabelece uma relação próxima do princípio hermenêutico da interpretação
conforme a Constituição, uma vez que transforma os direitos fundamentais em
meros parâmetros interpretativos a serem levados em consideração pelo
julgador, quando aprecia os casos que envolvem particulares. Manifesta-se
Bilbao Ubillos sobre isso: “o efeito de irradiação dos direitos fundamentais na
esfera do direito privado não aporta, na verdade, nada de novo”.71

3.4 A Eficácia Imediata ou Direta (Unmittelbare Drittwirkung)

Mesmo na Alemanha, berço da Teoria da Eficácia Imediata, houve quem


se manifestasse adverso à imprescindibilidade da modulação legislativa/judicial
tão defendida por Dürig. Hans Carl Nipperdey foi o precursor na defesa da
Teoria da Eficácia Direta dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas, na
de sua obra Allgemeiner teil des Bürgerlichen Tubingen.

A lide versava sobre a igualdade do homem e da mulher na Alemanha em


relação ao direito ao salário, e isto não estava previsto na legislação pertinente à
matéria. Quando se pronunciou opinando pela eficácia direta da ordem
constitucional de igualdade, conforme exposto no art. 3º da Lei Fundamental,

70
ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976. 3ª. ed. Coimbra: Almedina, 2006. p. 270.
71
UBILLOS, Juan María Bilbao, La eficacia de los derechos fundamentales frente a
particulares: análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1997. p. 312-313.
41

inspirou de maneira determinante o caminho jurisprudencial que a Corte trilharia


por algum tempo.72

Nipperdey, em sua teoria da Eficácia Imediata dos Direitos Fundamentais,


entendia que o vasto rol de direitos fundamentais abrange disposições de
caráter distinto entre si, cujo significado, modo e grau de ação devem ser
verificados detalhadamente em cada caso particular.73 Nunca imaginou que a
incidência desses direitos no âmbito privado ocorresse de forma absoluta e
generalizada.

A obra de Nipperdey nesse sentido parece muito atual, principalmente


quando estabelece que a Drittwirkung se apresenta como conseqüência lógica
das transformações que o conceito de Estado Social implica.74 E vai além,
quando alega que uma Constituição tem que ser reflexo da ordem estatal no
momento de sua promulgação, pelo que devem ser contempladas, ao interpretá-
la, as tendências espirituais dominantes e as circunstâncias desse momento.

A Teoria da Eficácia Imediata não teve grande êxito na Alemanha, onde


foi concebida, no entanto em países como Portugal, Espanha, Itália e Argentina
se tornou dominante.

3.4.1 Delineamentos dogmáticos

O art. 1.3 da Lei Fundamental determina que os direitos fundamentais se


ligam apenas aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário como direito
aplicável diretamente. Esse é o argumento maior da doutrina alemã, que
defende a eficácia mediata, com inúmeros opositores. Bleckmann assegura que
o artigo não afasta os particulares como destinatários dos direitos fundamentais,
mas tão-só tem a pretensão de impedir as disputas que aconteceram nos

72
ALEMANHA. BAG (Bundesarbeitsgericht – Tribunal Federal do Trabalho) 1, 185. Disponível
em:<http://www.bundesarbeitsgericht.de/>. Acesso em: 23 jul. 2008.
73
ESTRADA, Alexei Julio, La eficácia de los derechos fundamentales entre particulares.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000. p. 103.
74
ESTRADA, Alexei Julio, La eficácia de los derechos fundamentales entre particulares.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000. p. 105.
42

tempos da Constituição de Weimar, afirmando o caráter vinculante dos direitos


fundamentais diante dos poderes públicos, notadamente ao Poder Legislativo.75

A Corte Suprema na Argentina também registra seu exemplo, com o caso


Samuel Kot, ocorrido ao mesmo tempo do caso Lüth, ou seja, em 1958, quando
no julgamento de um recurso de amparo, acolheu a idéia de que, além dos
indivíduos e do Estado, existe outra classe de sujeitos anteriormente não
conhecidos, sem possibilidade de previsão: as associações profissionais, os
sindicatos, os consórcios e as grandes empresas. Freqüentemente, essas forças
se opõem ao Estado e não se discute que representam, junto com o progresso
material da sociedade, uma fonte de ameaça para o indivíduo e seus direitos
essenciais.

Não há nada, nem na letra nem no espírito da Constituição, que se possa


afirmar sobre a proteção dos chamados direitos humanos – porque são os
direitos essenciais do homem – estão circunscritos aos ataques que advêm
somente da autoridade pública. A Constituição, que é a lei das leis e se encontra
no alicerce de toda a ordem jurídica positiva, tem a virtude necessária de poder
governar as relações jurídicas nascidas em circunstâncias sociais diferentes das
que existiam ao tempo de sua sanção. Essa é a essência da Unmittelbare
Drittwirkung.

Igualmente à Argentina, o Tribunal Constitucional da Espanha também


possui inúmeras decisões aplicando a Teoria da Eficácia Direta. Autores como
Tomás Quadra-Salcedo, Juan Maria Bibao Ubilos, Pedro de Vega García,
Antonio Enrique Perez Luño, Rafael Naranjo de la Cruz e tantos outros se
pronunciam como filiados a essa teoria. Defendem o argumento de que a
obrigação de respeitar os direitos fundamentais pelos cidadãos surge e emana
diretamente da Constituição e não só das normas derivadas desta; não é,
portanto, um mero reflexo do ordenamento que pode ser alterado, modificado e
suprimido que o legislador decide somente que há um núcleo essencial
deduzido diretamente da Constituição e que se impõe a todos os cidadãos.

75
CRUZ, Rafael Naranjo de La, Los limites de los derechos fundamentales en las relaciones
entre particulares: la buena fe. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000. p.
170
43

Garantem, também, em defesa da teoria, que a igualdade formal perante


a lei como norma jurídica geral que regula as relações entre particulares só tem
sentido na medida em que essa igualdade abstrata não consegue destruir
socialmente pela desigualdade material e econômica as posições dos indivíduos
que deveriam exercitá-la. Aflora, assim, a Drittwirkung como corretivo de uma
forma de organização social que, no plano real, colide frontalmente com o
sistema de valores que, no plano ideal, define o ordenamento constitucional; o
que a posteriori, significa dar um salto de um Direito constitucional da liberdade
a um Direito constitucional concebido, diante de tudo, como Direito de
igualdade.76

Bilbao Ubillos garante que existem direitos fundamentais na Constituição da


Espanha em cuja estrutura é expressa a eficácia horizontal imediata, como os
direitos à honra, à intimidade, à imagem e à liberdade de religião; não existindo
uma homogeneidade entre todos os direitos fundamentais, devendo assim ser
analisado caso a caso a fim de constatar a sua existência, incidência e extensão
da sua eficácia horizontal.

Em Portugal, o art. 18.1 da Constituição expressa: “os preceitos


constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são
directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”, prevê
direta e genericamente a extensão dos direitos fundamentais às relações
privadas.77

José Joaquim Gomes Canotilho, Vieira de Andrade e Ana Prata se filiam


à Teoria da Eficácia Imediata dos particulares aos direitos fundamentais, na
proteção da “unidade da ordem jurídica e da força jurídica da Constituição”.78

76
GARCÍA, P. de Vega. Dificultades y problemas para la construcción de um constitucionalismo
de la igualdad (la eficacia horizontal de los derechos fundamentales). In: PÉREZ-LUÑO, Antonio-
Enrique (Coord.). Derechos humanos y constitucionalismo ante el tercer milenio. Madrid:
Marcial Pons, 1996. p. 278.
77
Há uma corrente minoritária na doutrina, representada por Francisco Lucas Pires e Carlos
Alberto Motta Pinto que perseveram na tese da eficácia somente indireta dos direitos
fundamentais no âmbito privado.
78
SILVA, Vasco Manoel Pascual Dias Pereira, Vinculação das entidades privadas pelos direitos,
liberdades e garantias. Revista de Direito Público, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº. 82, p.
45, abr./jun. 1987. p. 45.
44

Jorge Miranda, em sua obra,79 não se manifesta de forma explícita, não


aderindo a nenhuma das teorias, mas registra a existência das duas,
destacando as dificuldades que circundam a extensão dos direitos fundamentais
para o âmbito das relações privadas.

José Joaquim Gomes Canotilho, bem como Vital Moreira, em comentário


ao citado artigo 18.1, partilham da mesma opinião de Bilbao Ubillos, pois
sustentam que o sentido precípuo da imposição constitucional acerca da
aplicabilidade direta das normas constitucionais consagradoras de direitos,
liberdades e garantias fundamentais consiste em rejeitar qualquer possibilidade
de elas serem havidas como “enfraquecidas”, “imperfeitas” ou “programáticas”.

Para Vieira de Andrade, nas relações privadas típicas, onde a assimetria de


poder não está presente, a eficácia dos direitos fundamentais seria apenas
indireta. Não valeriam como direitos subjetivos, mas como valores, que devem
ser concretizados pelo legislador ordinário e que influenciariam, por outro lado, a
interpretação judicial das normas de Direito Privado, em especial das suas
cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Assevera ainda que, na
ponderação entre o direito fundamental e autonomia privada, deve a balança,
em princípio, pender para o lado da autonomia privada, desde que a solução
não prejudique intoleravelmente a idéia da dignidade humana.80

3.4.2 A posição da doutrina brasileira

No Brasil, o Texto Constitucional obriga a extensão dos direitos


fundamentais às relações entre privados, sejam elas pessoas ou entidades.
Seus preceitos não são direcionados apenas aos governantes, mas a todos,
pois têm obrigação de se jungir aos seus ditames. É a Constituição a Lei
Fundamental do Estado e da sociedade, devendo todos se submeter aos seus
principais valores e diretrizes, para o enfrentamento dos problemas sociais que
afligem a Nação, e, para tanto, se faz necessário traçar os parâmetros para a

79
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t.IV. Coimbra: Coimbra Editora, 2000,
pp.311-326.
80
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos fundamentais na constituição de 1976. 3ªed.
Coimbra: Almedina, 2007. pp.268
45

incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares na ordem


jurídica.

Daniel Sarmento, ao assumir a incondicional defesa da Unmittelbare


Drittwirkung no Brasil, anota que a eficácia dos direitos individuais nas relações
privadas no Brasil é direita e imediata, não dependendo da atuação do legislador
ordinário, nem se exaurindo na interpretação das cláusulas gerais do Direito
Privado.81

Isto acontece mais fortemente em virtude de o Brasil ser um país de


grandes injustiças sociais, fazendo-se, pois, necessário a adoção de posturas e
posições comprometidas com as mudar adequadas a essa situação. Para tanto
há um favorecimento maior às interpretações que aprofundam a incidência dos
direitos fundamentais na esfera privada

Jane Reis Pereira Gonçalves se manifesta aderindo à Unmittelbare


Drittwirkung. De acordo com o fundamento de suas razões, exposta na sua obra,
as idéias teóricas contrárias à eficácia direta externam uma abordagem mais
ideológica do que descritiva do ordenamento. E continua: a discussão sobre a
eficácia direta deve ser tomada sob um enfoque mais alargado, que é “a
natureza e os limites da função judicial no Estado contemporâneo”.82

A autora ainda salienta, no entanto, que “isso não significa dizer que os
direitos fundamentais devam incidir de forma absoluta e incondicionada nas
relações entre particulares”, tanto que “não há como se cogitar de que os pais
sejam obrigados a dar a seus filhos presentes de Natal semelhantes – ou que
lhes devam oferecer mesadas idênticas, ou mesmo castigar-lhes de forma
equivalente – em obediência ao princípio da igualdade”. Sempre o aplicador do
Direito deverá ponderar os valores jusfundamentais em conflito, “modular a
extensão de sua incidência por meio dos recursos hermenêuticos tradicionais”, é
dizer, “cabe aferir, em cada caso, se o direito fundamental invocado na relação
de direito privado justifica a compressão ou afastamento do direito à autonomia

81
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p. 237.
82
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 489.
46

privada que, em princípio, deve incidir em todos os negócios envolvendo


particulares”.83

Sarlet enfatiza o fato de que, mesmo na Alemanha, onde a Lei


Fundamental em seu art.1.3 vincula somente os Poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário como destinatários dos direitos fundamentais, silenciando em
relação à submissão dos particulares aos mesmos direitos, afirmando que,
mesmo em Estados desenvolvidos e que, de fato, assumem as feições de um
Estado democrático e social de Direito, já se aceita “[...] que nas relações
cunhadas pela desigualdade, o particular mais ‘poderoso’ encontra-se
diretamente vinculado aos direitos fundamentais do outro particular (embora
ambos sejam titulares de direitos fundamentais), mais ainda tal vinculação deve
ser reconhecida na ordem jurídica nacional, onde, quando muito, podemos falar
na previsão formal de um Estado Social de Direito que, de fato, acabou sendo
concretizado apenas para uma diminuta parcela da população.”84

Virgílio Afonso da Silva destaca o fato de a Constituição Federal de 1988,


ao contrário da alemã, em nenhum momento estabeleceu que apenas os
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário estão diretamente vinculados aos
direitos fundamentais. Disso se deduz o porquê de o Texto Constitucional não
haver contado com norma análoga. Assim, a dogmática constitucional brasileira
não precisa lançar mão do mesmo expediente utilizado pelo Tribunal Federal
Alemão no caso Lüth, com o intuito de manifestar o alargamento dos direitos
fundamentais: “elevá-los à condição de valores fundamentais destinados a reger
não somente a atividade estatal como também toda a vida social”.85

Favorável à teoria Unmittelbare Drittwirkung, idealizada por Nipperdey,


manifestou-se Luís Roberto Barroso. Para o Constitucionalista, “o ponto de vista

83
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 491-494.
84
SARLET, Ingo, Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais,, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
2000. p. 152-153.
85
SILVA, Virgílio Afonso da, A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 140.
47

da aplicabilidade direta e imediata afigura-se mais adequado para a realidade


brasileira e tem prevalecido na doutrina”.86

Wilson Steinmetz posicionou-se favoravelmente à vinculação direta dos


particulares aos direitos fundamentais, ou seja, seu pensamento em relação à
eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais deve ser ‘matizada’
(‘modulada’ ou ‘graduada’) por estruturas de ponderação (ordenadas no
princípio da proporcionalidade e seus elementos) que, no caso concreto, tomem
em consideração os direitos e/ou princípios fundamentais em colisão e as
circunstâncias relevantes.87

O Texto Constitucional exclui a tese radical, seguida nos Estados Unidos,


que afasta a aplicação dos direitos individuais sobre as relações privadas. De
igual maneira, demonstra irreconciliável com a posição mais compromissória,
mesmo assim, conservadora, da eficácia horizontal indireta e imediata dos
direitos individuais, prevalecente na Alemanha, e que transforma a incidência
destes direitos subordinada da vontade do legislador ordinário, ou os restringe
ao modesto papel de simples vetores interpretativos das cláusulas gerais do
Direito Privado.

Daniel Sarmento argumenta que, quando o próprio constituinte, numa clara


e inequívoca escolha, opta por se imiscuir na esfera das relações privadas,
como aconteceu no caso brasileiro, não existe qualquer razão que justifique
excluir a jurisdição constitucional neste campo. Não divisamos nenhum motivo
para que se reconheça plena eficácia a certas normas constitucionais, quando,
no caso concreto, seus comandos se dirigirem ao Estado, negando-se iguais
efeitos às mesmas normas quando voltadas à resolução de litígios privados.
Trata-se de puro preconceito ideológico, travestido sob a forma de teses
jurídicas sofisticadas, que na verdade pugnam para evitar que a axiologia

86
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. O
triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Disponível
em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547&p=2>. Acesso em: 28 jan. 2008.
87
STEINMETZ, Wilson, A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 295.
48

solidarista da Constituição ‘contamine’ o reino de suposta neutralidade e de


justiça comutativa do Direito Privado.88

Portanto, pode-se concluir que no Brasil há, sem qualquer dúvida, uma
vocação para a Teoria da Eficácia Direta e Imediata, facilmente perceptível tanto
pelas várias manifestações anteriormente citadas, como também pelo fato de
deste raciocínio reunir adesão em obras de novos autores.

3.5 O modelo de Alexy

Robert Alexy sugere de forma inovadora, um modelo composto por


elementos das duas teorias, tanto da Eficácia Indireta e Mediata (Mittelbare),
bem como da Teoria da Eficácia Direta e Imediata dos Direitos Fundamentais
nas Relações entre Privados (Unmittelbare Drittwirkung).

Robert Alexy edifica sua dogmática partindo da hipótese de que, até o


momento, a grande discussão acerca dos efeitos jusfundamentais nas relações
entre particulares se desenvolveu “como se uma das três construções tivesse
que ser a correta. Esta suposição é falsa”.89 As três formulações a que se refere
o autor são as Teorias da Eficácia Direta, Indireta e a Tese de Schwabe. Cada
uma das teorias tem peculiaridades que enaltecem alguns pontos de vista sobre
as complexas relações jurídicas que descrevem as ocorrências de efeitos
perante terceiros; e a fragilidade de cada uma dessas teorias é pensar que seus
fundamentos podem ter a solução. Assim afirma Robert Alexy: “só um modelo
que comporte todos os aspectos pode oferecer uma solução completa e, neste
sentido, adequada”.90

A teoria de conciliar as Teorias da Eficácia Direta, Indireta e a Tese de


Schwabe, idealizada por Robet Alexy, está organizada em três estágios, são
eles: a) dos deveres do Estado; b) dos direitos diante do Estado; e c) das

88
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p. 242.
89
ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 1993. p. 515.
90
ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 1993. p. 515-516.
Em suas palavras: “sólo un modelo que abarque todos los aspectos puede ofrecer una solución
completa y, en este sentido, adecuada”
49

relações jurídicas entre sujeitos de Direito Privado. A relação estabelecida esses


três estágios não ocorre em graus, mas por envolvimento recíproco.

No primeiro estágio, os deveres do Estado correspondem à Teoria da


Eficácia Indireta, imaginados pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, no
caso Lüth: o fato de que as normas jusfundamentais, como princípios objetivos,
valem para todos os âmbitos do Direito, implica a obrigação estatal de tê-las em
conta, tanto na legislação como na jurisprudência civis.

Já no estágio seguinte, o dos direitos de defesa e proteção diante do


Estado, assemelha-se ao da teoria de Schwabe, uma vez que acolhe a idéia de
que, se o Estado não coíbe as ações particulares que infringem direitos
fundamentais, não cumpre o direito substancial de proteção a que tem direito
todo cidadão.

Duas são as vantagens dessa formulação, de acordo com Robert Alexy: a


primeira vantagem é a de que os direitos à proteção restam identificados mais
claramente do que nas demais, obrigando os tribunais civis a considerar os
direitos fundamentais bem como a aplicar o Direito Privado em voga.91 A outra
vantagem se encontra no fato de que a importância dada à jurisprudência não
relega a segundo plano a constituição dos direitos de defesa e proteção, uma
vez que a fundamenta. Dessa forma, cada vez que um tribunal civil lesiona um
direito de um cidadão baseado na jurisprudência judicial, quer dizer, não leva em
conta na devida medida um principio iusfundamental que apoia a posição que
fundamenta o caso, lesiona – segundo as peculiaridades do caso – também um
direito de defesa ou um direito de proteção.92

A aplicação separada deste estágio de eficácia, no entanto, não se


apresenta apropriada. Quando o direito fundamental, tendo como titular um
particular, entra em conflito com outro direito fundamental da mesma natureza,
em boa parte das vezes, há uma autorização legal que não se pode igualar a
uma infração de direito fundamental.

91
ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 1993. p. 519.
92
ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 1993. p. 520.
50

Cabe aqui fazer a exemplificação do caso Blinkfüer, na qual um grande


grupo editorial boicotou pequeno semanário de Hamburgo, e o Tribunal
Constitucional Federal alemão modificou o decisum a quo, uma vez que nela se
podia identificar uma falha gritante ao dever de proteção que recai sobre o
Estado. Sua deficiência é resultado da não-união dos direitos de defesa aos
direitos a prestações positivas que o cidadão tem junto ao Poder Público.

Por fim, tem-se o estágio da eficácia dos direitos fundamentais entre


privados, fundada na teoria de que a eficácia imediata não pode resultar de que
os direitos dos cidadãos perante o Estado sejam equiparados a direitos
oponíveis a outros cidadãos; ou de que esta eficácia direta não pode ser
adquirida pela mudança de destinatário dos direitos fundamentais, uma vez que
as normas de direito fundamental ostentam, nas relações cidadão-cidadão, uma
eficácia diversa da que advém das relações cidadão-Estado.93

Em decorrência disso, a comunhão das Teorias da Eficácia Indireta ou


Mediata (Mittelbare Drittwirkung) e da Convergência Estatista, elaborada por
Schwabe, é resultado da existência necessária de uma eficácia imediata. Temos
como exemplo novamente o caso Blinkfüer, tendo em vista que o Tribunal
Constitucional Federal reconheceu a existência de um direito fundamental do
editor de Blinkfüer a que o grupo Springer encerrasse a conclamação ao boicote.
Disso se conclui que a ordem de valores jusfundamental, que tem índole
constitucional, obriga certos direitos e deveres nas relações entre iguais. É
inegável, portanto, que há uma eficácia direta e imediata.

Robert Alexy conclui que existem os três níveis, cada qual se referindo a
um aspecto da mesma coisa. Qual deles será eleito em cada caso na respectiva
fundamentação jurídica é uma questão de funcionalidade; mas nenhum deles
podde pretender ter primazia sobre os demais.94

93
ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 1993. p. 520.
94
ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 1993. p. 522. [...]
existen los tres niveles. Cada uno de ellos se refiere a un aspecto de la misma cosa. Cual de
ellos sera elegido en cada caso en la respectiva fundamentación jurídica es una cuestión de
funcionalidad. Pero, ninguno de ellos puede pretender primacia sobre los demás.
51

André Rufino do Vale assinala também que a eficácia imediata se


apresenta quando o Estado exerce sua tarefa de observar os princípios objetivos
do ordenamento jurídico na concretização do Direito Privado, seja por meio do
legislador, ou do juiz. Em outro nível, observa-se o desenvolvimento de efeitos
nas relações privadas pelos direitos de defesa e proteção perante o Estado, que
está obrigado a não intervir na esfera de liberdade privada dos cidadãos, assim
como protegê-los de violações de direitos levadas a efeito por terceiros. No
terceiro âmbito, observa-se, nas relações entre sujeitos privados, o surgimento
dos direitos subjetivos diretamente das normas constitucionais consagradoras
de direitos fundamentais, revelando-se a eficácia imediata.95

3.6 As diferentes teorias se excluem?

O modelo apresentado por Alexy, e que tem caráter integrador, acena


com a falta de utilidade do debate acerca de qual das elaborações teóricas
poderia ter preponderância sobre as outras. Bilbao Ubillos acentua que todas as
construções teóricas expressam o mesmo fim, conseqüentemente. Em suas
palavras, o autor garante que todas “conduzem aos mesmos resultados (em
última análise, aqueles que a consciência social reclama)”.96

Continua o autor, quando exemplifica em sua obra que, quando o órgão


judicial declara a nulidade de uma demissão por ferimento a um direito
fundamental, está identificando o fato de que referido direito foi infringido pelo
empregador na esfera da relação de trabalho, e não que o obreiro simplesmente
tinha direito a que o tribunal interpretasse a lei de acordo com os valores
constitucionais.97

As doutrinas da Eficácia Direta e Indireta dividem os projetos de


assegurar o equilíbrio de poderes entre Legislativo e Judiciário, apoiando a
segurança jurídica, além de ampliar as possibilidades de incidência dos direitos
95
VALE, André Rufino, Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2004. p. 168
96
UBILLOS, Juan María Bilbao, La eficacia de los derechos fundamentales frente a
particulares: análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1997. p. 321.
97
UBILLOS, Juan María Bilbao, La eficacia de los derechos fundamentales frente a
particulares: análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1997. p. 323.
52

fundamentais ao âmbito das relações privadas. Portanto, há a necessidade de


adequar as teorias e não impor contradições e conflitos.98

As discussões doutrinárias sobre como incidem os direitos fundamentais


nas relações privadas não trazem nada de edificante, uma vez que são
estabelecidas com a função de desconstituir uma a outra. Deveriam, pelo
contrário, ser sempre de complementação e nunca de exclusão como alguns
doutrinadores defendem.

Assim havemos de considerar que a incidência jusfundamental no setor


privado pode tranqüilamente acontecer por meio da lei, como defendem os
adeptos da Teoria da Eficácia Indireta; no entanto, o que não pode acontecer é
que as cláusulas gerais sejam tidas como imprescindíveis para a eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, uma vez que isto acarretaria uma confusão
da sistemática axiológico-material da Constituição de 1988.

98
ESTRADA, Alexei Julio, La eficácia de los derechos fundamentales entre particulares.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000. p. 106.
53

4. CONCLUSÕES

Os direitos fundamentais, bem como a relevância jurídico-normativa que


usufruem num ordenamento jurídico, estão unidos aos valores existentes em
uma sociedade, identificados em cada momento histórico. As sociedades têm
como características determinantes a dinâmica da permanente evolução e
concomitantemente a isto, as transformações ocorridas na estrutura do Estado.
Dessa forma o Direito também recebe essas influências mutacionais,
efetivamente, desde sua origem.

A Constituição inglesa de 1215, como também a Declaração Universal da


França de 1789, foram as primeiras manifestações positivas de direitos
fundamentais e tinham como objetivo primordial a restrição do poder estatal; era
necessário, essencialmente, limitar o “Estado-Leviatã”, a fim de que fosse
garantido aos cidadãos um rol de precauções capazes de proteger suas
liberdades individuais.

Debaixo da proteção do liberalismo oitocentista, surgiu a primeira geração


dos direitos fundamentais, que tinha como objetivo assegurar a cada cidadão um
estado de liberdade individual. Estando a sociedade livre do domínio do Estado,
passaria a se conduzir sozinha nas questões privadas, como, por exemplo; a
propriedade e os contratos, alçando o Código Civil à condição de “Constituição
da vida privada”.

Pensado para serem concebidos para proteger a pessoa humana contra


os abusos, incluindo os excessos de não-estatais, os direitos fundamentais
inicialmente constituiram mecanismos de restrição do poder estatal.

Com o aparecimento dos movimentos sociais em vários países, nos


séculos XIX e XX, o modelo liberal de direitos fundamentais mostrou-se
vulnerável. Surgia a “segunda geração” desses direitos, identificada, nas
primeiras constituições, onde a proteção aos direitos fundamentais feita pelo
Estado não pode se resumir à não-intervenção nas liberdades individuais, uma
54

vez que alcança atuações prestacionais, positivas, para a concretização dos


direitos sociais.

O julgamento, pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, do caso Lüth


foi o grande marco do constitucionalismo após a Segunda Grande Guerra. Esse
julgamento foi estribado na teoria defensora da idéia de direitos fundamentais,
compõem uma ordem de valores que vale para todos os ramos do ordenamento
jurídico, considerado posteriormente como a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais. A decisão do caso Lüth também desencadeou o debate sobre a
eficácia dos direitos fundamentais entre terceiros ou eficácia horizontal dos
direitos fundamentais.

A falta de capacidade do Estado de concretizar os direitos fundamentais


de segunda geração fez aumentar a crise do modelo social de Estado. Várias
foram as motivações que contribuíram para a difusão, para outros países, da
Teoria dos Efeitos Horizontais dos Direitos Fundamentais, notadamente a
globalização e a concentração do poder nas mãos de organizações privadas.
Como exemplo, temos a Doutrine State Action, desenvolvida nos Estados
Unidos da América pela Suprema Corte.

A autonomia privada, a perda da identidade do direito civil, a insegurança


jurídica bem como a criação do Estado judicial, foram alguns dos argumentos
debatidos sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Desse debate advieram várias teorias em favor e contra esta
elaboração teórica.

Hans-Carl Nipperdey deu grande contributo, ao ponto de o Tribunal


Federal do Trabalho alemão albergar e melhorar a Teoria da Eficácia Direta ou
Imediata dos Direitos Fundamentais, onde a vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais tem a possibilidade de ser aplicada diretamente, tendo
como fundamento o Texto Constitucional.

Gunther Dürig discordava da Teoria da Eficácia Direta, e apresentou os


fundamentos da Teoria da Eficácia Indireta ou Mediata. Essa teoria apresenta a
incidência dos direitos fundamentais no tráfico jurídico privado e deve acontecer
55

pela mediação estatal. Essa mediação pode ocorrer por intermédio do legislador
ou da atuação judicial.

Já Robert Alexy sustenta a idéia de um modelo de três estágios, que


concilia as Teorias da Eficácia Direta e Imediata, onde demonstra que elas não
se apresentam mutuamente excludentes, pois se complementam. De acordo
com Robert Alexy, a eficácia dos direitos fundamentais entre privados atua
diferentemente do que nas relações entre indivíduo-Estado. A passagem pela
esfera judicial ou legislativa pode acontecer, no entanto, a eficácia direta a partir
da Constituição tem supremacia.

No Brasil, a doutrina tende primordialmente a adotar a aplicação da Teoria


da Eficácia Direta ou Imediata, tudo de acordo com disposto no Texto
Constitucional de 1988. Afirmam os autores nacionais que, na Constituição, não
existe nenhuma proibição em adotar a Teoria da Eficácia Direta e Imediata,
competindo aos tribunais, nesses casos, aplicar a ponderação e o equilíbrio aos
valores jusfundamentais antagônicos, igualmente como sucede nas ocorrências
de conflito entre direitos fundamentais.

O Direito Civil Constitucional tem se robustecido no Brasil. Essa tendência


defende maior proximidade entre os conceitos jurídico-privados e as diretrizes
axiológicas albergadas na Constituição, principalmente no que diz respeito à sua
interpretação. No âmbito legislativo, temos a proliferação do uso de cláusulas
gerais no Código Civil.

No Brasil, a concentração de renda numa ínfima parcela da sociedade


induz a que se expresse de forma plena o fenômeno dos poderes privados. Em
virtude desse fator importante instaurado no seio da sociedade brasileira, os
poderes privados tendem a se rivalizar com o Estado. Diante disso, a Teoria da
Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais adquire mais importância, uma
vez que a restrição do poder sempre foi o objetivo dos direitos fundamentais.

Apesar de os tribunais brasileiros não haverem enfrentado ainda o assunto


com a importância adequada que o caso requer, apareceram nos anos 1990 as
primeiras decisões sobre o assunto. Em 2005, o ministro Gilmar Ferreira
Mendes, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que “o Supremo Tribunal
56

Federal já possui histórico identificável de uma jurisdição constitucional voltada


para a aplicação desses direitos às relações privadas”.

Os direitos fundamentais se encontram no cume da normatividade-


axiológica do constitucionalismo moderno. A Drittwirkung der Grundrechte, neste
contexto, se mostra como a “última fronteira” da expansão dogmática desses
direitos. O tema sobre a “eficácia horizontal” se encontra reflexivamente num
dos assuntos mais recentes em matéria constitucional.

No Brasil, deverá ser conferido um tratamento especial aos direitos


fundamentais nas relações entre privados, tanto pela doutrina como pela
jurisprudência, servindo de baliza aos novos rumos em defesa da Constituição, o
que significará um mecanismo de equilíbrio diante de tanta desigualdade social
no País. O desenvolvimento da eficácia horizontal parece mais importante ainda
para que se robusteça o espírito educativo de que se devem revestir os direitos
fundamentais em uma sociedade.
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