Lepidus,+33-Prof.+alexandra Fabio Artigo
Lepidus,+33-Prof.+alexandra Fabio Artigo
Lepidus,+33-Prof.+alexandra Fabio Artigo
DE SEUS AGENTES
1
Aluno do 5º período do curso de Psicologia da FAE Centro Universitário. Voluntário do Programa de
Apoio à Iniciação Científica (PAIC 2014-2015). E-mail: machinievscz@hotmail.com
2
Doutoranda em Memória Social pelo PPGMS/UniRio. Professora da FAE Centro Universitário.
E-mail: alexandra.arnold@fae.edu
O gatilho de interesse por esse tema de pesquisa foi uma experiência, por parte
do pesquisador, quando este estava em uma visita técnica a um complexo penitenciário.
Em uma ala psiquiátrica, deparou-se com a seguinte situação: ao andar com o grupo
pelo complexo, viu em uma cela mulheres grávidas com o cabelo raspado. Ao indagar
ao agente penitenciário que liderava a visita qual era o motivo de aquelas mulheres
estarem com cabelo raspado, as justificativas foram as seguintes: para que elas não se
machucassem ao brigar e também evitar piolhos e outros tipos de doenças. O pesquisador
questionou então sobre o sofrimento delas quanto à autoestima. O agente argumentou
que aquelas mulheres “não eram gente, mas bichos!”. No entanto, na mesma visita,
pôde-se observar um segundo agente conversando de forma amigável com internos em
outra cela, inclusive compartilhando alimentos em um ato de generosidade.
A partir dessa experiência, surgiram as seguintes questões: por que em um
mesmo ambiente havia comportamentos tão ambivalentes? Ao trabalhar por um longo
tempo em instituições como hospitais psiquiátricos ou penitenciárias, lidando com o
sofrimento humano, sob um clima de tensão emocional, poderiam esses agentes sofrer
algum tipo de ônus psíquico quanto a sua identidade? Como esses trabalhadores, em
meio a um ambiente de trabalho tão hostil, lidavam com tantos sofrimentos e a angústia
dos internos ou pacientes dessas instituições? A exposição contínua a esse sofrimento
diminuiria a sensibilidade e, consequentemente, o sentimento de empatia de forma
defensiva? Entre esses agentes haveria algum grau de sadismo?
Todas as instituições, como a família, a religião, as escolas e os hospitais são parte
fundamental para o desenvolvimento da identidade humana, da singularidade do sujeito
e de sua subjetividade. Porém, precisamos questionar: até onde se estende o limite dessa
necessidade e da imposição castradora da potencialidade dos indivíduos que a compõem?
Além disso, são comuns relatos de abusos de poder, omissão de socorro e descaso
por parte de agentes de instituições públicas e privadas – particularmente as de caráter
manicomial – que seguem uma lógica de opressão e exclusão. As vidas de milhares de
pessoas se perdem entre números de protocolos e processos judiciais morosos em meio
a uma parafernália de instrumentos burocráticos. Todos esses processos e mecanismos
são operados por agentes técnico-institucionais, pessoas que proporcionam movimento
e vida às instituições, reproduzindo na práxis de suas rotinas essa lógica opressora – mas
não sem um ônus subjetivo.
Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o
porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente
implicados; que não há relação de poder sem constituição correlatada de um campo
de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder (FOUCAULT, 1977, p. 30).
As instituições são lógicas, são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o
grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão
enunciadas de maneira manifesta podem ser pautas, regularidades de comportamentos.
[...] experts que são os conhecedores dessa estrutura e do processo dessa sociedade em
si. Esses conhecedores têm-se colocado, em geral, a serviço das entidades e das forças
que são dominantes em nossa sociedade. Por exemplo, a serviço daquela instituição
que representa o máximo da concentração de poder, o extremo de concentração de
controle e de hegemonia sobre a sociedade, que é o Estado (BAREMBLITT 2002, p. 12).
[...] as comunidades de cidadãos têm visto esse saber subordinado ao saber dos experts.
Junto com seu saber, elas têm perdido o controle de suas próprias condições de vida,
ficando alheias à espacidade de gerenciar sua própria existência. Elas dependem,
então, quase incondicionalmente, dos organismos do Estado dos organismos do
Estado, empresarias, do saber e de serviços dos experts (BAREMBLITT, 2002, p. 14).
[...] noção das necessidades é produzida, assim como a demanda é modulada: isto é, aquilo
que os povos pensam que todos os membros de uma população e todos os povos do
mundo precisam como o “mínimo” não existe. Esse “mínimo” é gerado em cada sociedade
e é diferente para cada segmento da mesma [...] de modo que já não sabem mais o que
precisam e não demanda o que “realmente” aspiram, mas acham que necessitam daquilo
que os experts dizem que elas necessitam [...] (BAREMBLITT, 2002, p. 16).
Como indica Goffman (1961), existe uma divisão binária dentro das instituições totais,
localizada no que o autor definiu como “equipe dirigente” e “os internados”. Cada grupo
desse sistema fechado estigmatiza os reguladores dessa instituição com papeis previamente
estabelecidos e rotulados, isso resulta em uma divisão de força, pois “Os participantes da
equipe dirigente tendem a sentir-se superiores e corretos; os internados tendem, pelo menos
sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores, fracos e culpados” (GOFFMAN, 1961, p. 19).
Sob a contradição entre o que a instituição diz e o que realmente faz, é que
se caracteriza o ambiente de trabalho da equipe técnica e dirigente, isso porque o
“produto” ou “objeto” de sua ação são seres humanos, diferente de uma indústria ou
prestadores de serviços tradicionais. O que aponta para a necessidade de garantir os
Podemos reforçar esse fato constatado com exemplos práticos narrados por
trabalhadores do Colônia que, sem formação alguma sobre os procedimentos adequados
para lidar com os pacientes internados, aprendiam na prática, treinando com os pacientes
como se estes fossem cobaias.
Eis um relato do descaso, por parte dos dirigentes que submetiam os funcionários
a essas práticas:
Nos hospitais para doentes mentais, há sempre alguns pacientes que, de maneira bem
nítida, parecem agir contra o que evidentemente seria bem para eles: bebem água que
eles acabaram de sujar; [...] batem a cabeça contra a parede: arrancam os pontos depois
de uma pequena cirurgia; jogam na privada suas dentaduras; sem as quais não podem
comer e que somente depois de alguns meses podem ser substituídas; quebram as lentes
dos óculos, sem as quais não podem ver. Num esforço para frustrar esses atos visivelmente
autodestrutivos, as pessoas da equipe dirigente podem “maltratar” tais pacientes, e criam,
de si mesmas, uma imagem de pessoas duras e autoritárias, exatamente no momento
que tentam impedir que alguém faça para si mesmo aquilo que, segundo pensam,
nenhum ser humano deve fazer a outro (GOFFMAN, 1961, p. 76).
Assim como os bens pessoais podem interferir no controle suave de uma instituição,
e por isso são afastados, também algumas partes do corpo podem entrar em conflito
com a direção eficiente e o conflito pode ser resolvido em favor da eficiência. Para
Segundo Gaignard (2008 apud SZNELWAR, 2011, p. 84), pode-se afirmar que
esse tipo de situação tem um custo elevado para os trabalhadores e que essa prescrição
– a mentira no ambiente de trabalho – pode levar, além do sofrimento ético, a uma
descompensação psicopatológica caracterizada, implicando riscos importantes em
termos de saúde aos trabalhadores. Tais práticas são “[...] um exemplo paradigmático
de conflito entre a racionalidade instrumental (cujo objetivo é a ação eficaz no mundo
objetivo) e racionalidade moral-prática ou axiológica, que se refere aos valores morais
e à ética do agir” (DEJOURS, 2010 apud SZNELWAR, 2011).
– A coisa era muito pior do que parece. Havia um total desinteresse pela sorte. Basta
dizer que os eletrochoques eram dados indiscriminadamente. Às vezes, a energia
elétrica da cidade não era suficiente para aguentar a carga. Muitos morriam, ou sofriam
fraturas graves (ARBEX, 2013, p. 36).
Segundo Sznelwar (2011), todos nós mentimos, a mentira tem uma função
social e todos fazemos uso dela, mas nem por isso todos os que mentem são indivíduos
perversos ou manipuladores, e nem todos os que mentem se sentem culpados ou
envergonhados e angustiados, muito menos ficamos doentes por causa disso. Porém, a
mentira no trabalho como forma de prescrição, segundo os dados clínicos de Sznelwar
(2011), apresenta consequências para a saúde desses trabalhadores.
Podemos observar na fala de uma das funcionárias do hospital, Chiquinha, que
após trabalhar 35 anos no Colônia como cozinheira, ainda se lembrava, com lágrimas nos
olhos, do que viveu: “Eu não sabia o tamanho da tragédia. Hoje sei e me arrependo de
não ter dado o grito mais cedo. Acho que eu podia ter evitado alguma morte. Quantas?
Muitas talvez” (ARBEX, 2013, p. 43). Muitos funcionários e ex-funcionários contam
que sentiam o desejo de denunciar, mas não havia ninguém para ouvir, permeando o
trabalho, se fazia presente uma sensação de impotência.
Segundo Arbex (2013, p. 43),
O termo “trabalho sujo” foi cunhado pelo sociólogo Everett C. Hughes, conforme
aponta Sznelwar (2011), e refere-se às profissões que estão ligadas com atividades como
evacuação de dejetos, eliminação de cadáveres ou tratamento de corpos etc. Ou seja,
atividades que são repudiadas pela sociedade, mas que alguém precisa fazer, geralmente
são as pessoas bem menos preparadas no sentido profissional e acadêmico que assumem
tais práticas: “De uma forma geral, o ‘trabalho sujo’ representa aquilo que queremos
evitar fazer e pensar” (SZNELWAR, 2011, p. 94).
Nesse sentido, o trabalho sujo seria aquilo considerado fisicamente nojento e
repugnante e que as pessoas evitariam ao máximo fazer, pois o simples ato de pensar
sobre causaria repúdio. Pois bem, a ideia da Psicodinâmica é ampliar esse conceito
para atividades de trabalho ou situações em ambientes do trabalho em que para zelar
pelo seu emprego, o trabalhador precisa ter atitudes e comportamentos moralmente
repugnantes para ele; situações aversivas que vão contra seus princípios e sua consciência
moral, criando conflitos indentitários em longo prazo (SZNELWAR, 2011).
Um exemplo de trabalho sujo feito para zelar pelo serviço é trazido na narrativa
de uma funcionária no hospital psiquiátrico de Barbacena sobre seu primeiro dia de
trabalho. Marlene Laureana de 20 anos, após ter passado no concurso público como
assistente psiquiátrica no hospital de Barbacena, relata que:
[...] foi surpreendida pelo odor fétido, vindo do interior do prédio. Nem tinha se
refeito de tamanho mal-estar, quando avistou montes de capim espalhado pelo
chão. Junto ao mato havia seres humanos esquálidos. Duzentos e oitenta homens,
a maioria nu, rastejavam pelo assoalho branco com os tornozelos pretos em meio
à imundície do esgoto a céu aberto que cruzava todo o pavilhão. Marlene sentiu
vontade de vomitar. Não encontrava sentido em tudo aquilo, queria gritar, mais a voz
desapareceu da garganta. Guiada por um funcionário foi obrigada a entrar. Tentou
evitar pisar naqueles seres desfigurados, mais eram tantos que não havia como desviar
[...] Observou quando dois homens de jalecos brancos embrulhavam o morto num
lençol, o décimo naquele sexto naquele dia, embora muitos outros agonizassem.
Na tentativa de se aquecerem durante a noite, os pacientes dormiam empilhados,
sendo comuns que os de baixo fossem encontrados mortos [...] (ARBEX, 2013, p. 23).
A tarefa de Marlene era recolher o capim espalhado pelo pavilhão e usado como
uma espécie de cama coletiva pelos pacientes da instituição e levar esse capim para o lado
de fora dos muros para tomar sol durante o dia, a fim de que secassem a urina e as fezes
para que à noite fossem novamente espalhados. Marlene relata o que pensou naquele
– Isso eu não sei. Mas se ela não comprar, está cheio de faculdade que compra –
respondeu o técnico, enquanto se abaixava para introduzir, numa incisão feita na virilha
Nem sempre tais casos de “trabalho sujo” terão um caráter tão dramático como
os exemplos citados; talvez comece com algo mais simples e corriqueiro, mas, com
o passar do tempo, na rotina do trabalho, na falta de uma pausa ou espaço para se
repensar os procedimentos e as consequências destes, há uma tendência à banalização
da violência. A vida profissional pode se tornar um fardo aos trabalhadores para quem
a sociedade terceiriza este tipo de trabalho, afetando profundamente outras dimensões
da existência. Não se pode ignorar que esse contexto de institucionalização, que afeta
também os trabalhadores que se encarregam deste tipo de atividade diária, é um reflexo
da postura de todos que compõem a sociedade e fecham os olhos para tais assuntos,
independente se são perpetrados aos excluídos, diferentes ou desconhecidos.
6 METODOLOGIA DE PESQUISA
Resta claro também que os resultados das ciências sociais são raramente percebidos e
utilizados na vida cotidiana porque – para satisfazer a padrões metodológicos – suas
investigações e descobertas, muitas vezes, afastam-se das questões e dos problemas do
dia a dia. Por outro lado, análises da prática da pesquisa demonstram que grande parte
dos ideais de objetividade formulados com antecedência não pode ser consumados.
Apesar de todos os controles metodológicos, a pesquisa e suas descobertas são
inevitavelmente influenciadas pelos interesses e pelas formulações social e cultural dos
envolvidos. Tais fatores influenciam a formulação das questões e hipóteses da pesquisa,
assim como a interpretação de dados e relações (FLICK, 2004, p. 19).
Para Flick (2004), o fato da maioria dos fenômenos da realidade não poder ser
explicado de maneira específica e isolada seria uma evidência da própria complexidade
dessa realidade e de seus fenômenos, “[...] se todos os estudos empíricos fossem
planejados exclusivamente de acordo com o modelo das nítidas relações causa e efeito,
todos os objetos complexos teriam de ser excluídos” (FLICK, 2004, p. 20).
Para ilustrar um exemplo das limitações de pesquisas quantitativas em objetos
de estudos nas áreas sociais e psicológicas, Flick (2004) apresenta o resultado de um
estudo em que constatou que havia uma frequência maior de perturbações mentais
Além disso, essas descobertas não nos explicam o que significa viver com uma doença
mental. Não se esclarece o significado subjetivo dessa doença (ou da saúde) para
aqueles diretamente afetados, nem se compreende a diversidade de perspectivas
sobre a doença em seu contexto. Qual é o significado subjetivo da esquizofrenia
para o paciente e qual seria esse significado para seus familiares? Como as diversas
pessoas envolvidas lidam com a doença na vida real? O que levou ao aparecimento
da doença no curso da vida do paciente e o que fez com que esta se tornasse uma
doença crônica? Quais foram as influências das diversas instituições que trataram o
paciente ao longo de sua vida nessa trajetória? Que ideias, metas e rotinas indicam a
forma concreta de essas instituições tratarem o caso? (FLICK, 2004, p. 22).
CONSIDERAÇÕES FINAIS