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O Novo Cinema Galego um cinema de fronteira
Beli Martínez Martínez
Universidade de Vigo
S
alguma coisa tem caracterizado o cinema de vanguarda realizado nos
últimos anos é a rutura com a tradicional classificação de géneros. A
hibridação e mestiçagem nos discursos narrativos fazem com que, em numerosas ocasiões, a ficção estabeleça contactos com o documentário para a sua
construção e o filme rompa os pressupostos de verdade e objetividade, derivando para um discurso com aparência ficcional, o que dará como resultado
um debate sobre a vigência dos géneros.
Esta nova forma de conceber o cinema também teve impacto sobre o cinema galego e o surgimento do chamado Cinema Novo Galego significa que,
pela primeira vez na sua história, ele está localizado na Galiza e na vanguarda
do cinema. Este tipo de cinema pode ser classificado como um cinema de
fronteira, tanto narrativa como geoestratégica.
E
Uma aproximação ao Novo Cinema Galego
A chegada do novo século introduziu uma série de mudanças na paisagem audiovisual que afetou não só o âmbito tecnológico mas também o discursivo,
bem como a conceção do relato cinematográfico, produto da miscigenação e
da hibiridação dos géneros. No caso do audiovisual galego, estas novas ideias
deram origem a uma série de produções que foram feitas nos últimos cinco
anos, graças em grande parte à abertura de um pacote de ajudas por parte da
extinta Axencia Audiovisual Galega e que continuou pela AGADIC (Axencia
Galega de Industrias Culturais), um órgão dependente da Conselhería de Cultura da Xunta da Galiza, que tentava incentivar a autoria e a criação audiovisual independente. Na maior parte dos casos, refere-se a produções surgidas à
margem da indústria audiovisual a qual, pelo seu carácter experimental e vanguardista, deve buscar novos espaços expositivos, novos territórios e novas
maneiras ou fórmulas de exibição para atingir o público. Surge, desta forma,
um novo conceito de criação e receção, herdeiro de uma tradição que começa
Cinema em Português: IV Jornadas, 171-186
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com o aparecimento do vídeo e o surgimento da videoarte e com o cinema de
guerrilha da década dos setenta.
Esta nova comunidade de praticantes, que têm aparecido nos últimos anos
e que revolucionou a cena cinematográfica nacional e internacional, não surge
de uma escola particular; é sim uma nova geração de cineastas que emergiu
de maneira mais ou menos espontânea e que é crescente em número e na
diversidade de estilos. Alberte Pagan (Vieiros: 2008) afirma duma maneira
clarificadora:
“A tendência para a experimentação é apresentada como a única
solução viável para realizar trabalhos mais honestos e pessoais.
O resto do que se está a fazer é baseado em imitar modelos existentes, de que resultam cópias grosseiras e pobres numa prática
com décadas de existência”.
Um dos fatores chave que definem esta transformação do panorama audiovisual é a atitude tomada pelos criadores a propósito da indústria. As palavras
de Umberto Eco mostram com clareza a nova abordagem da relação estabelecida entre o realizador e os meios de produção:
“Não se coloca o problema de como voltar à natureza, ou seja, a
antes da indústria. Pergunta-se, isso sim, em que circunstâncias
a relação do homem com o ciclo de produção reduz o homem
ao sistema, e em que medida é necessário desenvolver uma nova
imagem do homem em relação ao sistema de condicionamentos;
um homem não libertado da máquina, mas livre em relação à
máquina”.
Os criativos optaram por produzir fora do sistema industrial, com a ajuda
de subvenções institucionais e, em numerosas ocasiões, optaram pelo método
de auto-produção como a melhor maneira para realizar os projetos mais pessoais e altamente arriscados. Esta posição pode ser um dos elementos mais
definidores que, tal como se mencionou acima, não podemos aglutinar numa
determinada escola ou movimento já que as intenções, as narrativas e os discursos são muito diferentes.
Este movimento foi batizado como Novo Cinema Galego pelos críticos
José Manuel Sande, Martin Pawley e Xurxo Gonzalez e funciona como etiqueta para classificar as obras de autores tão diversos e heterogéneos como
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Oliver Laxe, Eloy Enciso, Ángel Santos, Peque Varela, Lara Bacelo, Alberte
Pagán, Lois Patiño ou o próprio Xurxo González. Podemos observar que são
obras em que, por vezes, podem ser encontradas algumas semelhanças entre
alguns destes autores a níveis das narrativas empregadas e a níveis estilísticos,
mas não se pode afirmar que esta relação seja suficientemente forte e estável
de modo a ser possível agrupá-los por estas razões. Os elementos que podem
caracterizar este grupo de artistas é a sua posição face ao processo cinematográfico e a sua posição frente à produção industrial. No entanto, estamos
perante uma primeira geração de artistas que se aproximam da realidade com
total liberdade e com o seu compromisso estilístico como limite.
Para além disso, a formação destes autores é muito heteogénea e nalguns
casos é pouco ortodoxa, já que vêm de campos como as belas artes e escolas
de cinema ou de áreas tão diversas como a filologia ou a história. Por sua vez,
esta formação pouco heterodoxa faz com que este tipo de cinema seja muito
plural e diversificado, porque os referentes que empregam estes criadores e as
suas perspetivas são muito variadas.
Além desta formação multidisciplinar, outros fatores que definem este
grupo de cineastas são o processo de digitalização, o amadorismo e a autoprodução.
– Digitalização: A digitalização é um fator chave para o desenvolvimento
deste tipo de trabalho. Os processos de produção são muito mais baratos e
o acesso a novos meios e tecnologias democratizaram-se. Com a proliferação da tecnologia digital, cada criador pode desenvolver os próprios projetos
sem necessidade do apoio de um produtor. Consequência direta do apoio do
produtor é que, até há alguns anos a esta parte, para se conseguir realizar um
projecto pessoal era-se obrigado a passar durante vários anos por diferentes
fases ou etapas e a superar uma série de categorias rígidas estabelecidas no
mundo do cinema. Poderia mesmo afirmar-se que, até há alguns anos atrás,
a realização era uma carreira de fundo que apenas alcançavam aqueles que se
sujeitavam às obrigações e às normas da hierarquia cinematográfica.
A maior parte dos autores, com pequenas exceções, empregam a tecnologia digital pelos motivos já citados. Esta tendência que se tem tornado comum
na última década, foi profetizada por autores como Gene Youngblood que previu, há 25 anos atrás, as possibilidades de expansão do cinema experimental
graças às novas tecnologias. Tal como se divulgava na revista Millennium
(Gene Youngblood 1986:55) ‘O cinema pode-se praticar por três meios: o
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celulóide, o vídeo e o computador; do mesmo modo que a música se pode
praticar com diferentes instrumentos”.
Atualmente isto é uma realidade e em última análise poder realizar um
projeto será uma questão de necessidade pessoal, de querer dizer uma coisa
ou de querer contar algo, da necessidade de um criador em comunicar e do
seu talento para saber como fazê-lo, mais do que uma questão de limitações
tecnológicas ou de meios.
– Amadorismo: É uma consequência colateral deste processo de digitalização e democratização das novas tecnologias. Como se afirmou umas linhas
acima, neste momento o realizador não precisa de ter passado por toda uma
cadeia de gestão para gerenciar um projeto. Além disso, muitos desses novos realizadores vêm de campos exteriores à prática cinematográfica. Como
resultado de tudo isto, nalguns casos não há formação técnica ou prática do
processo audiovisual o que deriva no amadorismo, entendido este não como
um termo pejorativo ou sinal de baixa qualidade, mas como um termo que se
refere a um proceso de formação prévio antes de realizar um projeto. Achamos que neste ponto é interessante recordar as palavras de Flaherty (Cerdan
2007: 119): "Os grandes filmes estão verdadeiramente por fazer. Não serão
obras de grandes nomes, mas dos amadores, no sentido literal da palavra: Pessoas apaixonadas que empreendem as coisas sem desejo comercial, através de
obras portadoras de arte e de verdade".
– Auto-produção: Observámos anteriormente a falta de envolvimento da
indústria audiovisual para apoiar este tipo de produção marginal e de baixo,
para não dizer escasso, interese. Esta situação obriga os criadores a optar pela
auto-produção e a buscar subvenções e subsídios para poderem desenvolver
esses projetos.
Como assinala Oliver Laxe (Galiza Axencia Audiovisual: 2008):
“Quem sinta a necessidade de fazer filmes pode fazê-los. Dará
prioridade, fará todos os sacrifícios necessários para isso, para
que essa necessidade não se volte contra si. Se não os faz é porque
não precisa de os fazer. Não há volta a dar. Aceite-se como tal.
Não há desculpas para não fazer filmes, de qualquer tipo”.
Outra característica comum a todos estes criadores é a militância e a sobrevivência. Militância entendida como um processo de agarrar-se àquilo em
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que se acredita, não se submetendo a critérios comerciais, ficando numa posição distante da produção industrial, em rutura com as formas narrativas e com
a forma cinematográfica predominante. Em muitas ocasiões, estas formas são
entendidas como as concebia Tarkovsky (Tarkovsky, 2006:95): "As normas
vulgares do cinema comercial e as produções para a televisão corrompem o
público de maneira imperdoável, porque lhes roubam qualquer possibilidade
de contato com a arte".
Quanto à sobrevivência, na maioria das vezes, estes autores optaram por se
concentrar em criar um trabalho pessoal fora de qualquer interesse comercial.
Para alcançar este fim, na maioria das vezes, opta-se pelo auto-financiamento
e auto-gestão dos projetos, tornando-se, de acordo com a redefinição de Xurxo
González (2008:2) em “franco atiradores do audiovisual, sem apoio de qualquer tipo, levam até ao fim os seus projetos. Neste ponto, vale a pena ressalvar
o caso de que todos vós sois capitães de Oliver Laxe, através de um trabalho
financiado com 30.000 euros pela Axencia Audiovisual Galega que consegue chegar ao festival de Cannes no ano 2010 e ganhar o prémio FIPRESCI,
tornando-se um marco na breve história do audiovisual galego e consagrandose como referência para um grande número de artistas que optam pela independência e a liberdade para o desenvolvimento duma cinematografia pessoal”.
As condições de produção, embora não sejam as ideais, têm sido facilitadas pelo aparecimento e desenvolvimento das novas tecnologias e das novas formas de distribuição que têm surgido nos últimos anos e a que alguns
teóricos têm chamado democratização dos média. Esta revolução digital tem
levado a que as tecnologias utilizadas para fazer um projeto audiovisual se tornem financeiramente mais acessíveis e sejam cada vez mais fáceis de empregar. O vídeo foi um dos melhores aliados no surgimento de novos produtores
e na emergência de novas narrativas. Nos últimos anos temos visto trabalhos
feitos com um minidv simples e uma única pessoa com um nível muito elevado de qualidade tanto no script, conteúdo e estrutura narrativa como no seu
discurso formal. Um caso muito significativo disto, que gerou um paradigma
de produção e que, por sua vez se tornou numa referência para muitos criadores é o filme No Quarto da Vanda, de Pedro Costa, autor português destacado
pelos críticos franceses, mas ainda pouco conhecido em Espanha.
A redução de equipamentos de produção pode ser uma limitação real para
muitos artistas. No entanto, outros exploram essa situação para que surjam
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certas sinergias e dinâmicas de rodagem que só ocorrem quando as equipas
são muito pequenas.
Através da criação de pequenos grupos de trabalho as limitações técnicas
são inúmeras. As equipas devem ser ligeiras e simples porque, em muitos
casos, como foi observado, uma pessoa executa várias tarefas pelo que as
equipas geralmente são formadas por pessoas versáteis e multidisciplinares,
encontrando formas criativas de superar todas estas limitações.
O sistema de produção audiovisual industrial tem demonstrado, nos últimos anos, estar a passar por uma crise económica, não só por causa de revoluções tecnológicas e de variações no sistema de distribuição e marketing, mas
também por uma crise a nível criativo, facto que se torna evidente ao repetir, de modo incessante, enredos, personagens, ou, como na atualidade, com
a tendência para fazer remakes de antigos sucessos. Parece que este tipo de
proposta industrial não se pode aplicar aos filmes do Novo Cinema Galego já
que, em muitos casos, estes filmes, apesar de terem conseguido grandes sucessos em festivais nacionais e internacionais, não encontram um distribuidor
para garantir a sua presença nas salas comerciais.
No entanto, apesar dessas barreiras, na era do pós-cinema, a projeção ultrapassa os limites da sala de exibição cinematográfica e os museus tornam-se
num dos principais centros de exibição destas obras, relegadas assim para as
salas dos museus, bem como para circuitos ou ciclos alternativos devido à falta
de interesse dos canais comerciais para programar este tipo de produto audiovisual que só alcança um público que, atendendo aos números, poderíamos
definir como marginal.
Neste sentido, Antonio Weinrichter assinala o papel fundamental dos museus e da filmoteca (o museu de cinema ou cinemateca) que tradicionalmente,
no cumprimento das suas funções de conservação deste património e pela sua
postura de relutância perante o cinema espetáculo, hospedam este tipo de práticas audiovisuais, em virtude da sua condição de não-industriais e não comerciais. A televisão também não se interessa por este tipo de produção porque
ele simplesmente não se encaixa nas categorias e grelhas existentes para o
grande e pequeno ecrã, de modo que acabam sendo expulsas da instituição
cinematográfica após uma breve passagem por festivais muito seletivos. As
salas museísticas dos centros de arte mais importantes, tanto nacionais como
internacionais, têm sido fundamentais para reafirmar e reforçar este tipo de
produção audiovisual. A maioria dos centros de arte reconhecidos, contam
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não só com ciclos dedicados a estas novas produções audiovisuais como também cedem os seus espaços para projetar obras relegadas à marginalidade.
Além disso, estas novas correntes audiovisuais têm encontrado na rede
mais um aliado. Se até há pouco tempo era extremamente difícil o acesso a
determinados conteúdos, o desenvolvimento da Web 2.0 tem proporcionado
não só o acesso a esse material, mas também a criação e troca de experiências
entre agentes culturais e criadores. Existem muitas plataformas, que surgiram
nos últimos anos, em que tanto os cineastas aclamados como os realizadores
mais novos podem mostrar o seu trabalho. Um bom paradigma é o surgimento
de hamacaonline.net, um portal web dedicado à distribuição de videoarte e outras propostas de claro conteúdo audiovisual experimental. Tal como se define
na sua página na internet, a Hamaca é uma organização sem fins lucrativos, ao
serviço dos autores e usuários, que tem como objectivo permitir a divulgação
do trabalho e gerar um fluxo económico para a produção dos artistas. Na Galiza também se criou um espaço para a divulgação destes novos criadores, um
Flocos.tv, plataforma inaugurada pela extinta Axencia Audiovisual Galega e
que, alguns meses depois da sua criação, se tornou num ponto de encontro dos
criadores da Galiza através da rede, bem como num referente e num centro de
exibição dos seus trabalhos via online. No entanto, esta proposta, aplaudida
tanto pelos criadores como pelo público, foi retida pela cegueira da administração pública, que para além de cessar a atividade da Axencia Audiovisual
Galega também paralisou a atividade da Flocos.tv.
Um filme na fronteira dos géneros
A maioria dos artistas que estão agrupados sob o nome de Cinema Novo Galego trabalha numa área próxima do real, embora possamos encontrar algumas
exceções, como é o caso de Ángel Santos e da sua longa-metragem Dos FragmentoEva. Para além disso, este autor também tem experimentado a abordagem do real em peças com fantasmas. Apesar destas exceções, a maioria
das obras deste movimento exploram a ambiguidade ao posicionarem-se na
fronteira entre a realidade e a ficção, mesmo que seja em filmes de animação
como é o caso da realizadora Peque Varela.
No entanto, não é apropriado falar de cinema de ficção ou não-ficção como
dois modos totalmente independentes de representação já que o filme está
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constantemente a ultrapassar essa barreira para se apropiar das ferramentas
e elementos próprios do cinema de ficção e a colocá-los à disposição do relato cinematográfico. As reconstruções e ficcionalizações são os elementos de
união entre estas duas formas fílmicas, as quais para além de mostrarem ou
ilustrarem as ações, em numerosas ocasiões, têm sido utilizadas numa perspetiva criativa, que ajudou a construir novas narrativas e abriu novas relações
entre a ficção e o documentário. Um exemplo dos usos criativos da ficção
podem ser encontrados em filmes como 24 City, do realizador Jian Zhang ke,
onde os testemunhos dos trabalhadores da fábrica de Chengdu são misturados com a aparição da atriz Joan Chen, mostrando através das suas palavras
o testemunho real dos outros trabalhadores ou ainda no filme Jogo de Cena,
de Eduardo Coutinho, em que os acontecimentos são narrados alternadamente
por atrizes e por mulheres que realmente viveram as experiência de sexualidade relatadas.
O documentário, por sua vez, também oferece novas fórmulas do cinema
de ficção. Basta analizar o palmarés dos festivais de cinema mais importantes a nível internacional e o impacto que têm alcançado nos últimos anos, já
que eles pertencem a este género ou com ele estão fortemente relacionados.
Tal como acontece em filmes como Gomorra, The Class por Laurent Cantet
ou Aquele Querido Mês de Agosto de Miguel Gomes, ficções que têm recebido importantes prémios em festivais como Cannes ou Bafici. São obras que
devem muito ao documentário, “ficções documentais” que respondem a uma
tradição de grande alcance de influência do cinema direto e da busca de uma
aparente improvisação em relatos de ficção. Cyril Neyrat no seu artigo Sin
etiquetas, publicado nos Cahiers du Cinema Espanha, disse: “A abertura da
fronteira entre a ficção e o documentário, a obsolescência destas etiquetas,
constitui hoje o signo e a razão principal de todo um setor do cinema” (Neyrat 2008:45) ou, como apontou Jacques Rancière, nestes momentos afirma-se
uma arte revitalizada, fruto de “um novo modo de articulação entre o regime
estético e o regime poético, entre um registro do mundo sensível e o encadeamento das histórias” (Rancière 2002:12).
Além das sinergias que existem entre o documentário e a ficção, nos últimos anos assistimos como testemunhas a um aumento na produção de outras
formas como o fake, o filme-ensaio, o filme de apropriação ou found footage,
etc. Embora estas formas de documentário, em muitos casos, não respondam ao paradigma de documentário clássico, por causa disto, muitos autores,
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quando se referem a estas práticas audiovisuais resultantes da hibridização
e dos cruzamentos, preferem incluí-las sob a denominação de documentário
de criação, cinema não reconciliado, cinema de não-ficção ou mutações, tal
como Jonathan Rosenbaum as definiu. A legitimidade da distinção entre o
cinema de ficção, o cinema do real e o cinema experimental é uma fonte de
controvérsia que tem perseguido a teoria do cinema ao longo da sua história,
com especial intensidade depois da era pós-moderna. Como Raymond Williams assinala, talvez o ponto fundamental do debate não seja o de saber se a
representação é real ou não, mas se há fundamento suficiente para examinar a
relação entre um filme e o seu contexto.
"Nas histórias do cinema e em catálogos o documentário tende a ser agrupado com o cinema experimental, ambos exilados para a terra incógnita da
não-ficção. Nesse gueto tenderam para se misturar e para criar estranhos hibridismos"(Weinrichter 1998:109). A relação entre o cinema experimental
apoiado em materiais reais e algumas fórmulas do cinema de não-ficção é
muito clara, de acordo com a definição de audiovisual proposta por Antonio
Weinrichter, sendo estas práticas audiovisuais afastadas do documentário clássico. Todas estas relações fazem com que apareçam novos conceitos, como
o cinema sinestético, que Gene Youngblood definiu como aquela obra que
“não é ficção, porque, fora um pequeno número de exceções, é inteiramente
baseada numa realidade sem estilização. Não encontra correspondência com
o documentário porque a realidade não está organizada para se explicar a si
mesma e não é cinema-verité porque o artista manipula a realidade sem estilizar, sem que daí resulte um estilo pessoal” (Gene Youngblood 2003:173)
Outro termo surgido em torno destes híbridos é o de cinema expandido,
um termo cunhado em 1970 pelo mesmo autor e que agora é mais que uma
realidade. Este conceito, que pretende subverter a ideia de cinematografia tradicional, reivindica a multiplicação de ecrãs de exibição, o uso da luz como
agente estético, a abolição das fronteiras entre as formas de arte, a estimulação
da corporalidade dos espectadores e o livre jogo das técnicas cinematográficas.
Nesta área de renovação constante, tanto teórica como prática, em que
se questionam constantemente as linguagens narrativas, emerge o estudo do
documentário como uma visão pessoal, própria, dando importância à subjetividade, ao processo de criação e à visão pessoal da realidade ou, como afirma
José Luis Guerín, ao documentário que "não só documenta o mundo exte-
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rior, mas também o mundo interior do cineasta, do artista, do poeta"(Cerdan
2007:118). Por outro lado, penso que o uso deste conceito resulta interessante quando aplicado a estas novas visões que emergem no documentário,
como um termo que engloba numerosas práticas audiovisuais desenvolvidas
no campo da não-ficção. “(Não me interessa) aquilo que é convencionalmente
entendido como documentário, uma monoforma que institucionalizou o poder
audiovisual, a televisão. Estou mais interessado quando o documentário fala
com o ficcional e o imaginativo. Mas também quando ele reconhece os seus
próprios limites para apreender a realidade. E acima de tudo, interessam-me
aqueles cineastas que propuseram formas de enfrentar a realidade e de contála” (Cerdan 2007:35).
“Aquilo que é convencionalmente entendido como documentário, uma
monoforma que institucionalizou o poder audiovisual, a televisão. Estou mais
interessado quando o documentário fala com o ficcional e o imaginativo. Também, quando ele reconhece seus próprios limites para apreender a realidade.
E acima de tudo, aqueles cineastas que propuseram formas de enfrentar a realidade e de conta-la” (Cerdan 2007:35).
Mercedes Alvarez, realizadora de El Cielo Gira, toma posição pela defesa clara da visão pessoal do documentário, como um olhar subjetivo, e não
pela simples narração dos factos de forma objectiva, ao mesmo tempo que
defende o interesse nas formas que estão na fronteira entre cinema de ficção e
documentário.
Margarida Ledo, professora catedrática da Universidade de Santiago de
Compostela, autora de documentários como Santa Liberdade, disse numa entrevista conduzida por José Luis Castro de Paz e José Manuel Sande (2007:285)
que o seu interesse sobre o documentário se concentra em torno duma forma
imperfeita, mas que, por sua vez, é muito assumida. A autora está consciente
de que este tipo de cinema surge numa etapa post-cinematográfica e assume o
papel do documentário para transformar os modos de representação cinematográfica.
Um Cinema Periférico e de Fronteiras
Quando falamos da periferia, referimo-nos ao modo como vem definido no
dicionário de María Moliner, como a área mais próxima do exterior de um
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determinado espaço. Obviamente, ao assumir esta posição aceitamos a existência de um centro. Os fatores geográficos industriais e económicos podem
ser identificados com a capital do Estado: Madrid, o centro nevrálgico da indústria audiovisual espanhola, em que se concentra a maioria das empresas,
tanto produtoras, como as televisões, distribuidores, etc. e onde se realizam o
maior número de produções de caráter industrial.
Podemos identificar a periferia como uma forma de compreensão do audiovisual e articulação dos diversos agentes que a compõem. Esta visão está
perto de uma atividade industrial que tem como finalidade única o lucro e é
separada de qualquer exercício estético ou artístico. Periferia também pode
ser entendida tendo em atenção os modelos narrativos e os universos cinematográficos. Como afirmam Miguel Fernandez Mallol Labayen e Maria Gonzalez, dois agentes e programadores culturais, no seu texto Existimos, luego
periféricas, escrito para a Amostra de Cinema S-8 que se vem celebrando nos
últimos anos na cidade de Corunha "É neste ambiente que queremos reivindicar o carácter híbrido, complexo, variável e plural de "a periferia". Periferias
que no terreiro audiovisual estão ligadas a contextos de produção anormal
(geralmente unipessoais e auto-financiados), a modos de representação marginais, no seu sentido contra-hegemónico. Mas também, e não menos importante, a circuitos de exibição paralelos capazes de gerar um tecido comunitário
excêntrico no seu sentido radical e primogénio"e é nesta conceção do cinematográfico que podemos localizar o Novo Cinema Galego.
Apesar do seu caráter periférico, este movimento cinematográfico, na busca
das suas referências, não tende a seguir os modelos estabelecidos pelo centro,
nem os seus referentes se encontram nas produções criadas neste espaço ou
sobre a tradição local; será na própria periferia que muitos dos seus autores e
artistas se procuram identificar com os modelos e as preocupações criativas a
nível internacional. Isto fica a dever-se em grande parte ao desenvolvimento
da rede e ao surgimento da banda larga que facilita o acesso e a partilha de
conteúdos criados em lugares longe da nossa terra, buscando novos modelos
de criação e novas perspetivas sobre a realidade. Este desenvolvimento das
novas tecnologias da comunicação incentivou o cultivo de uma nova cinefilia.
Agora é muito fácil aceder a cinematografias diferentes da nossa realidade
cultural que, seguindo um modelo de negócio, nunca poderiam encontrar um
lugar no complexo sistema de distribuição e exibição espanhol.
Curiosamente, é um processo global de todas as cinematografias o feito
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de redescobrir modelos e referências que constituem um verdadeiro passo em
frente na evolução do cinema. Essa porta aberta para o futuro do cinema
vislumbra-se na conceção moderna da disciplina. Estes padrões podem ser
facilmente localizados no tempo, no período da década dos 60 e 70, coincidindo com o surgimento da chamada modernidade. Neste sentido, os paradigmas referenciais desta nova forma de fazer e de compreender o cinema são
facilmente identificáveis, já que se têm estabelecido como um ponto de viragem na conceção do facto cinematográfico, principalmente na curiosidade
e independência das suas pesquisas e descobertas. Os modelos mais recorrentes podem ser classificados em três grupos: os que oferecem uma ficção
menos reconciliada (Jean Marie Straub e Daniele Huilliet, Jean-Luc Godard,
Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni, Eric Rohmer, Jean Eustache,
Andrei Tarkovsky); os que criam uma versão do documentário que tende mais
para o ensaio (Jean Rouch, Chris Marker, Agnes Varda, Artavatd Pelachian,
Chantal Akerman, Johan van der Keuken, Fredric Wisseman); ou um experimentalismo mais radical (Jonas Mekas, Andy Warhol, Michael Snow, Hollys
Frampton).
O cinema contemporâneo, consistente com esta tradição moderna, tornase numa outra referência para este tipo de cinema; a propósito de realizadores como Bela Tarr, Pedro Costa, Albert Serra, Alonso Lisandro, Bing Wan,
Zhangke Jian podemos afirmar que são autênticos faróis que apontam o caminho na hora de conceber o relato cinematográfico.
Dentro dessa busca de referências e olhares para a produção que ocorre
na periferia, em muitos casos, os autores da Galiza buscaram novos modelos
na filmografia Lusa. Isto fica a dever-se a várias razões. Claramente, a vizinhança ou a proximidade geográfica é um fator determinante, assim como
partilhar os mesmos sinais de identidade e cultura, como a língua, que facilita
a compreensão dos filmes. Um exemplo claro encontramo-lo na apresentação do filme Aquele Querido Mês de Agosto, na cinemateca galega, o CGAI,
pelo realizador do filme, numa altura em que crítico Martin Pawley apontava
a identificação dos galegos e a compreensão das ações do filme porque elas
também fazem parte da nossa cultura e do nosso modo de vida, como são
os incêndios no verão, as festas animadas por conjuntos musicais ou mesmo
o fenómeno da emigração para a Suíça, Alemanha ou França, que ambos os
países vivemos nos anos setenta e oitenta, e que marcaram o desenvolvimento
de ambas as sociedades. Esta influência é conseguida através da apresentação
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de filmes portugueses na Galiza, mas também através da assistência e participação por boa parte dos agentes dinamizadores do Novo Cinema Galego em
diferentes encontros e festivais que se realizam em Portugal nos últimos anos.
Eventos como o IndieLisboa ou o Festival Internacional de Vila do Conde
convertem-se em autênticos pontos de encontro e de intercâmbio de cineastas,
produtores, críticos e público em geral. Por outro lado, de um ponto de vista
económico e industrial, estamos perante dois sistemas muito semelhantes.
Pelo lado económico e do desenvolvimento trata-se de duas realidades
muito semelhantes. Existem entre nós mais pontos de união do que de rutura ou dissensão. Por outro lado, muitos dos agentes participantes desta nova
onda de criação recorrem com frequência a Portugal em busca de modelos.
Entre os autores portugueses são referências claras e incontornáveis Manoel
de Oliveira, João César Monteiro, António Reis e Margarida Cordeiro bem
como os autores mais recentes desta vaga do cinema português e também já
consagrados como Pedro Costa, Miguel Gomes, Sandro Aguilar, Edgar Pêra
ou João Trabulo e outros jovens realizadores portugueses que estão começando as suas filmografias com características idênticas às dos cineastas do
Novo Cinema Galego. Entre eles destacamos Gonçalo Tocha e João Nicolau.
Enquanto estas relações e influências são mais ou menos palpáveis, falta
dar um pequeno salto e começar a fortalecer os laços no processo de cooperação entre as indústrias audiovisuais portuguesas e galegas. As relações nos
últimos anos têm sido aumentadas através de reuniões informais e do reconhecimento pelas duas partes da existência dos outros e das suas obras, mas ainda
não existe nenhum projeto feito em co-produção entre empresas similares.
Esperamos que, nos próximos anos, os vários organismos responsáveis pela
promoção do estabelecimento de novas formas de cooperação, proporcionem
facilidades para este relacionamento que, se neste momento ainda pode ser
definido como informal, se torne um dia profissional de modo a que possamos
ver uma co-produção Galego-Portuguesa, como temos visto fazer com outros
países, ademais de que cremos que este é um caminho natural para expandir e
dar a conhecer as duas realidades.
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Conclusões
A transformação da paisagem audiovisual, com a introdução de novas tecnologias, tem levado ao surgimento de novas rotinas de trabalho e ao surgimento
de novos modelos de produção que promovem a criação pessoal e independente. Neste momento, embora possa parecer repetitivo dize-lo, só é preciso
um computador e uma câmara para fazer um filme. Fruto desta revolução digital e do novo modo de ver o cinema, tem aparecido uma série de cinemas
periféricos, que se afastam de qualquer sistema industrial e que, para além de
romper em numerosas ocasiões com os cânones narrativos, desenvolvem uma
nova forma de entender a estrutura audiovisual.
Em Espanha, um dos movimentos mais interessantes está a ocorrer na Galiza com o surgimento do chamado Novo Cinema Galego, apoiado por uma
série de políticas públicas que têm colocado o nome desta pequena região
no cenário internacional. Olhando para modelos similares, o Novo Cinema
Galego voltou-se para outros cinemas periféricos, como o cinema português.
Claramente como avant-garde, este movimento começou a dar os primeiros
passos muito recentemente. No entanto, podemos dizer que as energias presentes são tão grandes que esperamos que venha a ser confirmado como o
autêntico cinema galego, já que dá a ver, de forma própria e sem recorrer a
modelos predefinidos, um olhar sobre a Galiza e desde a Galiza.
Defendemos a co-produção galaico-portuguesa que, tal como vimos afirmando, é uma forma natural de expandir a actividade cinematográfica já que
não estamos apenas perante uma mesma realidade cultural mas também perante a convergência de um mesmo olhar e de uma mesma maneira de conceber o cinema.
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