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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - CCM Entre o clássico e o contemporâneo: Estrutura narrativa no cinema dos irmãos Coen JOÃO PEDRO BASTOS TORRERO DIAZ Matrícula: 1010318 Habilitação: Cinema Professora Orientadora: Andréa França Rio de Janeiro, Junho de 2014. 1 Sumário Resumo ..................................................................................................................... 1 Capítulo 1 – Introdução.............................................................................................. 2 Capítulo 2 – Referencial Teórico................................................................................. 5 Cap. 3 – Estudo de caso: Barton Fink ........................................................................ 11 Capítulo 4 – Estudo de caso: Onde os fracos não têm vez ......................................... 27 Capítulo 5 – Conclusões ........................................................................................... 35 Bibliografia: ............................................................................................................. 37 2 Resumo Este trabalho pretende analisar como os roteiros dos filmes dos irmãos Coen se relacionam ou rompem com diferentes tradições do roteiro cinematográfico. Seja partindo do Cinema Narrativo clássico, marcado pela tradição arquetípica da "jornada do herói" e pela estrutura dramática em três atos; seja pela tradição de ruptura instaurada pelo chamado Cinema Moderno, marcada por tramas mais metafóricas, ambíguas, simbólicas, existenciais e sem causalidade necessária. Buscarei demonstrar como os irmãos Coen tendem a misturar e ao mesmo tempo subverter essas diversas tradições, numa operação de colagem e fragmentação pós-moderna que cria filmes “sistemas”, filmes tão centrados em sua própria artificialidade que enunciam, de forma alegórica e abstrata, discursos sobre o mundo. 1 Capítulo 1 – Introdução “Eu não poderia jurar cada detalhe, mas... Certamente, é 1 verdade que é uma história” Xerife Tom Bell Este trabalho pretende investigar como os paradigmas clássicos e não-clássicos da teoria do roteiro podem ajudar a compreender a filmografia dos diretores Joel e Ethan Coen. A interpretação será guiada por conceitos previamente elaborados da teoria do roteiro, usados para a definição de linhas estruturais gerais e arquétipos característicos da narratividade clássica, assim como das rupturas promovidas por movimentos modernos e contemporâneos, e da forma com que essas formatações interagiram na formação de novos paradigmas, por um lado, e de rupturas particulares e pontuais, por outro. Até que ponto é possível delinear claramente a "jornada do herói" nos filmes dos Coen? De que forma elementos estruturantes da narrativa ou detalhes determinam um arco narrativo tradicional? Que elementos do paradigma clássico de estruturas de roteiro estão presentes, segundo os termos de Field (2001), Vogler (2011) e Mendes (2009)? Que elementos de genealogia transgressora, com herança do cinema moderno, estão presentes, segundo as interpretações de Mendes, Bordwell (1985) e Campos (2009)? O objetivo principal deste trabalho é analisar como se manifestam as fronteiras e a mistura incerta entre o tradicional e o moderno no cinema dos irmãos Coen. Pretendo aprofundar meu estudo, portanto, sobre a forma como esses cineastas constroem seus filmes, com foco sobre a narrativa, a dramaturgia e a mise-en-scène. Buscarei observar como se dão essas relações dinâmicas de acolhimento e conflito, de continuidade e ruptura profundas entre o cinema dos irmãos Coen e diferentes tradições de estruturas narrativas. Joel e Ethan Coen são alguns dos mais prestigiosos diretores de cinema contemporâneos. Nascidos no estado norte-americano do Minnesota na década de 1950, de família judaica, os irmãos começaram sua carreira com o filme independente Gosto de sangue (1984), que teve grande repercussão no circuito indie estadunidense. A partir “I couldn't swear to ever detail but... it's certainly true that it is a story.” Tradução minha. (COEN, 2005: 99) 1 2 de então, os irmãos passaram a ter investimento financeiro para a produção de todos os seus filmes, num movimento de aproximação crescente com o modo de produção dos grandes estúdios majors. O filme Barton Fink (1991) impressionou ao lhes render a Palma de Ouro no Festival de Cannes e atraiu de vez os olhos do mundo para os irmãos. O prêmio em Cannes, entretanto, não significou a entrada ou o investimento numa carreira mais tipicamente "alternativa" por parte dos irmãos. A aproximação com Hollywood só aumentou nos anos seguintes, e atingiu um auge simbólico de forma paradigmática com o filme Onde os fracos não têm vez (2007), que arrebatou quatro Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Direção. A aliança com a indústria hollywoodiana não parece ter diminuído a qualidade de seus trabalhos, ao contrário; ao longo da carreira, os irmãos Coen têm acumulado cada vez mais prestígio e renome como alguns dos diretores mais criativos, talentosos e inovadores dos dias atuais. Seus filmes são conhecidos pelo forte senso de ironia presente nos diálogos e na própria estrutura narrativa. Personagens caricatos e verborrágicos envolvem-se em tramas complexas e recheadas de humor negro, marcadas por temáticas de criminalidade e violência. Não é possível, entretanto, delimitar características e elementos temáticos que se repitam em todos os seus filmes. Primeiramente, trata-se de autores contemporâneos e vivos, que não possuem um conjunto de obra cinematográfica encerrado; além disso, é comum que em diferentes filmes seu estilo se reinvente radicalmente, provocando seus espectadores e desafiando-os a tecer certezas sobre seu estilo. No limite, seria possível mesmo considerar que se trata de um esforço consciente e tipicamente pós-moderno de desafiar concepções canônicas de autoria no cinema. Nesse sentido, a metodologia do trabalho não partirá de formulações teóricas generalizantes sobre a obra dos irmãos Coen como um todo, mas sim da análise de conteúdo qualitativa sobre casos individuais de roteiros e da estrutura narrativa dos seus filmes. Pretendo entrar em contato com os roteiros em sua forma de tratamento textual, mas me debruçar, também, na análise da narrativa do próprio material fílmico. Essa última opção me parece também interessante pela articulação complexa que se dá entre o roteiro e os elementos audiovisuais que se desenvolvem apenas durante a etapa de produção e pós-produção do filme, como mise-en-scène, cenografia, fotografia e efeitos sonoros. Procurarei debruçar-me sobre dois de seus filmes para analisar como e até que ponto a estrutura narrativa e a construção de personagens se relacionam ou rompem 3 com as diferentes tradições do roteiro, da narratividade cinematográfica. Terei em mente categorias de análise como: perceber se a narrativa segue ou não os padrões arquetípicos da jornada do herói; analisar o papel da ironia e do acaso na trama; analisar o papel de cenas de estrutura não-linear e não-causal, oníricos; se o arco narrativo de um personagem implica uma transformação, e qual o teor dessa transformação; como a mise-en-scène cria sentidos narrativos e mesmo filosóficos que complexificam os significados possíveis. Os filmes a serem analisados serão, justamente, Barton Fink e Onde os fracos não têm vez, não somente pelos marcos que foram em suas carreiras, mas principalmente pela natureza e pela riqueza que a leitura e o aprofundamento sobre suas estruturas narrativas poderá propiciar. Trata-se de filmes extremamente autoconscientes de suas possibilidades e limitações, daí a serem, até certo ponto, mais uma obra que enfatiza o próprio discurso e a metalinguagem, que a diegese narrativa propriamente dita. O caminho do trabalho será a apresentação dos conceitos teóricos mais amplos que funcionarão como referencial para a pesquisa. Ao longo dos capítulos de estudos de caso, entretanto, recuperarei alguns desses conceitos e aprofundarei conforme a necessidade teórica de cada filme, ou, eventualmente, cada sequência ou cena. Por fim, concluirei, procurando sintetizar as contribuições estéticas e filosóficas das operações narrativas realizadas em cada filme, e o quanto de original, ou de “contemporâneo”, seria possível perceber nessas operações. 4 Capítulo 2 – Referencial Teórico Tendo como objeto a estrutura narrativa no cinema dos irmãos Coen, buscarei perceber como seus filmes estruturam-se em diálogo com diferentes tradições que lhes são anteriores. O escopo de interesse de influências e diálogos da obra desses cineastas contemporâneos se estende desde os padrões herdados do cinema "clássico", passando pelas rupturas estéticas instituídas pelo cinema "moderno", chegando até as interessantes operações pós-modernas de ruptura e desconstrução de ambas essas tradições. O chamado cinema narrativo clássico é o modelo narrativo dominante nesse meio audiovisual, a grosso modo, desde sua criação e consolidação nas primeiras décadas do século XX. Ismail Xavier (2005) atenta para a tradição realista na qual esse cinema se insere, não só pela construção formal da sua visualidade que se consolidou no sentido de crescente linearização e impressão de continuidade espaço-temporal, mas também na forma como esse encadeamento de fragmentos visuais se estruturou ao redor de modelos narrativos realistas, burgueses, melodramáticos. Buscava-se criar uma impressão ou ilusão de realidade na tela, de modo que os artifícios cinematográficos se tornassem invisíveis, imperceptíveis para o público, que seria emocionalmente carregado pelo teor melodramático, do drama do indivíduo sobredeterminado por forças externas, inserido em um mundo conflituoso do bem contra o mal. Esse tipo de cinema gerou uma forma de estruturação narrativa específica que pode ser considerada "clássica", por ser ela conscientemente reutilizada e reiterada pela maior parte dos realizadores cinematográficos. Essa matriz narrativa é a base sobre a qual surgiram grandes cânones da teoria do roteiro, seja o estudo de Christopher Vogler (2011), que realiza o esforço de união da teoria estruturalista de Joseph Campbell sobre O herói de mil faces (2004) e o monomito com os arquétipos de Jung na definição da "jornada do herói"; seja no manual extremamente direto e pragmático de roteiro de Syd Field (2004), ambos baseados em estruturas narrativas pré-concebidas. Vogler define a jornada do herói como um guia prático para a confecção de personagens, criados a partir dos arquétipos jungianos e dos tipos encontrados pelos estudiosos dos mitos e do folclore (como o "herói", o "mentor", o "antagonista", o "camaleão", o "guardião", entre outros); e de uma história, a partir de uma estrutura narrativa pré-concebida que se baseia em estágios míticos supostamente universais, a-históricos. Resumidamente, esses estágios consistem na jornada do herói desde sua saída do "mundo normal", a partir do 5 "chamado à aventura", da "travessia do limiar" que o leva ao "mundo especial", onde enfrentará "testes, aliados e inimigos" para, finalmente, regressar ao "mundo normal" transformado e portando o "elixir". Field, por sua vez, detém-se mais sobre regras mais diretas e específicas para a produção de roteiros cinematográficos profissionalizados, como sua insistência sobre a noção de ação como núcleo motor da trama e como representação externalizante das motivações internas dos personagens. A estrutura narrativa clássica que este autor apresenta e defende está pautada por um "paradigma do roteiro", marcado pela divisão em três atos: Ato 1 - apresentação / Ato 2 - confrontação/ Ato 3 - resolução. A passagem do primeiro para o segundo e do segundo para o terceiro são marcadas por dois "pontos de virada", incidentes ou eventos narrativos que se ancoram na linha principal de ação e revertem seu sentido, movendo, assim, a história adiante (FIELD, 2001: 97). João Maria Mendes analisa de maneira aprofundada os fundamentos filosóficos e estéticos dessas Culturas narrativas dominantes (2009), representadas, no caso do cinema, pelo modelo narrativo clássico, predominantemente hollywoodiano. O autor mostra como esses sucessivos paradigmas elaborados acerca da forma mais adequada e correta de se escrever um roteiro ou, consequentemente, da estrutura narrativa dos filmes clássicos, estão pautados pela mescla da teoria antropológica sobre os rituais, de Van Gennep, o monomito de Campbell e Levi-Strauss, e os arquétipos de Jung, tudo isso inserido numa herança de tradição tardo-aristotélica. Essa estruturação narrativa conteria nela mesma todos os elementos necessários para seu encerramento, representando a jornada mítica do herói, sempre pautada por um sentido encerrado, uma transformação (positiva ou negativa) da situação de vida e do caráter, da psicologia do personagem. Esse mesmo autor tratará, em seguida, do impacto que teve o chamado "cinema moderno" na crise e reconfiguração do paradigma clássico cinematográfico. Entre o final da década de 1950 e o final da década de 1970, o cinema clássico teve suas estruturas de sustentação seriamente abaladas por propostas diversas de desconstrução narrativa e formal que se impuseram por meio de movimentos estéticos diversos. Vale ressaltar algumas características elencadas que seriam características do cinema moderno: a primazia do personagem sobre a trama; a representação estética e narrativa de diferentes estados mentais, como o sonho; autoconsciência, referenciação e intertextualidade; buracos nas motivações dos personagens, em crise existencial num 6 mundo desprovido de sentido prévio e incapazes de diálogo; perda da cadeia de causa e efeito na trama, acompanhada do acaso; uso de imagens simbólicas; manipulação e subversão da ordem espaço-temporal; e crescente ambiguidade na interpretação dos sentidos da trama, uma narrativa aberta (MENDES, 2009: 88 - 89). A jornada do herói se localiza, agora, internamente, na vida mental. Longe de problemas extraordinários e externos, seus protagonistas seriam pessoas livres de preocupações primárias, como a necessidade de trabalho ou dinheiro, e estariam profundamente abalados por crises psíquicas. Mendes enfatiza como o cinema mainstream contemporâneo, a partir dos anos 1980, seria capaz de reverter a crise pela qual passara o cinema clássico, após essa ruptura profunda promovida pelo cinema moderno, através da incorporação gradual desses elementos em sua estrutura, atualizando-a e recriando-a sob novos paradigmas formais que, paradoxalmente, reforçam a estrutura narrativa clássica. David Bordwell, por sua vez, desenvolve uma tipologia de modos de narratividade, numa definição conceitual que busca evitar clichês de análises excessivamente estéticas. O autor considera as características formais de syuzhet2 e estilo, mas leva em conta, também, o papel do espectador na dinâmica de existência social, material, artística e teórica do filme enquanto objeto de análise. As expectativas e respostas sociais e psicológicas desses espectadores quanto a elementos externos, como gênero, e ao filme específico em si; a experiência espectatorial (enquanto evento e enquanto meio); e as expectativas sobre o público por parte dos realizadores de cinema constituem fatores determinantes para a definição a que tipo de modo de narratividade cada filme pertenceria. O autor define quatro modos de narratividade: a narração clássica, a narração do cinema de arte, a narração materialista-histórica, e a narração paramétrica. A narração clássica e a do cinema de arte acompanham, grosso modo, a divisão tradicional entre cinema clássico e cinema moderno, como definida e estudada também em Mendes. A narração materialista-histórica seria formada por um conjunto de filmes soviéticos da vanguarda construtivista dos anos 1920, que seriam suficientemente originais e específicos em suas estruturas de narração para a definição de um novo modo narrativo. A narração clássica procura, acima de tudo, esconder seus princípios propriamente narrativos, estratégias e demandas de syuzhet, sob elementos formais harmoniosos e que gerem uma noção de continuidade e estruturação causal, espacial e temporal. Já a 2 Tipo de fábula russa usada como arquétipo de narratividade, herança conceitual do Formalismo russo. 7 narração do cinema de arte e a materialista-histórica acabam conferindo importância ao estilo por sua diferença do modo clássico, mas ele ainda serve às demandas da syuzhet, que são, por sua vez, de natureza diferente (como realismo, subjetividade ou comentário autoral, para o cinema de arte; ou a crescente consciência da construção de uma narratividade e um discurso retórico, para o cinema materialista-histórico) (BORDWELL, 1985: 275). A chamada narração paramétrica, por fim, seria constituída por filmes em que o estilo, a construção formal e estética do filme são primordiais à narratividade em si, as opções formais seguem um caminho diferente das exigências e padrões da syuzhet. Este último modo estaria menos delimitado temporal ou espacialmente, sendo mais caracterizado por filmes específicos, casos pontuais ao longo da história do cinema. Em termos mais específicos e práticos da teoria do roteiro, é interessante mencionar o manual de Flávio de Campos como uma tentativa de conciliação dessas tradições diversas em uma mesma lógica organizadora sobre o ofício do roteirista. O autor define uma tipologia de roteiro, ou mesmo de variações internas de um mesmo roteiro, conforme o tipo de ação e ponto de vista que se assume. O roteiro dramático é semelhante à estrutura narrativa clássica já apresentada, focado em jogos de ações entre personagens que movem a história adiante, a partir do ponto de vista de um personagem inserido nessa trama. O roteiro épico estaria centrado em eventos não extraordinários, cotidianos, dados em um fluxo de tempo, não causal; tem uma estruturação mais descritiva que dramática, pautada por ações, e seu ponto de vista pode ser interno, mas aceita mais frequentemente a presença do narrador externo. E o roteiro lírico, por fim, tem como centro o próprio ponto de vista do personagem como foco de seu narrador; de maneira muito semelhante às características elencadas sobre o cinema moderno, esse tipo de roteiro favorece a ambiguidade, a metáfora e o mergulho na realidade subjetiva dos personagens. O cinema contemporâneo norte-americano apresenta uma aparente separação entre “filmes de estúdio” e “filmes independentes”, como mostram Ferraraz, Piedade e Suppia (2008). O cinema independente estaria marcado pela forma alternativa de financiamento e distribuição, filmes de baixo orçamento que contariam, além disso, com “plena” liberdade artística na produção, diferente do modelo economicista dos grandes estúdios, voltados para os blockbusters milionários. Os autores mostram como, desde a década de 1960, instaurou-se uma tradição de cineastas esteticamente transgressores, 8 influenciados pelo cinema moderno europeu e conhecidos como a Nova Hollywood. Os anos 1970 e 1980, se caminhariam rumo a uma redução do nível de transgressão estética, por outro lado, ajudariam a estabelecer uma “rotina” no movimento artístico de surgimento de cineastas independentes, como fica evidenciado na criação do Festival de Sundance em 1985, desde então um pólo de aglomeração e revelação de cineastas independentes. O primeiro filme dos irmãos Coen, Gosto de sangue (Blood simple, 1984), venceu a primeira edição do Sundance. "Se, no início, o cinema independente surge como antítese, oposição ou mesmo resposta a Hollywood, as fronteiras entre ambos, atualmente, parecem bem mais difusas" (FERRARAZ, PIEDADE e SUPPIA, 2008: 250). O sistema de estúdios foi capaz de cooptar inúmeros diretores oriundos do circuito independente, e os próprios festivais alternativos nos Estados Unidos são encarados como fonte de novos talentos ou laboratório de ideias. Como mostra Alfredo Manevy (2008), essa é uma estratégia própria de renovação e oxigenação do "gênio do sistema". Esses autores situam os irmãos Coen como oriundos dessa chamada "geração Sundance", de cineastas indies dos anos 80, da qual também fazem parte Sam Raimi, Barry Sonnenfeld, Steven Soderbergh e Quentin Tarantino, mas que realizaram um movimento progressivo de aproximação com os grandes estúdios, sem que isso tenha necessariamente significado uma perda de "independência" artística. Inserido em meio a tradições cinematográficas tão complexas e diferenciadas, acredito que o cinema dos irmãos Coen apresente, com frequência, uma noção extremamente consciente dessas discussões estéticas e que as aplique frequentemente de forma irônica e desconstrutiva. Na coletânea organizada por Mark Conard (2009), diversos autores3 enfatizam as referências múltiplas que esses cineastas apresentam de maneira explícita em seus filmes: desde filmes de gênero da era clássica hollywoodiana, como faroestes, filmes de luta, screwball comedies e filmes noir, passando pelo cinema moderno "tradicional" de Godard, Fellini, Bergman e Polanski, até os cineastas independentes que renovaram o cenário do cinema americano a partir dos anos 1970, como Robert Altman, Martin Scorsese e Steven Spielberg, num movimento que culminou na "geração Sundance", dos anos 1980, da qual os próprios Joel e Ethan Coen são parte. Os autores parecem concordar que esses cineastas realizariam uma 3 Cf. COUGHLIN, Paul. The past is now - Histpry and The Hudsucker Proxy; CONARD, Mark T. Heidegger and the problem of interpretation in Barton Fink; ABRAMS, Jerold J. "A homespun murder story": Film noir and the problem of modernity in Fargo; entre outros. In: CONARD (2009). 9 apropriação pós-moderna dessas influências, unindo-as de forma fragmentada, mas consciente e propositalmente irônica, numa mistura que ao mesmo tempo acolhe e rompe com esses grandes mestres e paradigmas. Erica Rowell (2007), em seu ensaio analítico profundo sobre os primeiros filmes dos irmãos Coen, mostra como eles se apropriam de grandes heranças dos mais diversos modelos narrativos. Desde personagens tipificados do cinema de gênero da Hollywood dos anos 1930, até a própria subjetividade e ambiguidade do cinema moderno, esses filmes estão sempre engendrados de uma forma que seus próprios paradigmas estruturantes narrativos originais sejam postos à prova, desde o cerceamento de sentidos da clássica jornada do herói, até mesmo a uma provocação sobre a própria "obrigatoriedade de sentidos" contidos nas supostas metáforas implantadas nos inúmeros elementos simbólicos de um "filme de arte". A autora sugere que a construção narrativa dos filmes dos Coen parece questionar por que tudo neste filme deveria conter um sentido, ainda que ambíguo, filosófico ou metafórico? Ao longo desta monografia, procurarei aplicar de forma localizada essa grande gama de conceitos aos estudos de caso. Começarei com o uso de categorias analíticas mais usuais dos populares manuais de roteiro, principalmente Syd Field e Christopher Vogler. Em seguida, usarei os conceitos teóricos e tipologias acerca da narratividade como definidos por David Bordwell e João Maria Mendes, que compreendem tanto uma abordagem teorizante sobre o chamado "cinema clássico", quanto do "cinema moderno" e, até certo ponto, do "cinema contemporâneo". São modelos teóricos sobre a narratividade do filme ficcional, que abarcam diferentes tipos de cinema e funcionarão como chaves teóricas centrais para aprofundar o estudo das relações entre a estruturação narrativa e o significado filosófico ou artístico de cada filme dos irmãos Coen. Por fim, os ensaios de caráter crítico e/ou filosófico dos dois livros especificamente voltados para o cinema dos irmãos Coen (Rowell: 2007; Conard: 2011) servirão como suporte e diálogo para a análise crítica específica das obras, em diálogo com os apontamentos mais gerais das teorias do roteiro e da narratividade. 10 Cap. 3 – Estudo de caso: Barton Fink O primeiro estudo de caso a ser explorado neste trabalho é o filme Barton Fink, de 1991. O filme se passa em 1941, e conta a história de Barton Fink, um dramaturgo nova iorquino que é convidado a ser roteirista em um grande estúdio de Hollywood. Ele se instala em um hotel na Califórnia e passa a lidar, de um lado, com a opressão artística do studio system, e de outro, com uma profunda crise criativa. De modo geral, o filme trata da relação entre a vida e a arte, através do mergulho metalinguístico na crise desse personagem que precisa desvencilhar-se de seus ideais artísticos e escrever um roteiro no ambiente hostil da indústria hollywoodiana. A estrutura narrativa do filme parece apresentar uma mistura de forma clássica com convenções narrativas do cinema moderno. Por um lado, o filme apresenta um protagonista único, com objetivos definidos, inserido em um “novo mundo” ao qual não está acostumado, e onde passará por diversas provações, fará aliados e inimigos, para, por fim, alcançar seu objetivo e sofrer um processo de transformação (pelo menos, aparentemente). Por outro lado, o filme possui diversas características estéticas e narrativas que apontam para convenções do cinema moderno, como o foco extremado sobre a subjetividade de Barton Fink, ao ponto que o próprio filme parece se tornar cada vez a projeção de sua própria mente, no lugar de um relato realista; além de numerosos elementos simbólicos que são apresentados, mas não parecem encerrar sentidos definidos. Procurarei, agora, aprofundar-me sobre os aspectos tanto de estrutura narrativa clássica quanto moderna do filme através da análise detalhada de sua sequência de cenas, com a intenção de atingir a conclusão de que Barton Fink seria, na união e subversão dialética dessas tradições, um texto pós-moderno. Seguindo a divisão estrutural narrativa clássica, podemos considerar que o Primeiro Ato, de apresentação, está contido nas cenas iniciais em Nova York, em que somos apresentados a Barton, o protagonista, aos principais temas do filme e ao conflito central. A primeira cena do filme é um plano-sequência em que acompanhamos o final de uma peça pelos bastidores de um teatro, numa mise-en-scène que nos situa ao lado do protagonista, assumindo seu ponto de vista sobre os eventos e já introduzindo sua função profissional de escritor, uma vez que os olhares dos demais presentes nas coxias se viram para ele quando a plateia, aplaudindo, chama entusiasmadamente ao palco o autor. Outros elementos temáticos do filme já estão sutil e engenhosamente condensados nessa cena, como a relação problemática entre arte e vida, representada 11 pela presença de um contrarregra – o típico “homem comum”, tão buscado nas propostas estéticas de Barton – que tem as funções de puxar as cortinas do teatro e de gritar “Peixe fresco!”, mas é completamente ignorado pelo protagonista, absolutamente imerso na peça. O movimento de câmera passa, no mesmo plano, de uma perspectiva objetiva para um “ponto de vista”, uma câmera subjetiva dos eventos (ao passarmos de Barton para o palco, vemos pelos seus olhos), já evocando visualmente a temática da subjetividade e a própria mecânica de decupagem essencial do filme, da câmera objetiva para a subjetiva, como descrito por Rowell (2007: 120). O som é também uma dimensão central e introdutória de elementos narrativos do filme nessa primeira cena, uma vez que a voz que ouvimos (mas não vemos) na boca do protagonista da peça é a voz de Barton, o que é, no mínimo, um elemento provocador; além do conteúdo das falas da peça que se desenrola, que evocam a atmosfera do subúrbio de Nova York e seus peixeiros, contém os mesmos nomes dos membros da família de Barton (como depois descobriremos), já introduzem a temática do sonho versus estar acordado, e serão as mesmas falas que o protagonista escreverá na conclusão do seu roteiro hollywoodiano, ao final do filme. A sequência seguinte completa a introdução dos elementos centrais à narrativa e o Primeiro Ato do filme, situando para o espectador a relação de Barton com seu cotidiano, com seu “mundo comum”, se pensarmos na jornada do herói de Vogler. Em um restaurante, imediatamente após a apresentação da peça, Barton encontra-se com membros da alta sociedade e com o produtor do espetáculo, repletos de elogios para dar e lendo críticas positivas em jornais. Barton é apresentado como um típico intelectual de esquerda nova-iorquino da década de 1940, por se revelar incomodado com o sucesso aristocrático da sua peça, uma vez que suas pretensões artísticas seriam voltadas para alcançar o contato com o “homem comum” (the common man), e que aquela celebração iria contra seus ideais de escrever de forma visceral, a partir da dor, da angústia interna. Barton é, então, chamado por seu amigo Garland para conversar no bar, num diálogo expositivo que apresenta o conflito central do filme e concentra as funções de “Chamado à aventura” e “Recusa do chamado”, em relação à Jornada do Herói. Garland avisa que o estúdio Capitol Pictures quer contratar Barton para escrever roteiros, mas o protagonista resiste, procurando manter seus ideais artísticos, avesso à ideia do cinema massificado e alienador das massas. Garland usa o argumento econômico e Barton não exibe reação, mas de alguma forma ele é convencido, porque a cena seguinte é um 12 plano de uma onda se chocando contra uma grande pedra numa praia, e em seguida acompanhamos a entrada de Barton no Hotel Earle, em Los Angeles, lugar onde se passará boa parte do filme daí em diante. Essa transição um tanto indefinida já é por si só uma quebra da estrutura clássica, tanto por condensar o primeiro ato nos primeiros 8 minutos de filme, quanto por não apresentar uma posição definida do protagonista sobre o rumo de sua jornada. Como a entrada no estranho hotel pode claramente ser entendida como a chegada a um “mundo especial”, acredito que é seguro considerar a ida a Hollywood como o primeiro ponto de virada essencial do filme, ainda que essa decisão não seja mostrada. Barton chega ao hotel com uma necessidade dramática clara: suportar sua estadia na Califórnia; que se transformará, mais adiante, em: conseguir escrever um roteiro em Hollywood. Dá-se início ao Segundo Ato, de confrontação, onde ele terá que se acostumar ao seu novo ambiente para atingir seu objetivo, e onde fará inimigos e aliados para superar os obstáculos que surgirão à sua frente. A grosso modo, a estrutura do segundo ato do filme se organiza na alternância de sequências no quarto de hotel de Barton com sequências exteriores a esse espaço. A chegada ao Hotel Earle já introduz elementos de estranheza e bizarrice do espaço em que ele adentra, além de reforçar um aspecto caricatural na atuação dos personagens que já estava presente desde a primeira cena. A identificação do espectador com Barton se intensifica, pois ele estranha, assim como nós, todos esses elementos surreais e incômodos, como o toque sem fim do sino na portaria, o hotel absolutamente vazio, de aspecto sombrio, e, já no quarto, o zumbir de mosquitos. Além de reforçar a ambiência bizarra e a solidão do protagonista, essa sequência introdutória do hotel funciona como a apresentação de diversos elementos isolados que ganharão importância ao longo do filme, como a máquina de escrever e o quadro colocado em frente à mesa, caracterizado no roteiro como Bathing Beauty, e que funcionará como uma metáfora instigante da relação de Barton com a arte, especialmente na última cena. A sequência seguinte é a primeira no estúdio, em que Barton conhece Jack Lipnik, o executivo maior da Capitol Pictures, e ele lhe introduz suas expectativas sobre seu trabalho, valorizando, ao mesmo tempo, os elementos típicos de gênero dos filmes de luta (wrestling pictures), e a individualidade e capacidade artística de Barton como autor. A excentricidade e a euforia de Lipnik reforçam a estranheza opressora do ambiente ao redor de Barton, principalmente quando a conversa aparentemente 13 amigável e centrada no talento do escritor termina com uma pragmática cobrança de prazo, como mostra essa irônica reviravolta: “Droga, se todos vocês escritores fossem como você, eu não precisaria me envolver tanto. Quero ver algum avanço no final da semana.”4 (COEN, 1991: 15). Somos, então, introduzidos ao segundo personagem mais importante do filme, Charlie Meadows. De volta ao quarto do hotel, Barton está preso sem criatividade diante de uma folha de papel em que somente um parágrafo está escrito, na qual ele situa uma ambiência idêntica à da sua peça (e da sua vida em Nova York): “TRANSIÇÃO / Um prédio de apartamentos no subúrbio de Manhattan. Já se pode ouvir o trânsito da manhã”5 (COEN, 1991: 16). Ao se distrair com o barulho de um homem chorando vindo do quarto vizinho e ligar para a portaria reclamando, ele recebe a visita de Charlie, um homem enorme e de aparência dura, mas que logo se revela extremamente simpático e amável. Conversando sobre amenidades e suas profissões, Barton acaba se perdendo em seu discurso sobre o ideal de arte, sobre o teatro para o homem comum, inclusive interrompendo Charlie quando ele, o “homem comum” em pessoa, tenta contar suas histórias. Instala-se um clima confortável de amizade entre os dois, que se estenderá pelo filme e será a única válvula de escape para o sentimento de opressão de Barton. Após a saída de Charlie, Barton debruça-se novamente sobre seu texto, mas o papel de parede do quarto começa a descolar, distraindo-o. A incapacidade de Barton escutar o que Charlie tem a lhe dizer, perdido em suas próprias viagens egoicas e artísticas, é o elemento de conflito central entre os dois personagens ao longo do filme, ainda que na maior parte do tempo esse seja um conflito e um incômodo gerado para os espectadores, e de alguma forma indicado nas reações de Charlie, que disfarça e se mantém simpático, mas que nunca fica evidente para o próprio Barton. Em seguida, segue-se um conjunto de cenas expositivas sobre os novos rumos da história, e seus novos personagens: Barton visita Ben Geisler, o produtor responsável pelo filme de luta que vai escrever, um homem direto e pragmático, que não massageia o ego de Barton como Lipnik, apenas exige dele resultados para um filme B com o qual ninguém se importa. Eles vão a um restaurante juntos, e no banheiro Barton conhece 4 “Dammit, if all our writers were like you I wouldn't have to get so goddamn involved. I'd like to see something by the end of the week.” Tradução minha. “FADE IN / A tenement building on Manhatten's Lower East Side. Early morning traffic is audible.” Tradução minha. 5 14 Bill Mayhew, que estava vomitando em uma das cabines enquanto ele usava o mictório. Mayhew mantém a pose elegante apesar da situação, e Barton, ao se dar conta de sua identidade, revela-se seu fã. Em seguida, mais tarde, Barton visita a sala de Mayhew, mas o escritor está descontrolado pela bebida, e Barton conversa unicamente com sua secretária Audrey, uma mulher gentil, mas resignada pela situação desconfortável em que se encontra. Os três combinam de se encontrar em outra ocasião. Na terceira sequência no quarto do hotel, Charlie e Barton novamente se encontram, e conversam sobre seu cotidiano e suas vidas sexuais, sendo que mais uma vez o escritor interrompe o amigo para divagar sobre as dificuldades da vida mental, do esforço artístico complexo de explorar as profundezas da mente humana. A conversa acaba levando Charlie a demonstrar ao pretenso roteirista movimentos básicos de luta, para que ele entendesse melhor do mundo que estava tratando, numa cena curta, mas carregada de verdadeiro teor sexual entre os dois homens. O roteiro é engenhoso em concentrar a temática sexual nessas últimas duas cenas, desde um início de interesse demonstrado por Barton sobre Audrey, até o assunto da conversa entre o intelectual e casto Barton e o sexualmente ativo Charlie, logo antes da sua cena intensa e física de luta. A temática da vida mental (the life of the mind) é citada diretamente mais uma vez, não apenas reforçando as angústias características do protagonista, mas também a própria temática do filme, a ambiência surreal de tudo que acontece e pode ser fruto da mente de Barton. A sequência seguinte se passa num restaurante a céu aberto, onde Mayhew, Audrey e Barton lancham e conversam sobre suas diferentes concepções de arte; Barton, novamente, enfatizando seu papel social e a necessidade de se alimentar da angústia interna, e Mayhew afirmando que faz para se divertir e buscar a paz. Quando a conversa passa para o problema de Mayhew com a bebida, ele insulta Barton e Audrey e sai vagando e cantarolando, bêbado, uma cantiga de temática escrava, Old black Joe. Barton está indignado e se surpreende, então, com a reação de Audrey, que chora e sente pena de Bill. Ela explica a Barton que a empatia exige compreensão, algo que ele simplesmente não entende. Esse ensinamento vem com um tom de sabedoria, e se repetirá ainda uma vez na narrativa, o que leva Rowell a considerá-lo como um tema central do filme, a forma como nos relacionamos com a arte; seria um ensinamento essencial que Barton precisaria aprender para alcançar o contato que busca com o 15 homem comum, e, consequentemente, com a arte, mas ao qual ele está simplesmente cego e surdo. Passamos, então, a um conjunto de cenas no hotel e no ambiente do estúdio de cinema que têm a função principal de transição, de expor o desenvolvimento de elementos narrativos já apresentados e introduzir alguns novos que serão importantes mais tarde. No quarto de hotel, vemos que Barton começa a escrever seu roteiro usando o personagem de Charlie como referência para o protagonista. O que poderia ser um início de inspiração é interrompido pela entrada de Charlie no quarto, após perceber que o hotel trocou os sapatos dos dois homens. Os dois jogam conversa fora sobre as dificuldades que estavam passando ultimamente, e Charlie avisa que viajará para Nova York dentro de alguns dias, o que deixa Barton triste, mas faz com que ele indique a casa de sua família para qualquer eventualidade. Após a saída de Charlie, Barton novamente não consegue escrever. Em seguida, no estúdio, Geisler pressiona o protagonista a apresentar uma sinopse no dia seguinte para Lipnik, porque o filme adquiriu uma importância a partir do momento em que o executivo gostou de Barton, e agora o produtor se sente ameaçado e fora obrigado a dizer que a sinopse do filme estava ótima. O escritor diz que não entende o gênero, então Geisler o manda para uma sessão de diárias de um filme de luta que estava sendo rodado naquela semana. A cena de Barton assistindo aos planos rodados é filmada quase como um filme de terror, com a repetição incessante dos takes e da frase “Eu vou destruí-lo!”, além da sala escura e da expressão aterrorizada de Barton. As convenções cinematográficas do filme de terror, aliás, só se intensificarão nas próximas sequências do filme. Na sequência que marca a metade do filme, estamos novamente no hotel e Barton continua em crise criativa. Sua estratégia, agora, muda: ele liga para Audrey ajudá-lo a desenvolver o roteiro, por conta de seu novo prazo. Ela resiste, mas vai ao seu encontro assim que Mayhew acaba dormindo, bêbado. Conversando sobre as convenções de gênero do filme que Barton precisa escrever, Audrey acaba entregando que ela efetivamente escrevera os roteiros e até mesmo alguns dos livros de Mayhew. Barton se revolta com o farsante que Bill se revela ser, mas Audrey argumenta a seu favor, novamente trazendo a temática da empatia: “Eu ajudei o Bill principalmente apreceiando-o, compreendendo-o. Todos precisamos de compreensão, Barton. Até 16 mesmo você, esta noite, é só o que você realmente precisa...” 6 (COEN, 1991: 61). Eles, então, começam a se beijar e deitar na cama, mas a câmera foge deles – bem à moda de um filme sob o código Hays de censura da Hollywood da época – e flutua até mergulhar no ralo da pia do banheiro de Barton, e passear pelo encanamento, com a sonoridade surrealmente aumentada e distorcida, misturando sons de sexo com encanamento e outros característicos do hotel, finalmente cortando para um mosquito voando sobre a cabeça de Barton, na cama, algumas horas depois. O mosquito pousa sobre as costas nuas de Audrey e Barton o acerta com um tapa violento, mas ela não se move. Filmada como uma típica cena de pesadelo, de repente uma gigante poça de sangue se revela sob o corpo da mulher, Barton se desespera ao ver que ela está morta e grita muito alto. Não se trata, entretanto, de uma cena de pesadelo: o protagonista não acorda após os gritos (numa jogada inteligente com as próprias expectativas de gênero com o espectador), e tem que enfrentar o problema. Barton a princípio tenta esconder de Charlie, que acorda com os gritos, mas eventualmente ele aceita sua ajuda, desesperado. O amigo não faz perguntas e age de forma pragmática, livra-se do corpo e fala para Barton tirar aquilo da cabeça. Analisando essas sequências que envolvem a morte misteriosa de Audrey sob o ponto de vista de Vogler, acredito que possamos encaixá-los na seção de “Aproximação da caverna oculta” e “Provação”, por ser o momento climático do segundo ato, desafiar as certezas sobre o mundo especial que Barton, enquanto “herói” acumulou até o momento, além de testar a fidelidade e o apoio que ele terá dos aliados que fez até o momento (a própria Audrey, na “Aproximação”, ajudando-o com seu roteiro; e Charlie, ao se livrar do corpo). Ao detalhar essas etapas da Jornada, Vogler enuncia diversos elementos presentes nessas sequências: É a aproximação da caverna oculta, onde, finalmente, vão encontrar a suprema maravilha e o terror supremo. É a hora dos preparativos finais para a provação central da aventura. (...) Aqui é possível desenvolver um romance, ligando o herói e sua amada antes que ambos encontrem a provação principal. (...) Mensagem: a experiência já vivida na jornada pode ser o passaporte do herói para novas terras. Nada se perde, e cada desafio do passado nos reforça e informa para o presente. Ganhamos respeito graças ao que já fizemos. (...) Os heróis podem sofrer reveses desanimadores nesse estágio, quando se aproximam do objetivo supremo. Essas reviravoltas da sorte são chamadas de complicações dramáticas. (VOGLER, 2011: 239 – 249). “I helped Bill most by appreciating him, by understanding him. We all need understanding, Barton. Even you, tonight, it's all you really need…”. Tradução minha. 6 17 A provação geralmente é o acontecimento central da história, ou o principal acontecimento do segundo ato. (...) Na maioria das vezes, os heróis sobrevivem magicamente a ela e renascem – literal ou simbolicamente – para colherem as consequências de terem derrotado a morte. (VOGLER, 2011: 258 – 259). A morte de Audrey representa uma verdadeira fratura na narrativa. A partir daqui, o filme adquire um ritmo mais intenso, e os desafios que Barton enfrenta serão mais urgentes, decisivos. As consequências de ter lidado diretamente com a morte, sem explicação, e a opção por escondê-la terão, a princípio, um efeito devastador sobre Barton, que mergulhará em sua própria depressão e falta de perspectiva, sem conseguir qualquer inspiração para escrever ou mesmo viver, como veremos adiante. É válido questionar, entretanto, o papel de Barton como articulador de todos esses acontecimentos. Ao contrário do herói arquetípico de Vogler, o escritor não tem papel ativo em nenhum dos acontecimentos centrais da trama, até agora, mas mantém-se simplesmente sendo levado pela correnteza de ações ao seu redor. Nesse sentido, ele se encaixa adequadamente na definição de Bordwell sobre o herói na narratividade típica de cinema de arte: “Se o protagonista de Hollywood corre para seu objetivo, o protagonista do filme de arte é apresentado como passivamente flutuando de uma situação para outra”7 (BORDWELL, 1985: 207). Ainda seguindo o mesmo autor, podemos enfatizar outras características da narratividade do “cinema de arte” como constituintes de Barton Fink, como a lógica estrutural do acaso, em oposição à causalidade; ou do sonho e da subjetividade, que distorcem a realidade supostamente objetiva apresentada na tela. A ambiguidade funciona, também, como elemento central na organização de sentidos do filme, especialmente em relação aos diversos pequenos elementos que ficam sem explicação. Ao contrário da syuzhet clássica, que caminha para a certeza, a ausência de erro, a ambiguidade guarda uma noção relativista da verdade. Para o autor: a narrativa sabe que a vida é mais complexa que a arte jamais será, e (…) a única forma de respeitar essa complexidade é deixar causas pendentes e questões sem resposta.8 (BORDWELL, 1985: 210). A sequência seguinte é o encontro que Geisler havia marcado entre Barton e Lipnik na manhã seguinte para a apresentação da sinopse do seu roteiro. Barton é “If the Hollywood protagonist speeds toward the target, the art-film protagonist is presented as sliding passively from one situation to another”. Tradução minha. 8 “the narration knows life is more complex than art can ever be, and (…) the only way to respect this complexity is to leave causes dangling and questions unanswered.” 7 18 apresentado desolado, com o rosto cansado e a mente distraída, pensando no que acontecera na noite anterior, sem conseguir se concentrar no encontro com o executivo nem inventar qualquer sinopse coerente para agradá-lo. Em meio à casa de Lipnik, um ambiente representado como quase celestial, uma mansão branca com piscina e muita luz (em oposição ao Hotel Earle, de tons infernais), Barton usa o argumento de que não consegue discutir trabalho em desenvolvimento. Lipnik fecha a cara ao ouvir essas palavras, mas, numa nova quebra de expectativa, ele reverencia o roteirista, seus métodos artísticos, e chega literalmente a beijar-lhe os pés. O filme retorna a seu clima de comédia irônica e nonsense, mas numa nova chave de leitura, pois Barton agora não simplesmente estranha essa atitude, mas está carregado de culpa e depressão depois de tudo o que passou. As próximas cenas no hotel servem, principalmente, para reforçar o sentimento de depressão e falta de perspectiva do protagonista. Charlie chega para despedir-se de Barton, rumo a Nova York. O escritor chora copiosamente em seus braços, desesperado com sua ausência, e novamente afirmando que ele não é culpado pela morte de Audrey. Charlie apoia o amigo, tem frases motivacionais e é firme ao pedir que Barton se contenha e não discuta com ele, com relação ao que fora feito com o corpo. Antes de sair, Charlie pede que Barton cuide de uma caixa com suas coisas pessoais. Nesse diálogo, há diversas referências à mente e a cabeças: BARTON Charlie, acho que estou ficando maluco – que estou perdendo a cabeça. Não sei o que fazer… Não fiz isso, acredite em mim. Tenho certeza, Charlie, eu só… (…) Eu não sei o que fazer… CHARLIE Você tem que segurar a onda, amigo. Você só tem que seguir em frente – só por alguns dias, até eu voltar. Tente ficar aqui, mantenha a porta fechada. Não fale com ninguém. Nós temos que manter nossas cabeças, e vamos dar um jeito.9 9 BARTON Charlie, I feel like I'm going crazy like I'm losing my mind. I don't know what to do . . . I didn't do it, believe me. I'm sure of that, Charlie. I just . . . (…) I just don't know what . . . to do CHARLIE You gotta get a grip on, brother. You gotta just carry on - just for a few days, till I get back. Try and stay here, keep your door locked. Don't talk 19 (COEN, 1991: 75; sublinhados meus) As referências a cabeças são enfatizadas por Rowell como o grande elemento simbólico sobre a temática da oposição entre realidade e imaginação/arte no filme, além de serem indicativos da leitura do filme, como um todo, como uma entrada na mente de Barton, tomando como um dos pressupostos a lógica de sonho sobre a qual a história, em especial as cenas do hotel, se estruturam. Segundo a autora, a palavra “cabeça” se repete cerca de 60 vezes no roteiro, e Charlie é quem a usa primeiro e mais frequentemente. O personagem de Charlie, nesse sentido, seria um alter ego de Barton, representando tudo o que ele não é, e personificando o protagonista do filme que ele desesperadamente tenta escrever. Sobre esses temas, a autora escreve: Quando Barton faz check-in no Earle, Charlie o pergunta se ele é um cliente fixo ou de passagem. (…) A resposta inexata de Barton sugere que a sua estadia no hotel está ligada a sua imaginação, um lugar passageiro onde tudo se exile e um lugar onde um escritor pode se perder. (…) O espectdor, assim como Barton, pode acreditar que as maquinações interiores do escritor sejam reais, em grande parte porque elas são possíveis e realistas até certo ponto. Mas essa racionalização é própria de um sonhador achando que está acordado.10 (ROWELL, 2007: 114). Como também enfatiza a autora, a bizarrice do filme é crescente daqui em diante, o que leva o espectador a relativizar a realidade do que assiste cada vez mais. Após a saída de Charlie, Barton permanece desolado, perdido em pensamentos, fora de si. Ele se senta para escrever, e começa a folhear uma cópia da Bíblia presente no hotel. Primeiramente, ele lê um versículo do Livro de Daniel que faz referência ao rei Nabucodonosor (o mesmo nome do título de um livro de Mayhew) e seus comandos de interpretação dos sonhos; para, depois, abrir no início do Gênesis e ver na página as suas próprias palavras, as únicas que escrevera no início do roteiro. O telefone toca, e cortamos para Barton descendo no elevador do hotel. A sequência que se segue é fundamental para o desenvolvimento narrativo, pois apresenta uma nova informação que muda nossa perspectiva sobre toda a história e influencia em tudo que acontecerá adiante. Nesse sentido, é possível entendermos essa to anyone. We just gotta keep our heads and we'll figure it out. Tradução minha. 10 When Barton checks in to the Earle, Charlie asks him if he is a transiente or a residente guest. (...) Barton’s inexact response suggests his stay at the hotel is tied to his imagination, a transiente place where we’re all exiles and somewhere a writer can get lost. (...) The viewer, like Barton, may believe the writer’s inner workings are real in large part because they are possible and realistic up to a point. But such reasoning is tantamount to a dreamer believing he’s awake”. Tradução minha. 20 cena como o segundo ponto de virada do filme, nos termos de Field, o que encerra o Segundo Ato e move a história adiante para o Terceiro, que contém o clímax e a resolução do filme. Barton chega ao lobby do hotel e é esperado por dois detetives da polícia de Los Angeles, que se apresentam como Mastrionotti e Deutsch. Eles falam complementando-se, como uma dupla de detetives de filmes clássicos de noir ou de comédia. Os detetives perguntam se Barton conhece Charlie, quem revelam ser na verdade um maníaco seria killer conhecido como “Madman Mundt”, que tem o hábito de matar pessoas com uma escopeta e cortar suas cabeças, e estava sendo procurado por uma recente morte com esse padrão que ocorrera recentemente em Los Angeles, a uma mulher que é descrita com as características de Audrey. Barton surpreende-se, mas não conta aos detetives que era amigo de Mundt, nem que trocara mais do que poucas palavras com ele. Os detetives se irritam com a imprecisão das respostas de Barton, e ainda tecem um comentário antissemita antes de se despedirem. Além da revelação inquietante da verdadeira identidade de Charlie, ponto de virada da narrativa, é interessante ainda perceber os indicadores sociais e históricos que são acrescentados ao filme com a introdução dos detetives: seus nomes são em italiano e alemão, forças do Eixo na Segunda Guerra Mundial, e o comentário depreciativo sobre judeus situa o conflito global ao redor de Barton, ao qual ele está completamente alheio, o que reforça, em um novo nível, o isolamento do protagonista da realidade. A sequência seguinte começa com um perturbador travelling sobre a caixa que Charlie deixou no quarto do hotel. Barton pega a caixa, e a sacode. Tudo indica que lá dentro está a cabeça de Audrey. Mas Barton não abre a caixa, ele simplesmente a deixa sobre sua mesa, e a encara. Ele começa a escrever, lentamente. Segue-se uma breve sequência de montagem que indica o avanço crescente da sua escrita, com Barton extremamente concentrado sobre o papel, murmurando as palavras que escreve. O telefone toca, e ele coloca algodão nos ouvidos para isolar-se de vez do mundo exterior. Transições entre os planos indicam a passagem de tempo, e a câmera passeia sobre o rosto de Barton, sobre seus dedos na máquina de escrever, sobre o papel. Uma breve cena expositiva à noite mostra Barton ligando para Garland em Nova York, animado com o trabalho, acreditando que o roteiro será grandioso, importante. Ele, enfim, finaliza o roteiro (com uma das mesmas frases de sua peça), como fica indicado pela digitação da palavra “FIM” em plano detalhe sobre o papel, e no plano detalhe seguinte em que as suas mãos deixam os algodões que cobriam seus ouvidos sobre a mesa. De 21 modo perverso, parece que a ideia da possível presença da cabeça de Audrey na caixa de Charlie serve, enfim, como uma musa inspiradora para Barton, algo que nem a instigante pintura da Bathing Beauty na parede, na qual Barton sempre perdia seus pensamentos, nem a presença viva de Audrey foram capazes de realizar. Em seguida, Barton comemora seu feito indo a uma festa para militares americanos que embarcavam para a guerra. Ele dança muito entusiasmado, acompanhando uma garota, mas tão perdido em sua própria animação que mal lhe dá atenção. Um marinheiro acaba arrumando briga com Barton ao discutirem sobre dançar com a garota, e inicia-se uma confusão entre todos os membros da festa. A cena termina de modo análogo à cena de sexo do filme, com a entrada surreal da câmera em uma corneta que tocava na festa. A sequência que segue constitui o clímax do filme, e se inicia com a chegada de Barton em seu quarto, surpreendido pela presença dos dois detetives, lendo de modo debochado, em voz alta, seu roteiro. Eles apresentam um jornal com a notícia da morte de Mayhew, também decapitado, e exigem de Barton que lhes revele o que sabe: onde estão as cabeças, onde está Charlie. O colchão ainda manchado de sangue serve como prova definitiva contra a história mal contada de Barton, mas ele permanece alheio às acusações dos dois homens, como se pela primeira vez deparasse com as consequências reais do fato de seu amigo ser um maníaco assassino. Inexplicavelmente, Barton sente a presença de Charlie pelo calor, e os detetives prendem Barton à cama com uma algema e vão ao corredor verificar. O elevador chega, e dele sai Mundt, calado, sério, e acompanhado de chamas que o seguem, de forma surreal. Ele saca uma escopeta da mala que carregava, e atira em Mastrionotti. Deutsch começa a fugir, mas Charlie corre mais rápido. Inexplicavelmente o fogo o acompanha e aumenta conforme ele corre no longo corredor, e ele berra: “OLHE PARA MIM! EU VOU TE MOSTRAR A VIDA DA MENTE!”11 (COEN, 1991: 95). Ele alcança e atira na cabeça do segundo detetive. Charlie entra, então, no quarto de Barton, e começa a conversar com ele, agora de forma aberta. Ele desabafa sobre seus motivos para fazer o que faz, em um diálogo revelador que se relaciona às palavras de Audrey sobre empatia e compreensão, assim como revela, enfim, o incômodo que Charlie sentia com a incapacidade de Barton de ouvi-lo, e de efetivamente se relacionar com o outro: 11 “LOOK UPON ME! I'LL SHOW YOU THE LIFE OF THE MIND!”. Tradução minha. 22 CHARLIE Eles dizem que sou louco, Barton, mas não estou zangado com ninguém. De verdade. A maior parte das pessoas eu só tenho pena. É. Me deixa muito triste por dentro, pensar no que estão passando. Como elas estão presas. Eu compreendo. Eu sinto por elas. Então eu tento dar uma ajuda. (…) BARTON Mas, Charlie, por que eu? CHARLIE Porque você NÃO ESCUTA!12 (COEN, 1991: 98; sublinhados meus) O clímax do filme, portanto, encerra o ciclo da relação entre Barton e Charlie com uma posição de poderes oposta a como se iniciou: se Barton dominava as conversas com suas divagações sobre suas pretensões artísticas, agora é Charlie quem deixa Barton submisso e lhe revela o quanto a ausência de equanimidade na relação dos dois é prejudicial para o próprio Barton, ao ponto de ele organizar um perverso esquema de punição. Charlie parece realizar um triplo movimento de libertação sobre Barton: liberta-o de sua própria cegueira perante o outro; liberta-o das consequências legais de suas ações ao eliminar, também, os detetives que investigavam o caso; e, por fim, liberta Barton da algema que o prendia à cama, no que parece ser uma metáfora visual de todas das demais libertações. Antes de despedir-se, Charlie ainda tece comentários provocadores, primeiro sobre ter conhecido a família de Barton em Nova York, e finalmente sobre a caixa que deixara com Barton: “Ah, passei na casa dos seus pais. E o 12 CHARLIE They say I'm a madman, Barton, but I'm not mad at anyone. Honest I'm not. Most guys I just feel sorry for. Yeah. It tears me up inside, to think about what they're going through. How trapped they are. I understand it. I feel for 'em. So I try and help them out . . . (…) BARTON But Charlie - why me? Why CHARLIE Because you DON'T LISTEN! Tradução minha. 23 tio Dave? (...) Gente boa. E por sinal, aquele pacote que te dei? Eu menti. Não é meu.”13 (COEN, 1991: 99). Até certo ponto, é coerente aproximarmos essa sequência ao estágio de “Ressurreição” de Vogler, tomando-se as características de esse ser o momento de último encontro com a morte e o mais perigoso. Os heróis precisam passar por uma purgação final, uma purificação, antes de ingressar de volta no mundo comum. Mais uma vez, devem mudar. O truque do escritor, nessa ocasião, deve ser explicitar a mudança em seus personagens, no comportamento e na aparência (...). (VOGLER, 2011: 313). Além de ser o momento de maior intensidade dramática, conforme defendem Vogler e Field, a mudança de Barton é, a princípio, explicitada no diálogo final com Charlie. Entretanto, mais uma vez é perceptível como o protagonista não assume qualquer posição efetivamente ativa na condução dos acontecimentos da trama, como seria de se esperar numa narrativa clássica. Essa possível mudança de Barton é, em si mesma, altamente questionável. O roteiro que escreve tem a mesma temática de sua peça, que era autobiográfica, então, de certa forma, Barton só consegue escrever uma história, e é sobre ele mesmo. A penúltima cena do filme encerra os conflitos do ambiente do estúdio. Barton tem um último encontro com Lipnik em seu escritório, em que o produtor executivo revela que leu e detestou seu roteiro. Barton defende-se dizendo que acha que é o melhor trabalho que já escreveu, mas o produtor reclama de ele ter fugido completamente das convenções de gênero do filme de luta, de ele ter escrito um filme “afeminado” (fruity), sobre a luta interna de um lutador, e não com cenas de ação convencionais. O discurso de Lipnik muda completamente do início do filme, quando ele afirmava respeitar a individualidade e o gênio artístico do autor, confirmando-se que suas expectativas eram puramente econômicas, e que ele trata todos os roteiristas como um mesmo conjunto de mão de obra genérica. O executivo avisa que, por conta disso, Geisler fora demitido, mas determina que Barton fique sob contrato: tudo que ele escrever será propriedade da Capitol Pictures, mas eles não produzirão nada que ele escrever. O filme acrescenta, ainda, outra referência à Segunda Guerra Mundial, ao colocar Lipnik orgulhosamente vestido de coronel, pronto para servir na ofensiva americana contra o Japão após Pearl Harbor; ainda que a roupa seja, na verdade, um “Oh, I dropped in on your folks. And Uncle Dave? (…) Good people. By the way, that package I gave you? I lied. It isn't mine”. Tradução minha. 13 24 figurino que ele usa provisoriamente enquanto seu uniforme oficial não chega. O fato de Lipnik ser, também, de descendência judaica, como fica claro em uma breve referência a suas origens em Minsk, no início do filme, e no próprio fato histórico de que os grandes executivos das majors de Hollywood eram judeus que apagaram sua identidade étnica, adiciona uma outra dimensão na leitura desse personagem e no discurso histórico que o filme traça sobre o envolvimento norte-americano (e de judeus norte-americanos) frente à Segunda Guerra Mundial. A última cena do filme, por fim, se diferencia de tudo o que vimos até então. Ou quase tudo: ela começa com o mesmo plano da água batendo em uma rocha que vimos após o Primeiro Ato em Nova York. A cena se desenrola, então, na praia, onde vemos Barton caminhar de terno, segurando a caixa que Charlie lhe deu. Em sua direção, caminha uma bela jovemde biquíni, uma real bathing beauty, como a representada no quadro do hotel de Barton. A princípio, Barton não escuta o que ela diz. Eles, então, trocam um diálogo breve, mas extremamente vago e ambíguo: BEAUTY Eu disse que está um belo dia… BARTON É… É sim… BEAUTY O que tem na caixa? Barton sacode a cabeça. BARTON Eu não sei. BEAUTY Não é sua? BARTON Eu… Eu não sei… (…) Você é muito bonita. Você está no cinema? Ela ri. BEAUTY Não seja bobo. 14 14 BEAUTY I said it's a beautiful day . . . BARTON Yes . . . It is . . . BEAUTY What's in the box? Barton shrugs and shakes his head. BARTON I don't know. BEAUTY Isn't it yours? BARTON I . . . I don't know… (…) You're very beautiful. Are you in 25 (COEN, 1991: 104) Apesar de sua aparente desconexão do restante do filme, num plano narrativo mais imediato, há muitas conclusões que podemos tirar dessa cena final, tendo o arco narrativo em perspectiva. O primeiro ponto é a incomunicabilidade, representada quando Barton não consegue escutar o que a jovem diz pela primeira vez. Além de um tema caro ao cinema moderno15, como enfatiza Bordwell, é uma temática central do filme, se considerarmos a incapacidade do protagonista de conectar-se com a realidade e com o outro ao seu redor. O diálogo transcorre com Barton repetindo como ele não sabe nada relacionado àquela caixa que carrega, o que indicam a permanência da impossibilidade de entendimento, de compreensão (e, consequentemente, de empatia) que o acompanham durante o filme. A própria presença da menina, a personificação da bathing beauty de seu quarto, pode render várias leituras, seja o reforço da ideia da projeção da mente de Barton sobre a realidade a que assistimos, seja a sua presença enquanto personificação da ideia de arte e inspiração mais diretamente retratada no filme. A cena, ainda, reforça com ironia o caráter metalinguístico do filme, em seu diálogo final: a resposta mais “objetiva” à pergunta de Barton é que sim, claro, ela está no cinema, porque concretamente o que o espectador vê é sua imagem numa tela de cinema; sua resposta supostamente mantém a verossimilhança da realidade ficcional da obra, mas em meio a um filme tão metalinguístico quanto Barton Fink, soa quase como um comentário irônico. Após a leitura comparativa do roteiro com o filme, o plano final me chamou a atenção. Não há referências, no roteiro, ao pelicano que mergulha subitamente na água, logo após a bathing beauty assumir a pose do quadro, o que parece ter sido um acaso do momento da filmagem, e mantido no corte final – de forma inteiramente coerente com a proposta de ambiguidade, acaso e relação mista entre realidade e arte. pictures? She laughs. BEAUTY Don't be silly. Tradução minha. 15 A cena final de Barton Fink é, inclusive, uma citação direta ao final do icônico A doce vida (1960, Frederico Fellini). 26 Capítulo 4 – Estudo de caso: Onde os fracos não têm vez O próximo filme que analisarei neste trabalho é Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007). O filme se passa em 1980 e conta a história de Llewelyn Moss, um caçador, típico interiorano do Oeste americano, que encontra acidentalmente uma mala com dois milhões de dólares em dinheiro. Ele precisa, então, escapar de Anton Chigurh, assassino contratado para recuperar a mala, num percurso árduo e repleto de violência. O xerife Ed Tom Bell investiga o caso, numa jornada isolada e de crescente desilusão. De modo geral, a temática do filme está centrada na figura de Bell, e em sua relação com o mundo: o xerife sente-se velho demais para os crescentes horrores do mundo, incapaz de enfrentar os rumos de violência desenfreada e aparentemente sem sentido que o cercam. A função do protagonismo em Onde os fracos não têm vez me parece ser o elemento fundamental para tomarmos como base na análise de sua estrutura narrativa. A introdução do filme nos apresenta esses três personagens de forma equânime, mas toda a primeira metade da narrativa se centra, então, na figura de Moss, e em seu conflito com Chigurh, em clima de thriller eletrizante e violento. A segunda metade escapa totalmente desse ritmo, tornando-se um filme repleto de diálogos, com tom filosófico e um tanto melancólico. A morte de Moss a pouco mais de 90 minutos de projeção destrói qualquer expectativa de um desfecho convencional da história, e a última meia hora de filme concentra-se na figura de Bell. Parece-me entretanto, precipitado dizer que Moss, Bell, ou mesmo o psicótico Chigurh – em seu papel de possível alegoria da morte, do destino inexorável – seriam protagonistas do filme, ou mesmo presumir que os três o sejam. Assumirei, aqui, a ideia de uma ausência de protagonismo, o que permite considerar a possibilidade de que o filme pretende reforçar a sua mensagem, seu caráter discursivo, acima de tudo. Antes da jornada de qualquer herói específico, das transformações que ele sofre e do que ele aprende, o filme me parece fortemente preocupado em estabelecer sua premissa central: a vida não tem sentido e nós, seja enquanto “humanos” ou enquanto indivíduos, não somos o centro da existência. Nesse sentido, uma estrutura narrativa fraturada e sem protagonismo funciona como opção estética primordial e extremamente coerente para a representação desta premissa. Ainda assim, é possível distinguir elementos da narratividade clássica, especialmente no que diz respeito a convenções de gênero do faroeste, sendo usadas como ferramentas de subversão dessa própria 27 narratividade, como quebra de expectativa para com o espectador desavisado. Procurarei, agora, analisar em detalhes a estrutura narrativa de Onde os fracos não têm vez, enfatizando os elementos que acredito poderem dialogar com os diversos conceitos apresentados, sejam as convenções do cinema clássico ou do cinema moderno, sejam as particularidades discursivas que o filme apresenta. A primeira sequência do filme é a introdução do personagem de Bell, ainda que indireta. Sua voz faz a narração em off que dá início ao filme, e já trata do tema que se tornará central ao fim, a sensação de impotência diante de um mundo absolutamente cruel e sem sentido. A voz over se dá sobre imagens das típicas paisagens do Texas, marcantes por sua relação com o mito de formação da identidade nacional norteamericana e do seu cinema16. Em seguida, temos uma sequência de introdução de Chigurh, em que somos apresentados a seu modo calculista e absolutamente frio de executar suas vontades – e suas vítimas. O personagem mata um policial com as algemas que foram colocadas nele, rouba a viatura da polícia e mata mais uma pessoa no caminho, utilizando sua arma de pressão para abater gado, com o intuito de roubar um carro regular. A introdução de Moss, por sua vez, mostra-o como um caçador razoavelmente habilidoso, mas que erra um tiro e deixa o animal que pretendia matar apenas ferido. Ele se aproxima do animal, mas percebe um rastro de sangue, no caminho. Seguindo o sangue, ele encontra um conjunto de caminhões e corpos mortos – uma negociação que errado em meio ao tráfico de heroína. Moss acaba, assim, por acaso, encontrando a mala com dois milhões de dólares em dinheiro, o que determina suas ações dali em diante. Nos termos clássicos, é o chamado à aventura que confere a este “herói” um objetivo específico; ainda que esse chamado se dê por obra do absoluto acaso, uma característica muito própria da narratividade moderna, como enfatizam Bordwell e Mendes. Se insistirmos na estrutura narrativa clássica, as sequências seguintes reforçam o percurso arquetípico de Vogler, de “Recusa ao chamado” e “Travessia do primeiro limiar”, quando Moss ainda não demonstra intenção clara de fugir com o dinheiro. Sua consciência pesada o faz retornar ao local do crime para dar água a um homem moribundo que ele havia abandonado lá, mas essa escolha seria perigosa: à noite, já há novas pessoas a procura do dinheiro, averiguando o que acontecera. Eles percebem a presença de Moss e começam a persegui-lo, mas ele consegue escapar. Estabelece-se 16 Como enfatiza Eduardo, 2008. 28 uma nova condição e necessidade dramática para Moss, o protagonista do filme até o momento: agora, ele tem consciência de que há pessoas perigosas em seu encalço, e que ele precisa fugir para manter o dinheiro e a sua vida. A partir daqui, a narrativa se estabelece na alternância entre Moss e seu principal perseguidor, Chigurh, que toma conhecimento do desaparecimento da mala de dinheiro, e se empenha em encontrá-lo e matá-lo. Ele localiza Moss primeiramente por meio da placa do seu caminhão, em seguida por meio da sua conta de telefone e do sinal de um transponder oculto que responde à proximidade com a outra parte do aparelho, inserida em um dos bolos de notas da mala. Os dois passam por conflitos em motéis e ruas de cidades do interior do Texas, em sequências intensas e praticamente sem diálogos, mantendo uma ambiência de filme de suspense, thriller moderno, que nos prende a atenção e nos provoca a torcer e nos identificar com o nosso “protagonista”. Moss se revela um homem astucioso e atento, tanto que consegue escapar de mais de um duelo com Chigurh. O assassino contratado, por sua vez, demonstra-se cada vez mais um homem extremamente racional e calculista em suas ações, ainda que nunca fiquem exatamente claras quais são as suas motivações específicas. Fugindo do padrão desse momento do roteiro, vale mencionar que já há uma cena de diálogo entre Chigurh e o vendedor de um entreposto comercial de estrada com forte teor filosófico. A cena é emblemática da relação desumana e utilitária entre Chigurh e qualquer outra pessoa, além de introduzir o elemento da moeda como alegoria do destino e do acaso. Após se irritar, aparentemente sem qualquer motivo, com o “excesso de perguntas” do vendedor, Chigurh pede que ele escolha Cara ou Coroa, sem lhe dizer o porquê, entretanto claramente com sua vida em jogo. Ele dá sorte e se mantém vivo. Chigurh lhe dá a moeda para que guarde, mas que não a misture com as outras, para que não vire uma moeda qualquer, apesar de ele lembrar, no fundo, ela ser. Após se ferir em uma troca de tiros com Chigurh em um motel, Moss foge e atravessa a pé a fronteira do México, onde chega sangrento e vai ao hospital. O filme assume, então, um outro ritmo, um respiro longo de cenas de diálogo, que se contrapõem à energia e à tensão das cenas anteriores. O xerife Bell, que a essa altura já aparecera de novo no filme, em quadro, ganha mais destaque. Ele é apresentado como um homem desiludido com a profissão e com o mundo, de forma geral. Em mais de uma ocasião, ele abre mão de uma oportunidade de verificar em primeira mão a cena de 29 um crime simplesmente porque não é essencial que ele esteja lá, ao contrário do que seria esperado no caso de um estereotípico xerife com as qualidades puras e justas de um “vigilante da lei”. O xerife lida diretamente com Carla Jean, a jovem esposa de Moss, confortando-a e deixando-a confiante para que ela lhe repasse informações importantes para encontrar e ajudar a proteger seu marido, ainda que ele não saiba exatamente quem ou o quê o está perseguindo. Moss é surpreendido, no hospital, por Carson Wells, outro esperto mercenário, contratado pelo mesmo homem que contratara Chigurh para recuperar o dinheiro, mas agora para encontrar Chigurh e parar seu esquema de traição. Wells revela ao extra confiante Moss que ele não está tão protegido quanto imagina, que a força e a determinação de Chigurh são peculiares, ele é um homem que age por princípios próprios, mas que transcendem causas mundanas como dinheiro ou drogas. Essas características são confirmadas, em cena, quase em seguida, quando o próprio Wells é surpreendido por Chigurh, chegando em seu hotel. Ele tenta convencer o assassino a livrá-lo, ele não teria nenhum interesse próprio em ficar com o dinheiro, tratava-se de só mais um trabalho. Chigurh não se deixa convencer, e rebate a lógica de Wells contra ele mesmo: “Se a regra que você segue te trouxe até aqui, de que adiantou a regra?” (COEN, 2005: 85 - 86); e eventualmente atira no caçador de recompensas, filmado de costas e fora de quadro, numa morte extremamente fria e externalizante. O telefone do quarto toca, Chigurh atende, e ele trava uma breve conversa diretamente com Moss, a primeira e única que terão no filme. Chigurh se apresenta como uma força inexorável que eventualmente encontrará e matará Moss, e negocia que ele entregue o dinheiro e salve sua esposa; mas Moss, como um típico, ainda que rude, herói, mostra que mudou e não vai mais só fugir, ele nega a piedade oferecida e afirma que irá derrotá-lo. Nas próximas sequências, encerrando o Segundo Ato do filme, vemos Chigurh invadir o escritório do homem que o contratou e matá-lo, irritado com o fato de ele haver chamado mais homens para o trabalho, além dele, os mexicanos. Essa cena reforça especialmente a afirmação de Wells: se ele é capaz de matar o próprio contratante e isso não o impede de continuar a executar o serviço, certamente não é a honra do trabalho a que ele serve ou almeja. Assim como em nenhum momento ele demonstra interesse real pelo dinheiro em si, mas muito mais em localizar Moss e Carla Jean para executá-los, conforme suas normas, os princípios que ele estabelece para si e segue a qualquer custo. Moss arma um plano para que sua esposa o encontre em um 30 hotel em El Paso, onde lhe dará o dinheiro, ela viajará para um lugar seguro e ele seguirá sozinho em sua vingança contra Chigurh. O plano dá errado, entretanto, quando os mexicanos conseguem arrancar sutilmente a informação de onde Moss estava da mãe de Carla Jean, que estava com ela na rodoviária a caminho de El Paso. O xerife Bell também sabe de antemão o paradeiro de Moss a partir de suas conversas com Carla Jean, mas, ao chegar ao hotel, vemos, através de sua câmera subjetiva, que já é tarde demais: corpos pelo chão do hotel não deixam dúvida de que os mexicanos alcançaram Moss no hotel, antes, e executaram-no. Finalmente, Bell vê o corpo de Moss no quarto, e nenhum sinal da mala de dinheiro. Carla Jean chega e descobre, também, em questão de horas. Nós, espectadores, chegamos à cena junto de Bell, e não assistimos à morte do personagem que, até então, era o que mais ocupava tempo em cena e a quem nos era empurrada a identificação, quem parecia ser o protagonista. Esse acontecimento é certamente o clímax de energia dramática do filme, ainda que não corresponda às regras dramáticas do clímax, que deveria ser mais à frente, mas cuja função pode ser enquadrada como o Segundo Ponto de Virada da narrativa. As sequências do Terceiro Ato do filme têm como centro o xerife Bell, que não perdeu ao longo do filme o papel de comentário duro e desiludido com a dignidade e o valor da forma de vida que levam como homens da lei do Texas, uma terra capaz de tanto horror e desumanização que ele passa a questionar o próprio valor do trabalho que faz, sem deixar de refletir sobre o que seus antepassados fariam17. Ao contrário do que se poderia esperar de um clássico western, que o filme por vezes se leva a crer ser, não há um climático confronto final. Nem mesmo no começo eletrizante, o embate entre Moss e Chigurh é muito mais esperado que dito ou concretizado18. Um último quase confronto se dá entre Bell e Chigurh, quando o xerife se aproxima, mais uma vez, da cena do crime do hotel de Moss, mais à noite. Ele encara longamente a porta antes de abri-la, como que sentindo que o assassino poderia estar a espreita e, aparentemente, ele está escondido atrás da porta. Ao finalmente abrir e entrar no quarto, entretanto, não há ninguém atrás da porta, e o xerife nada encontra. As últimas sequências são emblemáticas da ausência de protagonismo no filme, na construção de um Terceiro Ato inteiramente anticlássico, que não tem clímax nem uma conclusão definida, e dá a primeira impressão de aglomerar cenas desconexas do 17 Como conta na narração de abertura do filme. É notável que os três personagens mais importantes nunca aparecem juntos no mesmo plano, no filme inteiro. 18 31 resto do filme. Bell passa na casa de Ellis, um amigo idoso que mora com dezenas de gatos e usa uma cadeira de rodas. Nessa cena, Bell desabafa com o amigo sobre suas angústias existenciais, mas seu companheiro é muito bem resolvido e surpreende Bell com suas concepções mundanas e não heroicas acerca de determinados fatos. Para Ellis, a vingança não faz sentido, pelo tempo e esforço que se perde nelas enquanto a sua vida passa; assim como tem na manga a história de um assassinato terrível e absolutamente desumano, condizente com as descrições de Bell sobre o mundo atual, que se passou em 1909, evidenciando que esse horror do mundo é antigo, e se trata menos de um sinal da contemporaneidade que do amadurecimento de Bell. Ellis encerra a conversa dos dois afirmando que “o que sente não é nada de novo. Essa terra é dura com as pessoas. (...) Não dá pra impedir as mudanças. O mundo não lhe dá esse privilégio. É pretensão.” 19 (COEN, 2005: 115). Em seguida, cortamos para uma brevíssima cena do funeral da mãe de Carla Jean, que subitamente aparece morta na história após aparecer em apenas outras duas cenas e mencionar que tem câncer. Esse evento não tem quase nenhuma importância dramática, parece a simples inserção visual, temática e simbólica do elemento da morte, em sua aleatoriedade e inexorabilidade, logo após a declaração de Ellis para Bell (e todas as outras mortes e conflitos que presenciamos ao longo do filme). Carla Jean chega em casa após o enterro e se depara com Chigurh em seu quarto, esperando-a com sua arma. Ele só está lá porque comprometeu-se a cumprir a promessa/ameaça que fez a Moss de matá-la, apesar de não ter nenhuma razão pessoal para fazê-lo. Ela argumenta que ele não precisa daquilo, que é somente ele que decide, e inclusive recusa-se a escolher cara ou coroa em seu jogo psicopata. A mera indicação, em plano geral, da saída de Chigurh da casa de Carla Jean olhando para a sola das botas, como fizera depois de matar Wells, já denuncia ao espectador que ela também está morta. O supostamente implacável assassino Chigurh é, entretanto, vítima de sua própria ironia do destino ao sair da casa de Carla Jean de carro e sofrer um acidente em um cruzamento de uma rua pequena do subúrbio americano. Um carro se choca contra o seu, e ele sobrevive, mas sai mancando e com uma fratura exposta. Apesar de seu papel de presença alegórica de encarnação da própria morte ao longo do filme, parece-me que essa cena, além da que vemos ele mesmo costurando suas feridas em um quarto de hotel “What you got ain't nothin new. This country is hard on people. (…) You can't stop what's comin. Ain't all waitin on you. (…) That's vanity.” Tradução do DVD do filme. 19 32 durante a primeira metade do filme, provam o contrário, ou no mínimo relativizam a certeza de que ele seria um personagem sobrenatural e superpoderoso. Essa cena parece nos gritar: ele é um homem como qualquer outro, ele se machuca e está sujeito às aleatoriedades e sujeições da vida como todos nós, e todos os outros personagens do filme. A cena final apresenta Bell agora aposentado, tomando café da manhã em sua casa e levemente entediado, ainda não acostumado à nova rotina após a aposentadoria. Ele conta de dois sonhos que teve na noite anterior, relacionados a seu pai. Sua descrição dos sonhos é poética e um tanto enigmática. Mas a câmera não sai de seu olhar perdido20, não abre espaço para que escapemos da solidão do discurso. E o filme se encerra, de forma (coerentemente) abrupta e desilusória: “E então, eu acordei”. Em ensaio filosófico sobre o filme, Richard Gilmore (2009) compara Onde os fracos não têm vez às tragédias gregas clássicas. Para o autor, essa conclusão do filme que diminui o homem perante o mundo, perante um universo e uma ideia de destino inexorável sobre a qual ele não tem qualquer controle, aproximaria o filme da tragédia grega e o afastaria do melodrama burguês centrado no indivíduo. No contexto do Oeste americano, seria a constatação da decadência dos seus mitos fundadores, da falência da civilização racionalizadora que se erigiu sobre a mítica selvageria do Oeste. Gilmore percebe uma sabedoria comum, partilhada por Wells, Bell, Chigurh, Ellis e Moss: você é o que você faz, e é impossível desfazer o que esta feito; e o que você faz terá suas consequências naturais mais à frente, e não há como escapar delas. Trata-se de um saber prático, de vivência, e que teria elementos de ligação com a tragédia grega, na sua relação com um universo pré-determinado pelo destino. Essa determinação, entretanto, é maior do que no mundo burguês, mas se restringe à consciência da inexorabilidade da morte. Fora isso, o mundo é inteiramente desprovido de sentido, como enfatiza Bell tantas vezes. Por fim, o próprio personagem de Chigurh seria, também, uma representação desse desencantamento crescente. Ele age sob princípios que se pretendem universais, maiores do que ele; Chigurh tem consciência de que os seres humanos não são o centro do universo. Mas o mundo totalmente sem sentido onde está inserido impede que sua ideia de destino se concretiza, como mostram suas cenas finais: primeiro de forma ativa, 20 Vale dizer, diferentemente de como estava sugerido no roteiro, que apresenta uma encenação visual do que é narrado no sonho. 33 pela personagem de Carla Jean21, a única que escolhe seu destino nas mãos de Chigurh, e que é capaz de efetivamente tirá-lo de sua zona de conforto; e, em seguida, quase como um comentário irônico da narrativa, o acaso o encontra e bate no seu carro. 21 De forma relevante é justamente a personagem mulher, e aqui se centram as principais discussões sobre os papeis de gênero no filme. 34 Capítulo 5 – Conclusões Tendo passado detalhadamente pela estrutura narrativa de cada um dos filmes apresentados e por suas características que dialogam com elementos clássicos e modernos, acredito que seja principalmente na articulação extremamente autoconsciente entre esses elementos, carregada seja de ironia ou de desilusão, que se realiza a operação pós-moderna, a releitura dessas influências diversas, na criação de um texto contemporâneo. Podemos dizer que Barton Fink apresentaria, até certo ponto, uma estrutura mais linear, por conter um protagonista único e passos mais definidos da Jornada do Herói; e que seus elementos surreais e subversivos não seriam tão “originais” em si mesmos, por já estarem quase todos presentes nas inovações estéticas do cinema de arte moderno. Acredito que é possível afirmar, entretanto, que é justamente a união desses dois elementos, em pé de igualdade no respeito e veneração às origens tradicionais, e mesclados numa estrutura marcada por convenções de gêneros diversas, que são capazes de criar um filme tão original, criativo e instigante. Se a estrutura pode parecer clássica, e as subversões modernas, certamente a conjunção desses fatores gera um texto pós-moderno, um comentário metalinguístico que não fala do meio, mas que fala da própria obra em questão. E, na conclusão da interessante e complexa interpretação de Rowell, toda essa mistura de influências pode ser entendida como um discurso sobre a irrealidade de Hollywood, o lugar onde o real é indistinguível da fantasia. Onde os fracos não têm vez, por outro lado, é um filme cuja subversão mais radical da própria narrativa, aliado, também, a convenções de gênero e do cinema de arte moderno, cria um discurso abstrato que me parece mais direto e mais forte que o de Barton Fink. Os próprios personagens estão submetidos a um mundo de regras próprias e inexoráveis, e suas individualidades enquanto personagens pouco importam perante as regras que regem esse mundo, que são as do acaso, e tampouco perante a mensagem que os realizadores parecem querer nos passar, que é, justamente, a pequenez do homem perante o mundo. Em crítica da Revista Contracampo sobre o filme, Alexandre Werneck percebe em todo o cinema dos Irmãos Coen uma operação narrativa e estética que cria “sistemas de cinema”: 35 (...) o cinema dos irmãos Coen é "marcado pela construção de sistemas, sistemas de cinema" e que nele se dá sempre uma operação em que "um personagem central se vê desafiado por sua incapacidade de lidar justamente com o sistema" criado pelos cineastas. Essa idéia de um "cinema de artifício" que parece central em suas obras é, em Onde os Fracos não Têm Vez, o elemento central da trama. De fato, este compõe, ao lado de Barton Fink e O Homem que não Estava Lá, a galeria dos filmes dos Coen sobre si mesmos, sobre os próprios filmes. Era surpreendente que o cinema dos Coen não tivesse feito até hoje um filme sobre um grande assassino. Seus personagens estão sempre atrelados a uma força maior que eles, uma força cósmica, que acaba por se confundir com as determinações estruturais dos gêneros nos quais os "sistemas de cinema" dos Coen mergulham. (WERNECK, 2008) Essa ideia acaba por unir os dois filmes sob essa noção comum, a ideia de um artifício estético tão poderoso, e de regras próprias tão fechadas em si mesmas que determinam o filme como um todo e oprime o(s) protagonista(s). Nesse sentido, Richard Gilmore tece um interessante comentário sobre a artificialidade do cinema dos Coen a partir de uma fala do xerife Bell. Quando Carla Jean lhe pede para confirmar se uma história que ele tinha lhe contado era verdadeira, ele responde: “Eu não poderia jurar cada detalhe, mas... Certamente, é verdade que é uma história”22 (COEN, 2005: 99). O autor entende a frase como um convite a não se preocupar com a veracidade de algo, mas na relação verossímil que uma história tem com uma verdade sobre o mundo, o seu caráter alegórico. Para Gilmore, todos os filmes dos Irmãos Coen funcionariam dessa forma, e por isso teriam sempre uma nova possibilidade de leitura quando vistos novamente, além de, dessa forma, se aproximarem da filosofia. 22 “I couldn't swear to ever detail but... it's certainly true that it is a story.” Tradução minha. 36 Bibliografia: BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: The University of Winsconsin Press, 1985. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2004 CAMPOS, Flávio de. Roteiro de cinema e televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995 COEN, Joel e COEN, Ethan. Barton Fink. 1991. Arquivo em .pdf baixado do site http://www.coenbrothers.net/. Último acesso em 04/06/2014. 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