Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
1 Boletim Informativo IBRASPP - Ano 03, nº 04 - ISSN 2237-2520 - 2013/01 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a citação por hora certa no processo penal brasileiro A extensão da reparação do dano no sistema jurídico-penal A intervenção da Lei nº 12.654/2012: Do “relato da minoria” à alegria de Galton Inquisitório vs. Acusatório: não vamos superar a dualidade sem demarcá-la DNA e Processo Penal: até quando se legitima o controle punitivo através da conservação de dados genéticos? O Relexo da Falsiicação da Lembrança no Ato de Reconhecimento O julgamento colegiado da Lei 12.694/12 e a inelegibilidade da icha limpa Primeiros aspectos da “nova” Lei Seca Lei 12.403/2011 e a prisão de congressistas no Brasil 2 ibraspp 3 EDITORIAL O Judiciário em evidência Fundado em 02/03/2010 Sócios-fundadores Nereu José Giacomolli André Machado Maya Diretoria/Presidente Nereu José Giacomolli Vice-Presidente André Machado Maya 1o Secretário Guilherme Rodrigues Abrão 2o Secretário Marcelo Almeida Sant’Anna Tesoureira Denise Jacques Marcantonio Departamento Editorial André Machado Maya Denise Luz Departamento Cientíico Vitor Guazzelli Peruchin Guilherme Rodrigues Abrão Coordenadorias Regionais Fabiano Kingeski Clementel Cristina Carla di Gesu Conselho Consultivo Alexandre Morais da Rosa Alexandre Wunderlich Aury Lopes Jr. Fabrício Dreyer de Ávilla Pozzebon Fauzi Hassan Choukr Geraldo Prado Jacinto Nelson de Miranda Coutinho Luis Gustavo Grandinetti C. Carvalho Maria hereza Rocha de Assis Moura Maurício Zanoide de Moraes Coordenadores Regionais Bahia Ceará Distrito Federal Goiás Maranhão Mato Grosso do Sul Paraná Rondônia São Paulo Santa Catarina Rio de Janeiro Rio Grande do Sul Marcelo Fernandez Urani Nestor Eduardo Araruna Santiago Edimar Carmo da Silva Felipe Vaz de Queiroz hayara Silva Castelo Branco Roberto Ferreira Filho Aline Guidalli Francisco Monteiro Rocha Jr. Alexandre Matzenbacher João Paulo Orsini Martinelli Maciel Colli Diogo Rudge Malan Leonardo Costa de Paula Luiz Fernando Pereira Neto Salah Hassan Khaled Jr. Bruno Seligman de Menezes www.ibraspp.com.br O ano de 2012 ficou marcado, no âmbito do Poder Judiciário, pelo destaque dado ao julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal. Durante todo o segundo semestre do ano os Ministros da Corte Suprema se dedicaram ao julgamento do caso conhecido por mensalão, e a imprensa levou ao conhecimento dos brasileiros, praticamente em tempo real – e por vezes ao vivo – além dos debates sobre questões fáticas e jurídicas, também as divergências entre os integrantes da Corte e o próprio ritual dos julgamentos colegiados que marcam o STF. A ampla cobertura do mais longo julgamento da história do Poder Judiciário brasileiro popularizou o Supremo Tribunal Federal, transformou questões jurídicas de reconhecida complexidade em assuntos de domínio popular, de todos conhecidas e por todos compreendidas, e tornou os Ministros conhecidos dos brasileiros, alguns deles idolatrados, conduzidos ao posto de super-heróis, outros criticados, relegados à condição de vilões. Um espetáculo público, em resumo, cujas consequências para o Poder Judiciário e para o processo penal ainda não podem ser bem delineadas. Se por um lado a cobertura midiática do julgamento tornou o órgão de cúpula do Judiciário mais familiar aos brasileiros e elevou a patamares não antes vistos a publicidade dos atos jurisdicionais – importante valor constitucional de um Estado Democrático –, por outro o fez gerando uma exposição excessiva dos Ministros e das partes processuais. Frequentemente interpelados sobre posicionamentos manifestados no Plenário, os julgadores se viram obrigados a lidar com a expectativa do público após sete anos de espera pela primeira punição penal de políticos no âmbito da Suprema Corte. Como nunca, passaram a ser conhecidos por seus nomes nos quatro cantos do Brasil. Os acusados, por sua vez, tiveram seus nomes e rostos expostos nos telejornais a cada final de sessão de julgamento, como se personagens fossem de mais uma edição do reality show Big Brother Brasil. Gráficos como os utilizados para ilustrar os resultados de pesquisas eleitorais viraram ferramentas para explicar as acusações que pendiam sobre cada um, o entendimento dos Ministros e as chances de condenação. Não teríamos extrapolado os limites da publicidade no processo penal? O risco de tal espetacularização da Justiça está na sua aproximação a valores que não condizem com a efetiva função do Poder Judiciário em um Estado Democrático de Direito, valores mercadológicos fomentados por um populismo penal que encontra plena fluidez no senso comum e cria um ambiente hostil a entendimentos contra-majoritários. Como contrariar a maioria quando a telejustiça assume a lógica das democracias populistas de opinião? questionou o jurista Luiz Flavio Gomes em artigo sobre o mensalão. No caso concreto, as divergências explícitas entre os Ministros relator e revisor geraram para esse último um inegável desgaste perante a opinião pública – ou publicada –, e acabaram por reforçar no inconsciente coletivo a visão do processo penal como ambiente de confronto entre o bem e o mal, como se do julgamento pudesse sair um vitorioso, como se a punição fosse a única solução justa. Qual o custo desse desgaste imposto aos julgadores que ousaram divergir da tese acusatória advirá ao direito processual penal? Respostas a essas indagações virão apenas com o tempo. Por ora, resta-nos reconhecer que o julgamento representou grande relevância ética e política para o país. Mais do que isso, cumpre-nos suscitar as reflexões que ele nos propicia, todas elas fundamentais ao futuro do processo penal na ainda jovem democracia brasileira, dentre as quais a de maior importância – e talvez a de mais difícil compreensão – parece ser a que diz respeito ao papel do Judiciário: qual o papel do juiz na e para a democracia? Até que ponto pode-se pensar na coexistência viável entre a exigência de imparcialidade jurisdicional e as inúmeras pressões sociopolíticas envolvidas em casos de enorme repercussão como o do mensalão? Qual a influência da evidência social, tão alucinógena, que está regando este poder republicano e que não permite se pensar nos influxos e refluxos ideológicos dos holofotes direcionados ao poder? Talvez uma frase bradada da tribuna do Plenário de julgamento resuma bem o norte a ser seguido: “Justiça seja feita mesmo que os céus venham abaixo.” 4 ibraspp 5 Normas de submissão Artigos devem ser inéditos e obedecer à linha editorial do periódico; Os artigos devem obedecer aos seguintes critérios: Arquivo em formato doc; Máximo de 7.500 caracteres com espaço; Espaçamento entre linhas simples, parágrafos justiicados e fonte Minion Pro tamanho 11; Citações em formato autor-data, conforme exemplo: (GIACOMOLLI, 2008, p. xx.) Notas explicativas de até 1.500 caracteres com espaço, no inal do texto. Referências bibliográicas ao inal do texto. Os artigos devem ser remetidos em duas vias para o e-mail boletim@ibraspp.com.br até a data inal indicada no edital de chamada de artigos, publicado no site do IBRASPP (www.ibraspp.com.br), constando na identiicação do assunto a expressão artigo boletim. Ambos os arquivos devem ser em formato doc, sendo um identiicado e outro devidamente desidentiicado, para ins de avaliação. Os artigos serão avaliados pelo método do “duplo blind peer review” que possibilita a análise dos trabalhos sem identiicação, garantindo isenção para os autores e para os avaliadores. Revista e Boletim IBRASPP Estrutura e Organização Editor-Chefe André Machado Maya Assessoria Editorial Cleopas Isaias Santos Denise Luz Gabriel Divan Marcelo Sant’Anna Conselho Diretivo André Machado Maya Nereu José Giacomolli Guilherme Rodrigues Abrão Giovani Agostini Saavedra Conselho Editorial Integrantes estrangeiros Juán Montero Aroca - Espanha Teresa Armenta Deu - Espanha María Félix Tena Aragón - Espanha Raul Cervini - Uruguai Rafael Hinojosa Segovia - Espanha Daniel Obligado - Argentina Rui Cunha Martins - Portugal Integrantes nacionais Alexandre Morais da Rosa Aury Lopes Jr. Diogo Rudge Malan Elmir Duclerc Ramalho Junior Fauzi Hassan Choukr Giovani Agostini Saavedra Gustavo H. R. I. Badaró José Antonio Paganella Boschi Leonardo Augusto Marinho Marques Marcelo Caetano Guazzelli Peruchin Marcelo Machado Bertolucci Marcos Eberhardt Marcos Vinícius Boschi Marta Gimenes Saad Conselho de Pareceristas Álvaro Roberto A. Fernandes André Luiz Nicolitt Aramis Nassif Augusto Jobim do Amaral Décio Alonso Gomes Douglas Fischer Eduardo Pitrez Correa Gabriel Ferreira dos Santos João Batista Marques Tovo Lisandro Luis Wottrich Marcio Barandier Miguel Wedy Ney Fayet Junior Odone Sanguiné Paulo Fayet Rafael Braude Canterji Ricardo Gloeckner Roberto Kant de Lima Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Rômulo de Andrade Moreira Simone Schreiber hiago Bottino Vera Regina Pereira de Andrade Walter Bittar Editora Atlas Planejamento Gráico Colosseo Design Linha editorial Processo Penal, Direitos Humanos e Democracia Periodicidade Semestral www.ibraspp.com.br 6 ibraspp 7 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a citação por hora certa no processo penal brasileiro João Henrique de Andrade Nestor Eduardo Araruna Santiago INTRODUÇÃO A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) é um dos principais instrumentos de proteção dos direitos humanos do continente americano e, como tal, funciona como vetor normativo para as legislações dos países membros. Embora suas normas não tenham caráter constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu acerca da sua supralegalidade (cf., por todos, HC 88.240, 2ª. Turma, Rel. Min. Ellen Gracie), tornando inaplicável a legislação infraconstitucional conlitante com a referida convenção. O presente estudo pretende analisar a citação por hora certa em face das garantias processuais estatuídas pela CADH, especiicamente aquela que estipula que durante o processo o acusado terá direito a comunicação prévia e pormenorizada da acusa- João Henrique de Andrade Discente do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Bolsista FUNCAP. Membro do Laboratório de Ciências Criminais da UNIFOR (LACRIM). Nestor Eduardo Araruna Santiago Doutor em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) e do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professor do Curso de Graduação em Direito da UFC. Coordenador do Laboratório de Ciências Criminais da UNIFOR (LACRIM). Coordenador Regional do IBRASPP – Ceará. www.ibraspp.com.br ção contra ele formulada (art. 8º, item 2, alínea b). Mais especiicamente, objetiva-se discutir a respeito da recepção desta modalidade de comunicação processual pelo texto da CADH sob os aspectos do contraditório e da ampla defesa, pois, uma vez citado, será designado defensor dativo para a realização do feito, não havendo qualquer possibilidade de suspensão do processo e/ou do curso do prazo prescricional nessa modalidade de comunicação processual, diferentemente do que ocorre na hipótese do art. 366 do Código de Processo Penal (CPP). Assim, utiliza-se o método hipotético-dedutivo, partindo-se de um raciocínio lógico ponderado por hipóteses e comparações. Pretende-se demonstrar que a citação por hora certa, nos moldes em que é proposta, desrespeita o texto convencional. A CITAÇÃO POR HORA CERTA A citação é conceituada por Oliveira (2012, p. 601) como “[...] modalidade de ato processual cujo objetivo é o chamamento do acusado ao processo, para ins de conhecimento da demanda instaurada e oportunidade de exercício, desde logo, da ampla defesa e das demais garantias individuais”. Távora e Alencar (2012, p. 694) asseguram que a “citação é o ato pelo qual o réu toma ciência dos termos da acusação sendo chamado a respondê-la e a comparecer aos atos do processo, a começar, via de regra, pela resposta preliminar à acusação”. Assim, a Lei nº 11.719/2008 produziu mudança de grande valia em relação à ci- O art. 362 do CPP desrespeitou duplamente a obrigação do Estado brasileiro frente à CADH, vale dizer, porque legislou contrariamente a ela (ato comissivo) e porque havia se obrigado a respeitá-la (obrigação de não fazer). tação no CPP, já que ela não é mais efetivada para que o acusado compareça em juízo para ser interrogado, mas, sim, para tomar ciência da imputação e apresentar defesa por escrito. E a citação, uma vez efetivada, completa a formação do processo, triangularizando a interlocução processual entre magistrado, órgão titular da ação penal e defesa (art. 363, caput, CPP). Segundo a doutrina, a citação pode ser pessoal (ou real) ou icta. A primeira, também conhecida como citação por mandado, cumpre-se mediante ato do oicial de justiça, sendo o acusado pessoalmente comunicado da ação penal instaurada contra ele. Vale lembrar que a realização desta espécie de citação por meio de carta precatória, carta rogatória ou pelos meios especiais de citação estipulados no CPP (arts. 358, 359 e 360) também são espécies de citação pessoal. O importante é que o acusado, em face das consequências advindas da propositura de uma ação penal, tome conhecimento efetivo da acusação que lhe é dirigida. A mesma Lei nº 11.719/08 trouxe ao CPP a citação por hora certa, espécie de citação icta, já existente há anos no Código de Processo Civil (CPC) e que lhe serviu de modelo, em verdadeira aplicação analógica (art. 3º, CPP). Possui como escopo assegurar a citação do réu quando se veriica a sua recalcitrância em relação ao ato citatório. Ao contrário do que ocorre na citação por edital (arts. 363, § 1º; 364 a 366, CPP), que também é citação icta, na por hora certa não se suspende o curso do processo nem o do prazo prescricional. Assim, decorrido o prazo decendial sem apresentação de resposta preliminar (art. 396, CPP), será nomeado defensor ao acusado, dando-se sequência ao procedimento. GARANTIAS JUDICIAIS NO DECRETO 678 DE 1992 O Estado brasileiro, ao ratiicar a CADH, assumiu duas obrigações: a de fazer e a de não fazer. A obrigação de não fazer assegura que o Estado, ao assumir o compromisso com os “direitos humanos, eles se autolimitam em sua soberania em prol dos direitos da pessoa humana” (GOMES E MAZZUOLI, 2009, p. 26) e está obrigado a respeitar os direitos com a máxima efetividade. Já a obrigação de fazer consiste “na criação de meios necessários para prevenir, investigar e punir toda e qualquer violação (pública e privada) de direitos humanos contrária a Convenção” (GOMES E MAZZUOLI, 2009, p. 28). Portanto, os países passam a ter as obrigações negativas e positivas em relação aos tratados de direitos humanos que ratiicarem (GOMES E MAZZUOLI, 2009). Ainda, cabe lembrar que a Convenção pode ser violada de forma omissiva e comissiva: a primeira ocorre quando o país não legislar sobre determinado assunto; a segunda, quando o Estado legislar contrariamente à CADH. Destarte, qualquer legislação infraconstitucional deve atentar ao que foi acordado entre os Estados. Neste sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem concluído que a edição de uma lei infraconstitucional que contraria a CADH constitui violação ao seu texto (GOMES E MAZZUOLI, 2009). Os Estados que ratiicaram a CADH devem seguir o que disciplina o art. 1º do texto, no qual se asseguram os direitos e deveres que os Estados devem proteger. Dentre os direitos que o Estado não pode desrespeitar estão as garantias judiciais previstas no art. 8º na CADH. Entre as previstas, destaca-se o item 2, alínea b, que dispõe que toda pessoa acusada em pro- 8 ibraspp cesso (penal ou não penal) tem direito à garantia mínima de comunicação prévia e pormenorizada da imputação que lhe foi formulada. Dessarte, alinhando-se o parágrafo único do art. 362 do CPP com o art. 8º, alínea b, item 2 da CADH, parece haver uma desavença de ordem normativa. Na medida em que não haja garantia que o réu tenha tomado ciência do teor da acusação formulada no processo, no mínimo, deveria ser sobrestado, da mesma forma como acontece com a citação por edital (art. 366, CPP), pois ambos são modos de comunicação icta. Assegura Steiner (2000, p. 123) ser impostergável ao réu o direito de ser informado da acusação porque constitui peça fundamental da ampla defesa e do contraditório, a demonstrar a preservação das garantias constitucionais, vez que a CADH trata a comunicação processual como garantia mínima. Assim, a “desconformidade do direito doméstico com o estabelecido pela Convenção torna inválidas as disposições internas incompatíveis” (GOMES E MAZZUOLI, 2009, p. 34) e persistindo tal incompatibilidade dever-se-á aplicar o dispositivo mais garantista por força do princípio do pro homine (GOMES E MAZZUOLI, 2009). Por im, cabe lembrar que se encontra no Supremo Tribunal Federal discussão de caráter de repercussão geral sobre a constitucionalidade da citação por hora certa, justamente em razão da possível agressão aos princípios do contraditório e ampla defesa (STF, RE 635145/RG RS, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 27 fev. 2013). E no texto de reforma do CPP que se encontra na Câmara dos Deputados (PL 8.045/2010), retorna-se à situação anteriormente prevista no CPP antes da edição da Lei nº 11.719/08, ou seja, ocultando-se o acusado, será citado por edital, com prazo de 5 dias (art. 148). www.ibraspp.com.br 9 CONCLUSÃO O presente estudo pretendeu delimitar uma digressão de ordem normativa a respeito das garantias processuais reconhecidas internacionalmente pelo Brasil ao aderir à CADH. Diante do apresentado, conclui-se que a citação por hora certa é um ato de comunicação pessoal contrário ao texto da CADH, pois, mesmo citado, a ação penal continua sem a manifestação do acusado, sem a suspensão do curso do processo e/ou do prazo prescricional, e nomeia-se defensor ao acusado. Assim, o art. 362 do CPP desrespeitou duplamente a obrigação do Estado brasileiro frente à CADH, vale dizer, porque legislou contrariamente a ela (ato comissivo) e porque havia se obrigado a respeitá-la (obrigação de não fazer). Referências: SANTOS, Leandro Galluzzi dos. Procedimentos - Lei 11.719, de 20.06.2008 In: MOURA, Maria hereza Rocha de Assis. As reformas no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 298-343. GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre de Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. 3. ed. São Paulo: RT, 2009. OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Editora RT, 2000. TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7. ed. Bahia: Editora Juspodivm, 2012. A extensão da reparação do dano no sistema jurídico-penal Rodrigo Oliveira de Camargo A reparação do dano no sistema jurídico -penal é tema que ainda carece de profunda discussão e regulamentação sistemática nas esferas do Direito Penal e, principalmente, do Direito Processual Penal. No Direito Penal, a reparação do dano, a depender do momento em que ocorre, pode signiicar causa de redução de pena àquele que, antes do recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário, repare o dano ou restitua a coisa (art. 16 CP); atenuante genérica, se a reparação do dano ocorrer depois do recebimento da denúncia e antes da prolação da sentença, (art. 65, III, b CP); condição para a concessão do livramento condicional (art. 83, IV CP), ou, ainda; a extinção da punibilidade no crime de peculato culposo, quando a reparação do dano der-se antes da sentença irrecorrível (art. 312, § 3˚ CP). Não se pode deixar de referir que a reparação do dano nos casos de crimes contra a ordem tributária e do crime de apropriação indébita previdenciária, conforme decisões de vanguarda do STF e STJ, também teriam o condão de extinguir a punibilidade do agente1. Rodrigo Oliveira de Camargo Advogado. Mestre em Ciências Criminais – PUC/RS. Professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), campus Torres/RS. Palestrante e professor convidado na ESA-OAB/RS. Membro efetivo da Comissão de Defesa de Assistência e Prerrogativas da OAB/RS. Membro do Instituto Lia Pires. Autor de artigos e capítulo de livro sobre Direito Penal e Processo Penal. A reparação do dano não poderia, em casos bem deinidos, ser reconhecida como uma forma que elimine o interesse público na persecução penal? Por sua vez, em nível de processo penal, a reparação do dano pode ser encarada como condição para o oferecimento da suspensão condicional do processo (art. 89, §1°, I e §3° da Lei 9.099/95); como efeito civil da sentença penal condenatória (art. 387, IV CPP) e até mesmo como causa extintiva da punibilidade (art. 72 da Lei 9.099/95). Além do locus em que a matéria referente à reparação do dano encontra sua regulamentação, de se anotar que as legislações de direito penal material e processual foram produzidas em contextos distintos, evidenciando dois grandes blocos e inteligências assistemáticas na elaboração da norma. Na dogmática penal, a reparação do dano como forma de arrependimento posterior surge a partir da promulgação da Lei 7.209/84 que alterou a Parte Geral do Código Penal. Por sua vez, é somente após os movimentos vitimológicos iniciados no período que sucede a Segunda Guerra Mundial que a preocupação com a reparação do dano surge no cenário processual penal, tudo para dar à vítima novo papel no processo penal, tirando-a do ostracismo que lhe havia sido imposto (SCARANCE FERNANDES, 2007. p. 25), através da pro- 10 ibraspp mulgação da Lei 9.099/95 e, mais recentemente, com as alterações introduzidas no Código de Processo Penal por intermédio das reformas da Lei 11.719/2008. Esse espaço temporal existente entre a elaboração de leis que concede à reparação do dano uma (ou várias) função(ões) em nosso sistema jurídico-penal evidencia ausência de preocupação metodológica e quase nenhuma sintonia entre a (não) relação que a reparação do dano guarda entre o Direito Penal e o Processo Penal. Em que pese esteja a reparação do dano prevista em vários aspectos de nossa legislação penal e processual, não há uma deinição clara de qual papel ela entabula em nosso sistema jurídico-penal e a serviço de quê(m) ela está. ROXIN entende que a reparação do dano no processo penal apresenta um vacilo por parte do legislador e também problemas de ordem prática, mas que sua correção dar-se-á a partir do momento que “[...] se acierta a legitimar exitosamente la concepción de reparación, no solo en el plano pragmático y político-social, sino también en el de la teoria de la pena.”. A previsão de movimentos de reparação do dano em nosso ordenamento jurídico-penal de forma tímida e assistemática não nos permite, com segurança, airmar a natureza jurídica da reparação do dano junto ao processo penal brasileiro. Além disso, a reparação do dano, como instrumento político-criminal de resposta ao delito, alimenta-se de uma combinação de motivos que ultrapassam o conceito de ressarcimento à vítima, e apresenta-se como uma alternativa híbrida entre a pena e a responsabilidade civil2 (ROXIN, 2007, p. 75/76), o que vem a afetar a identidade de ambas, na medida em que também não se relacionam (Pérez SANZBERRO, 1999. p. 19/20). Para PEREZ SANZBERRO, constitui o objetivo supremo buscado pelos projetos de conciliação entre autor-vítima a elisão completa do processo penal. Com base nos modelos de referência buscados no Processo Penal (StPO) e na Lei dos Tribunais de Jovens (JGG) alemães, o arquivamento do processo é medida a ser adotada a partir do momento em que se logra êxito www.ibraspp.com.br 11 em reparar os danos decorrentes do delito ou em que se chega a um acordo com a vítima. E, justamente na mesma linha que aqui defendemos, reclama o autor a necessidade de uma regulação eicaz da reparação do dano junto à lei processual penal, na medida em que o que se almeja é uma “visión general de las previsiones sobre la reparación y el arreglo privado entre autor y víctima de um delito”. Da mesma forma em que o Direito Penal pretende atribuir signiicado e reconhecimento à reparação do dano e à conciliação no Sistema Jurídico Penal, “es preciso también hacer referência a la digniicación de la reparación en la determinación de la pena, y en eventual suspensión de su imposición o ejecución, e incluso renuncia a la misma, así como a su toma em consideración durante el cumplimiento de las penas privativas de libertad” (Pérez SANZBERRO, 1999. p. 94/95). A defesa de tal possibilidade se faz com base no princípio da oportunidade no processo penal, em que se permitiria a extinção da punibilidade do agente de determinado delito mesmo que haja possibilidade do reconhecimento de sua culpabilidade na prática de um fato delituoso. Emprestar-se-ia especial signiicado em (não) se formular uma acusação contra alguém que tenha buscado reparar o dano causado à vítima, na medida em que pode não existir interesse público na repressão do delito por ver-se este satisfeito “[…] con el cumplimiento de ciertas prestaciones o la adopción de determinadas medidas frente al sujeito al que se le atribuye la responsabilidad”. O princípio da oportunidade, nestes casos, atuaria como um prolongamento do princípio da ultima ratio no próprio processo penal (Pérez SANZBERRO, 1999. p. 96), aqui compreendido como a limitação da intervenção estatal através do processo penal se a reparação do dano revelar-se como meio eicaz para o restabelecimento da ordem jurídica violada. Um dos pontos principais que deve estar em permanente discussão é se devemos reconhecer a sanção penal como a resposta adequada e eicaz para determinados tipos de comportamento delitivo. A reparação do dano não poderia, em casos bem deinidos, ser reconhecida como uma forma que elimine o interesse público na persecução penal? Pérez SANZBERRO admite como observância ao interesse público também a adequada reação à culpabilidade do agente enquanto critério político-criminal. Defende que “la reparación permite eliminar el interes público en la persecución y en la ulterior condena penal respecto a una serie de hechos delictivos menos graves […]” (Pérez SANZBERRO, 1999. p. 110/113). Em linha de conclusões gerais, e como referido inicialmente, o tema sobre reparação do dano no sistema jurídico-penal ainda carece de profunda discussão e não temos a pretensão, nos limites estreitos das presentes colocações, de esgotar a análise da matéria. O ponto de partida dessa discussão passa pela compreensão de que, da forma como colocado em nosso sistema jurídico-penal atual, não existe nenhum tipo de conformidade sistêmica entre as regras expostas no Direito Penal com aquelas que estão dispostas na legislação processual penal e nas leis extravagantes (geralmente as que regulam sobre matéria de processo penal), impedindo uma deinição clara e precisa da natureza jurídica do instituto e da função que ele exerce em nosso sistema. Referências: Notas PéREZ SANZBERRO, Guadalupe. Reparación y Conciliación en el Sistema Penal: apertura de una nueva via? Granada: Comares, 1999 Neste sentido já decidiram os Tribunais Superiores: HC 81929 / RJ - RIO DE JANEIRO. Rel. Acórdão Min. CEZAR PELUSO. Julgamento: 16/12/2003. Publicação: 27.02.2004. Votação: unânime. Órgão Julgador: Primeira Turma do STF e HC 36628/ DF. Ministro HAMILTON CARVALHIDO. Julgamento: 15/02/2005. DJ 13.06.2005. Votação Unânime. Sexta Turma do STJ. ROXIN, Claus. Passado, Presente y Futuro del Derecho Procesal Penal. 1. ed. Santa Fé: Rubinzal Culzoni, 2007. SCARANCE FERNANDES, Antônio. Processo Penal Constitucional. 5. ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 1 A Alemanha desenvolveu aquilo que Roxin reconhece como “situação jurídica ambivalente”, ou seja, uma legislação que se destina ao fortalecimento dos direitos de participação do ofendido no processo penal, denominada como “ley de tutela de la víctima”. E, à parte da discussão que permeia a relação da ação civil com o processo penal e o reposicionamento da vítima neste contexto, Roxin reclama a falta de uma previsão legislativa que regule a relação entre a pena e a reparação do dano, pois entende que “[...] se debería assumir que el trazado legislativo posterior depende del desarrollo de la discusión cientíica.” Não por outra razão que a conclusão do autor é bastante clara: “[...] se puede decir que los esfuerzos por honrar el resarcimiento del daño con ventajes jurídico-penales se enfrentan a una actitud de ‘claro retroceso.” eis que a obrigação à reparação do dano sofrido pelo ofendido é categoria própria do Direito Civil e completamente independente da punibilidade, e deve ser levada a cabo como se a pena não dependesse dele. 2 CURSO DE 12 ibraspp 13 INVESTIGAÇÃO ÇÃO CRIMINAL A intervenção da Lei nº 12.654/2012: Do “relato da minoria” à alegria de Galton Marcelo Batlouni Mendroni ANALÍTICO • ABRANGENTE • PRÁTICO 3ª edição (2013) | 416 páginas de R$ 94,00 por R$ 75,20 +frete grátis Para confrontar a teoria e a prática o autor realizou estágios/visitas em inúmeras Promotorias de Justiça e Departamentos de Polícias Internacionais como Promotoria de Justiça Antimáfia de Roma, New Scotland Yard de Londres, FBI nos escritórios de Salt Lake City e Washington D.C. e Academia Nacional do FBI em Quantico/VirgÌnia nos EUA e outros. Nesta edição, agora pela Atlas, foi acrescentado ainda um capítulo a respeito da Prática na investigsção criminal. CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO 2ª edição (2013) | 456 páginas de por R$ 96,00 R$ 76,80 +frete grátis PROVAS NO PROCESSO PENAL Estudo sobre a Valoração das Provas Penais 1ª edição (2013) | 168 páginas de por R$ 75,00 R$ 60,00 +frete grátis Preçoswww.ibraspp.com.br sujeitos a alteração sem prévio aviso. Oferta válida até 31/8/2013. Diogo Machado de Carvalho A incessante busca por meios que possibilitem “a descoberta dos criminosos antes que estes pratiquem crimes” é vendida como uma panaceia perene que, volta e meia, aparece a açular o imaginário social. Desde os estudos antropológicos (anatômicos-isiológicos) de Cesare Lombroso, almeja-se a identiicação do criminoso nato, ou seja, aquele indivíduo que, em seu interior, sempre carrega o crime. “Falta-lhes o sentimento afetivo e o senso moral; nasceram para cultivar o mal e para cometê-lo. Estão sempre em guerra contra a sociedade” (LOMBROSO, 2010, p. 201). Nessa jornada determinista, Sir Francis Galton surge como um dos principais expoentes. Primo de Charles Darwin e fundador do “eugenismo”, Galton é o precursor do sistema de identiicação pessoal pelas impressões digitais (GALTON, 1892). Seu programa objetivava encontrar traços indeléveis da individualidade, marcados pela hereditariedade e pela origem étnica, de modo a propiciar, em última análise, a determinação (pela digital) de eventuais degenerescências. Almejava-se, assim, a detecção biológica do mal (e do mau) e sua pronta aniquilação, antes mesmo que seu pernicioso âmago alore (COURTINE; VIGARELLO, 2008, p. 359). Esse desejo de previdência é tanto que, no famoso conto de Phlip K. Dick intitulado Minority Report, chega-se ao extremo de se criar uma agência estatal Precrime para a identiicação e a prisão dos criminosos antes destes cometerem seus delitos. “A intervenção militar em aborto ao acontecer do que for, pois que tudo é o que se dá a ver, e o real todo ele sendo o que se faria acontecer para reairmar a infalibilidade do controle, a gestão do futuro” (QUEIROZ, 2005, p. 62). Com base em três “humanos” (preco-gs) que, Hodiernamente, com a indiscutível ampliação das esferas tecnológicas e cientíicas, a procura do DNA possibilitou reacender todo aquele afã determinista biológico outrora adormecido pelas barbáries eugênicas da Segunda Grande Guerra. Diogo Machado de Carvalho Especialista em Ciências Penais e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogado Criminalista. 14 ibraspp mediante experiências cientíicas, tinham adquirido a capacidade cognitiva de ver o futuro e prever os atos ilícitos, a “vindoura” sociedade do ano de 2054 conseguia, por meio da Nova Lei, uma expressiva redução na sua taxa de criminalidade (aproximadamente, 99,8% dos crimes graves, nos últimos 5 anos). - Deve ter percebido o inconveniente legal básico da metodologia pré-crime. Prendemos indivíduos que nunca infringiram a lei. - Mas que certamente infringirão – airmou Witwer com convicção. - Felizmente, não. Nós os pegamos primeiro, antes que cometam qualquer ato de violência. Desse modo, a comissão do crime, em si mesma, é uma metafísica absoluta. Alegamos que são culpados. Eles, por sua vez, airmam eternamente ser inocentes. E, de certa maneira, são inocentes (DICK, 2002, p. 09). Todavia, a esperança de descobrir um marcador que possa predizer a criminalidade não se restringe apenas ao passado remoto ou às “surreais” obras de icção. Hodiernamente, com a indiscutível ampliação das esferas tecnológicas e cientíicas, a procura do DNA possibilitou reacender todo aquele afã determinista biológico outrora adormecido pelas barbáries eugênicas da Segunda Grande Guerra. Muito embora útil à solução daqueles casos em que se espera por um culpado ou nos quais um inocente fora injustamente condenado, a constituição de um banco de dados genéticos causa uma certa desconiança, justamente, pelo considerável risco de “ver desenvolver-se um determinismo genético sub-reptício, que desperte a esperança de achar no patrimônio genético os marcadores biológicos do homem criminoso” (COURTINE; VIGARELLO, 2008, p. 361). Portanto, uma manipulação equivocada dos peris possibilita, via “criminologia eugênica”, a criação de criminoso natos (RAFTHER, 1997, p. 08-09) – mormente com aquela determinista correlação entre as informações genéticas de raça, histórico clínico, etc. e a criminalidade1. Cego a quaisquer críticas que se apresenwww.ibraspp.com.br 15 tem à “infalibilidade” da colheita e guarda da prova genética, o ordenamento jurídico brasileiro recebeu uma nova herança autoritária com a edição da Lei nº 12.654/2012. Vigente a partir de 28 de novembro de 2012, a nova legis prevê a coleta de peril genético para ins de identiicação criminal, bem como a criação de um banco de dados para o armazenamento das informações. Dentre tantas mazelas existentes no texto legal (LOPES JR., 2012, p. 5-6), entendese que a maior polêmica está contida no enfadonho enxerto do artigo 9º-A na Lei de Execução Penal que, a seu turno, passa a exigir que todos condenados por crimes violentos ou hediondos sejam submetidos, obrigatoriamente, à identiicação do peril genético, mediante extração de DNA, por técnica adequada e indolor. Desse modo, origina-se uma “intervenção corporal obrigatória” aos condenados por delitos graves e hediondos que tem por objetivo precípuo o fornecimento de um peril genético a alimentar a base do banco de dados. Porém, destinada especiicamente ao porvir, a violação coercitiva corporal aparece despida de uma concreta inalidade processual probatória (diz respeito apenas a uma situação futura, incerta e hipotética), não guardando um juízo de proporcionalidade exigido para amparar a obrigatoriedade da tamanha intromissão. Como assevera Umberto Galimberti, em um mundo de meios, onde não há im a aparecer no horizonte, não existem mais leis morais, tampouco imperativos que não se inscrevam naquela regra de conduta que a técnica anuncia quando prescreve que “se deve fazer tudo aquilo que se pode fazer”, e, por consequência, “se deve empregar tudo aquilo que estiver disponível” (GALIMBERTI, 2006, p. 819). Em face das evidentes limitações à esfera privada do indivíduo, a medida (odiosa) de intervenção corporal sempre merece igurar como ultima ratio do sistema probatório. Logo, muito longe de possuir um status obrigatório, deve ser demonstrada pelas autoridades (policiais, judiciais ou penitenciárias) a necessidade da intromissão corporal e a impossibilidade de aquisição do material genético por outros meios menos invasivos. Decerto o recolhimento de ios de cabelos (encontrados nos dormitórios das celas ou retirados durante o corte), a apreensão de escovas de dentes, dentre tantas outras possibilidades, poderiam suprir facilmente a obrigatoriedade da nefasta submissão. Como cediço, a compulsão solapa o silêncio. Assim, para além de fulminar o nemo tenetur se detegere (VAY; ROCHA E SILVA, 2012, p. 13-14), a (inválida) Lei nº 12.654/2012 revive aquela lógica previdente iccional, porquanto o indivíduo é, via in- tervenção corporal, compelido a produzir prova (contra si mesmo) para um futuro delito que sequer aconteceu! Uma vez identiicado (geneticamente) e atado às amarras do sistema, não há como o condenado se desvencilhar de sua imanente periculosidade – sobretudo quando inexiste previsão legal de prazo para a retirada de seu peril do banco de dados2. Um Minority Report à brasileira que, por óbvio, faria Galton regozijar de alegria. Referências: Notas COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Identiicar: Traços, indícios, suspeitas. In: CORBIN, Alain; COURTINE, JeanJacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: As mutações do olhar: o Século XX. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. v. 3. p. 341361. 1 DICK, Philip K.. Minority Report: A Nova Lei. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. GALIMBERTI, Umberto. Psiche e Techne: o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus, 2006. GALTON, Francis. Finger prints. London: Macmillian & Co., 1892. GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2010. LOPES JR., Aury. Lei 12.654/2012: É o im do direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere)? Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 20, nº 236, p. 5-6, julho, 2012. QUEIROZ, André. Minority Report e a gestão do futuro. Revista FAMECOS, Porto Alegre, nº 28, p. 55-62, dez. 2005. RAFTHER, Nicole Hahn. Creating born criminals. Urbana: University of Illinois Presss, 1997. VAY, Giancarlo Silkunas; ROCHA E SILVA, Pedro José. A identiicação criminal mediante coleta de material biológico que implique intervenção corporal e o nemo tenetur se detegere. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 20, nº 239, p. 13-14, out. 2012. “Creio que os sociobiólogos cometeram um erro fundamental de categorias. Eles procuram a base genética do ser humano no lugar errado. Procuram-na entre os produtos especíicos das leis geradoras – a homossexualidade de Joe, o medo de estranhos de Marta –, quando as mesmas leis são as estruturas genéticas profundas do comportamento humano (...). Se nos concentramos em cada objeto, e procuramos uma explicação especíica de seu comportamento, estamos perdidos. A busca da base genética da natureza humana nos comportamentos especíicos é um exemplo de determinismo biológico” (GOULD, 1991, p. 352-353). Em S. e Marper v. Reino Unido, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos decidiu que o armazenamento dos peris genéticos por tempo indeterminado – sobretudo naqueles casos em que não houve condenação – conigura uma medida desproporcional e atentatória contra a esfera privada do indivíduo (art. 8º da Convenção). 2 16 ibraspp 17 INQUISITÓRIO VERSUS ACUSATÓRIO: não vamos superar a dualidade sem demarcá-la Leonardo Augusto Marinho Marques Tradicionalmente, a teoria do processo penal divide os modelos de justiça criminal em dois grandes sistemas. Na visão de BINDER (2003:25-26), cada sistema representa a síntese de uma relação dialética entre garantia e eiciência, e revela a orientação predominante em cada momento da História. Nesse contexto, o sistema inquisitório se funda em uma política de máxima segurança, que se realiza a partir de um poder concentrado, com competência exclusiva para investigar (e solucionar) o caso penal. A inquisitoriedade busca eiciência punitiva no combate à criminalidade e não se preocupa com o processo constitucional. Já o sistema acusatório se legitima na órbita dos direitos fundamentais. Nele, a intervenção penal ocorre em sintonia com os direitos constitucionalizados, valorizando o debate em contraditório. A acusatoriedade celebra a audiência, a ampla argumentação e o direito à prova. Há quem mencione um terceiro sistema, que reuniria características dos dois principais. A expressão sistema misto não me agrada. Discordo daqueles que defendem a existência do sistema híbrido, insistindo na “simples” mescla de elementos. Reconheço que o Código de Instrução Criminal de 1808 revigorou a técnica inquisitória, conferindo-lhe novos contornos. Entendo, porém, que o novo formato não desnaturarou a metodologia inquisitória. Não é difícil perceber que a formação antecipada de culpa, o caráter oicial do discurso penal, o protagonismo do juiz (que manteve função acusatória e poderes instrutórios), a busca da verdade, o superdimensionamento da escrita e o segredo (fator de blindagem da cognição) permaneceram presentes na realidade do processo penal, concedendo sobrevida à tecnologia www.ibraspp.com.br Renunciar ao estudo da inquisitoriedade signiicaria renunciar à compreensão da nossa formação histórica. Não há como reformar o processo penal sem dialogar com a nossa tradição. Leonardo Augusto Marinho Marques Doutor em Ciências Penais pela UFMG Professor de Processo Penal da PUCMinas e da UFMG Advogado inquisitória. Preiro, então, denominar essa fase de nova inquisitoriedade e rejeitar a expressão sistema misto. A nova inquisitoriedade preservou a técnica, mas se difere da inquisitoriedade medieval. Apenas para ilustrar, conjuga protagonismo judicial com actum trium personarum. Importante saber que se trata do mesmo método, sob nova roupagem. Independentemente da existência de três possíveis sistemas ou, como preiro, da existência de uma nova forma de inquisitoriedade iniciada no século XIX, alguns importantes pesquisadores brasileiros passaram a questionar o sentido da dicotomia acusatório versus inquisitório, acompanhando o pensamento recente de processualistas europeus (WINTER:2008 e AMBOS:2008). Com efeito, esse debate teve origem nos Estados Unidos, quando alguns autores começaram a diferenciar o sistema adversarial do sistema acusatório clássico, impugnando, por conseguinte, a associação entre sistema acusatório e o processo penal norte-americano. Segundo VOGLER (2008: 182-189), o sistema adversarial nasceu na Inglaterra. Entre os anos de 1740 e 1770, alguns expedientes inquisitoriais foram erradicados da terra da Rainha, graças à intervenção dos advogados no processo penal. A partir desse momento, diversas garantias como a presunção de inocência, o direito ao silêncio, o ônus da prova para a acusação e a proibição do interrogatório policial foram integradas ao processo. O novo procedimento, de natureza adversarial, foi dividido em duas partes, para separar os argumentos da acusação dos argumentos da defesa. Nos séculos seguintes, o sistema adversarial foi aprimorado nos países de cultura anglo-saxônica. Novamente, os advogados foram decisivos. Sua atuação na fase pré-processual fez despertar a consciência de que as garantias constitucionais impunham limites à investigação. A tortura foi elidida. Todo cidadão adquiriu o direito de apresentar a própria argumentação e de desenvolver a sua defesa. Posteriormente, o juízo oral, publico e aberto constituiu o núcleo central do sistema adversarial. O novo método serviu de modelo para rees- truturação do processo penal da Alemanha e da Itália, na segunda metade do século XX, ante a necessidade de se restaurarem as garantias suprimidas pelo nazismo e o fascismo . A superação da tradicional divisão entre acusatório e inquisitório encontra apoio no pensamento de DAMASKA (2000). Rompendo com essa dualidade, o autor prefere reclassiicar os sistemas judiciais de cada país, conforme o modelo de administração da justiça. Aproveitando a síntese de CLEMENTEL (2011), pode-se dizer que, em sua reclassiicação, DAMASKA considera a estrutura de poder adotando como referência seus elementos conceituais necessários, como os mecanismos decisórios, a qualidade dos funcionários e a natureza das normas que regem a instituição, bem como o modelo procedimental adotado (adversarial ou investigação oicial). Registro, desde logo, não ser contra nenhum dos argumentos que aportam no Brasil pró superação da dicotomia. Faz-se realmente necessário ampliar o horizonte do processo penal para além do binômio inquisitório-acusatório. Precisamos, urgentemente, compreender a nova inquisitoriedade do século XIX, que molda a ideologia do Código de 1941. Temos que conhecer melhor as raízes do modelo adversarial e estudar o seu processo evolutivo. Concordo que a análise do modelo de administração da justiça é imprescindível. Devemos, inclusive, pesquisar a nossa tradição de organização judiciária. Mas revelo a minha especial preocupação com o descarte dos sistemas de referência que, até então, orientavam nossas pesquisas. Não podemos simplesmente ignorá-los e propor a reclassiicação dos sistemas judiciais segundo os critérios sugeridos por DAMASKA (2000). No meu entendimento, esses critérios são complementares, e não substitutivos. Acredito que o estudo do sistema acusatório ainda se faz importante, nem que seja para nos mostrar seus limites históricos. Ainal de contas, foram eles que levaram à airmação do método inquisitório na baixa Idade Média. Julio Fabbrini ibraspp www.ibraspp.com.br A adversariedade reclama restrição àquele poder concentrado, realizador de uma política de máxima segurança. Referências: 19 MIRABETE & Renato N. Fabbrini AMBOS, Kai. El principio acusatório y el proceso acusatório: un intento de comprender su signiicado actual desde la perspectiva histórica. In: WINTER, Lorena Bachmaier. Proceso penal y sistemas acusatórios. Marcial Pons: Madrid, 2008 BINDER, Alberto M. Introdução ao Direito Processual Penal. Trad. Fernando Zani. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. CLEMENTEL, Kingeski Fabiano. Vale a pena salvar a dicotomia sistema inquistório – sistema acusatório? Boletim Informativo Ibrapp – ano 01 – nº 1, p. 14-15, 2011/02. DAMASKA, Mirjan R. Las caras de la justicia y el poder del Estado: análisis comparada del proceso legal. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2000. VOGLER, Richard. El sistema acusatório en los procesos penales em Inglaterra Y en Europa continental. In: WINTER, Lorena Bachmaier. Proceso penal y sistemas acusatórios. Marcial Pons: Madrid, 2008. WINTER, Lorena Bachmaier. Acusatorio versus inquisitivo. Relexiones acerca Del proceso penal. In: WINTER, Lorena Bachmaier. Proceso penal y sistemas acusatórios. Marcial Pons: Madrid, 2008. Manual de Direito Penal I 29 edição (2013) | 488 páginas a Código Penal Interpretado 8 a edição (2013) | 2.424 páginas R$ 119,00 R$ 290,00 Manual de Direito Penal II 30 a edição (2013) | 576 páginas R$ 119,00 Manual de Direito Penal III 27 edição (2013) | 568 páginas a R$ 116,00 AT A 0800 17 1944 Preços sujeitos a alteração sem prévio aviso. Oferta válida até 31/8/2013. TU 13 A ALIZA 0 2 DE % 0 2DESCONTO E + FREÁTTIS GR S DA Considero, igualmente, imprescindível, o estudo da inquisitoriedade medieval. Poderia apresentar vários argumentos, mas vou apenas lembrar que o modelo inquisitório esteve presente na maior parte da nossa História: Ordenações, Código de Processo Criminal do Império, reformas de 1841 e de 1871. Renunciar ao estudo da inquisitoriedade signiicaria renunciar à compreensão da nossa formação histórica. Não há como reformar o processo penal sem dialogar com a nossa tradição. A demarcação dos sistemas inquisitório e acusatório, como sistemas de referências, e não como sistemas puros e datados, é fundamental, justamente porque: (a) permite compreender os limites do sistema acusatório clássico e conscientizar de que é impossível reimplementá-lo em seu formato original; (b) demonstra que a inquisitoriedade não se reduz a uma prática da Inquisição; (c) revela que a inquisitoriedade esteve presente em países não dominados pela Inquisição; (d) esclarece que a inquisitoriedade não cessou com o im do medievo; (e) permite visualizar a nova inquisitoriedade, que se inicia no século XIX e se estende pelo século XX; (f) afasta a ilusão de que é possível construir um sistema puro; (g) permite compreender a origem e a evolução do sistema adversarial; (h) evidencia a crise do processo penal da Europa continental, no Pós-Segunda Guerra, na qual continuamos imersos pela inluência do anteprojeto de Rocco sobre o nosso Código de Processo Penal. Com base nesses argumentos, insisto: não vamos superar a dualidade sem demarcá-la. Sem os modelos de referência, corremos o risco de não compreender adequadamente a nova inquisitoriedade. O método adversarial surgiu quando se fez necessário restringir a sua inluência. Então, o debate em contraditório passou a ser valorizado. Já renunciamos àquele ideal de um sistema puro, imune a qualquer resquício inquisitório. Mas achar que é possível construir, no Brasil, um modelo paritário de justiça e adotar o procedimento adversarial, sem delimitar as características da inquisitoriedade, e sem compreender a nova inquisitoriedade, parece-me ingenuidade. EDIÇÕ ES 18 20 ibraspp 21 DNA e Processo Penal: até quando se legitima o controle punitivo através da conservação de dados genéticos? Vinicius Gomes de Vasconcellos O legislador brasileiro andou bem ao tentar atualizar o processo penal às novas [...] mas esqueceu de adequar estas inovações aos direitos e garantias fundamentais. Vinicius Gomes de Vasconcellos Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS. Especialista em “Derechos Fundamentales y Garantías Constitucionales en la Justicia Penal” pela Universidad Castilla-La Mancha/Espanha (2013) Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS (2012) Pesquisador bolsista de iniciação cientíica CNPq (2009/2012) www.ibraspp.com.br Diante das novas tecnologias e do constante clamor social por maior efetividade e rapidez na persecução criminal, percebe-se que o direito processual penal é área de intenso debate e questionamento. Nesse diapasão, o legislador brasileiro, embora mantendo sua morosidade característica, se movimenta no sentido de alterar dispositivos legais, em regra agravando as já frágeis tensões a direitos e garantias fundamentais, basilares ao Estado Democrático de Direito. Assim, em maio de 2012 surge a Lei 12.654, alterando disciplinas em matéria de identiicação criminal e execução penal. Tal modiicação pode ser apontada como mais uma resposta ao intrigante cenário atual. Em tempos de um direito penal cada vez mais atuante no controle das relações sociais1, o processo penal acaba por se adaptar a clamores sociais por punições rápidas e exemplares. Podemos citar como exemplos dessa criticável transformação tanto a utilização maciça e infundada de prisões cautelares, quanto as tendências de expansão de espaços de consenso, a partir dos institutos de barganha e delação premiada. Assim, a utilização de exames genéticos na persecução criminal pode ser vista por alguns como um meio de prova indiscutível2, que seria capaz de solucionar casos deinitivamente e de modo célere, assim contribuindo para a imposição de sanções que se pretendem imediatas3. A reforma legislativa aqui analisada almejou regular a utilização de exames de DNA no processo penal brasileiro, posto que tal cenário se mostrava carente de positivação especíica anteriormente. Conforme Lopes Jr., duas são as possibilidades agora previstas (2012, p. 05): 1) durante a investigação e a instrução criminal, a extração de material genético do investigado, com o im de ser prova para um caso concreto e determinado; e, 2) depois da condenação deinitiva, a coleta de informações genéticas para banco de dados, de modo a servir de parâmetro para futuras apurações de crimes de autoria incerta. Tais hipóteses foram reguladas de modo distinto, ao passo que a principal diferença é o âmbito de legitimidade para a imposição. No caso de suspeitos, tal medida pode ser decretada diante de qualquer fato supostamente criminoso, tendo como requisito somente uma decisão judicial que reconheça a necessidade para as investigações. Por outro lado, o material genético de condenados deinitivamente só pode ser extraído e adicionado a banco de dados em hipóteses de crimes hediondos ou dolosos com violência de natureza grave contra a pessoa. Agora que já introduzido o panorama do debate, deve-se delinear o objetivo deste sucinto artigo. Ao se estudar os dispositivos introduzidos ao ordenamento jurídico pátrio pela Lei 12.654/12, percebe-se que não houve a adequada regulação dos limites temporais de tal ingerência sobre a pessoa investigada ou condenada. Ou seja, o legislador brasileiro andou bem ao tentar atualizar o processo penal às novas tecnologias (embora mantenha a criticável postura de ambíguas reformas parciais e que tal alteração apresente questionável constitucionalidade),4 mas esqueceu de adequar estas inovações aos direitos e garantias fundamentais. E é aí que pretende se centrar este estudo, em uma das questões relativas à limitação de tal discricionariedade, dentre as tantas que surgem da leitura e interpretação do novo texto legal: até quando o poder estatal pode manter dados genéticos de cidadãos em seus bancos de informações criminais? A única referência à exclusão dos padrões de DNA do acusado se dá na nova redação do artigo 7º-A da Lei 12.037/09, em razão do transcorrer do lapso temporal necessário à prescrição do delito investigado. Tal lacuna se mostra demasiadamente grave, pois a possibilidade de cancelamento do cadastro pode se dar em diversas hipóteses, como o arquivamento da investigação, o não recebimento da denúncia, a absolvição do réu, dentre inúmeras outras situações. Denise Hammerschmidt (2012, p. 156) aponta que a legislação espanhola prevê inclusive a possibilidade de recurso a instâncias superiores em caso de negativas injustiicadas da exclusão. Na busca de sanar tal problema, se mostra adequada a proposta de Lopes Jr. (2012, p. 6) ao defender a aplicação, por analogia, do disposto no artigo 7º da Lei 12.037/09, o qual permite a retirada de identiicações fotográicas do acusado nos casos anteriormente citados de modo exempliicativo. Neste sentido, pode-se imaginar a seguinte situação, bem apontada por Denise Hammerschmidt (2012, p. 156): um indivíduo é investigado por suposto delito de roubo simples com ameaça, ou seja, sem violência de natureza grave contra pessoa nem hediondo, responde a processo e tem material genético coletado com base na Lei 12.037/09; ao im, é condenado deinitivamente e começa a cumprir pena. Questiona-se, então, qual a providência a ser adotada com relação aos seus dados de DNA? Podem ser enviados para adição ao banco de dados? A resposta adequada parece ser negativa, ao passo que a regulação prevista na Lei de Execuções Penais se restringe aos crimes ali determinados e, assim, se impõe a exclusão dos dados ao im do processo. Por outro lado, quanto ao caso de condenados deinitivamente se mostra ainda mais insuiciente a nova regulamentação, posto que em nenhum momento determina hipóteses de exclusão dos dados. Ou seja, a simples leitura do texto pode acarretar a ideia de que tal banco genético seria eterno, o que, por óbvio, viola diversos pressupostos de um processo penal adequado ao Estado Democrático de Direito. Aqui também interessante é a proposta de Lopes Jr. (2012, p. 06) no sentido de utilizar, por analogia, o instituto da reabilitação, previsto nos artigos 93 e seguintes do Código Penal, de modo a apagar os registros após o decorrer de dois anos da extinção ou do cumprimento da pena. Outra opção, adotada na Espanha (artigo 9º da Lei Orgânica 10/2007) e apontada por Susana Kappler 22 ibraspp 23 (2008, p. 146), determina a exclusão a partir do momento do cancelamento dos antecedentes criminais em relação ao delito punido. No cenário brasileiro, tal hipótese poderia se encaixar no transcorrer dos cinco anos para o im da caracterização de reincidência, conforme o artigo 64, inciso I, do Código Penal. Diante do exposto, conclui-se que a nova legislação apresenta questões passíveis de pertinentes críticas, inclusive quanto à sua constitucionalidade, além de conter lacunas que podem ocasionar graves violações a direitos fundamentais. Assim, não se pode sustentar que o Direito Processual Penal ique alheio às novas tecnologias, como os exames de DNA, mas tais inovações precisam ser reguladas de modo compatível com um processo penal democrático constitucionalmente orientado. O poder punitivo precisa ser constantemente limitado e criticado, sob pena de uma expansão sem limites da arbitrariedade e do autoritarismo. Bibliograia: Notas: ARMENTA DEU, Teresa. Lecciones de Derecho Procesal penal. Madrid: Marcial Pons, 2012. 1 CALLEGARI, André L.; WERMUTH, Maiquel A. D.; ENGELMANN, Wilson. DNA e Investigação Criminal no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição. Princípios Constitucionais do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. HAMMERSCHMIDT, Denise. Identiicación genética, discriminación y criminalidad. Un análisis de la situación jurídico penal en España y en Brasil. Curitiba: Juruá Editora, 2012. KEPPLER, Susana Álvarez de Neyra. La prueba de ADN en el proceso penal. Granada: Editorial Comares, 2008. LOPES JR., Aury. Lei 12.654/2012: É o im do direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere)? Boletim do IBCCrim, nº 236, p. 5-6, São Paulo, julho 2012. Tal cenário é bem descrito por: SILVA SÁNCHEZ, Jesús María, La expansión del Derecho penal. Madrid: Edisofer, 2011; PRATT, John, et all. (Org.), he New Punitiveness. Portland: Willan Publishing, 2005; SIMON, Jonathan. Governing hrough Crime. How the war on crime transformed american democracy and created a culture of fear. Oxford: Oxford University Press, 2007. Lopes Jr. conclui seu artigo apontando que o exame de DNA, embora importante para a formação da convicção do julgador, precisa ser visto como “mais uma prova, sem qualquer supremacia jurídica sobre as demais”, de modo a, assim, garantir a ampla defesa e o contraditório. (LOPES JR., Aury. Lei 12.654/2012: É o im do direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere)? Boletim do IBCCrim, no 236, p. 5-6, São Paulo, julho 2012, p. 6) 2 Sobre isso, ver: CALLEGARI, André L.; WERMUTH, Maiquel A. D.; ENGELMANN, Wilson. DNA e Investigação Criminal no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 42-56. 3 Instigantes considerações sobre a constitucionalidade das alterações trazidas pela Lei 12.654/12 são apontados por: LOPES JR., Aury. Lei 12.654/2012: É o im do direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere)? Boletim do IBCCrim, nº 236, p. 5-6, São Paulo, julho 2012; MAHMOUD, Mohamad Ale Hasan; MOURA, Maria hereza Rocha de Assis. A Lei 12.654/2012 e os Direitos Humanos. Revista Brasileira de 4 MAHMOUD, Mohamad Ale Hasan; MOURA, Maria hereza Rocha de Assis. A Lei 12.654/2012 e os Direitos Humanos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 20, nº 98, p. 339-360, set. 2012. Ciências Criminais, São Paulo, v. 20, nº 98, p. 339-360, set. 2012. O Reflexo da Falsificação da Lembrança no Ato de Reconhecimento Cristina di Gesu No ato de reconhecimento uma pessoa é levada a perceber alguma coisa e, recordando o que havia percebido em um determinado contexto, compara as duas experiências. O responsável pela diligência pergunta se o sujeito está frente ao mesmo objeto (pessoa ou coisa) (CORDERO, 2000, p. 106). Com efeito, quanto mais repetida a percepção, mais complexa e mais precisa ela será. A exatidão da percepção e a capacidade de distinguir detalhes depende, geralmente, do conhecimento prévio acerca do objeto ou da pessoa a ser identiicada. Trata-se da percepção precedente, a qual pode, inclusive, ser fomentadora de erros. Um caso típico – não incomum nos processos criminais – acerca da percepção precedente diz respeito à recordação da fotograia de uma pessoa, vista em um álbum como sendo o autor do fato, quando na verdade não o é. Melhor dizendo, a vítima/testemunha recorda, na verdade, da fotograia que observou no álbum e não do suspeito em si (STEIN, BRUST, e NEUFELD, 2010, p. 22), gerando um enorme e gravíssimo equívoco. Embora seja um importante meio probatório do processo criminal, o reconhecimento não deve ser usado como a única prova para obter a condenação, pois fomentador de inúmeros erros. Assim, consoante explica GIACOMOLLI (2011, p. 155), a memória do reconhecimento é uma das formas mais estáveis de lembrança, permanecendo inalterada por duas semanas. Excetuando-se algumas interferências, diferencia-se da me- Cristina di Gesu Especialista e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Assessora de Desembargador, atuando junto 3ª Câmara Criminal do TJRS. www.ibraspp.com.br mória evocativa, isto é, aquela verbalizada através da descrição do fato delituoso e de seu autor. Nessa senda, a memória é muito mais exigida no que diz respeito à descrição do que em relação ao reconhecimento, pois neste ato o reconhecedor realiza uma espécie de juízo comparativo ou “juízo relativo”, no qual há confronto e seleção, dentre as pessoas exibidas, daquela que mais se parece com a recordação que tem do imputado. Isso, ainda segundo o aludido autor, explica as alarmantes estatísticas de erros quando a prova é baseada tão-somente na identiicação pessoal: “estatísticas revelam que num marco de dez anos, nos EUA, de quarenta casos em que houve condenação pelo reconhecimento do réu, em trinta e seis deles a autoria foi afastada depois de submissão ao exame de DNA. A única prova era o reconhecimento” (2011, p. 156). A importância da percepção precedente para o processo penal está justamente no reconhecimento de objetos e de pessoas. Elementar que a vítima de um delito e eventual testemunha presencial – as quais tiveram contato direto com o imputado, tendo a oportunidade de observá-lo porque o rosto ou parte dele estava descoberto –, tenham mais facilidade de reconhecê-lo posteriormente. O mesmo ocorre com a identiicação de objetos, na medida em que esta é facilitada se efetivamente pertenciam à pessoa ofendida, devido ao contato prévio. Parte da premissa de que “é reconhecível tudo o que podemos perceber, ou seja, só é passível de ser re-conhecido, o que pode ser conhecido pelos sentidos” (LOPES Jr, 2007, p. 631). Entretanto, a percepção precedente também é geradora de erros. E neste ponto é que reside o perigo. Isso porque “a expe- 24 ibraspp riência passada, que deixou suas impressões na nossa memória, completa continuamente a nossa experiência presente” (ALTAVILLA, 1945, p. 24). Tal situação pode acontecer quando se está diante de formas antecedentes ao reconhecimento direto, isto é, em situações não previstas na legislação brasileira. Nessa perspectiva, o reconhecimento fotográico constitui-se em uma diligência policial de uso frequente, diante da carência de suicientes dados identiicadores, através do qual se procura orientar o início da investigação mediante a apresentação de arquivos ou álbuns de pessoas “ichadas”. O ideal seria que o reconhecedor descrevesse a pessoa a ser reconhecida, nos termos do inciso I do artigo 226 do Código de Processo Penal. Ocorre que na fase pré-processual, comumente são apresentadas fotograias dos supostos imputados às vítimas, como um ato preparatório do reconhecimento pessoal. O Superior Tribunal de Justiça vem sustentando a necessidade da colocação da fotograia do suspeito ao lado de outras com características semelhantes (reconhecimento sequencial), isto é, que o ato cumpra as formalidades previstas no artigo 226 do CPP, com o intuito de dar maior legitimidade e credibilidade à identiicação preliminar1. Se por algum motivo o ofendido ou a testemunha não conseguiu, no momento da prática delituosa, captar a imagem do suspeito – devido ao efeito “foco na arma” (LOPES JR, 2007, p. 638);2 porque ele estava com o rosto encoberto por touca ou capacete; ou porque não obteve contato direto com aquele envolvido, dentre outras diversas moduladoras que concorrem para piorar a qualidade da identiicação, tais como o tempo da exposição da vítima ao crime e ao contato com o agressor, a gravidade do fato, o intervalo de tempo entre o delito e a realização do reconhecimento, as condições ambientais (visibilidade, aspectos geográicos), as condições psíquicas da vítima (memória, estresse, nervosismo), a natureza do delito, ente outros (LOPES Jr., 2007, p. 63) – poderá ixar na memória a fotograia anteriormente vista, sendo induzido a posterior reconhecimento pessoal. www.ibraspp.com.br 25 Denuncia CORDERO (2000, p. 111) que o reconhecedor trabalha sobre uma matéria alógica, em curto-circuito com as sensações: a sensação de já tê-lo visto (dejá vu) está entre as menos exploráveis; assim, reconhece uma face em relação à qual não recorda nada e sofre fortes variáveis emocionais. Também as impressões visuais duram menos que a memória historicamente elaborada, pois recorda os reconhecimentos ainda que os rostos já tenham desaparecido. Os mecanismos de recordação e as curvas do esquecimento diferem claramente nos dois casos. Por último, aquele chamado a reconhecer sente os fatores ambientais mais do que se os narrasse. Além disso, muitas identiicações são positivadas justamente devido à crença das pessoas de que a polícia somente realiza um reconhecimento quando já tem um bom suspeito. Ainda, há que se considerar o chamado “efeito compromisso”. Este ocorre quando há uma identiicação incorreta, isto é, a pessoa analisa muitas fotograias e elege o sujeito incorreto, persistindo no erro ao efetivar o reconhecimento pessoal, devido à tendência de manter o compromisso anterior, mesmo que com dúvidas (LOPES Jr., 2007, p. 639). A indução pode também ocorrer quando, no ato de reconhecimento direto, não são cumpridas as disposições previstas no artigo 226 do CPP, principalmente no que concerne aos incisos I (descrição, pelo reconhecedor, da pessoa a ser identiicada) e II (roda de reconhecimento). Em que pese a legislação processual brasileira fazer menção à “possibilidade” de a pessoa a ser reconhecida ser colocada ao lado de outras que tenham as mesmas características físicas, defendemos a obrigatoriedade do procedimento, tendo em vista se tratar de ato formal. Neste caso, a interpretação da lei deve ser restrita, pois somente desta forma estar-se-á garantindo a observância das regras do jogo – não devemos nos esquecer que a forma do ato é garantia (BINDER, 2003 pp. 42-43) para o processo – e, principalmente, evitando à formação de falsas memórias. Neste ínterim, não se pode mais tolerar que réus algemados3 sejam levados à audiência Temos sérias dúvidas sobre o fato de a credibilidade/ coniabilidade do reconhecimento não ser afetada pela exibição prévia de fotograia daquele a quem se quer reconhecer, no caso de substituição da descrição do suspeito prevista no artigo 226, I, do CPP, mesmo que haja concordância da defesa [...] devido aos graves equívocos causados pela percepção precedente, pela possibilidade de falsiicação da lembrança ou qualquer outro fator contaminante. de instrução e o magistrado convide a vítima a reconhecê-los, pois certamente o farão, tendo em vista ser o imputado o único naquela situação, havendo grave violação das regras processuais. A observância das regras processuais penais confere maior credibilidade ao instrumento probatório, inclusive no que diz respeito à negativa de participação do ato, em decorrência do princípio do nemo tenetur se detegere (não auto incriminação). Consequentemente, haverá melhoria na qualidade da tutela jurisdicional, mesmo diante da absolvição de culpados, pois se trata do risco inerente à atividade processual, incerta e insegura, tal como preconiza a teoria do processo como situação jurídica de GOLDSCHMIDT (1935). Portanto, considerando que a função do reconhecimento é justamente dissipar qualquer dúvida acerca da participação do imputado no fato delituoso, deve revestir-se das formalidades legais. O ideal recomendado pelos pesquisadores é que o condutor do ato de reconhecimento desconheça quem seja o suspeito, bem como que a vítima e/ou a testemunha presencial, se houver, diga, no momento do ato, o grau de certeza sobre a identiicação e não quando da documentação da ata ou certidão, pois o reconhecimento é invalidado quando se diz que o sujeito “é parecido” ou “bem parecido” com o réu (desde que não haja outras provas a incriminar o acusado, tais como a apreensão de bens, exame datiloscópico ou de DNA conirmando a autoria) ou então quando a descrição do envolvido não condiz com as características físicas do imputado (GIACOMOLLI, 2011, p. 159-160). Ademais, importante que nosso CPP, a exemplo de outros, tal como o italiano4 e o espanhol, tivesse previsão acerca de outras formas de reconhecimento, tais como o olfativo, o tátil e o acústico, a im de complementar e aprimorar o ato de identiicação pessoal. Do mesmo modo, tomando como exemplo a legislação processual penal de outros países, como na LECrim espanhola (MONTON REDONDO, 1996, p. 191), o reconhecimento pessoal, no Brasil, com o intuito de obter maior qualidade na realização do 26 ibraspp procedimento, reletindo-se na qualidade da própria jurisdição, deve observar, obrigatoriamente, a chamada “roda de reconhecimento”. Embora o artigo 226 do CPP faça menção à possibilidade de o suspeito ser colocado ao lado de outros, com semelhantes características físicas, não estabelece a obrigatoriedade do procedimento, sanção para o caso de descumprimento, nem ao menos o número de participantes. Destaca PAZ RUBIO (1997, p. 256) ser a diligência da roda de reconhecimento imprescindível ao próprio direito de defesa dos imputados ou processados, pois além de observar as garantias legais, na prática, muitos dos reconhecimentos não se conirmam perante a autoridade judicial. Temos sérias dúvidas sobre o fato de a credibilidade/coniabilidade do reconhecimento não ser afetada pela exibição prévia de fotograia daquele a quem se quer reconhecer, no caso de substituição da descrição do suspeito prevista no artigo 226, I, do CPP, mesmo que haja concordância da defesa (sob pena de grave violação do direito de não se auto incriminar) devido aos graves equívocos causados pela percepção precedente, pela possibilidade de falsiicação da lembrança ou qualquer outro fator contaminante. Ademais, as fotograias “não representam a imagem atual e nem a completude da pessoa” (GIACOMOLLI, 2011, p. 164), na medida em que se constituem “em uma representação estática, a qual restitui apenas uma parte dos estímulos presentes numa visão dinâmica.” (PRIORI, apud GIACOMOLLI, 2011, p. 164). Nessa senda, a roda de reconhecimento supõe a submissão de várias pessoas, com certa semelhança física, à percepção visual de quem pretende identiicar o possível culpado. O ato é realizado de forma individual e separadamente, quando forem vários os que tiverem de reconhecer uma pessoa, não podendo comunicar-se entre si até que seja feito o último reconhecimento. Realizar-se -á uma ata de seus resultados e circunstâncias, assim como os nomes dos integrantes da roda (MONTON REDONDO, 1996, p. 192). Contudo, a repetição da roda de reconhecimento, em juízo, é extremamente problemática, devido à diiculdade de www.ibraspp.com.br 27 reiteração do ato com as mesmas pessoas presentes na fase preliminar. Logo, a única presença repetida em ambos os casos seria o réu e isso constitui um inequívoco induzimento ao reconhecimento (LOPES Jr., 2007, p. 632). O fato é que o reconhecimento sequencial, com todas as suas formalidades – número de pessoas, troca de posições dos participantes, semelhanças físicas entre eles e necessidade de reiteração do ato em juízo – confere a este tipo de prova maior coniabilidade, minimizando o risco de eventuais induções e, consequentemente, a falsiicação da lembrança. A exemplo da ritualística processual dos países acima mencionados, nosso processo penal deve abandonar a utilização do reconhecimento por fotograia em substituição ao livre relato das características do imputado e, pior do que isso, os juízes e os Tribunais devem deixar fundamentar suas condenações com base tão-somente no reconhecimento fotográico e/ou reconhecimento pessoal sem a presença de outros igurantes e sem a produção de outros meios probatórios. Referências Bibliográicas: Notas: ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária. v. I. Tradução de Fernando de Miranda. 2ª ed. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva Editores, 1945. 1 BINDER, Alberto M. O Descumprimento das Formas Processuais. Elementos Para uma Crítica da Teoria Unitária das Nulidades no Processo Penal. Tradução de Ângela Nogueira Pessoa, com revisão de Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. 2 CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo II, Trad. Jorge Guerrero. Santa Fé de Bogotá – Colômbia: Editorial Temis, 2000. 3 GIACOMOLLI, Nereu José. A fase preliminar do processo penal: crises, misérias e novas metodologias investigativas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 4 GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1935. LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. v. I, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. MONTON REDONDO, Alberto. “El procedimiento preliminar (la instruccion)”, 1996. PAZ RUBIO, José María. Ley de Enjuciamiento Criminal y Ley Del Jurado, 9ª ed. Madrid: Editorial COLEX, 1997. STEIN, Lílian M., BRUST, Priscila G., e NEUFELD, Carmem B. “Compreendendo o fenômeno das falsas memórias”, In: Lilian Milnitsky Stein. (Org.). Falsas Memórias: Fundamentos cientíicos, aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010. Nesse sentido, destaca-se o seguinte precedente: HC 168.667/ SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 14/4/2011, DJe 4/5/2011. O chamado “efeito do foco na arma” traduz-se na redução da capacidade de reconhecimento, sendo decisivo para que a vítima não se ixe nas feições do agressor, pois o io condutor da relação que ali se estabelece é a arma. Tal variável deve ser considerada altamente prejudicial para um reconhecimento positivo. O uso das algemas foi regrado, nos termos da Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal. CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo II, 2000, p. 108. O Código de Processo Italiano contempla, além do reconhecimento visual (artigos 213 a 215), o reconhecimento por outros dados sensoriais (artigo 216). O artigo 216 permite reconhecimentos não visuais, ou seja, que envolva toda a gama de sentidos, tais como olfativo, táctil e acústico, podendo, inclusive, suceder que para a instrução penal interessem os sabores, como nos casos de corrupção ou envenenamento. 28 ibraspp 29 O julgamento colegiado da Lei 12.694/12 e a inelegibilidade da ficha limpa Luiz Antonio Borri Rafael Junior Soares A Lei Complementar 135/2010, popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, acrescentou diversos dispositivos na Lei Complementar 64/90 que traz as hipóteses de inelegibilidade no direito eleitoral. Dentro das principais modiicações criou-se a inelegibilidade decorrente da condenação penal com trânsito em julgado e a proferida por órgão judicial colegiado (art. 1º, I, e). No tocante à sentença com trânsito em julgado não há maiores problemas a serem examinados, uma vez que se trata de efeito decorrente da suspensão dos direitos políticos com previsão constitucional (art. 15, III, CF). O grande debate reside na inelegibilidade advinda da decisão proferida por órgão colegiado sem que haja efetivamente a preclusão recursal da decisão, em consonância com já consagrada jurisprudência da Corte Suprema no âmbito criminal que veda a execução antecipada da pena1. Apesar das inúmeras críticas feitas pela doutrina sobre a legislação (NETTO e NEISSER, 2012, Luiz Antonio Borri Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Advogado. Rafael Junior Soares Mestrando em Direito Penal pela USP Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC/UFPR e Direito Penal Econômico e Europeu pela Faculdade de Direito de Coimbra/ IBCCRIM Professor de Direito Penal e Processo Penal. Advogado. www.ibraspp.com.br p. 3-4), o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADC 29 e 30 e ADI 4578, entendeu que não haveria ofensa à Carta Magna, visto que a presunção de inocência limitarse-ia aos efeitos da condenação penal por força de exegese teleológica, de modo que atualmente se aplica paciicamente a novel legislação no âmbito das Cortes eleitorais,2 com espeque na ideia de que “a presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a uma redução teleológica, que reaproxime o enunciado normativo da sua própria literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal (que podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilidade), sob pena de frustrar o propósito moralizante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal.”3 Em resumo, não se vislumbrou a inelegibilidade eleitoral como um efeito próprio do decreto condenatório no âmbito penal, pois o trânsito em julgado da sentença condenatória somente seria exigível para ins de suspensão de direitos políticos. Ainda por ocasião do exame da ADC 29, assentou-se que: “a razoabilidade da expectativa de um indivíduo de concorrer a cargo público eletivo, à luz da exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º), resta afastada em face da condenação prolatada em segunda instância ou por um colegiado no exercício da competência de foro por prerrogativa de função”,4 ou seja, ao menos em princípio, o Excelso Pretório afastou a possibilidade de uma decisão condenatória criminal proferida por órgão colegiado em primeira instância ensejar a inelegibilidade do cidadão. Com efeito, deve-se atentar a circunstância de que o acórdão supramencionado foi prolatado em período predecessor à vigência da Lei 12.694/12, a qual, buscando conferir medidas de proteção às autoridades judiciárias, permitiu a instituição de colegiado para a prática de qualquer ato processual5 (GRECO FILHO, 2012, p. 2-3), especiicando de forma particular o ato de sentenciar (art. 1º, inc. III). Logo, com a promulgação da Lei 12.694/12 surgiu a possibilidade do julgamento colegiado em primeira instância quando houver o envolvimento de organização criminosa, visando claramente resguardar a integridade física dos magistrados envolvidos no exame desta espécie de criminalidade. Fica claro que o Supremo Tribunal Federal, no momento do enfrentamento da Lei da Ficha Limpa, ignorava a situação peculiar e especíica das organizações criminosas trazidas pela Lei 12.694/12, porém, com o advento da legislação, faz-se necessária avaliação acerca da aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa frente a esta nova realidade normativa. Nos termos do art. 1º da Lei 12.694/12, uma vez presentes situações concretas que acarretem risco à integridade física do juiz atuante na primeira instância, haverá a possibilidade de inauguração do colegiado para a prática de determinados atos processuais, dentre eles o proferimento de sentença. Desse modo, à luz do art. 1º, e, item 10, da Lei da Ficha Limpa, ter-se-ia situação totalmente inusitada, tendo em vista que agentes condenados apenas em primeira instância que praticarem os delitos por meio de organizações criminosas poderiam ser considerados inelegíveis por força da sentença condenatória dada pelo colegiado. Interessante notar que a Lei 12.694/12 traz o conceito de organização criminosa para ins de deliberação quanto ao colegiado, sem, contudo, criar qualquer tipo penal. Da mesma forma, a Lei da Ficha Limpa trouxe a inelegibilidade decorrente de crimes praticados por meio de organizações criminosas, ou seja, apenas airmando que seria o meio de cometimento do delito (sujeito ativo), não tipiicando a conduta. A partir do advento da legislação em co- Permitir que condenações dadas em primeira instância, desde que formadas por colegiados, possam automaticamente resultar na inelegibilidade, seria autorizar mais uma vez a violação à presunção de inocência mento, infere-se que, em se tratando de crime perpetrado por organização criminosa (art. 2º), plenamente possível a existência de uma sentença condenatória criminal em primeira instância proferida por órgão colegiado, a qual, em cotejo com o disposto no art. 1º, alínea e, item 10, da Lei Complementar 135/10, redundaria na inelegibilidade do acusado. O problema proposto reside exatamente em delimitar o conteúdo semântico da expressão órgão judicial colegiado prevista na alínea e anteriormente mencionada, uma vez que é no mínimo iníquo e desarrazoado permitir a inelegibilidade amparada no julgamento colegiado da Lei 12.694/2012. Numa primeira análise, as conclusões obtidas no julgamento do Supremo Tribunal Federal conduziriam ao entendimento de que as sentenças condenatórias prolatadas por grupo de pessoas formado em primeira instância para julgamento dos delitos concretizados por organização criminosa ensejariam a inelegibilidade do acusado. A situação retratada traz claro teor de injustiça e desproporcionalidade, visto que resulta verdadeira antecipação da inelegibilidade dos sujeitos simplesmente baseada na característica do autor do delito, isto é, a organização criminosa, em descompasso com os objetivos traçados na chamada Ficha Limpa. Busca-se com o julgamento formado por um grupo de pessoas obter maior segurança da decisão como forma de diminuir 30 ibraspp os erros judiciários, numa ideia de justiça ideal decorrente da maior experiência dos julgadores, porém, nos moldes da Lei 12.694/12, haveria apenas a construção do órgão colegiado para determinados atos visando a proteção dos membros e instituição, o que resultaria na falta de isonomia quanto às demais situações trazidas no ordenamento jurídico. Não bastasse, ter-se-ia a possibilidade da utilização do conceito de organização criminosa simplesmente para obter a antecipação da inelegibilidade, visto que se trata apenas de nomenclatura vaga e imprecisa dada ao sujeito ativo que pratica outros crimes. Desse modo, apesar das ressalvas quanto à Lei da Ficha Limpa, é necessário que haja condenação por órgão colegiado ao menos de segunda instância, que esteja numa função revisora do processo ou de competência originária, como foi mencionado pelo Supremo Tribunal Federal. Permitir que condenações dadas em primeira instância, desde que formadas por colegiados, possam automaticamente resultar na inelegibilidade, seria autorizar mais uma vez a violação à presunção de inocência, especialmente porque tal espécie de processo leva como pressuposto apenas a característica do sujeito ativo para ins de delimitação do que deverá ou não ser julgado. Não é a toa que a Lei Complementar 135/2010 delimitou como parâmetro para a inelegibilidade a existência de decisão tomada por órgão colegiado cujo enfoque seria decisões tomadas em segunda instância ou de competência originária, vedando-se a possibilidade de perda da elegibilidade quando existente apenas decisão de primeira instância. Ademais, a presunção de inocência no âmbito criminal não deve ser dissociada da esfera eleitoral, isto porque, segundo a doutrina: “tal garantia estende sua eicácia além do processo penal, incluindo os demais ramos da jurisdição e, mais além inclusive, do campo propriamente jurisdicional, pois alcança até a atividade administrativa sancionadora” (TORRES apud LOPES JR., 2008, p. 180), logo, não se mostra possível restringir a garantia constitucional a im de antecipar a incidência de efeito da sentença www.ibraspp.com.br 31 condenatória criminal quando se trate de organização criminosa. Portanto, cristalino que a admissão da inelegibilidade por força de condenação penal em primeira instância cujo julgamento foi feito por meio de colegiado ocasionará situação injusta, desproporcional e violadora da isonomia, precipuamente diante da indevida limitação à garantia da presunção de inocência em casos onde se está presente eventual organização criminosa processada com esteio na Lei 12.694/12. Referências: GRECO FILHO, Vicente. Considerações processuais da lei de julgamento de crimes envolvendo organização criminosa. Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 20, nº 239, p. 2-3, outubro 2012. Edições 2013 Atualizadas COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E SUA JURISPRUDÊNCIA NETTO, Alamiro Velludo Salvador. NEISSER, Fernando Gaspar. Lei da icha limpa e direito penal: a corrosão dos princípios da legalidade e da presunção de inocência. Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 20, nº 233, p. 2-3, abril 2012. LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Notas por 5ª edição (2013) 1.528 páginas de R$ 189,00 R$ 151,20 CURSO DE PROCESSO PENAL 17ª edição (2013) 1.032 páginas de R$ 106,00 R$ 84,80 por HC 84078, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 5/2/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-05 PP-01048. 1 Recurso Ordinário nº 452425, Acórdão de 14/12/2010, Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Relator(a) designado(a) Min. ENRIQUE RICARDO LEWANDOWSKI, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data 14/12/2010. 2 ADC 29, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 16/2/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-127 DIVULG 28-6-2012 PUBLIC 29-6-2012. 3 ADC 29, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 16/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-127 DIVULG 28-6-2012 PUBLIC 29-6-2012. 4 O autor destaca o seguinte: “trata-se, a formação do colegiado, de incidente processual em que o juiz declina da sua competência singular e atribui competência a um órgão colegiado em primeiro grau. Apesar de o juízo togado colegiado em primeiro grau já ser adotado em outras legislações, é novidade no processo penal brasileiro e mais novidade ainda ser eventual e condicionado a certos requisitos a seguir enumerados”. Considerações processuais da lei de julgamento de crimes envolvendo organização criminosa. Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 20, nº 239, p. 2-3, outubro 2012. 5 Preços sujeitos a alteração sem prévio aviso. Oferta válida até 31/8/2013. 32 ibraspp 33 Primeiros aspectos da “nova” Lei Seca Gabriel Ferreira dos Santos Estaremos em breve presenciando a condenação de sujeitos que, uma vez negando-se a realizar o teste do etilômetro, serão condenados com base na presunção. Gabriel Ferreira dos Santos Mestre em Direito pela UNISINOS, Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade IMED/Passo Fundo – RS. www.ibraspp.com.br No ano de 2008 a legislação de trânsito nacional foi alterada (Lei nº 11.705) para introduzir em nosso sistema a intitulada “Lei Seca”, com a promessa de rigor no tocante à combinação ingestão de álcool e direção de veículo automotor. Após quatro anos de vigor da Lei e o não atingimento de muitos de seus objetivos propostos, eis que no mês de dezembro de 2012 exsurge a Lei nº 12.760, renovando as promessas de uma verdadeira implantação de “Lei Seca” no país. Em que pese os relexos e/ou as inovações introduzidos(as) no campo administrativo, é no aspecto (processual) penal que pairam os maiores celeumas. No tocante à tipiicação criminal, será aplicada pena de detenção de seis meses a três anos para todo aquele que conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da inluência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.1 De acordo com a Lei nº 12.760, a referida alteração da capacidade psicomotora poderá ser constatada pela concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar, bem como por sinais que indiquem, na forma da resolução do CONTRAN, tal alteração. Refere o texto legislativo, ainda, que a veriicação poderá se dar por teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal e outros meios de provas em direito admitidos. E a redação do dispositivo contempla um grand inale: observado o direito à contraprova. Pelo cenário apresentado, visualizamos de difícil (e porque não improvável) a implantação de determinados aspectos (processuais) penais da nova lei. Isso porque ela se lança em um temerário entrelaçamento entre aspectos objetivos e subjetivos para a tipicidade do crime de embriaguez ao volante. Explica-se: a lei manteve grau de alcoolemia como condição de possibilidade para (com)provar a alteração da capacidade psicomotora do condutor de veículo (concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar), os quais somente podem ser mensurados com o teste de etilômetro (aspecto objetivo). Nesse ponto, sua constitucionalidade é duvidosa, uma vez que a negativa por parte do condutor em submeter-se ao referido teste implicará a aplicação de sanção administrativa, na qual restará presumida(!) a alteração da capacidade psicomotora daquele. Não se faz necessária maior digressão argumentativa para concluir-se que o relexo na esfera (processual) penal será inevitável. Todavia, a realização do teste do etilômetro é apresentada como uma “benesse” ao condutor, traduzido em um meio probatório capaz de provar a inocência do acusado (eufemisticamente chamado de contraprova). Nota-se, pois, que restam afastadas quaisquer garantias mínimas de um processo penal democrático. Extirpa-se qualquer enunciado de um sistema processual acusatório, e, com ele, o nemo tenetur se detegere2 (ninguém é obrigado a se autoincriminar) e a presunção de inocência. Por seu turno, de acordo com a “Nova Lei Seca”, a negativa por parte do sujeito em submeter-se ao teste do etilômetro, não mais obstará sua prisão em lagrante, eis que outros meios de provas mostram-se aptos a comprovar que conduzia veículo automotor com sua capacidade psicomotora alterada.3 Nesse diapasão, mostra-se incrédula a verossimilhança que se está tentando depositar no depoimento testemunhal e na gravação de vídeo como meios probatórios eicientes a comprovar a dita embriaguez, em especial, quando o tipo penal passou a exigir comprovação de alteração da capacidade psicomotora do condutor de veículo automotor para a consumação do delito (tipicidade material). Não nos esqueçamos, no entanto, que “a prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado no processo penal brasileiro e, ao mesmo tempo, o mais perigoso, manipulável e pouco coniável. Esse grave paradoxo agudiza a crise de coniança existente em torno do processo penal e do próprio ritual judiciário.” (LOPES JR, 2012, p. 670). No tocante à gravação de vídeo como meio idôneo a comprovar a alteração da capacida- de psicomotora do sujeito, mostra-se oportuna a lição de Nereu Giacomolli, segundo o qual: “na ilmagem, assim como na interceptação telefônica, há uma incompatibilidade lógica com a garantia do contraditório no momento da prática do ato. Isso porque a eicácia depende do segredo, do efeito surpresa e da execução às escondidas. Como se subtrai o contraditório no momento da formação da prova, se faz necessário um rigor maior no que será feito a posteriori, já no momento da edição da ilmagem”. (GIACOMOLLI, 2011, p. 172). É oportuno ressaltar que o legislador ordinário não contemplou deinição alguma do que possa ser capacidade psicomotora, violando frontalmente o princípio da reserva legal e da taxatividade. Não determinou o que seja capacidade psicomotora, nem tampouco lançou-se a airmar o que seja capaz de alterá-la. E a razão parece extreme de dúvidas: mais uma vez estamos diante de conceitos complexos, que envolvem várias áreas do conhecimento. Tem-se, pois, lógicas operacionais que se mostram antagônicas ao utilitarismo punitivo. Neste prisma, mostra-se risível a orientação contida no anexo II da Resolução nº 432/13 do CONTRAN que regulamenta a matéria. Nos termos daquela, para a constatação dos sinais de alteração da capacidade psicomotora do condutor, a autoridade/o agente de trânsito considerará se aquele apresenta desordem nas vestes e odor de álcool no hálito; e mais: descreverá se o condutor apresenta agressividade, arrogância, exaltação ou ironia, dentre outros. Tem-se, pois, intrigante a dimensão assumida pelo sistema processual do livre convencimento motivado aliada à famigerada busca pela verdade real, ambas (in)devidamente explicitadas na novel Lei Seca. Não se apresenta de difícil constatação que a retórica importará em nefastas conclusões no tocante à admissão de todos os meios de provas em direito admitidas para a comprovação da embriaguez. Estaremos em breve presenciando a condenação de sujeitos que, uma vez negando-se a realizar o teste do etilômetro, serão condenados com base na presunção. Sim! O exercício de uma garantia constitucional (nemo tenetur se detegere) somado à desordem das vestes, ao odor de álcool no hálito e a arrogância e/ou ironia 34 ibraspp (atestados pelo agente público e quiçá corroborado pela prova testemunhal) importará na condenação do condutor do veículo, eis que (presumidamente!) apresenta(va) sinais de alteração de sua capacidade psicomotora. Quando isso acontecer nos lembraremos do alerta exarado por Jacinto de Miranda Coutinho “ainal, se os Tribunais competentes izessem o exame sério de consciência e meditassem acerca da importância da situação seguir como está (o Código de Processo Penal, quase intacto, regendo o processo penal), com tantas injustiças sendo praticadas em nome do status quo, por certo se partiria para uma paulatina declaração de sua não-recepção pela Constituição da República de 1988 e inconstitucionalidade de grande parte das leis que se impôs à nação desde sua vigência. (COUTINHO, 2010, p. 8). Por im, não resta esclarecido como “todos os meios de prova em direito admitidos” darão conta de tipiicar a conduta do sujeito que se utiliza de entorpecentes (“rebite”, por exemplo) e depois conduz veículo automotor. Se para estes casos o etilômetro é ineicaz, será, portanto, a prova testemunhal e o vídeo suicientes para comprovar que o condutor está com sua capacidade psicomotora alterada em razão da inluência de substância psicoativa que determine dependência? 35 Notas: 1 Artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, redação dada pela Lei nº 12.760/2012. O direito de silêncio está expressamente previsto no art. 5º , LXIII, da CB (o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado [...]). Parece-nos inequívoco que o direito de silêncio aplica-se tanto ao sujeito passivo preso como também ao que está em liberdade. Contribui para isso o art. 8.2, g, da CADH, onde se pode ler que toda pessoa (logo, presa ou em liberdade) tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma nem a declarar-se culpada. (LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 9 ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 250). 2 “O imputado torna-se um mero objeto da investigação, daí a desnecessidade, a partir dessa construção “pura”, de partes processuais. Tudo se resume a buscar sinais do delito e fazê-lo dizer, mirando a extração de uma verdade histórica”. (AMARAL, 2008, p. 130). 3 CURSO DE PROCESSO PENAL DIDÁTICO 17ª edição (2013) | 1.032 páginas +frete grátis Referências: AMARAL, Augusto Jobim. Violência e Processo Penal: crítica transdisciplinar sobre a limitação do poder punitivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. COUTINHO, Jacinto de Miranda. Temas de Direito Penal & Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. GIACOMOLLI, Nereu José. A fase preliminar do processo penal: crises, misérias e novas metodologias investigatórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 9 ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. www.ibraspp.com.br Preços sujeitos a alteração sem prévio aviso. Oferta válida até 31/8/2013. 36 ibraspp 37 Lei 12.403/2011 e a prisão de congressistas no Brasil Felipe Machado Na atual sistemática do direito constitucional e processual penal, ainda existe a possibilidade de prisão de membros do Poder Legislativo? A imunidade parlamentar – aqui com ênfase na formal ou relativa – coniguraria uma espécie de impunidade? Desde sua promulgação, a CR/1988 concedeu aos parlamentares certas imunidades, entendidas como garantias funcionais, com a inalidade de garantir aos membros do parlamento sua independência e autonomia em relação aos demais poderes da República, bem como à sociedade como um todo. Elas assistem aos parlamentares desde a diplomação até o primeiro dia da legislatura seguinte. Das espécies de imunidades, material e formal, esta última é prevista no art. 53, §§ 2º e 3º, da CR, garantindo aos senadores e deputados federais e estaduais a possibilidade de sustação de processo penal iniciado após a diplomação, além de impedir que eles sejam presos, salvo em lagrante por crime inaiançável.1 Como visto, a Constituição é clara em garantir aos membros do Poder Legislativo federal e estadual imunidade relacionada às prisões cautelares, podendo eles ser presos, exclusivamente, na hipótese de lagrante por algum dos crimes previsto no art. 323, CPP. Antes da Lei 12.403/2011, a prisão em lagrante era entendida como uma prisão cautelar que se prolongava no tempo. Esse era, inclusive, o entendimento do STF, conforme se constata no RHC 103744, e no HC 100116/SP, dentre outros. Contudo, a novel legislação trouxe um entendimento há muito denunciado em terrae brasilis por Aury Lopes Jr. (2009), de que o lagrante seria um estado fático que não se dilata no tempo. É contraditório que o lagrante, que vem do www.ibraspp.com.br Na atual sistemática do direito constitucional e processual penal, ainda existe a possibilidade de prisão de membros do Poder Legislativo? verbo lagrare, que signiica queimar (aquilo que queima é visível aos olhos), vinculado que é à imediatidade da infração penal, possa se prolongar no tempo. Com as alterações do CPP, o lagrante passa então a ser visto como uma medida pré-cautelar, não mais subsistindo no tempo. Isso porque, com as alterações da Lei 12.403, diante da prisão em lagrante, a autoridade judiciária ao receber o APF deverá, nos termos do art. 310, CPP: a) relaxar a prisão ilegal; b) converter o lagrante em preventiva; ou c) conceder liberdade provisória com ou sem iança. Perceba-se que não mais há a hipótese de ratiicação e consequente permanência da “prisão em lagrante”. Felipe Machado Doutorando em Direito (PUC Minas). Mestre em Direito (UFMG). Especialista em Ciências Penais (Instituto de Educação Continuada/PUC Minas). Graduado em Direito (PUC Minas). Professor de Processo Penal (PUC Minas / Pro Labore / UFOP (2010-12)). Professor de Direito Penal (Ibmec / Pro Labore). Fundador e atual Diretor Presidente do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ). Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP). Advogado (OAB/MG). Com esses esclarecimentos, desde já vem a questão: ora, o parlamentar pode ser preso? A resposta a que se chega é negativa. Imagine-se a seguinte situação: “Senador X” comete um crime hediondo. Esta espécie de crime é classiicada, nos termos do art. 323, CPP, como inaiançável, o que torna válida a “prisão em lagrante”. Detido, o “Senador X” é encaminhado à presença da autoridade policial que lavra o APF, além de comunicar a “prisão” à respectiva Casa Legislativa a que pertence o parlamentar, e enviar ao juiz competente2 cópia do APF, para ins do art. 310, CPP. No presente caso, a prisão foi legal, não devendo, portanto, o magistrado relaxá-la; o julgador entende que presentes estão os requisitos da prisão preventiva, não concedendo, portanto, a liberdade provisória sem iança. Assim, sobrou uma última possibilidade: converter a prisão em lagrante em preventiva ou impor alguma das medidas cautelares previstas no art. 319, CPP. Contudo, vem a pergunta, a teor do art. 53, §2º, CR, o juiz pode fazer isso? Se o juiz não pode converter a prisão em lagrante em preventiva, em razão da imunidade formal relativa à prisão, não lhe resta alternativa senão a de conceder liberdade provisória sem iança. Portanto, tem-se que o parlamentar federal e estadual poderá ser detido na delegacia por 72 horas3, permanecendo à disposição da autoridade judiciária, a qual, contudo, não poderá decidir pela manutenção da prisão. Em outras palavras, é o im da prisão de parlamentares federais e estaduais. A Constituição, ao garantir a imunidade formal relacionada à prisão, vedou a prisão cautelar, enquanto que a legislação ordinária cuidou de proibir a possibilidade da prisão em lagrante, já que esta, agora mais que nunca, é entendida como uma medida pré-cautelar, não se prolongando no tempo. Há de se reconhecer que o sistema vedou a prisão do parlamentar, permitindo apenas a sua condução à autoridade policial com o consequente relaxamento da prisão ou concessão da liberdade provisória sem iança. Fato é que: a prisão preventiva não pode ser decretada e a prisão em lagrante não pode ser mantida. Alguns dirão que essa situação beira à insanidade por representar um pri- vilégio que corrobora com a impunidade, já outros dirão que se trata de uma garantia que não pode nem mesmo ter sua interpretação restringida. Independentemente da posição que se adote, não há como negar que essa interpretação encontra amparo tanto na Constituição quanto no ordenamento infraconstitucional. Pois bem, o juiz não pode decretar a prisão cautelar do parlamentar, mas nada foi dito em relação às demais medidas cautelares pessoais diversas da prisão. Assim, poderiam elas ser aplicadas? As medidas do art. 319, CPP, possuem a mesma natureza da prisão, qual seja, medida cautelar pessoal. Portanto, se há a vedação expressa à prisão, que é uma medida cautelar pessoal, também há de existir a proibição da aplicação de tais medidas. Ademais, a interpretação dos direitos e garantias fundamentais deve ser extensiva, de modo a alargar, e nunca de restringir, o alcance das normas que garantem o gozo das liberdades públicas. Referências: LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. Notas: Nessa última hipótese, face à prisão a respectiva Casa Legislativa à qual pertença o parlamentar deverá ser notiicada em 24 horas para deliberação sobre a prisão. 1 Tratando-se membros do Congresso Nacional (deputado federal e senador) a competência para análise do APF é Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, b, CR). Já em relação ao deputado estadual, a competência é do Tribunal de Justiça (art. 125, §1º, CR, c/c art. 106, I, a, Constituição Estadual do Estado de Minas Gerais). 2 Ora, a teor do art. 306, §1º, CPP, a autoridade policial, a partir do momento da captura, possui 24 horas para enviar ao magistrado cópia do APF para ins do art. 310, do CPP. Recebendo o APF, o juiz, a partir da leitura do parágrafo único, do art. 322, CPP, possui 48 horas para decidir. Isso porque: se o magistrado possui 48 horas para deliberar sobre a iança, que é uma das hipóteses do art. 310, CPP, logo, ele possui as mesmas 48 horas para decidir sobre qualquer uma daquelas alternativas legais. Assim, somando-se as 24 horas da comunicação da prisão com as 48 horas da decisão sobre as hipóteses do art. 310, CPP, chega-se ao período total de duração do estado fático da lagrância, sendo, portanto, 72 horas 3 38 ibraspp 39 Informe de Jurisprudência Superior Tribunal de Justiça RESP 1259482/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Quinta Turma, julgado em 4/10/2011, DJe 27/10/2011. Recurso especial. Processual penal. Nova redação do artigo 212 do código de processo penal, trazida pela lei nº 11.690/08. Alteração na forma de inquirição das testemunhas. Perguntas formuladas diretamente pelas partes. Pontos não esclarecidos. Complementaridade da inquirição pelo juiz. Inversão da ordem. Nulidade relativa. Necessidade de manifestação no momento oportuno e demonstração de efetivo prejuízo. Peculiaridade do caso concreto. Sentença condenatória lastreada exclusivamente na prova oral colhida pelo juiz na audiência de instrução, diante do não comparecimento do membro do ministério público. Ausência de separação entre o papel incumbido ao órgão acusador e ao julgador. Violação do sistema penal acusatório. Nulidade insanável. Recurso desprovido. 1 – Com a entrada em vigor da Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, foi alterada a forma de inquirição das testemunhas, estabelecendo o artigo 212 do Código de Processo Penal que as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, cabendo ao juiz apenas complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos, bem como exercer o controle sobre a pertinência das indagações e das respostas. 2 – A complementaridade constante do texto legal examinado induz à conclusão de existência de ordem na inquirição, ou seja, sugere um roteiro, em que a parte que arrolou a testemunha formula as perguntas antes da outra parte, perguntando o juiz por último. 3 – Contudo, a inversão da ordem de inquiwww.ibraspp.com.br rição, na hipótese em que o juiz – apenas o juiz, não a outra parte –, formule pergunta à testemunha antes da parte que a arrolou, somente poderia ensejar nulidade relativa, a depender do protesto da parte prejudicada no momento oportuno, sob pena de preclusão, bem como da comprovação inequívoca do efetivo prejuízo com a indagação formulada fora da ordem sugerida na norma processual. 4 – Não se pode olvidar que, no moderno sistema processual penal, não se admite o reconhecimento de nulidade sem a demonstração do efetivo prejuízo à defesa, vigorando a máxima pas de nullité sans grief, a teor do que dispõe o artigo 563 do Código de Processo Penal. 5 – Não obstante tais fundamentos, diante da peculiaridade do caso concreto, mostrase irretocável o acórdão recorrido, que anulou o processo desde a audiência de instrução, já que o Juiz, na verdade, colheu toda a prova utilizada para embasar a sentença condenatória, diante da ausência do membro do Ministério Público na audiência de instrução. 6 – Assim, na hipótese, não se mostra relevante sequer a questão da inversão da ordem de inquirição, pois mesmo que o magistrado tivesse formulado perguntas às testemunhas arroladas pelo órgão de acusação em momento posterior à defesa, mas de tais depoimentos tenha extraído os elementos de convicção exclusivos que sustentaram a decisão condenatória, irrecusável reconhecer que a inquirição, pelo juiz, não se deu em caráter complementar, mas sim principal, em verdadeira substituição ao órgão incumbido da acusação, situação que conigura indisfarçável afronta ao sistema penal acusatório e evidencia o prejuízo efetivo do recorrido. 7 – Não se veriicou, no caso concreto, a indispensável separação entre o papel incumbido ao órgão acusador e ao julgador, principal característica do sistema acusatório, pois a fundamentação exposta na sentença condenatória permite concluir que os elementos do convencimento judicial decorreram, exclusivamente, de provas colhidas pelo julgador na audiência de instrução, hipótese de nulidade insanável, não sujeita, portanto, à preclusão. 8 – Recurso especial desprovido. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR): Com a entrada em vigor da Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, foi alterada a forma de inquirição das testemunhas, estabelecendo o art. 212 do Código de Processo Penal que “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. Ao Juiz, a teor do contido no parágrafo único do referido dispositivo legal, caberia apenas complementar a inquirição direta das partes sobre os pontos não esclarecidos. No caso concreto, o Tribunal de Justiça anulou o feito a partir da audiência de instrução, ao argumento de que o magistrado teria desrespeitado a ordem de inquirição das testemunhas, por ter sido o primeiro a formular as perguntas, quando sua atuação deveria ser apenas complementar, após as perguntas das partes. De fato, a nova redação do art. 212 do CPP deu margem ao surgimento de discussões sobre questões como a ordem da inquirição das testemunhas e o caráter complementar da inquirição pelo magistrado, bem como sobre as consequências processuais pelo eventual descumprimento da nova sistemática legal. Há posições extremadas sobre tais temas, que vão desde o inlexível e radical reconhecimento de nulidade absoluta, como opiniões no sentido de que a nova redação da referida norma processual em nada alterou a sistemática anterior. [...] Tenho para mim que as duas posições extremadas não devem prevalecer, seja a que sustenta a nulidade absoluta, como também a que airma que o sistema de oitiva de testemunhas não foi alterado. Imperioso reconhecer, diante da nova redação do art. 212 do Código de Processo Penal, que as perguntas agora são formuladas diretamente pelas partes, não mais requeridas ao juiz, que, todavia, continua a exercer o controle sobre a pertinência das indagações, como também das respostas da testemunha (CPP, art. 213). É possível identiicar que as controvérsias sobre o tema, referentes à ordem sequencial das indagações, bem como a limitação do campo de atuação do juiz na inquirição de testemunhas, têm como gênese o emprego do termo “complementar”, previsto no parágrafo único do art. 212 do CPP. É que ao estabelecer que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”, a intervenção judicial na oitiva da testemunha somente seria possível, segundo alguns, depois de encerradas as perguntas das partes e, ainda, caso restasse algum ponto ainda não esclarecido. Nessa linha de raciocínio, o juiz perguntaria por último e em limitada extensão. É verdade que a complementaridade constante do texto legal examinado induz à conclusão de existência de ordem na inquirição, ou seja, sugere um roteiro, em que a parte que arrolou a testemunha formula as perguntas antes da outra parte, perguntando o juiz por último. Contudo, não visualizo nulidade absoluta na hipótese em que o juiz – apenas o juiz, não a outra parte -, formule pergunta à testemunha antes da parte que a arrolou, pois as perguntas que o juiz, destinatário inal da prova, formulou de forma antecipada, poderiam, e certamente seriam, apresentadas ao inal da inquirição. 40 ibraspp Portanto, a inversão da ordem de inquirição, nessa hipótese, somente poderia ensejar nulidade relativa, a depender do protesto da parte prejudicada no momento oportuno, sob pena de preclusão, bem como da comprovação inequívoca do efetivo prejuízo com a indagação formulada fora da ordem sugerida na norma processual. Não podemos olvidar que, no moderno sistema processual penal, não se admite o reconhecimento de nulidade sem a demonstração do efetivo prejuízo à defesa, vigorando a máxima pas de nullité sans grief, a teor do que dispõe o artigo 563 do Código de Processo Penal. [...] Entretanto, em que pese a argumentação acima explanada, veriico que o caso ora examinado apresenta peculiaridade que merece especial atenção. É que, conforme ressaltado no lúcido e fundamentado acórdão impugnado (l. 356), o representante do Ministério Público não estava presente à audiência de instrução, o que signiica dizer que não houve qualquer intervenção do órgão de acusação na inquirição das testemunhas que arrolara para provar os fatos imputados ao acusado. No caso concreto, o juiz iniciou os questionamentos em relação às testemunhas e depois passou a palavra à defesa. Veriico nos autos que a sentença condenatória está lastreada em elementos de convicção obtidos exclusivamente na oitiva de testemunhas, arroladas pelo Ministério Público, na audiência de instrução, a qual não estava presente seu órgão de acusação, tendo o juiz formulado todas as perguntas que envolviam os fatos da imputação penal. Com efeito, em tais situações não se mostra relevante sequer a questão da inversão da ordem de inquirição, pois mesmo que o magistrado tivesse formulado perguntas às testemunhas arroladas pelo órgão de acusação em momento posterior à defesa, mas de tais depoimentos tenha extraído os elementos de convicção exclusivos que sustentaram a decisão condenatória, irrecusável reconhecer que a inquirição, pelo juiz, não se deu em caráter complementar, mas sim principal, em verdadeira substituição ao órgão incumbido da acusação, situação www.ibraspp.com.br 41 que conigura indisfarçável afronta ao sistema acusatório e evidencia o prejuízo efetivo do recorrido. A nulidade decorre, no caso, da violação do caráter complementar da inquirição, não da ordem de inquirição. Portanto, somente o exame de cada caso concreto ensejará eventual constatação de nulidade, desde que provado efetivo prejuízo, ou seja, que os elementos de convencimento que levaram o destinatário da prova a emitir juízo de censura penal derivaram, direta e exclusivamente, da inversão da ordem de inquirição, ou da violação do critério da complementaridade da atuação do juiz na inquisição da testemunha. Nessa linha de raciocínio, nos processos em que, por exemplo, a instrução probatória foi fracionada, se a sentença condenatória apresentar elementos de convicção extraídos da prova oral produzida em outro momento processual, sem afronta ao novo sistema estabelecido no art. 212 do Código de Processo Penal, ou se o convencimento judicial estiver lastreado em outros meios de prova, não se cogitaria de qualquer nulidade. Não se veriicou, no caso concreto, a indispensável separação entre o papel incumbido ao órgão acusador e ao julgador, principal característica do sistema penal acusatório, pois a fundamentação exposta na sentença permite concluir que os elementos do convencimento judicial decorreram, exclusivamente, de provas colhidas pelo julgador em frontal violação ao sistema acusatório. Sendo evidente e insanável a nulidade reconhecida, o irretocável acórdão recorrido não merece qualquer reparo. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial. É como voto. “A Turma, por unanimidade, conheceu do recurso, mas lhe negou provimento.” Os Srs. Ministros Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ), Gilson Dipp, Laurita Vaz e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro Relator. 42 ibraspp LIVROS IMPRESSOS E DIGITAIS TV WEB EAD CORPORATIVO atlas.com.br 0800 17 1944 www.ibraspp.com.br