temáticas
número 47/48
ano 24
2016
Entre greves, ocupações e golpes:
o Brasil de 2016
revista dos pós-graduandos em ciências sociais
IFCH - Unicamp
temáticas
Publicação semestral dos alunos de Pós-Graduação em Ciências Sociais do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
ISSN 1413-2486
Conselho Editorial Nacional
Adalberto Paranhos (UFU)
Luciana Aparecida Aliaga de Oliveira (UFPB)
André Kaysel Velasco e Cruz (UNICAMP) Luis Alexandre Fuccille (UNESP)
Antonio Silveira Brasil Junior (UFRJ)
Luiz Gustavo da Cunha de Souza (UFSC)
Carla Cecília Rodrigues Almeida (UEM)
Luiz Henrique Passador (UNIFESP)
Edson Silva de Farias (UnB)
Maíra Machado Bichir (UNILA)
Emil Albert Sobottka (PUCRS)
Manuela Carneiro da Cunha (USP)
Euzeneia Carlos (UFES)
Marcelo Siqueira Ridenti (UNICAMP)
Felipe Ferreira Vander Velden (UFSCar)
Maria Arminda do Nascimento Arruda (USP)
Flávia Lessa de Barros (UnB)
Mário Augusto Medeiros da
Frederico Normanha Ribeiro
Silva (UNICAMP)
de Almeida (UNICAMP)
Rogério Proença Leite (UFS)
João Marcelo Ehlert Maia (FGV)
Sabrina Areco (UNICAMP)
Leandro de Oliveira Galastri (UNESP)
Samira Feldman Marzochi (UFSCar)
Lilia Moritz Schwarcz (USP)
Thiago Aparecido Trindade (UnB)
Comitê Editorial
Conselho Editorial Internacional
Adriana Cattai Pismel (UNICAMP)
Alejandro Raúl Blanco (Universidad
Antônio Marcos Santos (UNICAMP)
Nacional de Quilmes, Argentina)
Enrico Paternostro Bueno (UNICAMP)
Isabel Maria Casimiro (Universidade
Flávia X. M. Paniz (UNICAMP)
Eduardo Mondlane, Moçambique)
Jonatan Jackson Sacramento (UNICAMP)
Pedro Meira Monteiro (Princeton
Maria Caroline M. Tresoldi (UNICAMP)
University, EUA)
Nathanael Araújo (UNICAMP)
Sydnei Melo (UNICAMP)
Diretor
Alvaro Gabriel Bianchi Mendez
Produção Editorial e Divulgação
Diretor Associado
Setor de Publicações do IFCH/Unicamp
Roberto Luiz do Carmo
Capa
Saulo Marzochi
Organização do Dossiê
Impressão
Flávia Xavier Merlotti Paniz
Gráfica do IFCH / UNICAMP
Glaucia S. Destro de Oliveira
Coordenação de PósCoordenação geral de Pós-Graduação
Graduação em História
Michel Nicolau Netto
Patrícia Dalcanale Meneses
Coordenação de Doutorado
Coordenação de Pós-Graduação
em Ciências Sociais
em Demografia
Isadora Lins França
Joice Melo Vieira
Coordenação de Pós-Graduação
Coordenação de Pós-Graduação
em Ciência Política
em Antropologia Social
Andréia Marcondes de Freitas
Antônio Guerreiro
Coordenação de PósCoordenação de Pós-Graduação
Graduação em Sociologia
em Ambiente e Sociedade
Mário Augusto Medeiros da Silva
Célia Regina Tomiko Futemma
Coordenação de PósCoordenação de Pós-Graduação
Graduação em Filosofia
em Relações Internacionais
Yara Adario Frateschi
Andrei Koerner
Flávia Xavier Merlotti Paniz
Glaucia S. Destro de Oliveira
Dossiê
ENTRE GREVEs, oCUPAÇÕEs
E GoLPEs: o BRAsiL DE 2016
temáticas
revista dos pós-graduandos em ciências sociais
ano 24, nº47/48, 2016 - IFCH/UNICAMP
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH – UNICAMP
Bibliotecário: Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272
Temáticas : revista dos pós-graduandos em ciências sociais /
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. vol. 1, n.1. (1993 -). Campinas, SP :
UNICAMP/IFCH, 1993 v.24, n.47/48, 2016
Semestral
ISSN - 1413-2486
1. Golpe. 2. Ocupações. 3. Greves. 4. Gênero. 5. Política Brasil. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas. II. Título.
CDD - 320.1
Em homenagem a Marielle Franco e
Maria Érbia Cássia Carnaúba
Dossiê
ENTRE GREVEs, oCUPAÇÕEs
E GoLPEs: o BRAsiL DE 2016
SUMÁRIO
DOSSIê: EntRE gREvES, OcUpaçõES E gOlpES: O BRaSIl DE 2016
Apresentação
Flávia X. M. Paniz e Glaucia S. Destro de Oliveira
13
Nada novo em 400 homens brancos decidirem o destino do Brasil
Mário Augusto Medeiros da Silva
19
Ocupa Mendes: quando a droga da obediência não funciona mais!
Relatos da ocupação estudantil do Colégio Estadual
Prefeito Mendes de Moraes, a primeira escola ocupada
no Estado do Rio de Janeiro
Aluana Guilarducci Cerqueira, Ana Clara Alves, Andreh Luiz Faustino
Rodrigues da Silva, Annie Caroline dos Santos Ferreira e
João Victor de Souza Argemiro
27
Não tem arrego: vocês tiram nossos direitos
e nós tiramos o seu sossego!
Isabela Gonçalves
47
O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política
da Unicamp tem a nos dizer sobre injustiça social?
Ana Cláudia Lopes Silveira, Hyury Pinheiro,
Maria Elisa Perez Pagan, Mariana Toledo Borges,
Nathalia Rodrigues da Costa e Pedro Henrique Santos Queiroz
51
A greve das federais e os desafios de mobilização na pós-graduação
João Pedro de Lima Campos
65
La mercantilización de la educación superior y la irrupción
del movimiento estudiantil en Chile (2006 / 2011)
Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras
77
Sobre greve, liberdade e rinocerontes
Eros Sester e Sara Vieira Antunes
99
A (in)constância do provisório: 20 dias de governo interino mídia
Elizabete Pellegrini Garcia, Equipe de pesquisa MOvE, Lídia Torres,
Lorena Aragão, Maiane Fortes Ribeiro, Marina Sousa,
Maiara Dourado e Nashieli Rangel Loera
113
A bela e a fera: as mulheres e a política no discurso midiático
Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
149
As mulheres no campo político: gramáticas discursivas
em torno de gênero no contexto do impeachment
Lauren Zeytounlian, Lorena R. P. Caminhas, Marcela Vasco,
Natália Negretti e Vanessa Ponte
181
Relações Familiares, Gênero e o Grande Contrário:
tonalidades totalitárias no Brasil da crise
Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega
201
Ideologia de gênero? Notas para um debate
sobre políticas e violências institucionais
Alex Barreiro, Flávio Santiago, Nathanael Araújo e
Tiago Luís Coelho Vaz Silva
223
#OcupaParaná – as ocupações das escolas públicas
paranaense em outubro de 2016
Conrado Pereda Minucelli, Jaqueline Aparecida Alves dos Santos
e Osmir Dombrowski
247
Eu sempre fui da opinião de que o Brasil não vive uma onda
conservadora, ao contrário. Um país escravocrata, com 354
anos de escravidão e o último a abolir, mais de 20 de ditadura
militar, sempre foi conservador. O que tivemos nos últimos anos
foram marolas progressistas, importantes, mas marolas. Hoje,
após esse golpe, podemos constatar o quanto o conservadorismo
está na base desse país. Justo agora que aprendíamos a surfar.
(Djamila Ribeiro, 31 de agosto de 2016)
APRESENTAÇÃO1
Flávia X. M. Paniz2
Glaucia S. Destro de Oliveira3
A proposta de organizar este dossiê surgiu no segundo semestre de
2016, como forma de criar um registro das diferentes perspectivas sobre
os acontecimentos ocorridos ao longo do ano, e que pudesse ser utilizado
como apoio nas pesquisas e reflexões futuras sobre este período, que ficou
historicamente marcado pelo processo de votação do impeachment da
ex presidenta eleita Dilma Rousseff, seguido de seu afastamento; pelos
protestos contra a realização da copa do mundo; e a prisão de Rafael Braga,
um catador de material reciclável que portava uma garrafa de produto de
limpeza no contexto dos protestos no Rio de Janeiro. Estes últimos fatos,
juntamente com o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza em
2013 e o assassinato de Claudia Silva Ferreira em 2014, escandalizaram a
situação de encarceramento em massa e genocídio da população negra e
periférica e o processo de precarização no ensino público no país.
A educação básica e a superior voltaram a ocupar lugar de destaque
no debate público nacional, seja por meio de política institucional –
Este dossiê foi organizado durante os anos de 2016-2017, e devido ao processo de
restruturação editorial por qual passou a revista, sua publicação ocorreu apenas no primeiro
semestre de 2018.
2
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail:
flaviapaniz@gmail.com
3
Doutora em Ciências Sociais (IFCH/UNICAMP) e docente temporária na Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) em Ciências Sociais. E-mail: gdestro@gmail.com
1
14
Flávia X. M. Paniz e Glaucia S. Destro de Oliveira
como os novos cortes de investimento na Educação que ocasionam a
intensificação de problemas de manutenção e infraestrutura já existentes;
e o contínuo processo de desvalorização da carreira docente –, seja através
da forma como a política reflete na vida cotidiana das pessoas – como é
caso da política de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro e seu
reflexo no acesso e segurança no espaço escolar em comunidades afetadas
pelos conflitos, e também pelo cerceamento do conteúdo das discussões
em sala de aula, como as discussões em torno de questões de gênero.
No ensino superior, por sua vez, os cortes nos repasses, que
comprometem o funcionamento das atividades de ensino, pesquisa e
extensão nas Universidades Estaduais e Federais brasileiras, a desvalorização
e até mesmo suspensão do pagamento dos salários e benefícios de docentes
e servidores ocasionaram uma nova onda de greves e paralisações.
Neste processo, funcionárias, funcionários, alunas, alunos e professoras
e professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da
Universidade Estadual de Londrina (UEL), dentre outras, se mobilizaram
publicamente para relatar a ausência de investimento e negociação com
os respectivos governos estaduais que comprometem o funcionamento
destas instituições de ensino e pesquisa. No contexto da Universidade
Estadual de Campinas, a pauta central dos movimentos estudantis que
aderiram à greve se concentrou sobre a luta pela implementação dos
sistemas de cotas raciais e étnicas, foi encabeçada pela frente pró-cotas
da Universidade e pelo Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP e
culminou na histórica aprovação de cotas raciais e indígenas no vestibular
de 2019.
As medidas que pautaram as mudanças na política educacional
naquele ano, como a incorporação do Ministério da Ciência, Tecnologia
e Inovações ao Ministério das Comunicações, reascenderam o debate em
torno da celebre frase de Darcy Ribeiro que diz a crise da educação não
é uma crise, mas um projeto. A proposta de reforma da Base Nacional
Comum Curricular do Ensino Médio; o processo de reorganização das
escolas, que culminaram na superlotação e/ou fechamento de salas de
aula em diferentes estados; as inúmeras tentativas de minar debates que
envolvam questões de gênero e sexualidade no espaço escolar através da
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016
Apresentação
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elaboração de um suposto embate sobre neutralidade, ciência, ideologia e
política no campo da educação, que acabou culminando na discussão sobre
“ideologia de gênero” (termo amplamente contestado por pesquisadoras
e pesquisadores da área de educação e de gênero) trazem à luz reflexões
sobre a questão que atravessa a composição temática dos artigos presentes
neste dossiê, de mostrar como os movimentos políticos ocorridos no
ano de 2016 no campo da educação estão fortemente conectados com o
processo de constituição do golpe.
O processo de formação das ocupações de diferentes escolas públicas
do país e da construção das greves por diferentes categorias em dezenas
de Universidades foram atravessados pelo mal-estar e assombramento
coletivo provocado pelos discursos dos deputados na votação que resultou
na deposição da ex presidenta em 17 de abril desse ano. Nesse cenário,
surgiu a proposta de documentar o estado das condições materiais e da
sentimentalidade coletiva no curso da situação, sabendo que se trata de
expor diferentes narrativas sobre esse mesmo período.
Deste modo, a especificidade deste dossiê decorre não somente
da particularidade da busca por retratos do Brasil de 2016, mas
também da abertura e acolhida de perspectivas políticas de sujeitos que
tradicionalmente não ocupam os espaços de publicação científica. Assim,
a Revista Temáticas, valendo-se de sua autonomia institucional e política
e para ampliar o escopo de autoras e autores para além dos espaços
científicos, convidou alunas e alunos que participavam dos movimentos
de ocupações das escolas públicas, professoras e professores das redes
Municipais e Estaduais de Ensino, funcionárias e funcionários, estudantes
de graduação e pós, via de regra, organizados e mobilizados através
dos grupos que se formaram nos espaços de greve para narrarem suas
experiências e percepções nesta edição. O resultado desta empreitada é
um trabalho que concentra múltiplos esforços de abordagens de questões
de mobilizações, gênero, raça e classe na ciência, na política e na educação
do Brasil de 2016.
Este volume conta, então, com dois artigos sobre (e das) ocupações
de escolas. O “Ocupa Mendes: Quando a droga da obediência não
funciona mais!” é um registro do movimento secundarista e foi elaborado
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016
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Flávia X. M. Paniz e Glaucia S. Destro de Oliveira
por quatro estudantes e uma professora do Colégio Estadual Prefeito
Mendes de Moraes – a primeira escola ocupada no estado do Rio de
Janeiro. E, em “Não tem arrego! Vocês tiram nossos direitos e nós tiramos
seu sossego!”, Isabela Gonçalves, – secundarista da Escola Estadual Dom
Barreto em Campinas (SP) – também reconstrói o cenário que culminou
na ocupação da escola da qual faz parte, trazendo detalhes de sua dinâmica
e expectativas.
Ainda em torno da discussão de precarização do ensino, o “A corte
e a corte: o que a crise orçamentária e política da Unicamp” foi resultado
do debate realizado pelo grupo de trabalho em torno de questões
orçamentárias da Universidade Estadual de Campinas durante a greve de
2016. O texto foi elaborado conjuntamente por dez estudantes de pósgraduação do IFCH.
Em “A greve das federais e os desafios de mobilização na PósGraduação”, João Pedro de Lima Campos desenvolve reflexões sobre as
atuações do governo no ensino e na ciência e apresenta os desafios de
mobilizações entre os pós-graduandos durante a greve na Universidade
Federal Fluminense (UFF) desde 2015.
Em “La mercantilización de la Educación Superior y la irrupción
del Movimiento Estudiantil en Chile (2006 / 2011)”, Mía Dragnic García
e Raúl Ortiz-Contreras recuperam o contexto e às reações dos estudantes
frente às iniciativas do governo chileno acerca da educação superior.
Na continuidade do tema sobre movimentações políticas no
contexto contemporâneo, em “Sobre greve, liberdade e rinocerontes” Eros
Sester e Sara Vieira Antunes resenham uma peça teatral com a finalidade
de pensar desigualdades, espetacularização da vida e brutalização presentes
no cotidiano em 2016.
Na esteira do governo interino, em “A (in)constância do provisório:
20 dias de governo interino na mídia”, Elizabete P. Garcia, Lídia Torres,
Lorena Aragão, Maiane F. Ribeiro, Maiara Dourado, Marina Sousa, Nashieli
R. Loera analisam o processo de construção midiática do impeachment
que levou à imposição do governo de Michel Temer.
Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki, em “A
bela e a fera: as mulheres e a política no discurso midiático”, discorrem
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016
Apresentação
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acerca da produção de feminilidades e relações de gênero através da
abordagem da mídia de Dilma Roussef e Marcela Temer.
Em “As mulheres no campo político: gramáticas discursivas em
torno de gênero no contexto do impeachment”, Lauren Zeytounlian,
Lorena R. P. Caminhas, Marcela Vasco, Natália Negretti e Vanessa Ponte
apontam como a cobertura dos meios de comunicação sobre o golpe
no cenário político nacional também foi atravessada por discursos sobre
relações de gênero.
Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega retratam as tensões,
as desavenças e os constrangimentos na esfera familiar presentes durante
o processo do impeachment no ensaio “Relações Familiares, Gênero e o
Grande Contrário: tonalidades totalitárias no Brasil da crise”.
Ainda no contexto de golpe, em “Ideologia de gênero? notas para
um debate sobre políticas e violências institucionais”, Alex Barreiro, Flávio
Santiago, Nathanael Araújo e Tiago Luis Coelho trabalham temas que
contornam a discussão acerca de papéis de gênero na escola no contexto
de Campinas (SP).
Este dossiê conta ainda com dois artigos escritos por convidados:
“Nada novo em 400 homens brancos decidirem o destino do Brasil”, de
Mário Augusto Medeiros da Silva – que abre a nossa edição – para traçar
uma leitura sobre as mudanças políticas no cenário nacional de 2016 e a
luta antirracista dentro e fora das Universidades. E “#OCUPAPARANÁ
– As ocupações das escolas públicas paranaense em outubro de 2016”
no qual Conrado P. Minucelli, Jaqueline A. A. dos Santos e Osmir
Dombrowski exploram as reações dos secundaristas em resposta às
iniciativas do governo, de modo a recuperar marcos importantes de estado
em tal movimentação política no contexto paranaense.
Este dossiê flana por temas amplos que ganharam destaque em
2016 e pontua algumas das discussões presentes no contexto da educação
e da política durante esse ano. Em razão do caráter de registro de um
contexto social e político deflagrado concomitante à redação e entrega dos
artigos, esta edição é lançada em 2018, quando o processo de organização
e de produção da revista são finalizados. Com a abertura para recepção de
textos produzidos por secundaristas, professoras e professores das redes
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016
18
Flávia X. M. Paniz e Glaucia S. Destro de Oliveira
públicas de ensino, alunas e alunos de graduação e de pós-graduação de
diferentes universidades e também docentes das Universidades públicas
brasileiras, acreditamos que este trabalho pode oferecer perspectivas de
análise diversificadas sobre esse ano tão marcante no cenário brasileiro
contemporâneo. Assim, através destes registros, esperamos que ele
se torne um documento de época na condição de fonte e objeto para
pesquisas futuras e que, por fim, permita compreender que como as
disputas políticas, em diferentes campos, na via institucional e na vida
cotidiana, são marcadas por disputas por nomeação das categorias que
constituem a própria noção de narrativa. Desta forma, o uso do termo
“golpe”, as reflexões sobre gênero, política e educação refletem a posição
das organizadoras frente às disputas políticas na construção de um léxico
sobre esse ano.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016
“NADA NOVO EM 400 HOMENS BRANCOS
DECIDIREM O DESTINO DO BRASIL”1
Mário Augusto Medeiros da Silva2
Fará 100 anos, em 2018, o alerta que o jurista e sociólogo Francisco
José de Oliveira Vianna escreveu em seu Populações Meridionais no Brasil
para aqueles que, cifradamente, eram seus interlocutores. Ele chamava a
atenção de seus pares, na introdução do primeiro volume do livro, para que
parassem de titubear, como o faziam desde um século antes e assumissem
o destino do país. Mais adiante, dentro do livro, o autor aprofundava seus
argumentos, afirmando que um dos grandes problemas da organização
da vida social brasileira, nos seus quatro séculos de existência, teria sido o
controle da anarquia branca. Grosso modo, numa terra onde havia muitos
chefes, com diferentes níveis de poder e que o Estado se mostrava ausente
ou um lugar em disputa, organizar a classe dominante era urgente, para
manter o controle geral.
É curioso que naquele argumento, o rei em Portugal, seu príncipe
herdeiro, capitães hereditários ou latifundiários operam todos como
chefes de clã. Não irei discutir aqui como de nobres feudais da terra essas
figuras passam, no livro, a caudilhos e chefes (portanto, flertando com o
banditismo e a ilegalidade). O que importa reter é que, há quase um século,
um dos diagnósticos conservadores mais influentes sobre a sociedade
Contribuição do autor para a Mesa sobre conjuntura política -“Temer o presente? Reflexões
sobre a crise brasileira”, realizada no mês de outubro de 2016 como atividade do III Fórum do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia do IFCH, UNICAMP.
2
Docente do Departamento de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: mariomed@unicamp.br
1
20
Mário Augusto Medeiros da Silva
brasileira explicitava a necessidade resolver pelo alto os problemas
sociais. Além disso, se a grande questão era organizar a anarquia branca
– e assim, criar formas de solidariedade mais orgânicas, especialmente
entre o grupo dominante – a pergunta sobre a parte não-branca da
população soa inquietante, não é mesmo? A resposta do nosso autor: a
escravidão organizava os negros até 1888. Portanto, não era um problema.
Quanto aos mestiços, brancos pobres e o resto, eles compunham o povo.
E o povo, nos ensinava Oliveira Vianna, demanda um protetor, um chefe,
se ressente da falta de mando.
Espero que isto cause desconforto naqueles, progressistas
e democratas, que nunca leram Populações Meridionais. Mas não um
desassossego no sentido de jogar no lixo o pensamento deste autor ou de
queimá-lo em praça. Isso seria errado e expressão de anti-intelectualismo.
E demonstraria, uma vez mais, que nada compreendemos sobre a
história e vida social brasileira, especialmente ao não compreendermos as
formulações e ações práticas de seu pensamento e atitudes conservadoras
ou autoritárias. Existe uma diferença importante entre apostar que a
sociedade pode se organizar de maneira autônoma com as expressões da
vida civil (associações, partidos, liberdade política etc.) e que ela precisa
ser organizada pelo alto e conduzida. Recordo a vocês que nosso autor foi
Ministro do Trabalho e organizador de Legislação Trabalhista nos anos
1930 e 1940.
Mas o que isso tem a ver com os eventos que se desenrolam
imediatamente desde abril de 2016? Algo e nada. Nada para aqueles que
acham que investigar a história das ideias é exercício de arqueologia ruim.
E também se consideramos que a História é fluxo contínuo e não se
repete (não se banha no mesmo rio duas vezes). Mas pode sugerir algo se
tentarmos observar a força social das ideias e como, infelizmente às vezes,
elas insistem em se atualizar. A História, assim, deixa de ter o sentido
de fluxo contínuo, mas de uma luta de interpretação e narrativa, com
consequências. Inclusive, positivas para o combate ao conservadorismo
e à reação.
Os acontecimentos de 2016 não são apenas eventos corriqueiros
e tampouco são resumíveis entre os fatos ocorridos entre 17 de abril (a
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016
Nada novo em 400 homens brancos:...
21
votação da admissibilidade do impeachment na Câmara Federal) e 31
de agosto (com a decisão do impedimento no Senado). E creio que a
compreensão destes eventos, sociológica e historicamente, demandará
ainda bastante tempo. Um tempo que é necessário às ciências sociais,
mas de que não possuem e nem podem dispor os movimentos sociais,
a luta política e os sujeitos atingidos pelo golpe. Eu não farei análise de
conjuntura aqui. Procurarei refletir como sociólogo e cidadão com certo
vagar. Os acontecimentos de 2016 são um espirro histórico e fazem parte
de um processo social mais amplo, cujo balanço pode ser retornado a 1918,
1932, 1937, 1945, 1954, 1964, 1985. A todos os períodos que podemos ver
como componentes de intervalos democráticos da vida republicana brasileira
do século XX. Se são interregnos, a nossa regra, portanto, não tem sido a
de conviver bem com a democracia. Pelo contrário: um outro diagnóstico
bastante famoso a nosso respeito, escrito em 1936, vaticinava que, entre
nós, a democracia sempre foi um lamentável entendido (Raízes do Brasil).
Portanto, se quisermos ser modestos, os eventos de 2016 talvez
precisem ser analisados à luz do nosso último intervalo democrático mais
ou menos pleno, iniciado com o que se chamou de Nova República. Ironia
da História: o termo novo, pixado no muro de uma casa em Barão Geraldo
ou cunhado sobre o período inaugurado por José Sarney é algo esquisito.
A República era nova com Sarney como presidente. Nada novo existe no
nosso 2016 porque repetimos insistentemente aspectos da nossa história,
com velhos personagens, dos últimos trinta anos, que se metamorfosearam
diferentes vezes, atuando em papéis à esquerda ou direita, com a esquerda
e com a direita, na reta sinuosa que é o centro. Pensemos em Sarney,
Collor, Renan Calheiros, Lula, Aécio Neves, Espiridião Amin, Fernando
Henrique Cardoso, Celso Bandeira de Mello, Marco Aurélio Mello, Hélio
Bicudo e outros tantos personagens políticos revividos seus papéis.
A velha novidade do golpe também se atualiza no que ele possui
de mais dramático, enquanto operação. Ele organiza a anarquia branca e
ela se expressa na configuração do novo ministério que toma posse como
governo interino e posteriormente como governo definitivo. Homens,
brancos, velhos, plutocratas e com base social numa parcela dominante
da população que viu como ataques mortais em seus privilégios os acenos
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016
22
Mário Augusto Medeiros da Silva
aos direitos sociais nos últimos 14 anos. Que pararam de flertar com seus
inimigos de classe e antigos opositores, assim que estes lhes cortaram
benefícios e vantagens, lícitas e ilícitas, denunciadas em mídias várias. 2016
é só um fim do flerte fatal.
O desmantelamento do Ministério da Cultura, da Secretaria Especial
de Mulheres, Secretaria de Promoção de Políticas Raciais, do Ministério
do Desenvolvimento Agrário, no primeiro dia do governo interino, não
são apenas medidas de governo. Elas têm que ser lidas de forma mais
incisiva e dramática porque atacam, simbólica e politicamente, os sujeitos
sociais que tomaram expressão na cena pública inaugurada em 2002 com o
PT: negros, mulheres, gays, sem terra, despossuídos, pobres, povo. Vejam:
eu não disse que o PT inventou esses sujeitos e suas lutas sociais. Pelo
contrário: o partido foi composto por ela e muitas outras. Mas o PT, com
seus alcances, limites e dubiedades, os exprimiu na cena política em seus
governos, durante certo tempo. Isso não é pouca coisa e este legado não
pode ser esquecido, mesmo para criticá-lo.
Ao organizar a anarquia branca contemporânea, portanto o golpe
é uma reorganização da parcela dominante, com apoio enorme de uma
parcela intermediária da vida brasileira, que foi às ruas pedir coisas
como intervenção militar, fim da baderna, as instituições de força, a moralidade
da justiça etc. É mais complexo que isso, evidente. Mas esta rusticidade
analítica pode ser um ponto de partida para começar a pensar. A via
democrática, da disputa de projetos, da luta nas urnas, não foi um pedido
constante das ruas, depois de 30 anos de Nova República. E a parcela
dominante que se organizava gestando o golpe – há quanto tempo não
sabemos – soube usar bem o chamado da intervenção, neutralizando-o
no instrumento legal e previsto na Constituição Federal, com
o impedimento/impeachment. “Tudo foi feito dentro da estrita legalidade”,
diz o presidente conspirador constitucionalista. Mas sabemos, cientistas
sociais, que entre a letra da lei e a realidade da luta social podem existir
oceanos de distância.
Tudo foi feito dentro da lei porque previsto em Constituição. Mesmo
que restem dúvida sobre o ponto de partida básico do impedimento – o
crime de responsabilidade do Executivo. Este pontapé inicial gera guerras
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016
Nada novo em 400 homens brancos:...
23
de interpretação. E considero que somente o tempo nos permitirá olhálo, cientificamente, em sua dimensão maior. Porém, o tempo necessário
da Sociologia e da História não são compassados com o tempo da
cidadania. O aqui e agora em que estamos exigem uma tomada clara de
posição. Assim, o golpe o é, para mim, porque emerge das sombras da
luta política e escarra na boca que o beijou sistematicamente ao longo
do presidencialismo de negociata e conciliação permanente desde 2002.
Num dos primeiros atos públicos em defesa do governo Dilma, em 18 de
março, o ex-presidente Lula discursou na avenida Paulista não para o povo
que se encontrava ali – movimentos negros, LGBTT, CUT, MST, MTST,
uma classe média de esquerda e movimentos da periferia paulistana. Ele
discursava perplexo à parcela dominante que abandonava o barco: “Em
meu governo, nunca antes na história deste país banqueiros, empresários,
fazendeiros, comerciantes ganharam tanto dinheiro”.
A organização do projeto dominante da classe dominante em torno
do golpe, em torno das forças antes anarquicamente conciliadas com seus
inimigos de classe, não representa apenas a capitalização do anti-petismo ou
a destruição do sentido político de Lula, Dilma ou as derrotas acachapantes
do partido e de outras expressões mais à esquerda da vida política nas
eleições municipais de outubro. Isso é menor. Mesmo a liquefação, no
presente, do PT enquanto partido é pequena e pouco importante. O grande
golpe, o grande ataque, de fato, se revela nos sentidos concretos que este
governo tem dado às suas ações. Não é apenas o PT que tem ido para o
brejo. Mas, pelo menos, um século de luta social dos que vêm de baixo e
que se opuseram historicamente à organização da anarquia branca. São
os direitos dos trabalhadores do campo e da cidade, da cidadania que tem
etnia, gênero e identidade sexual diversa, dos que vivem à margem de tudo
que estão em jogo e sob ataque. Repito: É mais de um século de luta social,
se quisermos modestamente marcar com a Abolição e a República o início
de mudanças sociais importantes em nossa História, que estão sob ataque:
mulheres, negros, gays, operários, camponeses, pobres, periféricos. Todos
os que passaram de nomenclatura sociológica para sujeitos de direitos no
século XX. Todo o Povo que entrou na cena histórica do século XX, com
o pior ponto de partida, como nos ensinou Florestan Fernandes há mais
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016
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Mário Augusto Medeiros da Silva
de 50 anos em Integração do Negro na sociedade de classes.
Por outro lado, convenhamos. Se nada há de novo em 400 homens
brancos controlarem a cena política, isto significa que também nada
há de novidade na necessidade da resistência e da luta social. Temer o
presente? Não. Enfrentar o presente. Esta foi a tônica dos grupos sociais
que estão agora sob ataque e que existiam muito antes do PT. Há algo
muito bonito que aparece nas resistências ressignificadas ao golpe, por
meio dos movimentos sociais e suas expressões no facebook. A frase, por
exemplo, “Luto para mim é verbo”. Isso é de uma atualidade e coragem
política impressionante. De estado catatônico e paralisia psíquica a palavra
passa de substantivo negativo a verbo, portanto, a ação. Lutar é ato, agir,
nos dizem os movimentos sociais. A luta social, portanto, a História, não
acaba aqui. Se não compreendermos isso, não entenderemos também
o contínuo retorno dos sujeitos sociais na História que sobrevivem aos
massacres, flagelos, projetos de destruição permanentes. Não é apenas a
resistência à mudança que permanece entre nós. Mas também a resistência
à resistência à mudança, expressos na organização dos que vieram de baixo
e de seus descendentes.
Otimismo da minha parte? Nada disso. Estou sendo o mais
sociologicamente cético. A história social é um processo de longa duração
e não possui uma interpretação única. Portanto, é conflitiva, tanto em seu
ato como em sua narração. Por outro lado, o drama do presente é que só
conseguimos ver o fim imediato, que se estende na ponta do nosso nariz.
E parece ser verdade, com a devida proporção, o que dizia Robert Kurz
anos atrás, na famosa abertura de seu Colapso da Modernização: “Nunca
houve tanto fim”! Os direitos conquistados se esboroam todos os dias
numa narrativa neutra de austeridade, necessidade, moralidade e combate
à corrupção. Nós nos esfacelamos a cada dia com esta narrativa. Mas a
História não acaba aqui, não termina conosco, não chegou ao término.
O que fazer? Não tenho receita. Nem um diagnóstico. Isso me leva
a pensar o quanto pode parecer que faço parte de uma ciência inútil, como
vaticinou o governador de nosso estado meses atrás. Estou apostando
num princípio político, teórico e normativo da luta social como motor
da História. É só isso. Nenhuma novidade também. De outro lado, na
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016
Nada novo em 400 homens brancos:...
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sociedade burguesa de fins e ciência úteis à exclusão do capital, ser inútil
tem um quê de resistência. Assim como face à organização da anarquia
branca dominante, diferentes formas de resistência foram gestadas nos
quatro ou cinco séculos de sociedade brasileira: suicídios e abortos escravos,
insurreições, quilombos, associações religiosas camufladas, organizações
políticas explícitas, festas populares, música e literatura, ressignificação
de mitos e mesmo o riso. Da mesma maneira que face a um governo
conspirador cujo lema é “Não pense em crise, trabalhe”, começar a parar
para pensar é começar a resistir.
Tudo isso pode soar principista ou assustadoramente vago.
Especialmente para uma geração crescida nos anos 2000, em que parecia
que os dias serão infinitamente promissores. A História não acaba
aqui. Uma cena do futuro se fechou, mas não o futuro. Como dizia um
personagem icônico de um filme desta época, “Benvindo ao deserto
do real”. Benvindos, todos nós, ao enfrentamento do real. E este real é
complexo, sinuoso, desliza por meio das questões sociológicas, que não
compartilham do mesmo tempo da luta política. O tempo da reflexão
exige perguntar, por exemplo, por que uma parcela significativa de
sujeitos sociais que passaram da nomenclatura sociológica para sujeitos
de direitos, como disse lá atrás, se tornaram apoiadores conscientes deste
cenário; por que um século de luta social corporificada em trinta anos de
vida partidária se liquefez em questão de meses; quais são as bases sociais
do conservadorismo da vida política e cultural brasileira que se atualizam
e resistem às mudanças sociais etc. Estas e muitas outras perguntas são
convidativas às armas que possuímos, as armas da reflexão. Benvindos ao
enfrentamento do real.
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“OCUPAMENDES”: QUANDO A DROGA DA
OBEDIÊNCIA NÃO FUNCIONA MAIS!
RELATOS DA OCUPAÇÃO ESTUDANTIL DO COLÉGIO
ESTADUAL PREFEITO MENDES DE MORAES, A PRIMEIRA
ESCOLA OCUPADA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Aluana Guilarducci Cerqueira1
Ana Clara Alves2
Andreh Luiz Faustino Rodrigues da Silva3
Annie Caroline dos Santos Ferreira4
João Victor de Souza Argemiro5
RESUMO: Situado no contexto das ocupações estudantis – que marcaram o cenário
político brasileiro desde o fim do ano de 2015, chegando nas escolas fluminenses no
início de 2016 – este trabalho tem como objetivo relatar e refletir sobre processo de
surgimento do movimento de ocupação estudantil nesta escola e a sua articulação
política com os demais atores da comunidade escolar, seus dilemas e conflitos, a
experimentação política de gestão escolar dos estudantes secundaristas através da
ocupação, as suas inserções nos espaços políticos, assim como os exercícios democráticos
construídos na ocupação da escola e seus desdobramentos posteriores. Para isso
foram utilizados relatos de quatro estudantes sobre o processo de ocupação, as suas
demandas por participação política, as demandas específicas a respeito de gênero e
sexualidade na escola, a experiência de representação estudantil e organização do
Professora de Sociologia da rede estadual de educação do RJ, lotada no Colégio Estadual
Prefeito Mendes de Moraes e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da UERJ. E-mail: aluanaguilarducci@gmail.com
2
Estudante do C.E.P. Mendes de Moraes até 2016. E-mail: anyfernandes77@gmail.com
3
Estudante da 2a Série do C.E.P. Mendes de Moraes. E-mail:andreh.luizr@gmail.com
4
Estudante do C.E.P. Mendes de Moraes até 2016. E-mail: anniecarolinesf@gmail.com
5
Estudante da 2a Série do C.E.P. Mendes de Moraes. E-mail: j_souza11@hotmail.com
1
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Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
espaço escolar, além das resistências internas (desmovimento6 “Desocupa”) e as conquistas.
Buscamos também tratar dos processos políticos que precederam o surgimento do
movimento de ocupação na escola, os limites da democracia no espaço escolar e as
transformações a partir do processo de ocupação protagonizado pelos estudantes.
Este artigo é fruto de um exercício coletivo, construído por alunos de séries variadas, que
participaram da primeira experiência de ocupação estudantil no estado do Rio de Janeiro,
em conjunto com uma das suas professoras, respeitando a linguagem livre e as escolhas
argumentativas feitas pelos estudantes.
PALAVRAS-CHAVE: Ocupação de escola, democracia escolar, participação política,
estudantes secundaristas.
INTRODUÇÃO
São jovens entre 14 e 19 anos, moradores de favelas e periferias,
de bairros populares, localizados à beira das grandes avenidas do Rio
de Janeiro, filhos de empregadas domésticas, camareiras, mecânicos
de automóveis, passadeiras, cozinheiras, caixas de supermercado,
trabalhadores terceirizados do setor de serviços. Jovens que, apesar da
precariedade do ensino público, veem na educação a possibilidade de
superação das dificuldades sociais. Planejam suas vidas, projetam a entrada
nas universidades, em um futuro melhor.
A escolha da escola, muitas vezes longe da moradia, custa longos
engarrafamentos que podem levar até duas horas. Tudo para garantir
a vaga na escola que é considerada uma das melhores da região. Uma
conhecida escola da Zona Norte, antiga, tradicional e considerada de
qualidade, uma exceção na realidade do ensino público no Rio de Janeiro.
Até a ocupação de 2016 seu cotidiano era extremamente disciplinador
e coercitivo, equipada com de câmeras de vigilância pelos corredores e
pátios, com muros altos e grades que cercam os ambientes, incluindo as
janelas das salas de aula e os acessos aos pátios, regras rígidas de uso de
uniforme (embora o estado não forneça as camisas há quase 3 anos), com
fama de possuir bloqueador de celular7, inflexíveis normas de conduta e
Termo criado pelos estudantes para se referir ao grupo mobilizado contrário aos movimentos
ocupação.
7
Essa informação sempre circulou informalmente pelo colégio, embora nunca tenha sido
confirmada, o boato evidencia o sentimento de vigilância na instituição de ensino.
6
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“Ocupamendes”: quando a droga da obediência...
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nenhum espaço para questionamento e participação dos estudantes nas
suas construções ou debates. Um dos maiores exemplos de um espaço
escolar disciplinador e nada democrático. Tem sido assim a realidade dos
estudantes do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes nas últimas
décadas.
Mas o que fez com que esses jovens se organizassem e se insurgissem
contra a direção escolar e a secretaria de educação?
Com esse panorama não é difícil entender. Essa suposta qualidade
de ensino nos últimos meses esteve ameaçada, e esses jovens sentiram na
pele a queda vertical na qualidade das instalações e condições de ensino.
Com a redução das verbas para a educação desde o fim de 2015 pelo
governo do estado, os servidores estaduais tiveram atraso no pagamento
do décimo terceiro salário, o contrato dos porteiros das escolas foi
rescindido, deixando as escolas sem os funcionários que garantiam o
controle da entrada e saída de pessoas, e que muitas vezes, por desvio de
função, atuavam como inspetores. Além disso, os atrasos no pagamento às
empresas prestadoras de serviço, assim como às assistências técnicas dos
aparelhos de ar condicionado e aos serviços de internet para as repartições
públicas estaduais, transformaram o espaço escolar num ambiente quente
e caótico. A precarização atingiu seu ponto de pico, mesmo nas “escolas
vitrine” como o Mendes de Moraes.
No retorno do Carnaval, quase todos os aparelhos de arcondicionado estavam danificados pela falta de manutenção. O calor
escaldante carioca do mês de fevereiro castigava os quase cinquenta
estudantes e seus professores, em salas de aula muito pouco ventiladas,
pois foram projetadas para climatização, que possuíam nenhum ou
apenas um ventilador funcionando. Diversos professores e estudantes se
retiraram de sala ao longo da semana por queda de pressão ou desmaios
devido ao calor. Essa situação torturante durou quase uma semana,
enquanto os professores e funcionários se mantinham com os décimos
terceiros salários atrasados desde dezembro, lecionando com ausência
de porteiros e de inspetores. Todas essas condições eram caracterizadas
pelos próprios docentes como de total insalubridade. Os profissionais de
educação aguardavam a assembleia do sindicato agendada para a semana
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Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
seguinte, que posteriormente declarou greve a se iniciar na primeira
semana de março. Mas nesta unidade escolar até o momento não havia
surgido nenhuma mobilização docente de maior vulto, apenas uma
iniciativa de elaborar uma carta abaixo-assinado, relatando as péssimas
condições de trabalho, a ser enviada para a Seeduc8 pela direção escolar.
Esforço em vão.
Ao contrário dos tímidos esforços dos professores da
escola – receosos com a retaliação da direção escolar, famosa por
ser sempre a pioneira em abrir processos administrativos contra
professores grevistas –, naquela quinta-feira do dia 25 de fevereiro, os
alunos ocuparam os corredores, se sentaram ao chão e encerraram as
aulas como protesto, exigindo uma solução imediata para a climatização
das salas.
Naquele momento eles possuíam uma unidade e mobilização
estudantil há anos não vista na escola, segundo relatos dos docentes mais
antigos. Sentiam na pele a precarização e o abandono do estado. A mesma
precariedade que já viviam nos seus locais de moradia, nos hospitais
públicos e agora também chegava violentamente no espaço escolar.
A repressão da direção era famosa e naturalizada, muitos desses
jovens estudantes moram em territórios militarizados9, ou vivenciam a
experiência das operações policiais, amordaçados pela lei do silêncio que
os mantêm sob o duplo cerco da violência que acomete as populações das
favelas e periferias cariocas. A coerção no espaço escolar é uma extensão
dessa opressão, a sua continuidade. Tal sentimento de “obediência
necessária” é quase uma condição de sobrevivência para os jovens pobres
e negros do Rio de Janeiro, “obedeça e saia vivo”, “obedeça e saia com
diploma”. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo” expressão popular
reproduzida pelos alunos, muitas vezes usada também para se referirem às
regras da escola.
Seeduc RJ- Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro.
Um número significativo de estudantes dessa escola é residente de um complexo de favelas
carioca, onde poucos meses antes da ocupação escolar, foi afetado por uma ocupação das
forças de pacificação do Exército por mais de um ano.
8
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Acontece que quem tem juízo, por ter juízo, resolveu desobedecer.
Pois a obediência os “assava” nas salas de aula, sufocando suas vozes e seus
incômodos. Dali resolveram investir na organização estudantil. Chamaram
os representantes de cada turma e convocaram a primeira assembleia.
Horas após a divulgação da assembleia estudantil, foram surpreendidos
com a notícia de que a direção escolar retirou das paredes da escola os
cartazes com a convocatória da primeira assembleia, numa medida
extremamente autoritária e ilegal de repressão à organização estudantil.10
COMO PARTICIPAVAM OS ESTUDANTES ANTES...
Segundo servidores responsáveis pela coordenação pedagógica, a
secretaria de educação, até então, orientava as unidades escolares a organizar
as chapas e eleições para grêmio estudantil nas escolas, submetendo assim
as pautas e deliberações dos grêmios à aprovação da direção escolar e
da secretaria de educação, ferindo a autonomia e liberdade política da
organização estudantil. No site da Seeduc11 existem orientações públicas
sobre as etapas para a organização dos grêmios estudantis, tendo com
um dos documentos de referência uma resolução de 1986, que atribui
às secretarias de educação a aprovação de um modelo de estatuto com
as atribuições da organização estudantil previamente estipuladas, onde
direções escolares teriam o papel de organizar as atividades associativas
dos estudantes. Cabe lembrar que tal resolução, além de caduca diante da
Lei do Grêmio Livre, é apenas uma resolução, portanto sem poder de lei,
além de contrariar a deliberação da lei estadual de 199212, que no seu artigo
segundo declara que:
Tal tentativa de controle já tinha ficado evidente nos anos anteriores, quando um grupo
de estudantes tentou organizar um debate sobre grêmio estudantil e a gestão da unidade
exigiu “atestados de bons antecedentes” dos estudantes convidados para entrarem na unidade
escolar, criando manobras diversas para dificultar qualquer intenção de organização de grêmio
estudantil que não fosse absolutamente dependente e subordinada à gestão escolar.
11
http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=451406.
12
A Lei Estadual do Grêmio Livre está disponível em: http://gov-rj.jusbrasil.com.br/
legislacao/151149/lei-1949-92.
10
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Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
“Art. 2º- É de competência exclusiva dos estudantes a definição
das formas, dos critérios, dos estatutos e demais questões referentes a
organização dos Grêmios Estudantis.”
Diante desse impasse, a gestão escolar não reconhecia que
a organização dos secundaristas deveria ser uma iniciativa estudantil
e autônoma, como previsto em lei, adotando inquestionavelmente
as orientações da secretaria de educação. Nas experiências anteriores
o grêmio era empossado através de uma lista de assinaturas passada
em sala pelos funcionários da escola, sem que os estudantes
compreendessem as atribuições de um grêmio estudantil, sem
assembleias, ou debates entre chapas, cartazes de convocação, nem
participação no processo eleitoral, apenas com a finalidade de cumprir
a exigência da secretaria de educação da existência de um grêmio, tendo
como objetivo a sua parceria com a direção e coordenação escolar13.
Quando procurados por estudantes interessados na organização estudantil,
os estudantes que eram os membros oficiais do grêmio organizado pela
gestão escolar, nunca haviam se reunido ou executado qualquer atividade
coletiva além da própria posse do grêmio estudantil, embora fossem
usados constantemente como argumento para que a direção escolar não
permitisse novas eleições.
Na última investida da gestão escolar para organizar um grêmio
estudantil foi feita a exigência de que os estudantes poderiam se reunir,
mas deveriam encaminhar a ata da reunião para a direção, para que após
análise, fosse aprovada pela Seeduc. Num nítido esforço de controle da
política estudantil, contrariando o que se entende como um espaço escolar
democrático e a autonomia política dos estudantes.
Seguem abaixo os relatos desse processo, elaborados pelos próprios
estudantes.
13
http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=451406.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016
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RELATO 1: QUANDO TUDO COMEÇOU...
A partir do momento em que eu vi alunos passando mal de calor na
minha escola, e depois vi adolescentes inconformados com aquele descaso,
os vi sentados no corredor tentando de alguma maneira chamar atenção
da direção. Tudo começou naquele momento, me lembro até hoje, quando
ouvi dizer da assembleia e tal, percebi que eu poderia sim ter voz dentro
da escola. Começamos a organizar reuniões, fomos para atos, conhecer
secundaristas de outras escolas que de alguma forma também não se
contentavam com aquela migalha. Depois de tantas tentativas, ocupamos.
E sim, depois dali, aprendi tudo que não aprendi em doze anos no ensino
público, não por incompetência dos meus professores, e sim pelo que o
governo queria que nos tornássemos. No 3° ano nunca tinha aprendido tanto
de história como aprendi na ocupação, nunca gostei de gays e lésbicas, por
ter tido um ensino diferente em casa, mas lá aprendi que eles são seres
como eu. Aprendi a questionar tudo, ter pensamento crítico, aprendi a
me comunicar com as pessoas, me socializar. Aprendi a conviver com as
diferenças, que o corpo é meu e que eu não preciso me incomodar com o
que os outros vão pensar. Era totalmente machista, agora sei que a minha
roupa não pode me definir. Tive aula de Geografia, História, Educação
Física, Português, mas também tive de gênero, moral e política, tive aula
sobre o mundo lá fora, e olha que eu era totalmente ignorante nessa questão.
Aprendi que não posso me calar e nem abaixar a cabeça pra qualquer um,
nem pra um PM. Sempre vi gente sendo humilhada, sempre fui parada por
soldados e nunca pude me manifestar diante aquilo, pessoas morrendo
baleadas.... E quando tive a oportunidade de lutar contra o governo que
assassina pobres todos os dias, aí mesmo é quem me mantive nisso.
Eu aprendi muito, mas devo tudo à ocupação. Ela acabou, mas minha
vontade de lutar não, até hoje estou nessa, cansada, com psicológico abalado,
quase desistindo, mas por tanto descaso, com mais vontade de lutar por
ver minha escola “caindo”, por não ter caneta pros professores, por ter
que pagar xerox, ou por não ter um simples papel higiênico. Mas a maior
indignação é por ver uma direção tão opressora que tenta calar nossa voz,
mas que mesmo assim a gente vai lá, e mostra que temos voz.
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Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
RELATO 2: A ORGANIZAÇÃO INTERNA DA OCUPA
Construímos uma organização entre os estudantes, para manter
uma administração da escola, dividindo os alunos em comissões que
ficariam responsáveis por cada função, como alimentação, segurança,
comunicação, estrutura e atividades. Realizamos debates sobre assuntos
que normalmente não são conversados nas escolas, como racismo,
homofobia, feminismo. A partir disso os estudantes começaram a
deixar mais o preconceito de lado e ter uma convivência de igualdade,
que é muito importante. Não tratando as minorias com indiferença,
e sim incluindo ao nosso meio social sem discriminação. Tinha
dias na semana em que colocávamos o banheiro de forma unissex,
fazendo com que ambos os sexos se respeitem dentro do banheiro.
Construímos uma biblioteca livre, onde os próprios estudantes pegavam
os livros que queriam ler, escreviam seus dados pessoais e poderia fazer
empréstimo do livro sem ter uma pessoa para fiscalizar. Durante a
ocupação também fizemos uma horta como forma de subsistência, onde
podíamos plantar nossos temperos, ajudando na alimentação pois eram
mais frescos e naturais. Foram realmente 56 dias de muita batalha, luta
e inovação. A ocupação me ensinou a pensar que se eu tenho um direito
tenho que lutar e reivindicar por ele, por mais difícil que seja consegui-lo.
E, também de mostrar para os estudantes de todo o país que nós somos
capazes, e que não podem nos privar de pensar. A luta só começou, e os
estudantes não vão parar. É por mim e por todos, você pode vencer o
sistema sim. A nossa luta não acabou, viemos para revolucionar.
RELATO 3: OS ATAQUES DO DESMOVIMENTO “DESOCUPA”
Eu sempre estudei em escola particular, mas sempre soube
dos problemas que as escolas públicas tinham. Quando acabei o
ensino fundamental, a minha última escolha era ir para um colégio
estadual, mas fui obrigado por conta de condições financeiras,
afinal, minha mãe é pensionista e meu pai faleceu há dois anos.
Quando eu cheguei no colégio, vi logo os problemas, a estrutura da escola
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é muito parecida com a de uma prisão, banheiros sujos e pichados com
siglas de facções criminosas, tempos vagos; enfim vários problemas. Isso
porque eu estudo numa das melhores escolas estaduais do Rio, o C.E.
Prefeito Mendes de Moraes, uma escola dita como modelo. Eu sempre quis
participar do grêmio estudantil do colégio, e quando alunos me chamaram
para ajudar a organizar atos em prol de melhorias não só da educação, mas
também em prol da estrutura da escola, eu amei a ideia e ajudei. Fizemos
vários atos, e participei de praticamente todos, e não fomos ouvidos. O
descaso que o governo do Pezão tinha com a gente era grande.
Os professores começaram a greve e nós estudantes decidimos
apoiar. Me falaram de ocupação e eu na mesma hora apoiei, sabia o que
era e sabia seu significado. Então ocupamos, fomos atacados pela direção
e pela mídia, não fisicamente, não ainda. Cinquenta pessoas, alunos, pais,
apoiadores, professores, ocupando uma escola. Sentimos frio, fome, sono,
mas não desistimos da luta.
No segundo dia já ouve repressão. Um desmovimento começou
a nos atacar, chamavam-se Desocupa, eram contrários a luta. Era
formado por estudantes contrários ao movimento e tentaram
rompê-lo de forma violenta. Nos primeiros dias com xingamentos,
depois com pedras, garrafas, ovos, enfim, fomos atacados.
Esses estudantes, quebraram e apedrejaram a escola de forma brutal, e
com raiva, e sem nenhum motivo e argumento aceitável. Machucaram
pessoas, e tentaram arremessar meu amigo do segundo andar do prédio
anexo, isso me deixou bastante revoltado, me senti no tempo medieval,
onde as pessoas não tinham diálogo e resolviam as coisas violentamente,
e não aceitavam pensamentos opostos. Mas isso não enfraqueceu a luta
dos estudantes, só nos deu iniciativa para começar um movimento muito
maior.
Na ocupação eu via uma escola limpa, linda e política, no período
de ocupação eu tinha orgulho de falar para minha mãe: “Estou indo pra
escola”. Lá foi onde meus conhecimentos de política cresceram e muito,
aprendi mais sobre política na ocupação do que em toda minha vida.
Fazíamos atividades como saraus, debates, assembleias e etc. Um dia o
Desocupa veio, e não estávamos preparados, tínhamos poucas pessoas,
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Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
vi meus amigos apanharem, sangrarem, chorarem. O prédio anexo estava
destruído, sujo... Foi horrível!
A partir daquele dia, andamos preparados, e estávamos cansados,
não queríamos mais apanhar, nem do governo, nem da polícia, muito
menos de um desmovimento fraco mentalmente e politicamente. Fechamos
a escola, totalmente. Fiquei um tempo sem ir para a ocupação, afinal, eu
apanhei também. O último dia de ocupação, que eu fui, foi uma Guerra, a
escola foi destruída, o desmovimento quebrou a escola, com bombas, pedras
e tijolos. E nós resistimos até o último segundo. A ocupação foi tão boa
para minha identidade política e pessoal, que até hoje estou na luta, indo
nos atos, lutando contra esse governo corrupto que cada dia ataca ainda
mais a saúde e educação. E vou continuar até acabar com isso, e que meus
filhos possam estudar numa escola pública de qualidade.
RELATO 4: A VOZ QUE ULTRAPASSA OS MUROS DA ESCOLA
Sempre me interessei pelas formas da humanidade de se comunicar,
nos se comunicamos de formas diferentes, seja por desenhos, por gestos,
por palavras, por cores. Isso sempre me encantou de uma forma que eu
nunca entendi. Eu sempre fui uma criança “fútil”, sempre quis ser rica.
Por morar em uma das maiores comunidades do Rio e sempre estudar
fora dela por “querer uma educação melhor”, eu sempre vi ser rica como
a solução dos meus problemas. Todas as vezes que eu ligava a televisão
e no noticiário estava falando sobre a minha comunidade eu comecei a
acreditar naquilo, não por ser uma criança, mas sim porque não tinha
ninguém pra me dizer que a tv mente e manipula. Eu que vivia ali entre
as maiores vias do Rio de Janeiro comecei a acreditar. Estudei em escola
pública a vida toda, meus pais sempre me incentivaram a estudar, a querer
sair da “minha favela”. Nos últimos 5 anos da minha vida eu aprendi sobre
algo que influencia muito na vida do “pobre e favelado”, política. Parece
coisa pequena, mas não é. Eu descobri que o governo foi o responsável
pelas vezes que eu estava brincando na rua e tive que me esconder com
medo porque o caveirão14 estava na favela, foi o governo que me fez achar
14
Carro blindado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, utilizado nas operações policiais.
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que ser rica seria uma solução. Mais tarde com uns 13 ou 14 anos eu
comecei a me sentir incomodada com os olhares que eu recebia na rua
quando andava com uma roupa curta ou quando vinha sozinha de uma
festa à noite, comecei a me questionar o porquê de ser olhada como um
pedaço de carne. Com uns 15 anos na minha primeira aula de sociologia
no Mendes, minha professora falou sobre o feminismo, falou como as
mulheres eram objetificadas. Foi um “bum” na minha vida, eu estava
fazendo política quando ensinava às minhas primas que se um homem
te tocar sem a sua permissão é errado, e que quando você não quer não
precisa acontecer.
Aí chega 2016 e eu estava cansada. Com o pior verão dos últimos
tempos com a Lúpus atacada, com o estado recusando a me dar os
remédios, o hospital que eu me trato quase fechando, a universidade
dos meus sonhos quase fechando as portas15. O ano de 2016 começou
sendo o caos, tudo para dar errado, até que… Entram umas 3 pessoas na
minha sala de aula avisando que haveria uma assembleia estudantil. Fiquei
curiosa, e fui. Vamos fazer um ato no bairro? Vamos! Vamos reunir um
grupo pra ir pra um ato no centro? Vamos! Vamos ocupar o colégio? Oi?
Como? Vamos com calma, vamos ocupar, por quê? O colégio está em
ótimo estado. Foi uma das primeiras coisas que eu falei.
Mas ocupamos, nos dividimos em comissões. Comunicação
Atividades, Alimentação, Estrutura. A palavrinha “comunicação” parecia
que brilhava na hora que eu escolhi, eu sempre gostei de me comunicar
com as pessoas, sempre quis fazer algo nessa área, foi a minha primeira
oportunidade.
A comissão de comunicação era responsável pela divulgação da
ocupação, listas de doações, manter contato com outras escolas, falar com
a mídia, mostrar o colégio entre outras coisas. Eu lembro que no terceiro
dia de ocupação eu já tinha mudado minha opinião sobre o Mendes, tinha
muita coisa errada sim! E a gente começou a pôr “o dedo na ferida”,
começamos a nos locomover para outras escolas, trazer as outras escolas
pra luta. Mas a ocupa acabou, o amor pela comunicação não. Logo após a
A universidade relatada é a Universidade Estadual do RJ, que até hoje sofre com os constantes
cortes orçamentários.
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Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
ocupação rolou uma inscrição para um curso de comunicação comunitária,
uma extensão da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o “Favela
Fala” foi umas das melhores experiências da minha vida, eu descobri que
você não precisar ter um equipamento de última geração pra ajudar a sua
comunidade, sua escola ou alguém. Conheci outros militantes de várias
causas, causas diferentes, mas com o mesmo objetivo de mudar o estado,
o país quem sabe um dia o mundo?
O DESMOVIMENTO E A AUSÊNCIA DE DIREITOS
O surgimento do “desmovimento Desocupa” nos cobrou um esforço
para tentar compreender porque alguns estudantes ainda resistiam às
mobilizações e à proposta de autogestão estudantil da Ocupamendes.
Todo esse contexto nos sugere o quanto é difícil romper das amarras da
ideologia disciplinar do modelo da escola tradicional, pautado em uma
metodologia de ensino ultrapassada, onde se reproduz a ideia de que
professor bom é aquele que garante a rigidez do ensino e notas baixas,
onde a escola não é um espaço de educação, de alegria, músicas, artes,
cores, mas um espaço de adestramento, silêncio e sobretudo de seleção.
Muitos estudantes adolescentes entendem que o adestramento é sinônimo
de qualidade de ensino, e podem se surpreender quando chegarem às
universidades e encontrarem um modelo de ensino onde o adestramento é
menos explícito; mas aqueles que da escola vão direto para o serviço militar
ou para as fileiras dos trabalhos precarizados, são capazes de se adequar
mais facilmente, afinal foi para isso que foram rigidamente educados, para
servirem obedientemente a patrões e superiores sem questionamentos.
De uma forma geral isso fica aparente nas principais críticas dos
estudantes contrários à ocupação dirigidas às mobilizações políticas
dos estudantes, aos professores grevistas, ao sindicato dos profissionais
da educação e à presença de estudantes de outros segmentos como
apoiadores da ocupação, em geral se baseavam em um profundo
desconhecimento ou distorção de direitos, tanto políticos como sociais.
Tinham como crítica fundamental a utilização da escola como espaço
de educação com professores que não faziam parte do quadro docente
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“Ocupamendes”: quando a droga da obediência...
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daquela unidade, o conteúdo das oficinas que debatiam direitos de
minorias, ou atividades alternativas como hortas, teatro e dança, tratadas
como secundárias ou desnecessárias ao ensino escolar. Mas, sobretudo,
as principais críticas eram referentes às formas de organização interna e à
desobediência à direção escolar e em consequência à secretaria de educação.
Além dos discursos presenciais nesse tom, declarados nos momentos de
confronto político entre os estudantes e pais de alunos, também eram
encontrados nas redes sociais em posturas de ataque e difamação de
estudantes e professores que participavam e apoiavam a ocupação.
A falta de compreensão dos direitos políticos dos trabalhadores
levou alguns desses estudantes a considerar os períodos de greve
dos seus professores como falta, assim como as paralisações e
licenças médicas. Num país com uma enorme quantidade de
trabalhadores informais e precarizados, onde temos tradição em
péssimas condições de trabalho, desrespeito às leis trabalhistas e
assédio moral, não é difícil compreender como esses direitos possam ser
considerados como abusos e regalias para essa fração de trabalhadores e
seus filhos.
Para jovens filhos de trabalhadores precarizados, informais,
desempregados, cerceados de direitos diversos, sob ameaça
constante de violações policiais, condicionados a uma educação
pública de contenção disciplinar, ocupar e reinventar o espaço
escolar é uma afronta quase imperdoável. Não é à toa que
os maiores incômodos se referiam aos momentos de lazer organizados
na escola durante a ocupação e a sexualidade dos estudantes
envolvidos na ocupação. O Mendes é uma escola com um número
significativo de jovens LGBTs, muitos destes engajados no movimento
de ocupação, e que relatavam a identificação do espaço escolar
ocupado como um espaço onde poderiam se vestir, dançar, usar o
banheiro do gênero que se identificavam e ser quem eles eram. Foram
muitos os relatos de que esse era o único espaço onde isso era possível.
Ao contrário do caso das ocupações do estado de São Paulo, o
governo do Rio de Janeiro não precisou acionar a polícia, se utilizou de
jovens motivados pelo medo de perder o ano letivo, pela homofobia,
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Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
desinformados dos processos políticos aos quais estavam sujeitos, imersos
numa sociedade extremamente violenta trazendo em reflexo nos seus atos.
Tiveram o trabalho apenas de estimular os desentendimentos.
Através de jornais de grande circulação a Secretaria de educação
ameaçou a perda do ano letivo16. Divulgou manifestações contrárias à
ocupação em sua própria página no Twitter17, e orientou a aliança das
direções escolares com movimentos contrários, promovendo reuniões
entre os profissionais que não aderiram à greve, pais temerosos pela
perda do ano letivo com ocupação escolar e os estudantes do desmovimento,
reuniões realizadas fora das instituições de educação, até mesmo em
igrejas. Tal postura retrata a indisposição no diálogo com os estudantes
que ocupavam a escola, a deslegitimação das suas demandas, através de
um estímulo pelo conflito interno visando encerrar a ocupação, ignorando
em absoluto as condições de boas relações futuras entre os membros
do espaço escolar, polarizando a escola entre os que eram favoráveis e
contrários à mobilização dos estudantes pela melhoria da educação pública.
Onde antes se mantinham relações de respeito e afeto, se transformou
numa arena de guerra. As cenas mais dantescas que aconteceram nesta e em
outras escolas, onde se polarizaram movimento estudantil e desmovimento,
são desdobramentos de uma investida do estado, que se manteve mesmo
após ter sido negada judicialmente a reintegração de posse, demonstrando
um total descompromisso com a educação, com a vida e segurança desses
jovens.
Nos parece que a ausência de direitos que assola esses jovens,
desde o direito à vida, à uma moradia digna, ao acesso à saúde pública
de qualidade, à qualidade de ensino, e tantos outros direitos que lhes são
negados, dificulta que alguns possam enxergar como alternativa exigir
educação de qualidade. A ausência de direitos é tão grande que para
alguns a insubordinação aos abusos, ao autoritarismo e ao descaso são
identificados como uma afronta a ser combatida.
http://oglobo.globo.com/rio/escolas-ocupadas-secretaria-diz-que-alunos-podem-perderano-19226114.
17
Disponível no anexo I.
16
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AS PAUTAS DOS ESTUDANTES E SUAS CONQUISTAS
Em todo o estado do Rio de Janeiro, mais de setenta escolas após
a ocupação do Mendes, também foram ocupadas, mobilizando uma
luta estudantil estadual, unificando suas pautas comuns e integrando os
estudantes de norte a sul do estado. As ocupações se iniciaram antes da
greve dos profissionais da educação da rede estadual e algumas delas se
estenderam utilizando parcialmente o espaço escolar, mesmo com o fim
da greve. Foram quase cinco meses de greve. Sem dúvida a participação
histórica e massiva dos estudantes foi fundamental para esse processo e
teve grande responsabilidade pelas conquistas obtidas.
Após cinquenta e seis dias de ocupação em meio a muitos
ataques, uma desocupação violenta promovida pelos grupos de
estudantes contrários ao movimento e a sua seguida reocupação,
os estudantes do C. E. P. Mendes de Moraes decidiram em assembleia
por encerrar a ocupação por dois motivos principais: As reivindicações
específicas em pauta foram atendidas e os ataques violentos tornaram
insustentável a permanência, colocando em risco a vida e a integridade
física dos estudantes.
Foram pautas conquistadas pelo movimento estudantil:
• a exoneração do antigo diretor;
• a quantia de quinze mil reais para o orçamento da escola;
• a negociação com a nova direção para o uso dos espaços da
escola como laboratórios de informática, auditório, sala de dança, etc, que
antes tinham uso extremamente restrito ou inexistente;
• a extinção da prova diagnóstico SAERJ e abolição das metas
relacionadas à ela;
• a eleições para diretor;
• a eleição para grêmio organizado pelos estudantes e
• o aumento da carga horária das disciplinas de Sociologia e
Filosofia para dois tempos por semana.
A exoneração do diretor foi publicada no Diário Oficial dias após
a desocupação, sendo substituído pela sua mesma equipe de diretores
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Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
adjuntos, que passaram a atuar como diretores interinos, até as eleições
para direção.
Nas semanas seguintes, os estudantes da rede estadual ocuparam
o edifício central da Seeduc, reivindicando o atendimento das pautas
específicas de diversas escolas estaduais que, apesar dos acordos com
a secretaria de educação, não tiveram as suas demandas efetivamente
atendidas, entre elas o Mendes de Moraes.
Atualmente a escola vive intenso debate político tanto no corpo
estudantil como no corpo docente, no entanto ainda guarda profundas
marcas da violência que assolou a escola. Apesar dos danos do clima de
tensão e polarização constante, o debate político, sobre temas internos e
externos à escola, hoje integra a vida escolar, sendo parte do repertório de
assuntos em todas as turmas dentro e fora das salas de aula.
Ao fim do ano de 2016 foi realizada a consulta para direção escolar
nas unidades que passaram pelo processo de ocupação. No Mendes duas
chapas disputaram o pleito, uma composta por professores grevistas e outra
com professores que se posicionaram contrários à ocupação. Com um
resultado apertado, assumiu o cargo a segunda chapa, entre seus membros
se encontram servidores pertencentes à antiga equipe gestora, chefiada
pelo diretor exonerado do cargo, conforme demanda da ocupação. As
demais escolas da rede estadual passaram pelo processo consultivo no ano
de 2017.
A respeito do cenário político interno na escola, novos temas
entraram em pauta pelos estudantes, como a organização de coletivo
LGBT, atividades sobre questão racial articuladas com o movimento
negro, propostas de debates sobre gênero, reivindicações de passe livre
e riocard18, a utilização do teatro e da quadra esportiva além de outras
demais pautas estudantis, todas protagonizadas pelos estudantes.
No início de 2017 foram realizadas as eleições para o grêmio
estudantil, onde duas chapas disputaram o pleito. Uma com integrantes
contrários à ocupação e a outra com integrantes que participaram da
ocupação. Venceu a última chapa, que hoje articula diversos debates entre
18
Cartão de passe do transporte público fornecido pela secretaria de transportes.
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“Ocupamendes”: quando a droga da obediência...
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os estudantes, participando ativamente da vida política na escola e fora
dela. Além das conquistas da ocupação, somam-se ainda a recente criação
de uma rádio e a construção do Pré-vestibular Rafael Braga19, organizado
pelos estudantes com professores voluntários, realizado na escola no turno
da noite. Infelizmente essa iniciativa encontrou resistência da direção
escolar para a cessão do espaço, embora diversas salas se encontrem sem
uso no turno da noite.
Além disso, professores que apoiaram a ocupação, organizaram um
Grupo de Trabalho e Estudos, associados a um projeto de extensão da
Faculdade de Educação da UFRJ que tem organizado oficinas na escola,
visando a formação dos docentes a fim de realizar um trabalho que atenda
adequadamente a diversidade do corpo discente escolar, em especial a
respeito das questões de gênero e sexualidade. As oficinas são realizadas
mensalmente na escola, abertas a todos os docentes, com convite especial
à direção. Na ocasião da primeira realização houve indisposição da direção
para a cessão do espaço. Até a presente data já foram realizados 4 encontros
e não houve a presença da equipe gestora em nenhum deles.
Rafael Braga é um jovem negro catador de materiais recicláveis, preso injustamente em
junho de 2013 sob o argumento de carregar material explosivo em uma sacola. Com ele foram
encontrados uma garrafa de desinfetante e uma de água sanitária, o suposto material explosivo.
Rafael Braga foi condenado a 11 anos de prisão em abril deste ano, se encontra preso desde
2013 e doente diagnosticado com tuberculose. A última decisão judicial recusou a sua prisão
domiciliar para tratar da saúde. Atualmente ele, mesmo doente, ocupa cela coletiva com demais
detentos. Seu caso é tratado por diversos movimentos sociais no Brasil como símbolo de luta
contra o racismo institucional.
19
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44
Aluana Guilarducci Cerqueira et al.
ANEXO 120
https://www.facebook.com/OcupaMendes/photos/a.241383286215691.1073741828.2413
77779549575/272936223060397/?type=3&theater.
20
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ANEXO 2
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NÃO TEM ARREGO! VOCÊS TIRAM NOSSOS
DIREITOS E NÓS TIRAMOS SEU SOSSEGO!
Isabela Gonçalves1
RESUMO: Nesse artigo analisou-se o processo de sucateamento realizado através de
uma política neoliberal do Estado, o que originou o levante secundarista no país, além de
despertar o debate sobre o modelo de educação que o Estado oferece.
PALAVRAS-CHAVE: educação, escola, ocupação, política, neoliberal.
O PROCESSO DE SUCATEAMENTO NESSES 20 ANOS DE PSDB
Não é novidade que a educação do Estado de São Paulo é precarizada.
Nesses mais de 20 anos de Governo de PSDB podemos observar um
processo de sucateamento na educação através de uma política neoliberal.
Durante os governos vemos que os nomes que ocupam o
posto máximo na Secretaria da Educação são pessoas que não veem
a educação como instrumento para a igualdade, mas sim pessoas
que, além de verem a educação como mercadorias acreditam que
não é papel do Estado garantir esse direito para todas as pessoas.
Um exemplo disso é o que diz o atual secretário José Renato Nalini, em
seu artigo Sociedade Órfã: “A população se acostumou a reivindicar.
Tudo aquilo que antigamente era fruto do trabalho, do esforço,
do sacrifício, e do empenho, passou a categoria de ‘direito’. E de
Estudante secundarista da Escola Estadual Dom Barreto (Campinas-SP). E-mail:
isabela.s.goncalves@outlook.com
1
48
Isabela Gonçalves
‘direito fundamental’”, ou seja, aquele que não pode ser negado e
que deve ser usufruído por todas as pessoas”. Esse trecho só confirma
a política neoliberal e meritocrática do Governo Tucano na Educação.
Em 1995 iniciou-se o processo de municipalização; processo de
reorganização que repassou a responsabilidade do Ensino Fundamental
para os municípios e agrupou escolas em ciclos únicos.
Essa medida foi sustentada por um discurso de que somente o
agrupamento de determinados ciclos e separação de outros possibilitaria
um atendimento mais adequado e qualificado, que garantiria estruturas,
equipamentos, materiais, projetos pedagógicos específicos para o trabalho.
Este discurso, na verdade, escondia o objetivo principal do governo
tucano que era a política de redução de “gastos” e retirada, aos poucos, da
responsabilidade do Estado.
Apesar de ter transferido para os municípios as obrigações referentes
às séries iniciais, não houve ampliação de investimentos no Ensino Médio
e na Educação de Jovens e Adultos.
As duas primeiras gestões do PSDB, além do processo de
municipalização, também criaram projetos e programas que transmitiam
um discurso que transferia para a comunidade, os profissionais das escolas
e até mesmo para os próprios alunos a responsabilidade dos problemas
nas escolas.
Os projetos/programas que se destacam são o “Amigos da Escola”
e o “Escola da Família”. O 1º usava o trabalho voluntário como forma de
responder às insuficiências e falta de recursos. O 2º delegava funções das
escolas a estudantes de Universidades Privadas em troca de concessão de
bolsas de estudos.
Em 1996 foi implantado o Sistema de Avaliação do Rendimento
Escolar no Estado de SP (SARESP).
Esse sistema não é uma avaliação da aprendizagem e do
desenvolvimento do aluno durante sua trajetória escolar. Trata-se, isto
sim, de uma avaliação que uniformiza os processos educativos, ainda que
em diferentes escolas, com diferentes grupos e em diferentes localizações
apresentem contextos e realidades muito distintas.
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Não tem arrego!...
Por causa desse sistema de avaliação houve uma mudança no perfil
do professor, que acabou se tornando “técnico”, pois basta a ele “ensinar”
o conteúdo que irá cair na avaliação.
O quadro do governo tucano depois de mais de 20 anos é
totalmente dramático. Professores desgastados, escolas sem estrutura
física e pedagógica.
AS TENTATIVAS DE RETIRADAS DOS NOSSOS DIREITOS
Os ataques contra os estudantes já começaram desde o início do
ano de 2015, com o ajuste fiscal do Governo Dilma na Educação. Aqui,
no Estado de São Paulo, já no início do ano, foram fechadas cerca de 3.000
salas de aula, que além de gerar superlotação, prejudica cada vez mais a
aprendizagem.
Os professores dos estados de SP/PR fizeram greves históricas e
como sempre a única resposta que tiveram foi a repressão.
No último semestre de 2015 o Governo Alckmin afirmou que iria
reorganizar. A medida previa fechar cerca de 94 escolas, agrupando as
demais escolas em ciclos únicos. Na prática essa medida iria superlotar
cada vez mais as salas de aula e, consequentemente, mudando cerca de
300 mil alunos de suas próprias escolas, além de milhares de professores e
funcionários que seriam demitidos.
Em Goiás, o Governador Marconi Perrillo privatizou de uma forma
diferente; por meio das Organizações Sociais (OS’s), o governo assumiu
uma parceria com a iniciativa privada transferindo a essas organizações
a gestão de uma escola. Essa medida afeta cerca de 512.000 alunos.
Transforma a educação em mercadoria.
No Rio de Janeiro e no Ceará, assim que os professores entraram
em greve, os estudantes ocuparam suas escolas.
No Rio Grande do Sul, em meio à crise no estado o governo de
Satori parcela o salário dos servidores. Os estudantes se unificam com
os servidores e ocupam suas escolas contra a precarização no ensino
gaúcho. Além de ocuparem cerca de 160 escolas, os estudantes ocupam
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 47-50, fev./dez. 2016
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Isabela Gonçalves
a Assembleia Legislativa para vetar a tramitação do Projeto de Lei nº
44/2016 que visava privatizar serviços das escolas estaduais.
O ESTADO VEIO QUENTE, ‘NOIS’ JÁ TÁ FERVENDO.
Como vemos a velha política liderada pelos partidos da ordem cria
medidas que tem como objetivo sucatear cada vez mais a educação.
Em contrapartida, nós, estudantes secundaristas, ocupamos as ruas
e as escolas de norte a sul do país, barrando essas medidas e enfrentando
a polícia que nos tratou de forma desumana.
Através das ocupações, fizemos das escolas um lugar de fato nosso.
Construímos espaços de grandes debates, algo raro dentro da escola.
Foram realizados debates sobre os mais diversos temas, como: gênero,
sexualidade, negritude, legalização, direito à cidade.
É importante ressaltar o papel das mulheres no movimento
secundarista. Nós, mulheres, somos a maioria nos grêmios estudantis e
nas ocupações não foi diferente. As meninas lideram as ocupações desde a
organização, sendo porta-voz de sua escola e, até, sendo linha de frente das
manifestações. A primavera secundarista começou junto com a Primavera
das mulheres, na rua contra Cunha e todo seu retrocesso. As mulheres
e os estudantes secundaristas desafiaram esse estado machista levando o
debate feminista para os mais diversos lugares.
Durante esse período de luta, tivemos diversas vitórias como: barrar
a Reorganização Escolar (SP), Expulsão da Direção ditadora da EE Carlos
Gomes (Campinas-SP), a Ocupação na Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul, que barrou o Projeto de Lei nº 44/2016, eleições diretas para
direção e tantas outras. Mas, a principal é o despertar da nossa consciência.
Durante esse período discutimos desde o nosso papel na sociedade ao
modelo de educação que temos. Por meio disso, aprofundamos as nossas
reivindicações: que a nossa luta é desde a merenda a uma educação que
nos ensine a pensar e não a obedecer.
Aprendemos na prática que é só a luta que muda a vida.
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O CORTE E A CORTE: O QUE A CRISE
ORÇAMENTÁRIA E POLÍTICA DA UNICAMP
TEM A NOS DIZER SOBRE INJUSTIÇA SOCIAL?
Comissão de Orçamento do Comitê de Greve da Pós-Graduação – IFCH/2016
Participaram da redação:
Ana Cláudia Lopes Silveira1
Hyury Pinheiro2
Maria Elisa Perez Pagan3
Mariana Toledo Borges4
Nathalia Rodrigues da Costa5
Pedro Henrique Santos Queiroz6
Doutoranda em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas- IFCH/Unicamp.
E-mail: anitaclsilveira@gmail.com
2
Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp.
E-mail: hyure.pnh@gmail.com
3
Mestranda em Teoria Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem - IEL/Unicamp.
E-mail: elisappagan@gmail.com
4
Mestranda em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp.
E-mail: marianatoledo.b@gmail.com
5
Mestranda em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp.
E-mail: nathaliarodrigues1304@gmail.com
6
Doutorando em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/
Unicamp. E-mail: pedroqueirozpedro@hotmail.com
1
52
Ana Cláudia Lopes Silveira et al.
Participaram das discussões:
Caio Augusto Toledo Padilha7
Rafael Coca de Campos8
Sandro Barbosa de Oliveira9
Sandro Vimer Valentini Junior10
RESUMO: O objetivo deste texto é contribuir para o debate sobre os cortes no orçamento
da Universidade Estadual de Campinas propostos pela reitoria no ano de 2016. Pretendese refletir sobre tal contingenciamento à luz da estrutura orçamentária em geral. Primeiro,
apresenta-se o quadro atual do financiamento da Universidade Pública, e, particularmente,
da Unicamp. Em seguida, discute-se esse quadro tendo em vista a estrutura tributária mais
geral e das soluções de resolução apresentadas para o déficit orçamentário. Buscamos aqui
pensar esses cortes no orçamento relacionando-os à atual conjuntura econômica, sem
perder de vista a estrutura do financiamento do ensino universitário público. Com essa
reflexão, pretendemos trazer mais subsídios para o debate sem abrir mão das demandas
em favor de políticas de financiamento e de um projeto de ensino democrático e a serviço
do público.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino Superior Público; Orçamento Universitário; ICMS; Justiça
Social; Greve 2016.
INTRODUÇÃO
Neste ano de 2016, a reitoria da Universidade Estadual de
Campinas apresentou à comunidade acadêmica, por meio da Resolução
GR no 10/2016, medidas de contenção de despesas. Essa resolução
teve como justificativa o baixo crescimento da arrecadação da principal
Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp.
E-mail: padilha.caio@hotmail.com
8
Historiador formado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp.
E-mail: rufosa2004@hotmail.com
9
Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp.
E-mail: ontologicosan@hotmail.com
10
Mestrando em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp.
E-mail: sjvalentini@outlook.com
7
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O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política...
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fonte de financiamento da Universidade – o Imposto sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS) – e o déficit orçamentário que já se
apresentava no Fechamento do Orçamento de 2015, ambos como reflexo
da crise econômica que atinge o país. Se do ponto de vista da totalidade
do orçamento da Unicamp essa contenção não representa uma soma
quantitativamente significativa, o fato dela incidir majoritariamente sobre
elementos-chave para o funcionamento da Universidade faz dessa medida
algo qualitativamente grave.11
É em face da apresentação destas e de outras medidas que deterioram
o funcionamento da Universidade que a greve estudantil se construiu e se
efetivou dentro da Unicamp. São apresentados como pontos de pauta:
a oposição aos cortes provenientes dos contingenciamentos de despesas,
a implementação de políticas afirmativas de ingresso e a demanda por
políticas de permanência, sendo que as duas últimas são bandeiras já
antigas do movimento estudantil. Concomitantemente, funcionários
e professores juntaram-se aos estudantes acrescentando suas próprias
demandas salariais e se solidarizando com as pautas dos estudantes.
A despeito da pretensa desadequação de certas pautas à conjuntura
econômica, fato é que todas as demandas postas pela greve estudantil
estão subordinadas à questão estrutural do orçamento e do financiamento
da Unicamp, em particular, e das Universidades Estaduais Paulistas em
geral; bem como ao projeto político de Universidade pública, gratuita e
de qualidade. Tal subordinação explicita a legitimidade do movimento e
a necessidade de se discutir politicamente as decisões “administrativas”
tomadas pela Reitoria. Se há necessidade de cortes orçamentários, eles
devem estar submetidos a esse projeto político, de modo que o impacto
seja o menor possível sobre os elementos essenciais para a produção
democrática de conhecimento e reprodução financeira sustentável da
Universidade. Por exemplo, no que tange a este projeto, não se pode
Como gestão de pessoal; suspensão, por este ano, da convocação de candidatos à carreira
PAEPE aprovados em concursos públicos; congelamento dos editais e o consequente não
preenchimento de boa parte das vagas livres; reavaliação dos contratos de serviços terceirizados;
serviços de impressão e cópias reprográficas; unidades da área da saúde; Programa de
Manutenção de Predial, etc.
11
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016
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Ana Cláudia Lopes Silveira et al.
desvincular as demandas de implementação de políticas afirmativas de
ingresso das políticas de permanência, pois, na medida em que as políticas
afirmativas raciais e sociais atendem aos grupos socioeconômicos mais
vulneráveis, a necessidade por políticas de permanência é inevitavelmente
aumentada.
O objetivo deste texto é refletir sobre a crise orçamentária da
Universidade procurando compreendê-la como parte inalienável da
questão tributária brasileira. Primeiro, apresenta-se o quadro atual do
financiamento da Universidade Pública, e, particularmente, da Unicamp.
Em seguida, discute-se esse quadro à luz da estrutura tributária mais geral e
das soluções de resolução apresentadas para o déficit orçamentário – que,
note-se, não é apenas um problema conjuntural. Buscamos aqui pensar
esses cortes no orçamento relacionando-os à atual conjuntura econômica,
sem perder de vista a estrutura do financiamento do ensino universitário
público. Com essa reflexão, pretendemos trazer mais subsídios para o
debate sem abrir mão das demandas em favor de políticas de financiamento
e de um projeto de ensino democrático e a serviço do público.
DE ONDE VEM O DINHEIRO? O ORÇAMENTO DA UNICAMP
E SEU LUGAR NA ARRECADAÇÃO PÚBLICA
A principal fonte de financiamento da Unicamp é o repasse de
parte do ICMS pelo governo estadual paulista. Segundo a Unicamp,12
no ano de 2015 cerca de 94% de seu orçamento foi proveniente dessa
fonte. O repasse funciona da seguinte forma: do total da arrecadação de
ICMS do Estado de São Paulo, 25% são distribuídos entre os municípios
e 75% compõem o que se chama de cota-parte. Desta cota-parte, são
deduzidos os valores destinados à habitação popular (cerca de 1%) e, do
total restante, são destinados 9,57% a ser divididos entre as Universidades
Estaduais Paulistas (Unicamp, Unesp e USP).
Este montante tem como destino o pagamento de salários
Os dados referentes ao orçamento da Unicamp de 2015 citados neste texto estão
disponíveis em: http://www.aeplan.unicamp.br/revisao_orcamentaria/pdf/2015/3_revisao_
unicamp_2015.pdf. Acesso em: 27. jul. 2016.
12
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O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política...
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e aposentadorias, dívidas, manutenção das instalações, compras e
investimentos, e é gerido autonomamente pelas Universidades. Note-se
que a maior parte desse valor – por vezes a quase totalidade, como tem
sido o caso das três paulistas – é destinada à folha de pagamento (salários,
férias e décimo-terceiro), sendo as demais despesas honradas mediante
outras fontes menores de receita. À Unicamp cabe uma alíquota de cerca
de 2,2% desse montante, porcentagem que correspondeu, no ano passado,
à entrada de aproximadamente R$ 2 bilhões no caixa da Universidade. A
vinculação dos valores destinados às estaduais paulistas é feita por meio
da Lei de Diretrizes Orçamentárias do Estado de São Paulo, de forma que
ela depende, anualmente, do seu processo legislativo de elaboração e da
sanção do poder executivo estadual.
A Unicamp tem uma segurança financeira um pouco maior em
comparação com a USP e a Unesp: sua folha de pagamento em geral fica
abaixo da receita proveniente do Tesouro Estadual. Além disso, a Unicamp
dispõe hoje de uma reserva correspondente a cerca de R$ 1 bilhão, dos
quais R$ 714,5 milhões já estão empenhados. O destino desses valores,
no entanto, é obscuro.13 Sabe-se que boa parte está comprometida com
as diversas “obras em andamento” na Universidade, cujos dados sobre
licitações e contratações ainda permanecem opacos. Efetivamente, muitas
dessas obras estão paralisadas – verdadeiros elefantes brancos – e intrigam
a todos aqueles que caminham pelo campus. O restante, cerca de R$ 250
milhões, não seria suficiente sequer para suprir duas folhas de pagamento
mensais. Trata-se, portanto, de uma privilegiada, mas questionável
segurança. E, com esta configuração orçamentária, nada garante que
a Universidade conseguirá se manter a longo prazo. A Unicamp, hoje,
já enfrenta problemas no que diz respeito às políticas de permanência
A disputa em torno dessa informação foi iniciada pelo Sindicato dos Trabalhadores da
Unicamp (STU) em movimentos grevistas anteriores. Entretanto, apenas recentemente
os dados foram amplamente divulgados mediante – em grande parte – a ação do coletivo
Transparência Unicamp. Surgido no presente movimento grevista, o coletivo tornou público
e acessível, por meio de infográficos, os dados presentes nas planilhas dos portais oficiais da
Unicamp.
13
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Ana Cláudia Lopes Silveira et al.
estudantil e à manutenção e ampliação de sua infraestrutura.
A atual conjuntura econômica brasileira é catastrófica. O Produto
Interno Bruto (PIB) caiu cerca de 3% em 2015 e a previsão é de nova
retração em 2016. Esse movimento é geralmente mais sentido no estado
de São Paulo, visto ser onde se encontra uma maior concentração de elos
das cadeias produtivas nacionais e maior participação no PIB nacional14. A
universidade não é uma realidade isolada. Cabe notar que o investimento
em educação e pesquisa no estado de São Paulo apresenta uma configuração
pró-cíclica: quando a atividade econômica está aquecida e a arrecadação
do ICMS é elevada, as Universidades têm também um orçamento mais
elevado; sendo que o contrário também é verdadeiro – com a arrecadação
em baixa, o orçamento também fica muito mais comprometido, e um
cobertor que já era curto fica ainda mais curto.
É nesse contexto que as questões sobre a gestão do orçamento
da Unicamp se colocam. Se, de um lado, a demanda do movimento
estudantil por mais transparência na gestão, ainda que passe algo
desapercebida, ganha força; de outro, as outras demandas que
passam necessariamente por um aumento da receita são recebidas como
disparates. No quadro mais amplo da disputa pelo orçamento público,
o ensino superior passa a ser apresentado, no melhor dos casos, como
um privilégio de elite, e, no pior, como um grande desperdício de
dinheiro público. Aqui, a disputa pelo orçamento transforma-se em um
tribunal de moralidades extemporâneas: as já abastadas Universidades
públicas, não contentes em gerir mal seus recursos, ainda exigem mais do
erário público. Pretendem que o Estado retire recursos do ensino básico
e técnico, da saúde, da moradia, dos parcos programas sociais para que se
invista em um ensino superior, de pesquisa notadamente básica, que forma
poucos e privilegiados. Professores, funcionários e estudantes engrossam
De acordo com o IBGE, entre os anos de 2010 e 2013 o Estado de São Paulo respondeu por
cerca de um terço do PIB nacional mensurado pela renda. A região sudeste respondeu por 55%
do PIB brasileiro no mesmo período, e a influência dessa região sobre o país advém do fato de
que seus Estados são industrializados, apresentam atividade agropecuária significativa (exceto
o Rio de Janeiro) e concentram o setor de serviços. Dados disponíveis em: ftp://ftp.ibge.gov.
br/Contas_Regionais/2013/PIB_Renda_Revisto.pdf. Acesso em: 27. jul. 2016.
14
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O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política...
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lunaticamente esse coro. Uma melhor gestão interna dos recursos e
medidas simples como parcerias com empresas privadas e cobrança de
mensalidades seria um bom começo, talvez a solução, para a conta que
há anos não fecha. E a distribuição de riquezas no Brasil vai muito bem,
obrigada...
O PROBLEMA DO ORÇAMENTO DA UNICAMP E A ESTRUTURA
TRIBUTÁRIA BRASILEIRA
A questão do orçamento universitário é complexa e deve ser
apreendida tanto a partir da gestão interna dos recursos quanto da
arrecadação pública em geral. Essas duas perspectivas devem ser tratadas
de forma articulada; do contrário, corre-se o risco de recair em juízos
mistificados e simplistas. Não é possível discutir o orçamento da Unicamp
sem discutir seus mecanismos de financiamento e, por consequência,
o financiamento das atividades do Estado e o conflito distributivo, isto
é, as decisões sobre a destinação a ser dada ao excedente econômico
socialmente produzido.
De maneira sucinta, o Estado se financia de quatro formas: (a)
emitindo dinheiro; (b) contraindo dívidas; (c) obtendo receitas não
recorrentes (privatizações, por exemplo); e (d) cobrando tributos. Cada
uma dessas formas de arrecadação implica em ônus determinados: (a) o
ônus da emissão descontrolada de moeda é o aumento da inflação. Tratase de uma forma desorganizada de gestão do conflito distributivo, que é
transformado então em batalha pela indexação das rendas; um jogo em que
os pobres quase sempre perdem, entre outras razões, porque têm menos
acesso a serviços bancários que os ricos. (b) O ônus da dívida é a própria
dívida a qual, a princípio, tem que ser paga sob condições que podem
ser abusivas – sem considerar, evidentemente, os casos excepcionais
em que dívidas foram perdoadas ou ignoradas por meio de moratórias.
(c) O ônus das receitas não recorrentes, por sua vez, deve ser discutido
caso a caso, pois trata-se, por definição, de receitas advindas de eventos
extraordinários, que não se repetem – não se privatiza duas vezes a mesma
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016
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Ana Cláudia Lopes Silveira et al.
estatal. Sublinha-se, entretanto, que não é nem sensata nem sustentável
uma política fiscal que torra o patrimônio público para fechar as contas no
curto prazo. Por fim, (d) posto que é preciso que o governo decida por quem
e em quais condições os impostos serão pagos, o ônus da tributação é, por
excelência, um problema político; a forma que o sistema tributário
assume é um instrumento que o governo tem para reorganizar a renda
das diferentes camadas sociais. No nosso caso, ele contribui para uma
concentração de renda crescente, penalizando os mais pobres com
impostos regressivos, cobrando impostos risíveis dos mais ricos e, por
consequência, contribuindo para uma sociedade cada vez mais desigual.
Dentro do sistema tributário brasileiro o ICMS é um imposto estadual
que incide sobre o consumo. Sua natureza é regressiva, já que incide de modo
absolutamente idêntico e proporcionalmente desigual sobre as
diversas faixas de renda. Isso ocorre tanto (a) pelo fato do impacto
de um determinado valor absoluto ser tão maior quanto menor
for a renda sobre a qual ele incide, como (b) pelo fato da classe
trabalhadora de menor renda tender a consumir a totalidade dos seus
ganhos, diferentemente das classes mais abastadas, que podem poupar
uma parcela de seus rendimentos. Já é, ou deveria ser, ponto pacífico de
que se trata de um imposto socialmente injusto.15 Quem paga a conta dos
estados, no limite, são majoritariamente os mais pobres. O uso do ICMS
para o financiamento da Universidade Pública gera uma situação perversa,
já que este é um imposto que aprofunda a desigualdade social e, portanto,
dificulta a superação da barreira social do vestibular pelos mais pobres,
Apesar de injusto, o ICMS tem a maior participação entre as receitas tributárias estaduais. Ao
analisar o Balanço Geral do Governo do Estado de São Paulo de 2014 (pp. 42-43), percebe-se
que este imposto está localizado na rubrica “receitas tributárias”, englobada pelas “receitas
correntes”. As tributárias corresponderam naquele exercício a 67,82% das correntes, as quais
são ainda compostas por: contribuições, contribuições intra-orçamentárias, patrimonial,
agropecuária, industrial, de serviços, de serviços intra-orçamentários, transferências correntes,
outras receitas correntes e outras receitas correntes intra-orçamentárias. Essas receitas se
dividem entre a administração direta e indireta. De qualquer forma, as receitas tributárias são
a maior parte das receitas correntes. Dentro das tributárias figuram 1) impostos (96,59%);
2) taxas (3,41%); e 3) contribuições de melhorias (0%, embora conste o valor absoluto de
R$1.853,00). O ICMS está contido em “impostos”, correspondendo a 86,09% do total; o IPVA
aparece com 9,24% e o ITCMD, 1,25%.
15
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016
O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política...
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que, não obstante, continuam a financiar uma Universidade à qual não
terão acesso. O resultado é a manutenção de uma maioria de estudantes
ricos nos espaços acadêmicos públicos, tal como nos mostram os dados
da Comvest16.
ALGUMAS “LUZES” PARA O PROBLEMA E SUAS “REFRAÇÕES”
As propostas tecnocráticas para lidar com o déficit orçamentário
das Universidades costumam ignorar esse quadro geral de tributação
regressiva e seus efeitos sociais. Apresentam as parcerias com empresas
privadas e a cobrança de anuidades ou mensalidades para estudantes “que
podem pagar” como soluções pretensamente definitivas, tanto para as
contas universitárias como para as injustiças sociais.
As parcerias com empresas privadas já acontecem na Unicamp,
particularmente nos setores chamados de “inovação”. Estas parcerias
apresentam um certo potencial de efeito positivo a curto prazo sobre o
orçamento das instituições, mas, sem dúvida, afetam negativamente, de
modo sensível e a longo prazo, um projeto de Universidade pública, gratuita
e de qualidade. Tal impacto negativo se deve, primariamente, a uma
modificação paulatina, mas dramática, desse projeto que, de um espaço
de livre pensamento e instrumento público de formação e inovação social,
cultural e econômica para o próprio público, passa a ser um instrumento
público submetido à ordem do privado. Ao receberem financiamento de
empresas privadas, as pesquisas realizadas por estudantes e pesquisadores
Segundo dados da Comvest, 41% dos estudantes matriculados na Unicamp em 2016 se
situavam nas faixas de renda de até 5 salários-mínimos (sendo 18,8% até 3 SM e 22,2% entre 3
e 5 SM), enquanto os que se localizam entre 5 e 20 SM (49,9%) e acima de 20 SM (6,8%) são da
ordem de 56,7%. Vale ressaltar que, em dezembro de 2015 (data-base utilizada pela Comvest),
o salário mínimo oficial a nível federal era de R$ 788,00; porém, de acordo com o DIEESE,
o salário-mínimo deveria corresponder a R$ 3.518,51. O cálculo do DIEESE, que equivale a
4,5 SM oficiais de dezembro de 2015, considera o valor necessário para um/a trabalhador/a
e sua família serem supridos com alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene,
transporte, lazer e previdência e é calculado com base na cesta básica mais cara do país. Tendo
isso em vista, em 2016, cerca de um quinto dos ingressantes da Unicamp são provenientes de
famílias que não dispunham do SM ideal. Por outro lado, pouco mais da metade se encontrava
em situação socioeconômica privilegiada.
16
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016
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Ana Cláudia Lopes Silveira et al.
poderiam ficar sujeitas a políticas de sigilo; isto é, o conhecimento
gerado dentro da Universidade Pública, viabilizado pela sua estrutura
de laboratórios e bibliotecas, pelo saber especializado de seu quadro de
docência e pesquisa, ficaria a serviço dos interesses de atores privados.
A cobrança de mensalidades, por sua vez, já acontece no eixo da
extensão, embora corresponda a uma parcela mínima do orçamento total
da Unicamp. Para além disso, a cobrança de mensalidades ou anuidades no
eixo do ensino é um discurso que vem se consolidando no debate público
– vide os recentes editoriais da Folha de S. Paulo de 25 de maio de 2016 e
do Globo de 24 de julho de 2016, bem como a reportagem do Estadão de
2 de junho sobre os grupos “antiocupação”. Há ainda o projeto de lei em
discussão no Senado, de autoria do deputado Marcelo Crivella (PRB-RJ),
que propõe a cobrança de anuidade nas Universidades Federais para os
estudantes cujas famílias tenham renda superior a trinta salários mínimos
(PLS 782/2015). Nada mais justo. Nada mais justo?
O pagamento de mensalidades ou anuidades por estudantes situados
estatisticamente em faixas prepostas de renda familiar é uma solução
simplista que vem disfarçada de justiça social ao sugerir uma espécie de
distribuição de renda dentro das Universidades, mas que é inconsistente
por diversas razões. Em primeiro lugar, esse tipo de medida inevitavelmente
insere a Universidade Pública na mesma lógica das Universidades Privadas,
nas quais a corrida por mensalidades e anuidades se sobrepõe à qualidade e
à democratização da formação. Passaria a ser de interesse da administração
que mais estudantes pagantes ingressassem na Universidade, minando o
estímulo para o ingresso de alunos de baixa renda. Ironicamente, seriam
necessários mais ricos na Universidade Pública para solucionar o problema
da injustiça social dos ricos na Universidade Pública. O contrassenso é
evidente: é aqui que a Universidade se torna, de direito e de fato, uma torre
de marfim. Seria o triste fim de mais um dentre os já parcos instrumentos
de mobilidade social.
Em segundo lugar, esse tipo de proposta está ancorada na
instrumentalização de um sentimento de injustiça social nutrido por
parte da população, sentimento este compreensível dada a já mencionada
dificuldade de acesso ao ensino superior público enfrentada pelos mais
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016
O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política...
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pobres. A proposta de cobrança de mensalidades ou anuidades, no entanto,
não ataca o centro do problema da desigualdade social, desviando o foco do
debate público para longe da discussão de formas mais efetivas de combate
às desigualdades, como seria o caso de uma reforma que distribuísse
melhor a carga tributária de acordo com a capacidade contributiva de
cada um, evitando assim concentrações de riqueza socialmente injustas
e economicamente inúteis.17 Essa seria, efetivamente, uma política de
redistribuição de renda: tributa-se os mais ricos e aplica-se esses recursos
em políticas de inclusão e de criação/manutenção de serviços gratuitos.
Nesse sentido, a demanda mais apropriada seria por mais alunos pobres
em uma Universidade financiada por impostos pagos preferencialmente
pelos mais ricos. A criação de taxações mais igualitárias, em detrimento
de impostos regressivos é, portanto, indissociável da criação de uma
Universidade também mais igualitária, em que a renda familiar não é uma
barreira intransponível entre o sujeito e a educação.
Além disso, as propostas de cobrança não especificam como
lidariam com a questão operacional de determinação da renda familiar
dos alunos pagantes, o que é um problema mais sério do que parece: em
um mundo de volatilidade de rendas não provenientes do trabalho, em
que são usuais as práticas de fuga para paraísos fiscais e a sonegação pura
e simples, a riqueza daqueles situados no topo da pirâmide é largamente
desconhecida e insondável (sobretudo devido à complexidade e ao caráter
oblíquo de nosso sistema tributário). Isto é, se é relativamente simples
determinar a renda das famílias ricas, não é nada fácil determinar a renda
das famílias MUITO ricas.
Afora esse dilema operacional, os exemplos recentes das revoltas
estudantis no Chile e no Québec (Canadá), em 2011 e 2012, assinalam os
problemas acarretados pela mercantilização do ensino superior. No Chile,
Note-se que o Brasil compõe, juntamente com a Estônia, a única dupla de países que isentam
totalmente de impostos os dividendos. A isenção da tributação sobre dividendos no Brasil
surge em 1995, com a justificativa de que os lucros já tributados na empresa como Imposto
de Renda da Pessoa Jurídica não fossem taxados novamente quando se convertessem em
renda pessoal. Com isso, boa parte dos ganhos dos ricos não é tributada. Dados disponíveis
em:
http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/09/14/imposto-sobre-lucros-edividendos-geraria-r- 43-bi-ao-ano-diz-estudo. Acesso em: 27. jul. 2016.
17
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Ana Cláudia Lopes Silveira et al.
as manifestações foram de alcance nacional e envolveram universitários e
secundaristas, com apoio majoritário da opinião pública, pedindo a revisão
do sistema educacional herdado da era Pinochet, em que a gratuidade
total é assegurada apenas no ensino básico e 75% do orçamento de
todo o sistema é garantido por pagamentos de alunos. Já em Québec, as
manifestações foram ocasionadas por uma proposta de aumento nas taxas
cobradas nas Universidades (de 2.168 para 3.793 dólares canadenses), e
resultaram na queda do governo e na anulação da medida.
Em um sentido diferente, cabe também mencionar propostas que
têm como objetivo flexibilizar as leis de doações às Universidades, como
as apresentadas no Projeto de Lei 3407/2015, em trâmite na Câmara
Federal, e no PL 4103/2012, arquivado no Senado. O primeiro tem por
objetivo facilitar as doações dirigidas a setores ou projetos específicos, e
o segundo -- que foi arquivado, mas pode ser reapresentado --, estabelece
regras com incentivos fiscais para esse tipo de doação, à maneira da Lei
Rouanet. Apesar de esse tipo de proposta não resolver por si só o problema
orçamentário da Universidade, trata-se de um recurso bem-vindo. Melhor
ainda seria se tais propostas viessem acompanhadas de uma taxação mais
agressiva sobre heranças (que é muito baixa no Brasil, 3,9%, enquanto
que, por exemplo, na Inglaterra é de 40%) que servisse como um incentivo
a mais para esse tipo de doação: é perfeitamente legítimo que diante da
perspectiva da morte (“ao pó da terra retornarás”), os ricos e poderosos
prefiram satisfazer sua vaidade doando uma biblioteca com o seu nome
para a Universidade ao invés de entregar parte de seu patrimônio “de mão
beijada” para o Estado.
NOSSA LUTA, À GUISA DE CONCLUSÃO
As propostas discutidas acima e apresentadas no debate público
como soluções ao problema orçamentário das Universidades – parcerias
com a iniciativa privada e cobrança de mensalidades – são sintomáticas
da compreensão da educação como mercadoria. Segundo essa percepção,
a educação se subordina a uma lógica de mercado, o que significa que
suas características constitutivas, como o exercício da reflexão, o cultivo da
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016
O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política...
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cidadania, a elaboração de um senso crítico e o apuramento da autonomia,
são ofuscadas pela racionalidade econômica e pela lógica de maximização
dos lucros. Isto é: sacrifica-se o direito à educação em favor do cálculo
frio de planilhas administrativas. Estão em jogo, portanto, dois projetos
conflitantes: de um lado, a otimização do orçamento da Universidade
Pública como missão última dessa instituição; de outro, a realização do
potencial democrático da Constituição de 1988 por via institucional, na
medida em que garante o acesso universal ao ensino superior público.
Os estudantes em greve da Unicamp se colocaram ao lado do projeto
que vê a educação como um direito. No entanto, sabemos que os recursos
públicos dos quais dependem esse direito não são infinitos. A nossa pauta,
contra a arbitrariedade das decisões sobre o contingenciamento, é por mais
transparência na gestão do orçamento da Universidade, pois entendemos
ser dever das Universidades prestar contas de maneira acessível e clara
sobre os investimentos públicos que recebe. Além disso, pensamos que
a gestão do orçamento não só deve ser transparente como deve ser
mais participativa. Isso implica em uma organicidade dos três setores da
comunidade acadêmica – estudantes, funcionários e professores – na
elaboração e fiscalização do orçamento universitário. A nossa pauta é
também por mais recursos e investimentos em políticas de permanência,
como a já prometida – embora não cumprida – ampliação de vagas na
moradia estudantil, e ampliação do acesso à Universidade por meio de
políticas afirmativas. Nos solidarizamos também com as reivindicações
salariais de funcionários e professores. Mas, particularmente, defendemos
a efetivação das trabalhadoras terceirizadas no quadro de funcionários
da Unicamp, pois a terceirização significa, aqui, tanto cerceamento de
direitos trabalhistas quanto anulação de participação política nas decisões
internas à comunidade acadêmica. É inadmissível para a Unicamp, sem
dúvida um dos mais importantes centros de pesquisas da América Latina
sobre relações de trabalho, conviver com esse tipo de precarização das
condições de trabalho.
E demandamos todos esses pontos ao mesmo tempo não porque
ignoramos a grave crise econômica que nosso país enfrenta, ou porque
vivemos numa lunática “torre de marfim”. Pensamos que o enfrentamento
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016
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Ana Cláudia Lopes Silveira et al.
dos problemas do orçamento universitário não pode ser feito com o
descarte de um projeto de Universidade Pública, de acesso democrático,
gratuita e de qualidade e, tampouco, sem considerar o quadro mais
amplo do sistema de tributação brasileiro. Repudiamos, sim, àqueles que
efetivamente se consideram ungidos pelo direito divino – por terem
nascido nos berços que nasceram, estudado nas escolas que estudaram,
que ocupam posições privilegiadas tendo feito pouco ou nada para
estarem onde estão; que são detentores e usufruem de um patrimônio
herdado e/ou adquirido por meio da exploração e perpetuação da pobreza
no Brasil – , e que ainda querem que a gente pague o corte. A nossa luta
não é só contra os cortes, mas é também contra a corte.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016
A GREVE DAS UNIVERSIDADES FEDERAIS
E OS DESAFIOS DE MOBILIZAÇÃO
NA PÓS-GRADUAÇÃO
João Pedro de Lima Campos1
RESUMO: Neste artigo apresento um relato crítico sobre a greve de estudantes, docentes
e trabalhadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) no ano de 2015 a partir da
discussão sobre os desafios de mobilização na pós-graduação. Essa greve aconteceu
no marco dos primeiros cortes orçamentários realizados ainda no início do segundo
mandato da presidenta Dilma Rousseff, que afetou o equilíbrio financeiro das reitorias,
resultando em atraso no pagamento de salários e bolsas. Para entendermos através de que
mecanismos a redução do repasse impacta a universidade federal, analisamos a relação
existente entre a greve de 2015 e o processo de desmonte do programa de Reestruturação
e Expansão das Universidades Federais (REUNI), razão medular para a organização da
luta política relatada. Apresento também as lições aprendidas em um cenário de severos
ataques à universidade pública a fim de apontar soluções para o problema da organização
dos alunos de pós-graduação, que historicamente não conseguem se articular em defesa
dos próprios interesses.
PALAVRAS-CHAVE: Greve estudantil; Pós-graduação; REUNI.
APRESENTAÇÃO
Em maio de 2015 foi deflagrada greve na Universidade
Federal Fluminense (UFF). Tal medida veio como reação aos cortes
orçamentários do governo federal no montante destinado ao custeamento
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). E-mail: camposjpl@
gmail.com
1
66
João Pedro de Lima Campos
do ensino superior no país. Uma após a outra, as três categorias da
universidade – discentes, docentes e funcionários – votaram, em assembleia,
a favor da mobilização e deram início a uma greve que durou 131 dias.
Quase um ano após seu término2, a perspectiva ainda é de cortes e de
ameaça ao futuro das universidades públicas no país. Apresento neste texto
um breve relato da recente e persistente conjuntura político -orçamentária
de uma universidade federal e os desafios que nós, estudantes de mestrado
e doutorado, encontramos ao nos mobilizarmos durante essa greve que –
como não podia deixar de ser – nos afetou diretamente.
A GREVE DE 2015 NA UFF
Após o anúncio do bloqueio de 1/3 no repasse de verbas para as
universidades federais no início do segundo mandato da então presidenta
Dilma Rousseff, a ordem do dia para os reitores era economizar.3 Sem
dinheiro em caixa para arcar com seus compromissos, a Reitoria atrasou
o pagamento de bolsas, deixou trabalhadores terceirizados sem salários,
suspendeu obras em novos prédios4 e mesmo algo tão fundamental quanto
o fornecimento de energia elétrica foi ameaçado.5
O impacto da crise orçamentária das universidades públicas foi
primeiro sentido pelos trabalhadores terceirizados da limpeza, alimentação,
manutenção predial e segurança, que já vinham realizando paralisações
pontuais devido aos constantes atrasos no pagamento dos salários que já
ocorriam antes do anúncio de cortes pelo Ministério da Educação (MEC)6.
O artigo foi redigido em setembro de 2016.
MEC bloqueia um terço da verba das federais; universidades atrasam bolsas. Disponível em:
http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2015-02-25/mec-bloqueia-um-terco-da-verbadas-federais-universidades-atrasam-bolsas.html. Acesso em: 30 ago. 2016.
4
Sem verbas federais, UFF mergulha na crise. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/
sem-verbas-federais-uff-mergulha-na-crise-17256420. Acesso em: 30 ago. 2016.
5
Corte no orçamento da UFF chega a R$20 milhões em 2015 e afeta funcionamento dos
cursos. Disponívelem: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/corte-no-orcamento-da-uffchega-r-20-milhoes-em-2015-afeta-funcionamento-dos-cursos-16307386. Acesso em: 30 ago.
2016.
6
Aulas são canceladas na UFF por greve de funcionários terceirizados; salários estão atrasados
2
3
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
A greve das universidades federais e os desafios...
67
Longe de ser uma questão exclusiva da UFF, o atraso no pagamento
de salários dos funcionários terceirizados foi um fenômeno geral nas
universidades do Rio de Janeiro naquele ano. A situação financeira e política
na UERJ, UFRJ e UNIRIO – sediadas na capital do estado – estava tão
problemática quanto na federal de Niterói7 8, de modo que o movimento
dos trabalhadores terceirizados assumia um caráter interinstitucional em
que uma mobilização impulsionava a outra através de manifestações e
atividades conjuntas.
Esses trabalhadores pertencem à categoria mais precarizada na
universidade, cujos contratos são elaborados sob a luz da flexibilização
das leis trabalhistas que fragiliza o emprego e expõe o funcionário ao
constante risco da demissão. Enquanto para os trabalhadores concursados
da universidade a greve representa um instrumento de luta política e de
proteção ao emprego, para os terceirizados ela significa, com sorte, a
ameaça de desconto do vencimento na folha de pagamento; sem sorte,
a greve resulta em retorno à larga fila do desemprego. Por isso a corda
dos cortes arrebenta para o lado dos terceirizados, a classe com mais
dificuldade de organização política dentro da universidade9 e por isso mais
exposta à ameaça da demissão.
No entanto, naquele ano a situação de atraso de salários se tornou
alarmante e generalizada em um nível que mesmo esse setor politicamente
vulnerável se mobilizou. Em defesa de seus direitos e afirmando que
trabalhador terceirizado não é escravo, os funcionários cruzaram os
braços. Inicialmente ocorreram paralisações pontuais em março e abril
desde dezembro. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/educacao/aulas-saocanceladas-na-uff-por-greve-de-funcionarios-terceirizados-salarios-estao-atrasados-desdedezembro-15617777.html. Acesso em: 30 ago. 2016.
7
Cortes orçamentários geram crise nas universidades do Rio. Disponível em: http://exame.
abril.com.br/brasil/noticias/cortes-orcamentarios-geram-crise-nas-universidades-do-rio.
Acesso em: 30 ago. 2016.
8
Sem pagamento de terceirizados, UERJ sofre com o acúmulo de lixo. Disponível em: http://
g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/04/sem-pagamento-de-terceirizados-uerj-sofrecom-acumulo-de-lixo.html. Acesso em: 30 ago. 2016.
9
GRANZOTTO, Tânia M. A implementação de ações neoliberais nas Universidades
Públicas. Disponível em: http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/
view/8634830/2749. Acesso em: 30 ago. 2016..
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
68
João Pedro de Lima Campos
até que houve a deflagração da greve dos terceirizados em maio, afetando
diretamente toda comunidade acadêmica, cujo cotidiano foi arrastado
para o efeito da mobilização diante da falta dos serviços de alimentação,
segurança e manutenção predial.
Neste contexto, a precarização da educação superior através de
cortes orçamentários já era sentida em todos os setores na universidade,
e à medida que elementos simples, porém básicos para a vida cotidiana
no campus desapareciam, ficava clara a urgência de mobilização: copos e
guardanapos foram cortados do restaurante universitário, ao invés de suco,
apenas água; nada de azeite ou farinha de mandioca na mesa; faltou papel
higiênico e sabão nos banheiros; elevadores foram desligados; paralisou-se
obras de infra-estrutura e delegou-se para um futuro incerto a ampliação
da insípida moradia que possui apenas trezentas vagas em um universo de
mais de cinquenta mil alunos10.
Em um dos momentos mais críticos durante a greve, a UFF teve
o fornecimento de energia elétrica suspenso por falta de pagamento
à fornecedora. Foi necessária a intervenção da Justiça Federal para
normalizar a situação através de uma ação judicial que obrigava
a empresa Ampla S.A. – responsável pela energia elétrica em
Niterói – a religar a luz na universidade, sob o argumento de que se tratava
de um serviço fundamental11; a Federal Fluminense é, afinal, uma das
maiores universidades federais em número de alunos.
Esse episódio marcou um dos grandes momentos de mobilização,
expondo que a paralisação era inevitável em um contexto em que, mesmo
sem aulas, e, portanto, com economia de gastos, a universidade não
conseguia manter-se em funcionamento. A própria reitoria reconheceu,
através de nota oficial, o equilibrismo orçamentário que realizava e
responsabilizava a política de ajustes do governo federal como responsável
Federais enfrentam crise por alojamento. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/
rio-de-janeiro/2015-05-24/federais-enfrentam-crise-por-alojamento.html. Acesso em: 30 ago.
2016.
11
Após suspender fornecimento de energia, Justiça Federal proíbe corte de luz na UFF.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/apos-suspender-fornecimento-de-energiajustica-federal-proibe-corte-de-luz-na-uff-17286522. Acesso em: 30 ago. 2016.
10
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
A greve das universidades federais e os desafios...
69
pela situação de crescente caos na qual a UFF se encontrava12.
A deterioração da universidade federal iniciada pelo
contingenciamento de verbas de 2015, e que continua em curso, envolveu
todas as categorias. Trabalhadores sem salários, alunos sem bolsa e
com acesso restrito aos serviços fundamentais do campus, professores
sobrecarregados com o aumento da relação aluno/professor e sem a
perspectiva de ampliação do corpo docente. Nesse cenário, apenas dois
meses após o início do ano letivo, a UFF estava completamente paralisada.
O DESMONTE DO REUNI E A PRECARIZAÇÃO DO ENSINO
SUPERIOR PÚBLICO
Estive nas assembleias de cada um dos três setores quando foi
votada a greve. Minha surpresa foi grande ao assistir o corpo docente
votar massivamente pela construção dessa mobilização; situação que
nunca havia presenciado durante meus anos de graduação na Unicamp,
onde, de modo geral, os professores se mostram bastantes contrários à
greve.
Tal fenômeno se explica, em parte, pelo fato de que nas universidades
federais existe, atualmente, um número expressivo de professores
recém contratados, jovens, que ainda buscam estabilidade profissional e
crescimento na carreira acadêmica e se mostram dispostos a defender e
lutar em defesa da categoria. Esses docentes ingressaram nas Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES) durante o processo de expansão do
ensino universitário chamado de REUNI – Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais. Trata-se de uma política educacional iniciada
ainda no segundo mandato do governo Lula, no ano de 2007, que alterou
intensamente o aspecto das universidades federais.
Em linhas gerais, o REUNI significou uma rápida expansão
no número de vagas nas IFES, tendo em vista a inclusão de setores
historicamente excluídos do ensino superior, como as populações PPI
Nota da Universidade Federal Fluminense sobre o corte de luz. Disponível em: http://www.
uff.br/?q=nota-da-universidade-federal-fluminense-sobre-o-corte-de-luz. Acesso em: 30 ago.
2016.
12
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
70
João Pedro de Lima Campos
(pretos, pardos e indígenas)13 e a população mais pobre, sem a contrapartida
da exclusão de setores que tradicionalmente ingressam nessas instituições.
Com o aumento no número de alunos, veio a demanda pela ampliação
das políticas de permanência estudantil, de assistência social e psicológica
aos estudantes, que em nenhum momento foi atendida; desde sua origem,
o contraponto da expansão foi a ameaça de precarização. Não obstante
as fragilidades do projeto, o REUNI cumpriu papel importante ao enfatizar
o caráter social das universidades federais e contribuir para a ampliação do
número de programas de pós-graduação e incentivar a produção científica
no país. Com o anúncio de cortes a partir de 2015, esse projeto estava – e
continua – ameaçado.
O pano de fundo da greve na UFF foi, portanto, uma resposta aos
indícios de deterioração do REUNI, que foi percebido e expressado de
forma distinta pelas três categorias da universidade. A pauta mais urgente
para os alunos de graduação dizia respeito a políticas de permanência
estudantil e bolsas de pesquisa, pois, se por um lado, a população negra e
pobre havia conseguido ingressar no ensino superior durante os anos do
governo do Partido dos Trabalhadores (PT), por outro, sua continuidade
nos estudos não estava garantida, pois a contradição entre ampliação de
vagas e corte de verbas resulta em evasão. Já em 2014, o percentual de
alunos que abandonaram o curso de graduação na UFF era de 17,4%;
muito superior aos 11% da UFSCAR ou aos 8,2% da UFU. Ainda assim,
a Federal Fluminense apresenta uma taxa de conclusão superior às das
outras três federais do Rio de Janeiro14, o que aponta quão problemática
está a situação nesse estado.
A greve de 2015 conduzida pelas três categorias não dizia respeito
apenas à defesa de salários, condições de trabalho e estudo, ela estava
intrinsecamente ligada ao desmonte de um projeto político em vigência há
REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Diretrizes Gerais.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/diretrizesreuni.pdf. Acesso em:
30 ago. 2016.
14
Série histórica evasão e conclusão nas IFES. Disponível em: http://www.uff.br/sites/
default/files/serie_historica_evasao_e_conclusao.pdf. Acesso em: 30 ago. 2016.
13
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
A greve das universidades federais e os desafios...
71
quase uma década. Por essa razão, as atuais demandas da universidade não
podiam ser respondidas sem passar pela discussão do caráter da instituição
e do futuro do REUNI, que se ligava não apenas a UFF em particular, mas
a todas as federais – pois a crise que enfrentamos na Federal Fluminense é
apenas um braço – talvez um dos mais expostos – de uma crise conjuntural
no sistema federal de ensino superior.
A reação contundente dos alunos de graduação veio em 26 de maio
daquele ano, quando, dois dias antes do início da greve dos trabalhadores,
os estudantes reunidos em assembleia votaram pela ocupação do prédio
da reitoria contra os cortes e atrasos nas bolsas, por ampliação da moradia,
permanência estudantil e em solidariedade às demais categorias15.
Enquanto durou a ocupação da reitoria, que também abriga uma sala de
cinema, um teatro e uma galeria de arte, nós estudantes tivemos intenso
contato com os funcionários do prédio, ocasião em que percebemos nossos
objetivos comuns e nossos conflitos e discordâncias sobre perspectivas
para a universidade; pois, ainda que as três categorias em greve tivessem
o mesmo interesse em preservar a qualidade do ensino e afirmar o caráter
público da instituição, surgiram divergências sobre como esse fim seria
alcançado, questões sobre método de luta política que se expressavam
sobretudo quando o debate dizia respeito ao futuro incerto do REUNI.
Junto de novos alunos, a expansão da universidade significou a
contratação de novos funcionários, trabalhadores que ascenderam ao
serviço público estável através das políticas do governo federal para a
educação. À medida que os alunos de graduação expunham em assembleia
a fragilidade do REUNI e a necessidade de se criticar a política educacional
do PT, os funcionários defendiam as conquistas que o processo de expansão
representou. Vinha à tona diferenças políticas entre as três categorias,
entre servidores recém contratados e aqueles com vínculos antigos com
a UFF e entre esses e uma juventude recém chegada à universidade, com
anseios de permanência e mais ampliação.
Alunos da UFF ocupam reitoria após anúncio de greve nesta quinta. Disponível em: http://
g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/05/alunos-da-uff-ocupam-reitoria-apos-anunciode-greve-nesta-quinta.html. Acesso em: 30 ago. 2016.
15
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
72
João Pedro de Lima Campos
OS DESAFIOS DA MOBILIZAÇÃO NA PÓS-GRADUAÇÃO
Apesar das divergências entre professores, trabalhadores e
estudantes acerca da crítica ao REUNI, a greve atravessou o primeiro
semestre e quase chegou ao fim do ano. Apenas a pesquisa continuou na
UFF. Não obstante o contexto excepcional em que nos encontrávamos,
nós estudantes de pós-graduação não paramos nossas atividades.
No decorrer de minha primeira greve estudantil como aluno
de pós-graduação, vivi todos os limites e barreiras que encontramos
para nos mobilizar. Fosse pela falta de representatividade e articulação
da Associação Nacional dos Estudantes de Pós-Graduação (ANPG),
pela pressão dos prazos exigidos pelas agências de fomento ou pela
indisposição dos professores em alterar o cronograma de aulas, o fato era
que a pós-graduação na UFF se mostrou como um setor bastante alienado
do contexto político que o cercava.
Duas semanas após o início da greve nós alunos de Sociologia nos
reunimos com professores e coordenadores do programa para debater a
possibilidade de tirarmos um posicionamento conjunto enquanto curso, e
as alternativas de mobilização que possuíamos. Nesse momento, nenhum
docente opôs resistência à ideia de aderirmos à greve; um ou outro até
se mostrou simpático à proposta. No entanto, apesar do respeito à nossa
tentativa de organização, nenhum argumento era mais forte que a palavra
prazo, continuamente proferida pelos docentes e pesquisadores dos vários
programas pós-graduação.
De modo algum nos era vetada a paralisação, ou a alternativa de
entrar em greve, não apenas em solidariedade com as outras categorias,
mas em defesa de nossos próprios interesses. A postura dos nossos
professores não foi declaradamente de oposição ao processo político que
atravessávamos; o tom, porém, era de alerta: mesmo em greve, os prazos
permaneciam inalterados.
Nossa mobilização precisava, então, encontrar meios de agir sem
prejudicar o andamento de nossas pesquisas. Isolados enquanto curso,
tomamos de empréstimo os exemplos de outros programas de pósgraduação, que redigiram cartas públicas em defesa da greve e tomaram
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
A greve das universidades federais e os desafios...
73
parte no movimento ao tirar alguns dias de paralisação como indicativo de
greve. Não fomos, porém, além disso.
Longe de ser um problema individual de alunos específicos, ou
que diga respeito apenas a um curso mais ou menos mobilizado, o que
enfrentamos em 2015 na pós-graduação de Sociologia da UFF perpassa
a realidade de pesquisadores em todo país. Somos regidos pelas mesmas
regras seja no Amapá, Rio de Janeiro ou Mato Grosso do Sul. As diferentes
agências de fomento possuem normas semelhantes, são igualmente
inflexíveis na ampliação de prazos e exercem pressão sobre os professores
para que esses – como gerentes de produção – mantenham a pesquisa
de seus alunos em dia. Para nós, estudantes de pós-graduação, não era o
corte o carrasco mais direto, mas a ameaça de perdermos nossas bolsas ou
termos nosso estudo inviabilizado devido aos prazos.
Durante quatro meses frequentei o campus vazio e senti as
implicações da greve. Durante quatro meses encontrei fechados o
restaurante universitário, as salas de informáticas, as áreas de lazer e,
também, o que é mais flagrante, a biblioteca. A questão que permanece
é como é possível desenvolver uma pesquisa sem acesso aos livros, ao
ambiente de estudo e ao serviço de informática? Como manter uma
rotina saudável na universidade sem o convívio com os demais estudantes
mobilizados?
Por trás dos prazos das agências de fomento existe a realidade da
precarização da pós-graduação que coloca os alunos em um verdadeiro
malabarismo acadêmico quando a greve estoura. Sob a palavra prazo
está oculta a luta cotidiana de estudantes que, mesmo que queiram,
dificilmente podem aderir integralmente a um movimento político em
curso na universidade. O prazo, elevado a semideus da academia e aliado
ao produtivismo, se torna fator de precarização das pesquisas; o prazo, em
um contexto de greve, é símbolo exposto da contradição entre a produção
científica e as condições em que ela é realizada.
Diante dos prazos, nós, estudantes de Sociologia, optamos por uma
paralisação de um dia – apenas um dia! – e por redigir um texto em apoio
ao movimento dos trabalhadores, estudantes e professores. Isolados em
um grupo de quinze alunos, continuamos nosso estudo de Sociologia,
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
74
João Pedro de Lima Campos
ironicamente desligado do ambiente que nos cercava. Foi bastante artificial
frequentar uma sala de aula em um prédio onde não havia mais ninguém,
exceto os funcionários responsáveis por abrir e fechar o edifício e manter
a mínima limpeza. Desses recebemos olhares descontentes; não lhes tiro
a razão.
Ao longo do período da greve discutimos bastante em nossa turma o
que fazer; e não foi difícil chegar a conclusão de que nos faltava articulação
com outros programas de pós-graduação de nossa universidade e de outras,
pois sempre que uma greve se inicia enfrentamos o mesmo problema de
desmobilização. Logo ali na cidade do Rio de Janeiro três federais passavam
pela mesma situação e os alunos de pós-graduação compartilhavam conosco
os mesmos problemas; e ainda que os terceirizados tenham dado exemplo
de união interinstitucional ao realizarem atos conjuntos na capital, nós
pós-graduandos nunca nos comunicamos, sobretudo porque delegamos
ações e decisões a ANPG, órgão pouco presente no cotidiano dos alunos
e que durante o processo de greve tentou influenciar no processo político,
sem ser capaz de representar nossos reais interesses.
Nesse cenário em que assistimos a greve desfilar perante nosso
curso de mestrado e atravessar completamente nossa vida acadêmica,
perguntamo-nos insistentemente qual seria a maneira correta de responder
aos desafios colocados a mobilização na pós-graduação a partir da
experiência na UFF? Se a pós-graduação possui uma dinâmica própria – e é
certo que possui – orientada por cronogramas e prazos, torna-se requisito
básico para nossa greve discutir e negociar tais prazos. Nenhum programa
sozinho tem força o bastante para pressionar as agências de fomento, bem
como um único curso de graduação paralisado não incomoda a reitoria.
A conclusão nada inédita a que se chega é a da necessidade de uma
organização que efetivamente defenda os interesses dos pós-graduandos,
e possibilite que o aluno mobilizado não seja prejudicado por sua posição
política.
Continuamos em nossa rotina extraordinária até outubro de 2015,
quando a greve chegou ao fim. Nós pós-graduandos a atravessamos e,
apesar de muito sentirmos seu efeito no cotidiano, tivemos de continuar
em aula. A reitoria conseguiu fechar seu ano orçamentário – à custa de
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
A greve das universidades federais e os desafios...
75
muita precarização do restaurante universitário e da estrutura dos prédios
– e em março de 2016 o ano letivo anterior foi encerrado. Ao contexto
dos cortes federais somou-se a falência do estado do Rio de Janeiro que
também afeta a UFF, mesmo que indiretamente, dando continuidade a
uma crise que, superado seu momento mais agudo, se mantém como um
estado permanente em nossas vidas acadêmicas e cotidianas.
A realidade de cortes ainda permanece, a demanda por assistência
estudantil cresce e a pós-graduação em Sociologia, a despeito do que passou
em 2015, continua desmobilizada. É claro que esse não é um problema
local, mas se estende por toda a UFF, passa pelas outras universidades
federais do Rio de Janeiro e alcança os outros estados.
O aprendizado central dessa greve foi que nós, estudantes de
pós-graduação, dificilmente nos enxergamos enquanto uma categoria
na universidade, premidos que estamos entre a formação, o ensino
e pesquisa – e a nossa dificuldade de mobilização se deve muito a essa
percepção errônea de que nossos interesses e formas de luta são os
mesmos dos graduandos ou dos docentes. Conduzimos nossas pesquisas
individualmente, estamos submetidos à pressão dos prazos e para cumprilos nos mantemos isolados em bibliotecas – quando elas estão abertas – e
conforme nos afastamos da graduação, nos tornamos mais distantes da
articulação política estudantil.
É certo que as mesmas questões que apresentei neste breve relato
estiveram presentes durante a greve de 2016 na Unicamp, que acompanhei
a distância e me levaram a redigir este texto. A resistência dos pesquisadores
à greve e a desconfiança e o medo de perder os prazos ecoa nos alunos
daqui como nos de lá. Por isso, é importante enfatizar que nós, estudantes
de pós-graduação, somos uma categoria com interesses próprios e formas
particulares de se organizar para a greve, embora dificilmente percebemos
com clareza a unidade que compomos. A própria estrutura de nossos
cursos de mestrado e doutorado nos isola uns dos outros e à medida
que nos aprofundamos em nossas pesquisas facilmente nos alienamos da
política que se desenrola em nosso ambiente.
Até que consigamos pressionar coletivamente, enquanto uma
categoria, as agências CAPES, FAPESP, FAPEMIG, CNPQ, FAPERJ,
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
76
João Pedro de Lima Campos
etc., continuaremos presos à lógica produtivista de entrega de artigos,
teses e dissertações no prazo, sem levar em conta a real situação que a
universidade atravessa. O lado sinistro de nossa desarticulação se reflete
na falta de resposta a nossas demandas: ampliação do número de bolsas,
contratação de docentes que implica em aumento de linhas de pesquisa,
acesso a material de alta qualidade ou mesmo a possibilidade de negociação
de ampliação de prazos quando necessário. Por fim, após meu primeiro
ano de mestrado e diante de toda a vida acadêmica por percorrer, percebo
que aos pós-graduandos falta o reconhecimento político-institucional
enquanto uma categoria, que nos tiraria do limbo que surge entre os
interesses da graduação e as demandas da docência e pesquisa.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016
LA MERCANTILIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN
SUPERIOR Y LA IRRUPCIÓN DEL MOVIMIENTO
ESTUDIANTIL EN CHILE (2006 / 2011):
IMPACTOS Y DESAFÍOS
Mía Dragnic García1
Raúl Ortiz-Contreras2
RESUMEN: El objetivo de este texto es caracterizar mínimamente las dinámicas de
mercantilización de la educación chilena, desde el período de la dictadura militar hasta
nuestros días, a la luz de las expresiones más recientes del movimiento estudiantil,
que en dos oleadas sucesivas de organizaciones y protestas, 2006 y 2011, lograron
reivindicar la necesidad de repensar la educación como un derecho universal y gratuito,
generando, de este modo, un cuestionamiento de amplio espectro al tipo de sociedad
neoliberal concebida desde el período autoritario (1973-1989), pero también blindada y
perfeccionada desde los gobiernos democráticos posteriores. Esta reflexión y exposición
de coyunturas es efectuada en primer lugar buscando identificar y mapear algunos eventos
históricos relevantes, pero al mismo tiempo, nos permitimos una exploración reflexiva en
torno a dos dimensiones, la de género y la étnica, que nos parecen aun mal comprendidas
e/o invisibilidades en la representación política y social de este movimiento.
PALABRAS CLAVE: Mercantilización de la educación; Movimiento estudiantil chileno;
Género; Etnia.
Socióloga, Universidad Central de Venezuela. Licenciada en Cine Documental, Universidad
Academia de Humanismo Cristiano. Magíster en Estudios de Género y Cultura en América
Latina, y Doctoranda en Estudios Latinoamericanos, Universidad de Chile.
2
Antropólogo, Universidad Austral de Chile. Magíster en Antropología Social, y Doctorando
en Antropología Social, Universidade Estadual de Campinas.
1
78
Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras
“Hay dos panes. Usted se come dos. Yo ninguno.
Consumo promedio: un pan por persona”
Nicanor Parra
INTRODUCCIÓN: CHILE NEOLIBERAL
En 1969 Chile suscribió el Pacto Internacional de Derechos
Económicos, Sociales y Culturales, adoptado por la Asamblea General de
la Organización de las Naciones Unidas3. Solamente veinte años después,
en mayo de 1989, éste fue promulgado como Ley, hacia el final del
período dictatorial de Augusto Pinochet4; sin embargo, jamás tuvo efectos
tangibles y/o reconocibles dentro del experimento neoliberal que había
sido engendrado en el país durante las décadas anteriores.
Este pacto, en su Artículo 13, reconoce abiertamente el derecho de
toda persona a la educación, debiendo ésta orientarse hacia el desarrollo de
la personalidad humana, asumiendo los principios de dignidad, tolerancia,
comprensión, amistad (entre las naciones y todos los grupos “raciales”)
y libertad como valores gregarios de una sociedad plenamente educada.
Asimismo, su implementación hace referencia explícita a la universalidad y
gratuidad que debe tener el acceso a la educación primaria; mientras que la
educación secundaria y superior deben ser generalizadas, avanzando hacia
una accesibilidad también universal, implantando además la gratuidad
como principio estructural. Claramente este pacto converge hacia una
definición de la educación pública como un derecho universal y gratuito,
responsabilizando al aparato del Estado como garante y catalizador de la
estructura educacional.
Este pacto fue adoptado el 19 de diciembre de 1966, tres años antes de la suscripción de Chile.
Ver: http://www.ohchr.org/SP/ProfessionalInterest/Pages/CESCR.aspx.
4
Ver “Promulga el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales,
adoptado por la Asamblea General de la Organización de las Naciones Unidas el 19 de
diciembre de 1966, suscrito por Chile el 16 de septiembre de 1969”. Ver: http://www.leychile.
cl/Navegar?idNorma=12382.
3
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016
La mercantilización de la educación...
79
Contradictoriamente, el proceso de mercantilización y privatización
de la totalidad de los derechos fundamentales en Chile – educación, salud,
previsión social, transporte, entre otros – amparándose en el ejercicio
de la soberanía y poniendo en tela de juicio la jerarquía supralegal y
supraconstitucional de los Tratados de Derechos Humanos adscritos
por el país, se ha transformado en la tónica de generación de políticas
sociales desde el régimen dictatorial, entre 1973 y 1989, superponiéndose e
incluso sofisticándose durante los sucesivos gobiernos de la Concertación
de Partidos por la Democracia (1990-2008), de la Coalición por el
Cambio (2009-2013) y actualmente de la Nueva Mayoría. En cuarenta
años de consolidación del modelo neoliberal, los chilenos internalizamos
culturalmente el valor del mercado por sobre los derechos humanos y
colectivos, haciéndonos parte de un sistema jerarquizado, competitivo,
meritocrático y profundamente desigual.
Esta estructura de gobierno y de Estado se ha consagrado en la
Constitución de 1981, aún vigente, cuya permanencia ha sido corolario
de un pacto político de transición desde el régimen autoritario de
Pinochet hacia los gobiernos democráticos anteriormente mencionados.
Aun cuando el impacto simbólico, social e histórico de haber superado
un régimen militar tan nefasto en la historia de Chile es extremamente
significativo, es necesario indicar que hubo una evidente continuidad
en la proyección de una sociedad neoliberal, modelo que adquirió, por
lo tanto, nuevos bríos en manos de los sucesivos gobiernos socialdemócratas y de la centro-derecha. Se forjó de esta manera un imaginario
de bienestar social que ha descansado constantemente en los índices
macroeconómicos de crecimiento, cuyas cifras han puesto a Chile en
un escenario de excepcionalidad en el contexto regional. El crecimiento
económico sostenido en el tiempo, la inclusión de Chile en el OCDE,
las cifras alentadoras del PIB nominal per cápita, entre otros indicadores,
han logrado dejar en un segundo plano la desigualdad estructural que
se ha generado y mantenido sostenidamente durante los últimos años5,
Si bien Chile tiene un PIB per cápita de US$23.563 en 2015, bastante superior, por ejemplo,
al de Brasil en el mismo período (US$15.690) (ver: http://www.pulso.cl/noticia/economia/
economia/2015/10/7-71794-9-pib-per-capita-de-chile-ppp-llega-a-us23563-en-2015-pero5
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016
80
Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras
al mismo tiempo en que las directrices de los diversos gobiernos han logrado
marginalizar el debate sobre la recuperación de acceso a los derechos
universales, criminalizando, cooptando e invisibilizando la protesta social
que han exigido en toda época, y con diversas estrategias, una existencia
digna en un país autoimaginado como rico. Podríamos decir entonces que
la visión de éxito macroeconómico y tecnocrático ha sido inversamente
proporcional al desarrollo de una estructura política que garantice la
dignidad y los derechos sociales. Por ese motivo, Chile también posee otras
excepcionalidades, estructurales y puntuales, que son de índole más bien
calamitosas: es uno de los pocos países latinoamericanos, por ejemplo,
que no ha reconocido constitucionalmente a sus pueblos originarios.
Tampoco ha consagrado el derecho pleno de las mujeres sobre su propio
cuerpo, empantanándose constantemente la aprobación de la ley sobre
el aborto terapéutico6. Es un país donde predomina la obligatoriedad de
optar por un sistema de pensiones privado, no ofreciendo equivalencias en
el sistema público. En el cual la educación universitaria, incluso la estatal,
ha sido financiada primordialmente por un sistema de aranceles pagados
directamente por la población estudiantil y por sus familias, produciendo
varias generaciones de profesionales endeudados desde los inicios de sus
carreras, ampliando las dinámicas de desigualdad entre las clases medias y
bajas en contraposición a las clases más acomodadas.
a-2020-se-aleja-de.shtml), cuando dimensionamos los índices de desigualdad, la situación
deja de ser auspiciosa. En 2015, la OCDE presentó el “Estudios económicos de la OCDE
Chile 2015”, en el cual se relata lo siguiente: “A pesar del fuerte crecimiento económico, Chile
sigue siendo una sociedad altamente desigual en cuestión de ingreso, riqueza y educación. La
desigualdad va pasando de una generación a otra, reduciendo las posibilidades de ascender
en la escala social” (ver: https://www.oecd.org/eco/surveys/Chile-2015-vision-general.pdf).
De hecho, Chile junto a México y Turquía posee los índices más importantes de desigualdad
del OCDE. “Dentro del estudio, se señala que el crecimiento económico en Chile debe ser
más inclusivo, hoy el 10% más rico gana 26,5 más que el 10% más pobre superando en más
de un 100% el promedio de los países en la organización internacional” (ver: http://www.
elmostrador.cl/noticias/opinion/2016/01/09/desigualdad-en-chile-el-10-mas-rico-gana-26veces-mas-que-el-10-mas-pobre/).
6
Actualmente se discute en el senado la aprobación de una ley de aborto únicamente por tres
causales: inviabilidad fetal, riesgo vital de la madre y por violación. Una ley que reactualiza la
negativa de autonomía para las mujeres sobre su cuerpo, reservando la decisión a un médico
o un tribunal.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016
La mercantilización de la educación...
81
Sin duda, lo anterior ha generado un campo de profunda
ambivalencia. Pequeños atisbos de reformismo, como la reforma
constitucional de 1989, que terminan descansando sobre una estructura
constitucional inamovible, ha sido el paraguas conceptual utilizado por
los diversos programas políticos que se han sucedido en los gobiernos
democráticos desde la década de 1990. Ante este escenario, quizás más que
ningún otro actor social, ha sido el movimiento estudiantil secundario y
universitario el que ha logrado posicionar una voz relevante, generalizada y
crítica ante esta enorme estructura neoliberal. Este breve ensayo pretende
mapear los principales hitos, trayectorias y consecuencias del movimiento
desde la llamada “Revolución Pingüina”7, en 2006, comprendiendo sus
desprendimientos posteriores, hasta la segunda oleada de movilizaciones,
en 2011. Señalaremos los significativos aportes que estas fuerzas sociales
han impregnado en el actual escenario político; pero también nos
interesa reflexionar de qué manera la sociedad plena ha internalizado los
debates, proyectos y características que han sido propias del movimiento.
Sin embargo, como antesala a lo planteado, se hace necesario primero
comprender como se estructuró la educación chilena en el contexto
neoliberal.
NEOLIBERALISMO EN LA EDUCACIÓN CHILENA
Hay dimensiones históricas importantes para comprender el
asentamiento del sistema neoliberal en Chile y su directa afección sobre
el sistema educacional. Uno de estos antecedentes lo encontramos en
el contexto de la Alianza para el Progreso (ALPRO), asociado al papel
desempeñado por Estados Unidos como primera fuerza económica global
de posguerra y en el correlato de militarización que acompañó diversas de
las transformaciones del Estado y la política en América Latina8. La misión
La adjetivación “pingüina” dice relación al protagonismo que tuvieron en este proceso los
estudiantes secundarios. Es una expresión coloquial referida al uso de uniformes escolares que
es condición obligatoria en la mayoría de los establecimientos escolares en Chile, especialmente
en las escuelas públicas y municipales.
8
La economía de EEUU se constituyó en la primera fuerza económica global de la posguerra,
7
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económica Klein-Sacks, en la cual participó directamente el Departamento
de Estado de los EEUU, fue responsable por la reestructuración de la
Escuela de Economía de la Pontificia Universidad Católica de Chile, en
directa relación, además, con el Centro de Estudios Latinoamericanos de
la Universidad de Chicago. Esto prepara el terreno para la suscripción del
acuerdo que establecen la Universidad Católica de Chile y la Universidad
de Chicago, en 1955, que se convierte en un momento central para
comprender la experiencia de privatización de la educación y la aniquilación
de la educación pública. En el convenio ambas universidades, con activa
participación de la Fundación Ford, pactan la formación de estudiantes
de Economía de nacionalidad chilena en EEUU. La Universidad Católica
inaugura, de este modo, una reforma universitaria opuesta a la desarrollada
hasta ese entonces por el Rector Fernando Castillo Velasco. Esto gana
relevancia ya que Castillo Velasco fue el primer Rector laico y electo de
esta institución, durante un proceso de reforma democrática universitaria,
ejerciendo su cargo entre 1967 y 19739. El convenio establecido fue el
el control sobre la bomba atómica y la consolidación de un modelo económico imperial,
sentaron las bases para la reestructuración de su política exterior. La Conferencia de Caracas en
1954, la última conferencia del sistema interamericano, es un hito significativo que forma parte
del inicio de un período de militarización neoliberal en América Latina. En esta conferencia
se expresó con claridad la influencia de Estados Unidos en la recién creada Organización
de Estados Americanos (OEA), cuando el secretario del estado norteamericano, John Foster
Dulles, presentó una suerte de declaración de guerra contra el comunismo en la región. Este
hito significó un retroceso importante en los objetivos establecidos por la Novena Conferencia
Internacional Americana, en la cual se reconocía el derecho de los Estados para el establecimiento
de medidas que eviten la utilización de inversiones extranjeras como mecanismo de intervención
en la política nacional, para perjudicar la seguridad o los intereses fundamentales de los países
que las reciben. En esta fase la Doctrina de Seguridad Nacional se concentra en la instalación
de diversas dictaduras militares y en la articulación de la organización represiva entre ellas; en
Sudamérica por medio del Plan Cóndor y en Centroamérica a través de la Operación Charlie.
Estos regímenes, durante los setenta, iniciaron procesos de apertura económica dirigidos por
el Banco Mundial (BM) y por el Fondo Monetario Internacional (FMI).
9
Entre varios aportes, este Rector promovió una impronta democrática para esta institución,
llevando a cabo reformas que permitieron la participación de la comunidad universitaria en
asuntos administrativos que hasta ese entonces estaban reservados únicamente a autoridades
eclesiásticas. En 1973, con el Golpe de Estado, la Junta Militar designa nuevos rectores en
todas las universidades, nombrando al Vicealmirante Jorge Swett Madge para la Pontificia
Universidad Católica.
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responsable del surgimiento de los llamados “Chicago Boys”, economistas
que diseñaron el plan económico implementado durante el Régimen Militar,
inspirados en los paradigmas y teorías de Milton Friedman, Friedrich von
Hayek y Arnold Harberger, entre otros. Se inicia así un radical proceso
de liberalización económica, que abandona el proyecto de sustitución de
importaciones de los gobiernos anteriores, y se establece la primacía de
la política monetarista. Esto tuvo consecuencias inmediatas. Se precarizó
en forma creciente el trabajo, desregularizando el mercado, reduciendo el
gasto público, privatizando los servicios sociales y las industrias estatales.
En el plano educativo este proyecto liberal se materializó cuando la
Junta Militar decide promulgar en 1981 la Ley General de Universidades
(LGE), la cual tuvo dos directrices centrales: en primer lugar, permitió
la creación de Universidades, Institutos Profesionales y Centros de
Formación Técnica privados sin dependencia estatal. En segundo lugar,
se desarticularon las dos universidades estatales que tenían presencia a
nivel nacional, la Universidad de Chile y la Universidad Técnica del Estado
(UTE). En la Universidad de Chile se designaron siete militares para ejercer
como rectores durante este período10, siendo reducida drásticamente a la
ciudad de Santiago. Igualmente, se eliminó la Universidad Técnica del
Estado (UTE) al convertirla en la Universidad de Santiago (USACH),
transformando las sedes regionales de ambas en otras universidades
o institutos autónomos. Al fragmentar las universidades estatales con
alcance nacional se destruyó un modelo de educación pública-nacional
y, de paso, se precarizó sustancialmente el oficio docente. Ante el
desfinanciamiento de la educación por parte del Estado, las universidades
estatales y privadas comienzan a depender directamente de un sistema de
financiamiento mixto, compuesto por el Aporte Fiscal Directo, el Aporte
Fiscal Indirecto y los aranceles universitarios. Los dos primeros fueron
Entre 1983 y 1987 siendo Rector el General del Ejército Roberto Soto Mackenney,
quien pese a su cercanía con el régimen autoritario propició que los decanos fueran electos
democráticamente. Este gesto hizo que finalmente fuera destituido y, en su lugar, se designase
al civil José Luis Federici. En 1987, luego de que Federici destituyera a los decanos en cuestión,
la Asociación de Académicos y la Federación de Estudiantes convocan a un paro indefinido en
repudio a la nueva rectoría, constituyéndose éste en una de las más expresivas defensas de la
universidad pública en esos años.
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estructuras presupuestarias que rápidamente decrecieron11. Hoy día
hemos llegado a una estructura en la que más del 60% del financiamiento
de las universidades públicas y tradicionales depende de los aranceles y
matrículas12. El costo económico de acceso a la educación recae en gran
medida sobre las familias. Además, como consecuencia de una sociedad de
clases profundamente desigual, la Educación Técnica Superior se convierte
en la opción privilegiada de la población más pobre. Se fue consolidando
de esta manera, la particular ecuación de que en Chile existan universidades
públicas (o con espíritu público) que reciben un porcentaje muy marginal
de aporte estatal, debiendo operar en un sistema de mercado para
financiarse. Lo que en otros países se comprende como la diferencia entre
un sistema público y otro privado de Educación Superior, en Chile pasó a
ser caracterizado en una relación entre Universidades Tradicionales (con
espíritu público) y Universidades Privadas o Particulares. Sin embargo,
algunas universidades particulares-tradicionales, que son parte del Consejo
de Rectores de las Universidades Chilenas (CRUCH13), igualmente reciben
un porcentaje de aporte estatal.
La década de 1980 significó también la municipalización de
la Educación Pública Básica y Secundaria, generando una creciente
pauperización del sistema educacional más universal. Sin duda, con esto, se
fue estimulando un gran negocio en el ámbito de la educación, auspiciado
y financiado en gran parte por el Estado. El sistema de ‘sostenedor con
fines de lucro’ da inicio al proceso de mercantilización de la educación.
La expansión de la Educación Privada es el fin de la Educación Pública
Ver informe de CIPER Chile: “Recursos públicos para educación superior: La histórica
diferencia de las universidades estatales”, en el siguiente link: http://ciperchile.cl/2014/11/07/
recursos-publicos-para-educacion-superior-la-historica-diferencia-de-las-universidadesestatales/.
12
Actualmente Chile se ubica en la cuarta posición entre los países del OCDE que menos aporte
estatal realiza al sistema público de educación superior (un 37.5%), superado solamente por
Corea, Japón y Estados Unidos. Fuente: Education at a Glance, en 2016: OECD Indicators,
citado en: “Reforma a la Educación Superior: Financiamiento Actual y Proyecciones, en
http://www.dipres.gob.cl/572/articles-154341_doc_pdf.pdf.
13
El Consejo de Rectores de las Universidades Chilenas (CRUCH) es un organismo colegiado
que reúne a veinticinco universidades públicas y privadas, conocidas como “Universidades
Tradicionales”.
11
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y las nominaciones “estatal” o “tradicional” quedan sujetas a un orden
simbólico cada vez más insostenible.
Ya en 1989 se promulgó la Ley Orgánica Constitucional de
Enseñanza (LOCE), que sirvió como un mecanismo “modernizador” del
sistema educacional, la cual, sin embargo, no innovó en lo más mínimo en
relación a los sistemas de financiamiento.
En el año 2005 el entonces Presidente de la República, Ricardo
Lagos Escobar, que auspiciaba ser el más progresista de los gobiernos
desde el retorno a la democracia, celebró una breve reforma a la
Constitución de Augusto Pinochet. A pesar de la rimbombante primavera
anunciada en sus discursos, este evento no significó un replanteamiento
del modo en que se consagran los derechos sociales. Su reforma no tocó
las estructuras consolidadas del mercado administrando los derechos
sociales, y las preocupaciones ciudadanas más extendidas – la definición
clara de la existencia de un Estado laico, el reconocimiento de los
pueblos indígenas, la responsabilidad estatal ante los derechos sexuales
y reproductivos y el fin del lucro en la educación – fueron claudicadas.
De esta manera, es lógico entender el creciente estado de discordia e
insatisfacción que se fue generando durante la primera década del presente
siglo, ya que la Carta Magna que en la actualidad rige al país consolida un
sistema que ha privatizado el acceso a satisfacer parte importante de las
necesidades básicas del pueblo chileno. Hoy, a veintiséis años del inicio de
la democracia, esta Constitución se ha ratificado tras el ejercicio de seis
gobiernos democráticos, algo que nos invita a reflexionar sobre el tipo
de representatividad política que prevalece en Chile. La destrucción de la
Educación Pública ha ido de la mano con un proceso de transformación
política y económica, convirtiendo al Estado en una estructura rentista que
ha subsidiado y financiado al empresariado criollo – incluyendo a quienes
se dedican al rubro de la educación – y fortaleciendo a un mercado que ha
sido capaz de disputar el poder a las instituciones democráticas.
En conclusión, en este período Chile se adscribe al libre mercado
como un “hecho social total”. Comienza una progresiva precarización y
desregulación del mercado del trabajo, teniendo como consecuencia un
escenario laboral soportado por una desigualdad en la distribución de la
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riqueza y cimentado en la competencia, la flexibilización y tercerización.
Las vías de segregación que el modelo instauró en el ámbito educativo se
manifiestan en la ‘libre elección’ que se otorga a los grupos familiares con
más dinero, que pueden optar a escuelas privadas de mejor calidad para
garantizar el acceso a las instituciones de educación superior. Por otro lado,
la descentralización de la administración del nivel primario y secundario
de educación, traspasó la responsabilidad que asumía el Ministerio
de Educación (MINEDUC), a los municipios, quienes comenzaron a
implementar, ya desde la década de 1980, un modelo de financiamiento del
Estado organizado por el subsidio a la demanda. Desde hace más de tres
décadas la educación primaria y secundaria de carácter “público” no logra
competir con los instrumentos pedagógicos de evaluación estandarizados
– inclusive los que permiten el ingreso a los sistemas universitarios, como
la actual Prueba de Selección Universitaria (PSU) – siendo relegados en
un porcentaje dramático de ingreso al sistema universitario tradicional14.
MOVIMIENTO ESTUDIANTIL: 2006 / 2011
El movimiento estudiantil de 2011 tuvo una participación muy
amplia y diversa que logró convocar a diferenciados sectores sociales y
articular un intenso período de activismo generalizado. Estuvo integrado
por funcionarios/as, profesores/as y estudiantes de universidades y liceos,
que desplegaron e instalaron nuevas temáticas entre las cuales el feminismo
tuvo un lugar central. Sin embargo, son muchas las interrogantes que todavía
están por responderse, y una inquietud transversal en esta reflexión quiere
ser aquella que cuestione la consolidación de una orgánica autónoma y
plural que esté siendo capaz de interpelar el modelo económico y político
que destruyó a la Educación Pública en Chile.
El movimiento secundario que emergió en el año 2006, organizado
en una asamblea permanente con representación nacional expresada
El 25% de los estudiantes en las universidades tradicionales provienen de la educación
pública-municipalizada. En universidades de gran prestigio académico, como la Pontificia
Universidad Católica, esta cifra disminuye notoriamente, llegando a un 11,10% para el año
2015.
14
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en el protagonismo alcanzado por la ACES (Asamblea Coordinadora
Estudiantes Secundarios)15, junto a la Coordinadora de Estudiantes
Secundarios (CONES) – las dos organizaciones de estudiantes
secundarios más importantes del período – es clave para comprender
las dimensiones y consecuencias que adquiriría el movimiento estudiantil
en Chile. Es la misma generación que cinco años más tarde (2011) desde
la Educación Superior guiará con intensidad el debate ante la necesidad
de reconstruir la educación en el país. El movimiento “pingüino” por
primera vez de manera significativa interpeló la estructura del modelo
económico heredado del Régimen Militar y consolidado por los gobiernos
democráticos posteriores. Este movimiento ganó tal dimensión, que el
30 de mayo del mismo año el estudiantado secundario logró convocar
la protesta más masiva en la historia de país, uniéndose a ésta las
universidades y los principales gremios en un gran Paro Nacional. Ese
mismo día, representantes de todas las zonas del país movilizadas y de
las escuelas ocupadas (“en toma”), se reunieron en la Biblioteca Nacional
(BN) con el Ministro de Educación, Martín Zilic, buscando discutir las
demandas estructurales establecidas como condición para levantar las
acciones de protesta. Algunas de las medidas que exigía el movimiento
conocido como “la Revolución Pingüina” en una primera etapa, al igual
que el origen de todos los movimientos estudiantiles en la región, fueron
demandas coyunturales16, como por ejemplo el acceso a un pase escolar
gratuito y unitario, la gratuidad en la rendición de la Prueba de Selección
Universitaria (PSU), el aumento de las becas alimenticias y recursos
financieros para mejorar la infraestructura de las escuelas movilizadas,
entre otras. En un segundo momento, los planteamientos se orientaron
hacia la exigencia de cambios estructurales y políticos como derogación
La Asamblea Coordinadora de Estudiantes Secundarios es una orgánica autónoma al Estado
que reúne a través de asambleas abiertas al estudiantado secundario de la ciudad de Santiago,
fue creada en octubre del año 2000.
16
En abril del año 2006 el gobierno anunció que el costo de la Prueba de Selección Universitaria
(PSU) tendría un alza en su precio, que para ese entonces superaba los 35 dólares. Otro
elemento que detonó el estallido del movimiento estudiantil fueron las medidas tomadas por
la implementación de un nuevo sistema de locomoción pública, conocido como Transantiago,
que limitaba el uso del pase escolar a dos veces por día en jornada de clases.
15
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de la Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza (LOCE)17 y del decreto
524 que regulaba los Centros de Estudiantes y el fin de la municipalización
de la enseñanza. El estudiantado secundario fue el primero en hablar de
estatización de la educación y no solamente de la desmunicipalización –
que era una de las demandas históricas de los estudiantes movilizados
antes del 2006 –, pues desde la perspectiva de sus principales vocerías
se hacía necesario una reforma desde la raíz. Las movilizaciones durante
este año sufrieron un altísimo nivel de represión por parte de Carabineros
de Chile, lo que provocó el retiro de los representantes estudiantiles de
las mesas de diálogo establecidas con el gobierno. El impacto social y
mediático, nacional e internacional, provocado por la violencia policial
hacia estudiantes muy jóvenes, entre 12 y 17 años, llevó a la presidenta
Michelle Bachelet, a tomar la decisión de remover de su cargo al Coronel
Osvaldo Jara Soto, Prefecto de las Fuerzas Especiales de Carabineros.
Los estudiantes exigieron una respuesta del gobierno a su petitorio,
poniendo como fecha de pronunciación el día 2 de junio de 2006, pero
siguieron movilizados. La presidenta respondió a través de una cadena
nacional televisada, indicando que aumentaría en medio millón las becas
alimenticias, sin hacer mención alguna a las exigencias estructurales.
En consecuencia, la Asamblea Coordinadora Estudiantes Secundarios
(ACES) votó por el rechazo a la propuesta del gobierno. Los medios
de comunicación intentaron criminalizar las acciones de protesta como
las tomas y marchas, que fueron relevantes medios de expresión del
descontento y significativos espacios de politización. Repetidamente se
mal-informaba sobre quiebres al interior de la organización, lo cual, sin
embargo, no disminuyó las acciones y movilizaciones sino hasta el mes de
julio. Ante la presión mediática y las amenazas de pérdida del año escolar,
decidieron deponer las tomas y hacer una retirada temporal y unitaria.
Las acciones se retomaron entre agosto y septiembre pero no se obtuvo
La Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza (LOCE), fue una ley dictada por la Junta
Militar de gobierno y promulgada por Pinochet pocos días antes del fin de la dictadura. Era
una ley que se adaptada a la Constitución y en su Título 3, Artículo 19, Numeral 10 y 11
determina que la educación es responsabilidad de la familia y el Estado únicamente cumple
un rol subvencionador. Así el Estado renuncia orgánicamente a su función de garante de la
educación.
17
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un acuerdo y el movimiento se retiró nuevamente del diálogo con el
gobierno. En ese momento, la revuelta estudiantil se fragilizó tanto por la
presión de diversos sectores políticos-partidarios que intentaban cooptar a
los principales voceros y voceras, como también por el desgaste que traen
las movilizaciones sostenidas. Sin embargo, la revolución pingüina dejó
una huella contundente, y el año 2009 terminó siendo derogada la LOCE
y en su lugar se promulgó la Ley General de Educación (LGE).
En marzo de 2010 la derecha empresarial vuelve al poder en Chile
por medio de la presidencia de Sebastián Piñera, dando continuidad y
acentuando aun más el modelo de desigualdad que obligaba a la mayoría
de los/as estudiantes al endeudamiento con la banca privada para
acceder a la Educación Superior. El equipo de gobierno se conformó
mayoritariamente por empresarios de los principales grupos económicos
del país, en su mayoría Ingenieros Comerciales y profesionales graduados
en la ya referida Pontificia Universidad Católica, y gran parte, con estudios
de posgrado en la Universidad de Harvard.
En materia educativa el gobierno anuncia una reforma que
amenaza con profundizar aun más la privatización del modelo educativo.
El estudiantado, desde una plataforma que esta vez incorpora en el
movimiento a los estudiantes de las instituciones educativas privadas
mediante un escaño de representación en la Confederación de Estudiantes
de Chile (CONFECH)18, convoca a una serie de protestas para manifestar
el rechazo ante la reforma promovida por el nuevo gobierno. El 12 de
mayo de 2011 veintiséis mil estudiantes salieron a la calle. Fue la primera
manifestación masiva que hizo visible las grandes posibilidades de esta
nueva fase del movimiento. El 21 de mayo, aprovechando una de la más
importantes fechas cívicas del país19, el estudiantado decide manifestarse
La Confederación de Estudiantes de Chile (CONFECH) es una organización que congrega
a las diversas Federaciones universitarias del país. Fue creada durante la dictadura militar, en
1984, en la ciudad de Valparaíso y es la continuación de la Unión de Federaciones Universitarias
de Chile (1960).
19
Desde el año 1926 el gobierno de Chile utiliza esta fecha, donde se conmemora el Combate
Naval de Iquique en el contexto de la Guerra del Pacífico (1879), para presentar ante el
Congreso Pleno su cuenta anual, por medio de un discurso presidencial que pretende dar
cuenta del estado administrativo y político del país.
18
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masivamente en las calles ante la presentación de la cuenta pública del
gobierno. Esto marca un punto de inflexión, ya que desde ese momento
se radicaliza el movimiento y comienza la ocupación de gran parte de las
sedes universitarias en todo el país. El 30 de mayo la CONFECH se reunió
con el Ministro de Educación y posteriormente decidieron mantener las
movilizaciones. El 1 de junio del mismo año se realizó una marcha desde
la Universidad de Santiago (USACH) hasta el Ministerio de Educación
(MINEDUC), convocando cerca de veinte mil personas, con la intención
de manifestar el rechazo hacia el Ministro de la cartera, Joaquín Lavín,
propietario de una universidad privada y miembro supernumerario del
Opus Dei. La magnitud de las protestas logran el objetivo, y el polémico
ministro, fue removido de su puesto.
Una semana después, el 7 de junio, múltiples universidades,
públicas y privadas, se sumaron a un Paro Nacional Indefinido, junto
a académicos/as y funcionarios/as. El día 9 del mismo mes se suman
veintiséis escuelas secundarias. El 29 de junio el MINEDUC, como
estrategia para minar las ocupaciones, tomó la decisión de adelantar las
vacaciones de invierno en las escuelas movilizadas; y al día siguiente, 30 de
junio, se realizó la Marcha Social por la Educación que convocó cerca de
doscientas mil personas. Las manifestaciones se convirtieron en espacios
creativos y lúdicos, en un formato bastante disímil al de movimientos
políticos anteriores, acciones que convocan al goce y obtienen una
amplia y diversa participación, convocando a familias y componiendo un
particular escenario de expresiones culturales aliadas a la protesta política.
Esto marca un quiebre con el orden simbólico de la protesta social chilena
articulada durante la dictadura en la década de los ochenta y le da forma a
una nueva estética de la protesta social a nivel nacional. En este contexto se
convocan diversas actividades, una de las más llamativas fue denominada
“1.800 horas de corrida por la educación”, entre el 14 de junio y el 27 de
agosto se hicieron postas de runing alrededor de Santiago y de La Moneda,
con carteles y consignas a favor de la educación gratuita. También se
realizaron caminatas desde las Regiones del país hacia la capital, marchas
familiares multitudinarias y actividades muy masivas como el “Thriller”, el
“Genkidama”, el “Gagazo”, los “súper héroes y heroínas por la educación”.
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Entre algunas de estas acciones emblemáticas se encuentra el “Domingo
Familiar por la Educación” que reunió a un millón de personas el día 21 de
agosto y la masiva “Marcha de los paraguas”, realizada durante un lluvioso
día. La huelga de hambre llevada a cabo por estudiantes secundarios del
Liceo A-31 de Buin durante 37 días y la huelga de hambre realizada en el
Liceo Darío Salas durante 50 días, fueron también hitos importantes del
movimiento.
Piñera y su primer Ministro de Educación, Joaquín Lavín, llevaron
a cabo un plan que, sin considerar al estudiantado, creó un Fondo para
la Educación (FE), aumentando la cantidad de becas y disminuyendo
intereses para la deuda de los créditos fiscales. Nada se establecía allí para
los estudiantes secundarios ni para el profesorado. Tampoco se había
tomado en cuenta la Educación Básica, profundizando, en definitiva, el
sistema de créditos y endeudamiento. El mismo gobierno promovió el
“G.A.N.E” (Gran Acuerdo Nacional por la Educación), sin embargo, el
15 de julio de 2011 se realizó una marcha en rechazo al plan propuesto,
saliendo 150 mil personas a la calle. El 18 de julio hubo un cambio de
gabinete y asume Felipe Bulnes como nuevo Ministro de Educación.
A esa altura la opinión pública se expresa mayoritariamente a favor de
las movilizaciones y las demandas que los estudiantes habían instalado.
Las consignas de “no más lucro en la educación” y “gratuidad”, estaban
asentadas como el principio aglutinador de la protesta social. El 20 de julio
se realizó un “Claustro Triestamental Plenario” en el que convergieron
todas las demandas realizadas en las diversas universidades, redactándose
un petitorio que posteriormente fue presentado al gobierno.
El día 3 de agosto el Ministro del Interior, Rodrigo Hinzpeter,
solicitó una reunión con la CONFECH para pedirles que depusieran las
movilizaciones. Al mismo tiempo, amenazó que no serían autorizadas las
marchas y que, de ocurrir, las reprimirían. El día siguiente, no obstante,
se realizó una amplia jornada de protestas y manifestaciones a lo largo de
todo el país. Lamentablemente, la fuerte represión policial se hizo sentir.
Impactó de tal manera a la opinión pública que la ciudadanía protestó
espontáneamente con un “cacerolazo” esa misma noche contra la represión
estatal. Dos días después el movimiento rechazó públicamente a través de
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los medios de comunicación la propuesta entregada por el gobierno.
El día 25 de agosto, durante las protestas en la comuna de Macul,
en Santiago, fue asesinado Manuel Gutiérrez, estudiante de 14 años. Según
el relato de testigos y familiares murió por un balazo de Carabineros.
La institución negó su responsabilidad en una primera instancia20, sin
embargo, el 12 de mayo del año 2014, los Tribunales Militares condenaron
a tres años de libertad vigilada al ex sargento Miguel Millacura como
responsable de haber disparado y asesinado al estudiante con una
ametralladora. Esta primera sentencia, por la magnitud de su injusticia,
fue revertida por una de 400 días de pena remitida por cuasi delito de
homicidio por la Corte Marcial21. El mismo día del asesinato, la ciudadanía
se movilizó en una multitudinaria marcha exigiendo justicia.
Así como en el 2006, el movimiento estudiantil comenzó a demostrar
señales profundas de desgaste. El 5 de octubre se inició una mesa de
diálogo teniendo como foco central de discusión la gratuidad universitaria.
La ACES, que tenía desde el principio ideas de una transformación más
inmediata y radical, decidió no continuar en la mesa. Posteriormente,
también acabaron restándose la CONFECH y la CONES. El 20 de
octubre los estudiantes se tomaron Congreso Nacional como muestra de
esta nueva ruptura con el gobierno.
El movimiento del 2011 no logró cambios inmediatos, pero si
agenció un camino hacia una idea de “gratuidad” en la educación que
hasta el día de hoy se debate como propuesta central del segundo mandato
de Michelle Bachelet – una gratuidad que comenzó a implementarse este
año de manera muy gradual, y que posiblemente no responderá a los
requerimientos iniciales del movimiento. Asimismo, proyectó la carrera
política formal de algunos de los ex líderes del movimiento estudiantil,
que actualmente ejercen como diputados y diputadas de la República:
Ver:http://www.lanacion.cl/carabineros-niega-haber-dado-muerte-a-menor-en-macul/
noticias/2011-08-26/103235.html.
21
En un popular programa de TV, en marzo 2011, el Ministro del Interior, Rodrigo Hinzpeter,
afirmó que “asesinar a un policía es más grave que asesinar a un ciudadano común y corriente”.
Ver: http://www.elmostrador.cl/noticias/pais/2011/03/24/hinzpeter-asesinar-a-un-policiaes-mas-grave-que-asesinar-a-un-ciudadano-comun/.
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Camila Vallejos (Partido Comunista), Giorgio Jackson (Revolución
Democrática), Karol Cariola (Partido Comunista) y Gabriel Boric
(Movimiento Autonomista). Cabe evaluar en el futuro, cuando terminen
sus mandatos, si las dinámicas partidarias a las cuales se adscribieron
fueron caminos adecuados para dar continuidad, o no, a sus trayectorias
como representantes del mundo estudiantil.
A MODO DE CONCLUSIÓN: DESAFÍOS PENDIENTES
Boaventura de Sousa (2011) reflexiona que un nuevo movimiento
social logra interpelar los modos de regulación capitalista, y a su vez, las
vías de emancipación socialista establecidas desde el marxismo. Desde
esa vereda cabe preguntarnos: ¿ha logrado el Movimiento Estudiantil
chileno intervenir los modos de regulación del capitalismo en el país?
Es una pregunta que quizás no podremos responder aquí, pues los
desprendimientos posibles de este importante fenómeno de la ciudadanía,
organizada a partir de los estudiantes, no ha terminado de decantar. Sin
embargo, esta inquietud no debe abandonarnos a la hora de aportar al
debate en esta materia.
Qué duda cabe que a lo largo de estos años los estudiantes
secundarios y universitarios movilizados han logrado articular un capital
simbólico muy relevante para las actuales luchas sociales presentes hoy en
el país y en la región. En este sentido, la protesta social no solamente se
ha resignificado, también se ha vuelto masiva y convocante de diversos
sectores sociales. Y aunque se configura como un atisbo algo contingencial
para pensar la transformación social, en algunos casos ha sido el motor
de arranque para la generación de diálogos e instancias de organización
que han logrado mantenerse a través de estos años. Sin embargo, todavía
no se ha establecido un gran frente común que reúna la heterogeneidad,
las diferencias y contradicciones de todo colectivo, lo cual lo visualizamos
como un punto crítico a ser consignado. Creemos que sin la dinamización
del movimiento, la tarea de irrumpir contra una estructura neoliberal tan
bien hilvanada se torna quimérica, ya sea en el ámbito educativo, como en
todos los otros espacios que convocan hacia una exigencia por el respeto
a los derechos sociales.
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Aquí cabe mencionar, por lo tanto, una breve reflexión sobre
dos dimensiones socioculturales que han sido mal comprendidas e/o
invisibilizadas en esta coyuntura de plausibles transformaciones: la de
género y la étnica.
Sin duda, este movimiento estudiantil ha contribuido en forma
importante a mirar desde otra perspectiva ciertos valores de género que
históricamente se han manifestado en la historia de las revueltas sociales
en la región. La participación de mujeres en las vocerías y dirigencias ha
destacado de forma relevante desde la “revolución pingüina” hasta el
presente. Podríamos decir, incluso, que muy probablemente estemos en
presencia de un grado representación inédito del protagonismo femenino
en la historia de los movimientos sociales en Chile y estudiantiles en la
región. Si bien históricamente las mujeres siempre han sido centrales
en la participación estudiantil, su presencia se ha visto fragilizada en los
espacios con mayor visibilidad y poder político. Esto es un gran avance.
Sin embargo, también esta experiencia nos hace encender una alerta.
Que el ejercicio político estudiantil sea un territorio que se feminice, no
indica necesariamente la incorporación de una mirada feminista hacia el
movimiento estudiantil, ni menos hacia la sociedad como un todo. Si bien
el movimiento ha incorporado reivindicaciones en materia de género –
como la demanda de una educación no sexista y ha procurado en casi
todas sus instancias tener una lucha paritaria en la participación de sus
vías de representación, esto no necesariamente ha trasuntado en una
mirada que logre desarticular, por ejemplo, las estructuras patriarcales
ya sea en la proyección de una sociedad que vea en las mujeres una
valoración igualitaria en el ejercicio efectivo de la política (en el plano de
las dirigentes estudiantiles mujeres, por ejemplo), o bien, que cuestione
efectivamente las desigualdades en los roles de género que se encuentran
fuertemente impregnadas en las estructuras universitarias y académicas en
general. Confiamos sin embargo en el fortalecimiento creativo de aquellas
experiencias y discusiones feministas que emanaron de – y en – estas
movilizaciones, para la obtención de nuevas orgánicas políticas que logren
intervenir el pensamiento y la acción política.
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La mercantilización de la educación...
95
Un segundo punto a consignar se refiere al tipo de heterogeneidad
que ha proyectado el movimiento estudiantil relativo al debate interétnico.
De una forma un tanto anacrónica y encandilada, las organizaciones
políticas del estudiantado en ningún momento lograron consagrar entre
sus demandas centrales y articuladoras la exigencia de que el Estado se
reconozca como un estado pluricultural y plurinacional. Parece ser que
el vanguardismo multicultural de países como Ecuador o Bolivia ha
quedado muy alejado de la realidad chilena, incluso para sus pensadores
más progresistas, toda vez que en las propuestas de transformación desde
una sociedad neoliberal, individualista y tecnócrata hacia una más plural y
solidaria, hemos dejado de escuchar a los pueblos que, impregnados por
una historia de marginación histórica, han luchado consecuentemente por
prevalecer desde su distintividad cultural, promoviendo así la plausibilidad
de otros modelos de sociedad. Si bien en 2011 la Federación Mapuche
de Estudiantes tuvo participación efectiva en las asambleas y aportó
valiosamente a diversificar las demandas, éstas no lograron diseminarse
como un interés estructural del movimiento22. Desde nuestra perspectiva,
este es uno de los grandes puntos de fuga. No considerar la ruptura
con un tipo de educación pública monocultural es extremadamente
limitante a la hora de hacer efectiva cualquier tipo proyección curricular
en los nuevos estándares esperados por el movimiento estudiantil. Este
ámbito, desconsiderado por la sociedad chilena en general, sin duda se
verá profundizado por la creciente cosmopolitización vivida en los
últimos años como resultado de las dinámicas migratorias. Estos límites
que percibimos al interior del propio movimiento son una ramificación
de la misma experiencia de elitización de la Educación Superior, de ese
distanciamiento tan drástico que las universidades tienen con la realidad
social y con el contexto sociocultural y político de Chile y América Latina.
La pretendida educación pública y gratuita no puede darse el mínimo
espacio para fomentar un tipo de formación que siga operando bajo
Cabe destacar aquí la participación de Natividad Llanquileo quien en su calidad de vocera de
los comuneros mapuche en huelga de hambre, criminalizados por luchar por la recuperación de
sus territorios, argumentó a favor del movimiento estudiantil, indicando las cercanías sensibles
con las proyecciones del movimiento mapuche.
22
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016
96
Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras
prácticas racializadas, intolerantes y excluyentes.
El “fin al lucro” logró ser el lema aglomerante instalado por los
estudiantes el estudiantado y difundido con gran acuerdo y aprobación
hacia el resto de la sociedad. Su concreción como política pública quizás
sea el comienzo de una interpelación al modelo económico y político que
pueda canalizar otras transformaciones igualmente importantes tendientes
hacia la adquisición plena de los derechos sociales. Sin embargo, lograr
la gratuidad en la educación no es necesariamente una condición para la
proliferación de un sentido público de la misma. La desigualdad de clase
y las dificultades de acceso a las universidades tradicionales de mayor
prestigio para las poblaciones menos acomodadas, sigue siendo un gran
escollo para la comprensión del sistema educativo como un vehículo
integrador en y para la sociedad. El camino es más largo, complejo y
diversificado; pero seguirá requiriendo del movimiento estudiantil.
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más que el 10% más pobre. El Mostrador – Blog y Opinión. Santiago. 9
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SOBRE GREVE, LIBERDADE E RINOCERONTES
Eros Sester1
Sara Vieira Antunes2
RESUMO: Partindo do contexto da greve de 2016 na Unicamp, marcado por um
ambiente politicamente frágil e acirramento entre diferentes atores/atrizes no embate
institucional e civil, o presente texto propõe uma análise crítica da montagem “Canto para
Rinocerontes e Homens”, encenada no referido ano pela companhia Teatro do Osso.
Baseada na dramaturgia “O Rinoceronte” de Eugène Ionesco, a peça que aqui serve de
emblema revela e retorce uma série de contradições explícitas e implícitas na onda de
conservadorismo que tem acompanhado a crise econômica e a irresponsável e indecente
gestão política institucional. Elaborada por mestres em formação durante o período
da greve, a resenha é elaborada como um diálogo-debate e redigida colaborativamente
em um estilo ensaístico, e reflete em sua forma a elaboração de um espaço onde as
normas acadêmicas de produção do conhecimento científico puderam ser colocadas em
perspectiva. Esperamos, com o texto que segue, provocar reflexões nos/as leitores/as
atinentes aos próprios valores e convicções que tem governado nossas concepções acerca
do humano e dos mundos que queremos.
PALAVRAS-CHAVE: greve, teatro, liberdade, humano, universidade, rinocerontes,
crítica cultural.
“Cotas sim, cortes não. Contra o golpe e pela educação. Por moradia,
ampliação e transparência”. Esse é o mote que levou grande parte dos/
as alunos/as, funcionários/as e professores/as da Universidade Estadual
de Campinas a entrarem em greve no ano de 2016. As insatisfações são
Mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS-IFCH da UNICAMP. E-mail: eros.sester@
gmail.com
2
Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS-IFCH da UNICAMP. E-mail:
saraantunes13@gmail.com
1
100
Eros Sester e Sara Vieira Antunes
inúmeras e não são de agora. Mas, diante do cenário político e econômico
do país dos últimos três anos, essas insatisfações ganharam novas e graves
proporções. O aparente projeto político de desmonte da educação pública
de qualidade levou secundaristas a ocuparem escolas por todo o estado
de São Paulo, ecoando e trazendo à superfície problemas estruturais em
todo o país no que diz respeito ao repasse de verba às escolas, salários dos
professores/as, merendas, condições materiais e recursos básicos para a
sala de aula.
A universidade pública, como espaço de produção de conhecimento
acadêmico, tem sido vitimada pela crise política e econômica, sobretudo
nas áreas em que o retorno financeiro é modesto e não imediato. Para
além disso, a dificuldade de acesso de segmentos desfavorecidos nestas
universidades alerta a necessidade de problematizar esse sistema de
seleção e buscar condições não apenas para a sua inserção, mas para a
sua manutenção durante o período de estudo. O descompasso entre a
qualidade de formação oferecida pelo ensino público fundamental e o
grau de exigência para a entrada nas universidades públicas demonstra
serem estes espaços privilegiados para aqueles/as que possuem condições
de pagar por um ensino privado e cursinhos preparatórios. O próprio
formato que possibilita a entrada de pessoas na universidade coloca
restrições estruturais que promovem uma clara seleção de classe, bem
como não disponibiliza condições materiais necessárias para a manutenção
dessas pessoas na universidade.
Dessa forma, o debate sobre cotas na universidade e pela
permanência desses/as alunos/as tornou-se um dos motes centrais
da greve do ano passado. Discussões sobre cotas sociais e raciais, pela
ampliação e reforma da moradia estudantil e pela transparência nos gastos
da universidade estavam alinhadas como temas centrais que balizaram a
greve estudantil, todos intimamente ligados. Ao reivindicar transparência
no que diz respeito aos gastos da universidade abre-se precedentes para
discutir medidas concretas para possibilitar não apenas o acesso, mas a
manutenção de alunos/as que historicamente estiveram apartados desses
espaços.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016
Sobre a greve, liberdade e rinocerontes
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Foi dentro deste cenário de discussões que os/as aluno/as de pósgraduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) aderiram
à greve, somando-se aos/às funcionários/as e também professores/
as. A disciplina de Gênero e Sexualidade ministrada pelas professoras
Isadora Lins França e Carolina Branco, depois de um encontro onde
foram discutidos os encaminhamentos no contexto da greve, converteuse em um espaço de encontro para discutir questões mais amplas sobre
o contexto político do país e sobre as demandas da greve. Optamos por
fazer encontros abertos quinzenais, dentro da programação da greve,
focando em questões concernentes aos temas de gênero e sexualidade
dentro dessa conjuntura.
Esse expediente permitiu com que o grupo se fortalecesse em termos
de intimidade e proximidade, favorecendo um ambiente acolhedor para a
construção coletiva de um novo projeto a partir da disciplina, amparado
por trocas, relatos e reflexões contínuas. Sem saber exatamente o rumo
que tomaríamos, iniciamos com tempestades de ideias e incômodos que
inquietavam a todos/as, semanalmente estarrecidos pelos acontecimentos
políticos, sobretudo no período de forte campanha pró-impeachment e
com a entrada do governo Temer. Nesse turbilhão de ideias, decidimos
por produzir textos e vídeos que pudessem ser facilmente veiculados nas
mídias sociais, de forma a difundir e “viralizar” as reflexões produzidas
coletivamente.
Entre esses encontros fui assistir a uma peça de teatro em São Paulo
com alguns/umas amigos/as desse grupo. A peça, chamada “Canto para
Rinocerontes e Homens”, apesar de ser inspirada na peça “O Rinoceronte”
de Eugène Ionesco, que tratava de questões relacionadas à alienação nas
sociedades modernas (cujo mais temido epíteto seria o totalitarismo
nazista), encontrava (não surpreendentemente) enorme ressonância com
muitas das questões e problemáticas vividas no contexto político atual do
país, que nos inquietavam3. Bastante envolvida e entusiasmada com a peça,
senti o impulso de compartilhar e transmitir aos/às colegas do grupo
Recomendamos fortemente a audiência presencial. Contudo, há uma filmagem do espetáculo
disponibilizada desde o fim do ano retrasado na rede. Cf. https://vimeo.com/149689924.
3
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016
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Eros Sester e Sara Vieira Antunes
formado a partir da disciplina o que havia experienciado com a mesma.
No encontro subsequente, debatíamos a necessidade de escrever mais
livremente sobre as questões relativas à greve e ao cenário político que
vivíamos, sem engessarmos tanto nossos dedos em amarras acadêmicas.
Voluntariei-me a escrever algo a respeito da peça que havia assistido, ainda
bastante receosa com a possibilidade de falar sobre algo fora da moldura
segura e previsível das convenções acadêmicas.
A experiência de escrita foi libertadora. Sem preocupar-me com
referências, demasiados cuidados históricos e com o receio de colocações
pessoais e de engajamento político, respirei. Pela primeira vez em tempos
me senti apropriada, engajada, entusiasmada em de fato colocar o que
penso, sinto e pulso diante de cóleras há tempos reprimidas. Usei esses
sentimentos de raiva, indignação, inconformidade e despejei-os no texto.
Misturei minhas percepções sobre a peça com latências pessoais que
se encontravam e embaralhavam-se, resultando em um texto bastante
passional.
No encontro com o grupo, no dia seguinte, conversamos bastante e
decidimos por compartilhar os textos que havíamos produzido. Li em voz
alta a todos/as e senti mais uma vez o alívio e oxigenação de ter condições
e incentivo para aquele tipo de escrita. Animados com as manifestações
compartilhadas, decidimos, portanto, um próximo encontro onde iríamos
filmar as falas de cada um a respeito do golpe contra o governo Dilma,
fora algumas produções paralelas sobre questões adjacentes.
Ao invés de levar adiante aquele texto, uma leitura bastante pessoal
e particular da peça, ainda que respaldada em muitas das questões políticas
discutidas, decidi unir esforços junto a um grande amigo e colega de
turma, Eros, para compartilharmos conjuntamente as impressões sobre os
efeitos da greve e também da peça nas nossas escritas e reflexões. Como
toda obra de arte, tivemos diferentes leituras da mesma peça, informada
por nossas subjetividades, históricos pessoais, inquietações particulares.
Contudo, vislumbrávamos um problema comum que a ambos alarmava:
a notória semelhança de representações da peça em relação a fenômenos
decorrentes de governos ditatoriais e o contexto político brasileiro atual. A
leitura das condições sociais e políticas de embrutecimento e retrocessos
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Sobre a greve, liberdade e rinocerontes
em relação a direitos sociais fundamentais fazia-nos ver sementes brotando
de mais uma possível sociedade formada por rinocerontes.
Ao refletir sobre o atual contexto político, o que víamos? Perda
de inúmeros direitos arduamente conquistados por minorias sociais;
precarização ainda mais pungente da educação pública do país; índices
exorbitantes de encarceramento; fortalecimentos de bancadas evangélicas
e reacionárias nas cadeiras dos altos cargos da cúpula do Estado. Para
além disso, a evidente e escandalosa manipulação das grandes mídias para
não apenas criar um inimigo público – “a corrupção” – e travesti-la de
camisas vermelhas com uma grande estrela no meio, como, mais uma vez,
forjar a ideia de uma “união patriótica” pelas cores verde e amarela em
favor de um recorte social bem específico – branco, classe média/alta e
heterossexual.
Essa mescla de indignação e temor diante do cenário que se nos
apresenta emergiu diante dos nossos olhos por meio da performance
singular de cada atriz e ator durante a peça “Canto para Rinocerontes
e Homens”. Motivados e comovidos por ela, trazemos aqui algumas
reflexões, partindo das nossas diferentes – ainda que complementares
– percepções acerca das possíveis representações do que poderia ser
entendido como tornar-se rinoceronte. Passo a palavra, na próxima seção,
para Eros.
“RINOCERONTES DE NÓS MESMOS/AS”, EROS
Senti que devia levar a maior quantidade de afins para compartilhar
da inquietude que o espetáculo havia suscitado em mim. Insisti tanto,
tanto, que até Sara, que mora em Campinas, acabou vindo para São Paulo
só para assistir à peça. Pouco tempo depois ela me apresentou um texto
que havia produzido sobre a mesma. Iniciou-se aí um debate sobre que
leituras eram possíveis e rentáveis a partir da experiência. Como nossa
querela se flagrasse frutífera, Sara me convidou para, no curso das
atividades propostas no âmbito da greve, compor junto este texto em
que ora fazemos uma resenha livre, traçando também uma linha entre
as questões que nos mobilizaram e as evocadas no expediente da greve.
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Eros Sester e Sara Vieira Antunes
Optamos, aqui, por costurar nossas leituras na forma de um debate onde
nossas vozes, não se fundindo completamente, agregassem em uma aposta
pelo diálogo.
Como resposta à significativa demanda do público, o espaço cênico
Galpão do Folias articulou a extensão da temporada da peça “Canto para
Rinocerontes e Homens” para mais um fim de semana, início de junho
de 2016. Encenada por uma turma recém-egressa da Escola de Artes
Dramáticas da Universidade de São Paulo, o Teatro do Osso, dirigido por
Rogério Tarifa, notabilizou-se na cena paulistana por uma adaptação de
um clássico da dramaturgia do século XX chamado “O Rinoceronte”, de
Eugène Ionesco. Alinhada à estética modelar do teatro do absurdo, a peça,
que tematiza o processo de alienação de massas em sociedades modernas,
faz, na leitura do Teatro do Osso, alegoria à convulsão social que resultou
na hegemonização do pensamento nazista alemão durante o III Reich.
Bérenger é o sobrevivente de uma epidemia que terminou por
transformar todas as pessoas em rinocerontes, e a peça narra como se
dá esse processo. A leitura que culminou na montagem de “Canto para
Rinocerontes e Homens” trabalha com a sugestão de que existe um
substrato comum entre a alegoria original e a evocada pela montagem
em si. Nesse sentido, o processo colaborativo foi ao mesmo tempo
preciso e ferino ao desvelar uma série de chagas sociais deflagradas pelo
recrudescimento de certas frentes ideológicas e coletivos organizados no
rastro dos motins de 2013.
Assim, o argumento que reúne tanto a perplexidade frente ao sonho
pangermanista quanto o nosso conhecido crescente descrédito em relação
aos direitos humanos e à pluralidade de visões de mundo, é a construção de
um inimigo público, chancelada por uma retórica moralmente informada
por princípios que considero fascistas. Contudo, se a construção desse
inimigo público outrora resultava em efeitos de bipolarização (cujo
exemplo gritante é a tragédia nazista), ela se torna muito mais delicada e
complexa na conjuntura atual.
Um jovem negro, proveniente de um bairro de periferia, comete um
pequeno furto no centro da cidade, onde agride uma mulher. Capturado pela
polícia militar, ele pode ter sido morto pela mesma. Um jovem rinoceronte,
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Sobre a greve, liberdade e rinocerontes
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solto pela cidade, comete um furto, chifra uma mulher. Enjaulado, é
assassinado por outros rinocerontes. Quem, afinal de contas, o matou?
Ele mesmo? A polícia? A mulher? É essa a perplexidade que se nos acerca:
a generalização do devir-rinoceronte. Para além da espetacularização das
relações sociais e do esvaziamento das massas, banalizamos aquilo que é o
caldo turvo do caos urbano: a brutalização.
De quem é o corpo que se desmonta e remonta? A quem pertence?
À magazine ou a mim? O que é esse animal chamado sucesso? Essa dor de
cabeça que dói, dói, dói pra caralho, é vertigem do trabalho ou um chifre
que irrompe sem pedir permissão? (Senão a vertiginosa escala de trabalho
dos/as professores/as de escolas públicas, e as grades disciplinares e suas
jaulas). E esse sangue vertido, é o corpo esquartejado da travesti, ou o
desejo refreado de ser quem não se pode ser? Estocada ou hemorragia?
Self-made man, apelo obcecado ao autoconhecimento, discursos
intolerantes, esquizofrenia, miséria, prostituição, homo-lesbo-transbi-fobia, sucateamento do ensino, loucura, ocupações e reintegrações,
escolas insurgentes e bombas de gás lacrimogêneo, racismo, luta pela
sobrevivência, extinção, padrões de beleza, sexismo, crimes de ódio,
tecnologias de assujeitamento, espetáculo, enxaqueca, perseguição,
censura, polícia militar, classismo, operariado e desigualdade social… Sem
nos darmos conta, envoltos pelo espetáculo e pelo caos urbano, acabamos
nos tornando rinocerontes de nós mesmos/as.
Vista de cima, a cidade é, como na peça, uma arena onde é possível
identificar a evolução da epidemia, isto é, o recrudescimento dos discursos
intolerantes, e a batalha diária da massa esmagada de rinocerontes
urbanos. Por ironia, a extinção dos rinocerontes brancos, cujos algozes
são os homens, serve de contrapelo à narrativa. Como um remanescente
espécime nativo, Bérenger, por razões a interpretar, olha ao redor e enxerga
com perplexidade e resignação o que restou de um mundo onde, antes de
rinocerontes, os humanos eram mais humanos.
O custo pelo não-contágio, enfim, é a solidão: a lucidez em um
mundo onde ela definitivamente não é um valor.
Um mundo que pleiteia, aliás, a volta das formas totalitárias de poder,
que clama pela produção de antagonismos e reivindica o assujeitamento
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Eros Sester e Sara Vieira Antunes
e a purificação social, criando pânicos morais e forjando párias a partir
de crises letais que ele mesmo criou, só pode estar padecendo de uma
patologia crônica. A missão aí então é parar tudo isso, antes que seja tarde,
e só restem ruínas e bestas à deriva.
Sara e eu pudemos atestar, ao assistir a peça, aquilo que consideramos
ser um valor central dentro da produção artística que admiramos e
defendemos: a capacidade de mobilizar para além do trivial. A arte-paraalém-da-savana-social. Damos prosseguimento ao debate, agora com as
contribuições trazidas por ela, a partir de sua leitura da peça.
“A
BRUTALIZAÇÃO
RINOCERONTES”, SARA
DO
‘OUTRO’:
FABRICANDO
A minha leitura da peça esteve invariavelmente informada pelo
trabalho de campo que tenho realizado há cerca de um dois anos e meio
em penitenciárias femininas. O contato com o contexto prisional trouxe à
tona realidades antes consideradas mera ficção, pois desconsiderava haver
ainda hoje, tão próximo (e ao mesmo tempo tão distante) condições tão
absolutamente desumanas e brutais. A proteção vivida pelo meu contexto
de criação e formação como mulher branca de classe média me apartava
de realidades que via com estranhamento em uma distância segura através
das cores e formas desenhadas na televisão.
Mas já sentia um incômodo. Incômodo esse que não sabia definir,
nem encontrar sua origem, mas permeava meus interesses e buscas
pessoais. Com a entrada na universidade o incômodo cresceu, passou
a ganhar sentidos e crítica. Começou com o reconhecimento do lugar
privilegiado de fala e percepção do qual partia. Ainda assim, entendia que
isso não poderia me paralisar. Então, seria no papel e na militância que
poderia encontrar vazão e sentido a essas sensações que me atravessavam
e me impeliam a fazer algo a respeito.
Na peça, apesar de entender o contexto mais amplo de um corpo
social embrutecido que transformava todos em rinocerontes, via também a
fabricação acusativa que identificava somente no “outro” a transformação,
outorgando a si mesmo o lugar de pessoa, de cidadã/o, civilizada/o.
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Sobre a greve, liberdade e rinocerontes
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O bruto, o animalizado, o abjeto estaria sempre distante, como fonte de
medo e recusa de uma imagem possivelmente espelhada.
Esse bruto, esse rinoceronte, quando toma as ruas, incomoda,
assusta, causa confusão e violência. Uma calamidade! É perigoso, deve
ser detido, as autoridades devem se atentar! Para isso, “cidadãos de bem”
se revoltam, tomam as ruas, reivindicam “o seu direito” de não serem
incomodados por esses seres vis. Batem panela, vestem verde e amarelo,
saem de suas casas confortáveis para tomar as ruas – antes nunca ocupadas
– para livrá-las de vez desses animais imundos que estão querendo acabar
com a paz “de todos”.
Detentores da força moral lutam raivosos contra todos aqueles
que defendem a subsistência ultrajante desses rinocerontes. Estes devem
permanecer enjaulados. Nas suas jaulas, nas suas celas, nas suas gaiolas,
podem ser vistos de longe, sem incomodar. Podem até transitar de uma
cadeia a outra de bonde, em camburões fechados onde mal se pode respirar,
quanto menos serem vistos. Podem ficar nos barracos das favelas lá longe,
nas periferias da cidade aonde nem o metrô chega, onde o ônibus leva horas
para chegar. Lá, lá longe, eles não incomodam. Não incomodam sentados
e quietos nas salas de aula desestruturadas e abandonas do estado, fechadas
por grades e muros altos. Grades, celas, jaulas, gaiolas. Comportados e
disciplinados, vão “no máximo” agredir alguns professores, abandonar a
escola no ensino médio para trabalhar, para traficar, para roubar. Mas lá
longe, naquelas quebradas que ninguém sabe o nome.
O problema é quando saem das jaulas. Longe dos zoológicos
são amedrontadores. Tomam as ruas, invadem, dormem nas calçadas,
roubam, furtam, assaltam, vivem importunando “cidadãos de bem” que
só querem sair dos seus trabalhos e ir para casa. Matam “pais de família”,
“inocentes” por dinheiro, por ganância. O que querem eles? Roupas de
marca, ostentação? São realmente muito fúteis. Para que tudo isso? Com
dois carros na garagem, trocados a cada dois anos, roupas compradas no
shopping, escolas particulares, médicos particulares e formação superior,
morrem de medo desses seres fúteis e tão apegados ao dinheiro.
São bandidos. Ladrões. Escória da sociedade. Tem que sofrer na
prisão! Devem pagar pelos seus atos, devolver “para a sociedade” o que
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Eros Sester e Sara Vieira Antunes
dela tiraram. Na realidade, “bandido bom é bandido morto”. A prisão,
nesse sentido, cumpre bem o seu papel. Máquina de tortura e assassina dá
continuidade ao trabalho bem sucedido da polícia militar contra seu maior
alvo e inimigo: aqueles mesmos pretos e pobres que eram escravizados
e brutalizados alguns séculos atrás. Esses rinocerontes… Ah, esses
rinocerontes! Têm de entender o seu lugar!
O medo se confunde com o ódio e com a vontade de destruir
aqueles que ameaçam a ordem moral estabelecida: “Homens de bem” que
querem preservar a “tradicional família brasileira”, “núcleo fundacional
da ordem e da disciplina de um país”. Questionar essa ordem torna-se
uma ameaça concreta e assertiva na destruição dessa base fundacional e na
previsão em curto prazo de absoluto caos social. “Ideologia de gênero”,
direitos e proteção à população LGBT, legalização do aborto, delegacias
da mulher, meros caprichos de uma minoria que quer destruir a família
tradicional brasileira! Aberrantes, promíscuos, lascivos, imorais, não são
recomendados à sociedade. Rinocerontes, não são dignos de compaixão.
Precisam ser eliminados do coração da sociedade.
Essas “vidas precárias”, como coloca Judith Butler (2006), não
são dignas de luto. São vidas esquecíveis, vidas que não merecem ou não
precisam ser lembradas. Aparecem (quando aparecem) como números
(em contínuo crescimento), nos dados da Organização Mundial da Saúde
e em pequenos excertos de jornais. Não ganham as matérias de destaque,
não aparecem no Jornal Nacional, pois isso tomaria tempo, tempo demais,
haveria demasiadas mortes para se falar. Como diria Agamben, essas
“vidas nuas” (2004) são vidas de corpos matáveis, e justamente por serem
matáveis, não importam, não pesam, não precisam ser enlutadas. Nas
palavras de Butler,
‘‘essas populações são “perdíveis”, ou podem ser
sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como
já tendo sido perdidas ou sacrificadas. São consideradas
como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não
como populações vivas que necessitam de proteção contra
a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias. (...)
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Sobre a greve, liberdade e rinocerontes
A perda dessas populações é considerada necessária para
proteger a vida dos “vivos” (BUTLER, 2015:53)’’
Para os “vivos” é necessária proteção e cuidado de suas valiosas
e preciosas vidas. Na desordem e baderna do cenário político atual, não
existe mais “a mão de ferro” necessária para guiar e trazer disciplina,
ordem e segurança a essas vidas. Estão todos corrompidos. A saída seria o
(ainda maior!!) enrijecimento das forças militares para trazer lei e ordem a
força, goela abaixo. Que volte a ditadura militar, que seja feita a “revolução
militar”, por Deus, pela família, pelo meu cachorro, minha avó, minha
vizinha, meus amigos do futebol, pelo meu periquito José...
Como fora muito bem citado durante a peça, Hannah Arendt já dizia
que “o espaço público é o espaço que preserva a ação do esquecimento”.
A peça “Canto para Rinocerontes e Homens” chama a atenção para
algo realmente alarmante: estamos gradualmente ignorando a história,
aquilo que veio antes de nós e o que nos tornou o que somos hoje. O
espaço público, as vozes de representantes públicos da população (elegida
democraticamente por ela), estão (só podem estar!) perdendo a memória.
Cegos (como rinocerontes), surdos e esquecidos, as pessoas têm perdido
o espaço público como lócus primordial para o diálogo, para ver, ouvir,
ser visto e ouvido por outros. Por não ocupar os mesmos espaços, não
se veem, não se escutam, não praticam a simples alteridade e empatia
inerente ao (re)conhecimento mútuo de iguais.
O “outro”, esse fantasma distante e assustador que não conheço,
que só conheço de longe, que tenho um ou outro “exemplar” na família,
um parente distante, um colega de turma, aqueles dois amigos do trabalho
ou do futebol. Aqueles poucos do meu convívio que, quando sou acusado
de preconceito, posso logo revidar e dizer com orgulho: “tenho um amigo
assim”.
Durante a peça, fizeram exibições de trechos de vídeos com
falas de alguns pensadores. Em uma delas, José Saramago se questiona
se nos tornamos todos nós, por fim, cegos. “Cegos da razão, cegos da
sensibilidade, de tudo aquilo que nos faz ser razoavelmente funcionais
no sentido da doação humana. Mostramo-nos, em realidade, seres
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016
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Eros Sester e Sara Vieira Antunes
egoístas, seres violentos. E o espetáculo que o mundo nos oferece
mostra exatamente isso: um mundo de desigualdades, de sofrimento,
sem justificação”. O escritor sugere que apenas hoje, na era audiovisual,
estamos realmente vivendo na caverna de Platão. Olhamos para fora (por
meio de uma tela de computador, televisão ou celular) e vemos a sombra
do mundo, e acreditamos que isso é a realidade. Essas imagens, de alguma
maneira, substituem a realidade. Tornam-se a própria realidade. “Estamos
infelizmente a repetir a situação das pessoas que estão atadas, aprisionadas
na caverna de Platão, olhando em frente, vendo sombras e acreditando
que essas sombras são a realidade”.
“TUDO O QUE O DIABO ESQUECEU NO INFERNO É O
COMUNISMO”, SARA E EROS
Em uma reportagem audiovisual veiculada no fim do ano retrasado
durante uma manifestação pró-impeachment, algumas pessoas apareciam
sendo entrevistadas. Em uma das falas, que consideramos emblemática,
o “comunismo”, bem como a pluralidade de pensamentos ditos de
esquerda que aparecem reduzidas a esse guarda-chuva enigmático, era
definido como “tudo o que o diabo esqueceu no inferno”4: uma leitura
sintomática de um tempo em que antagonismos se condensam, e
o fazer político em todos os seus meandros e poréns se vê atordoado
pelo acirramento de disputas entre agendas. O espetáculo “Canto para
Rinocerontes e Homens” toca porque escancara um conjunto desses
pontos de estrangulamento da política e das convenções de humanidade/
bestialidade, evocando o perigo do espetáculo, a construção epidêmica
e expiatória de um “outro” e a perplexidade de uma realidade onde, tão
supostamente humanos, subitamente nos descobrimos rinocerontes.
Apesar de termos delineado nossas leituras em diferentes seções,
este texto foi escrito de forma colaborativa, e não se presta à construção de
uma crítica da peça propriamente dita, mas parte das nossas experiências
“Cunha é só boi de piranha. Quem manda é o Lula”, tv Carta (da Carta Capital), publicado no
YouTube em 20 de outubro de 2015. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=VLrqZC3H3DQ.
4
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016
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Sobre a greve, liberdade e rinocerontes
como espectador e espectadora para a elaboração de um conjunto de
reflexões que buscamos partilhar.
O contexto da greve, como espaço de discussão, reflexão e
produção compartilhada de ferramentas de luta em papel, caneta e câmera,
mostrou-se fundamental (em condições ímpares) para a produção deste
texto. A oportunidade de criar e promover uma escrita crítica, ao mesmo
tempo pessoal e passional, normalmente está restrita a blogs e conversas
informais, espaços de troca livre de pensamentos. O grupo de trabalho
formado a partir da disciplina de gênero e sexualidade forjou um lugar de
acolhimento, dando condições para exercermos nossa liberdade para falar,
trocar, produzir e escrever. Inclusive, sobre rinocerontes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violência. Buenos
Aires: Paidós, 2006.
________. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
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A (IN)CONSTÂNCIA DO PROVISÓRIO: 20 DIAS
DE GOVERNO INTERINO NA MÍDIA
Elizabete Pellegrini Garcia1
(Equipe de pesquisa MOvE)2
Lídia Torres3
Lorena Aragão, Maiane Fortes Ribeiro e Marina Sousa4
Maiara Dourado5
Nashieli Rangel Loera6
RESUMO: No dia 12 de maio de 2016, o Brasil acordou com a ressaca da iminência da
concretização do afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, a partir da abertura de
um processo de impeachment, que em poucos dias se materializou como um golpe de
Estado parlamentar-judicial em processo. O presidente interino Michel Temer deu início,
Mestranda em Ciência Política pelo PPGCP-Unicamp. E-mail: lizpelgar@gmail.com
O grupo de pesquisa MOvE (movimentos, ocupações e Estado) está sediado no Centro de
Estudos Rurais (CERES) da Unicamp. Teve início em maio de 2010, como parte do Projeto
de Pesquisa Jovem Pesquisador “As Formas de Acampamento”, financiado pela FAPESP.
O grupo mantém reuniões semanais de discussão, nas quais são debatidos textos, projetos,
resultados de trabalho de campo sobre a temática de acampamentos sem terra, indígenas,
mobilizações ou outras formas de produção de demandas sociais coletivas e de direitos e
benefícios ao Estado. O grupo é formado por discentes da graduação em Ciências Sociais,
pós-graduandos (mestrandos e doutorandos) da Unicamp e pesquisadores colaboradores de
outras universidades, sob a coordenação da Profa. Dra. Nashieli Rangel Loera.
3
Graduanda em Ciências Sociais pela Unicamp. E-mail: lidia.mrtorres@gmail.com
4
Mestrandas em Antropologia Social pelo PPGAS-Unicamp. E-mail: aragao.lorena@gmail.
com, maianefortesr@gmail.com, marina.antrorr@gmail.com
5
Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS-Unicamp. E-mail: dourado.maiara@gmail.
com
6
Professora do Departamento de Antropologia da Unicamp e diretora adjunta do Centro de
Estudos Rurais (CERES) da Unicamp. E-mail: nloera@unicamp.br
1
2
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Elizabete Pellegrini Garcia at el.
logo na primeira semana do seu mandato, ao desmonte das políticas sociais conquistadas
principalmente desde a Constituição de 1988, ao longo de quase 30 anos do curto período
democrático brasileiro. Na intenção de contribuir com a agenda de pesquisa acerca das
consequências do golpe em curso no país, este artigo apresenta algumas análises iniciais
de um levantamento de notícias publicadas na mídia online no mês de maio de 2016,
a respeito das primeiras medidas do governo, então, interino de Michel Temer. Em
especial, buscamos analisar como diferentes veículos de comunicação virtual divulgaram
as primeiras ações deste governo.
PALAVRAS-CHAVE: Impeachment; Governo Interino; Mídia; Notícias; Retrocessos
sociais.
INTRODUÇÃO
No dia 12 de maio de 2016, o Brasil acordou com a ressaca da
iminência da concretização do afastamento da presidenta eleita Dilma
Rousseff, a partir da abertura de um processo de impeachment, que em
poucos dias se materializou como um golpe de Estado parlamentar-judicial
em processo. O presidente interino Michel Temer deu início, logo na
primeira semana do seu mandato “provisório”, ao desmonte das políticas
sociais conquistadas principalmente desde a Constituição de 1988, ao
longo de quase 30 anos do curto período democrático brasileiro. Dentre
as perdas estão os retrocessos em matéria de recursos para programas
sociais tais como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida - Entidades; sem
contar o corte de recursos destinados à educação, ao desenvolvimento das
populações do campo e da agricultura familiar e a produção de alimentos,
e a sinalização da privatização dos serviços de saúde, da educação e de
matérias primas e recursos naturais em todo o território nacional, tais
como territórios e espaços de vida de populações indígenas, camponesas
e outras populações vulneráveis, colocando desta maneira em xeque a
possibilidade de vida plena e reprodução social e material de milhões de
brasileiros e brasileiras.
Por outro lado, desde o primeiro dia do mandato interino
temos assistido com perplexidade também as demissões em massa de
profissionais, técnicos especializados, assessores e delegados nos Estados,
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A (in)constância do provisório:...
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como consequência do desmonte do Ministério da Cultura (MinC), do
Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação (MCTI), Ministério das Mulheres, Igualdade Racial,
da Juventude e Direitos Humanos, dentre outros.
Desta maneira, o que inicialmente desenhava-se antes do dia 12 de
maio como um projeto provisório, a partir deste dia ganhou substância,
consistência e, principalmente, constância. Vale mencionar que este último
termo adquire força neste contexto, uma vez que, como tentaremos mostrar
a partir de nosso esboço de análise em relação às notícias veiculadas nas
diversas mídias, não teve um só dia em que Michel Temer e seu governo
interino não nos lembrasse que sua inconstância tem efeitos que estão
longe de serem provisórios, efêmeros, transitórios, e sim constantes: “uma
qualidade daquele que não falta a uma tarefa, dever, repetição de uma ação,
frequência, permanência, persistência”7.
Neste contexto, a mídia nacional e internacional, tanto no processo
de impeachment como nos seus desdobramentos, tem tido papel central
seja como formadora de opinião, seja em alguns casos como incentivadora
da reviravolta política e do atual contexto de desmonte do Estado social.
Preocupadas e consternadas com a afronta ao projeto democrático
no Brasil e com estas perdas sociais em tão curto tempo, milhares de pessoas
saíram às ruas, ou realizaram as mais variadas manifestações para protestar
e externar seu desacordo. Neste cenário, assistimos aos mais criativos e
variados protestos, como foram os dos músicos e artistas em diversas
capitais do país e inclusive mundo afora, tal como o protesto silencioso
da equipe do filme Aquarius8 em Cannes que fez tremendo barulho ao
denunciar o golpe de Estado, colocando o Brasil nas principais manchetes
de diversos jornais no estrangeiro; ou a marcha das mulheres que através
de cirandas levantaram a bandeira contra a “cultura do estupro”.
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 812.
Aquarius. Direção: Kleber Mendonça Filho. Produção: Emilie Lesclaux, Said Ben Said,
Michel Merkt.: CinemaScópio, SBS Productions, VideoFilmes, Globo Filmes. Brasil, França,
2016. (147 min.).
7
8
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A equipe de pesquisa MOvE, atenta a estes processos, decidiu realizar
como proposta de atividade permanente, no contexto da greve de 2016
dos docentes, funcionários e estudantes da Unicamp, um levantamento
de notícias publicadas na mídia sobre os diversos acontecimentos acima
relatados: perda de direitos e conquistas sociais, mudanças e políticas de
governo e protestos sociais a partir do primeiro dia do governo interino
de Michel Temer. Nosso objetivo neste texto é bastante modesto, pois
se limita a esboçar algumas linhas de raciocínio bastante gerais das
informações que circulam, e descrever os resultados deste levantamento
referente ao mês de maio de 2016. As informações foram levantadas nos
seguintes jornais e sites de notícias que consideramos representativos e de
fácil acesso para a população brasileira:
a) Grande mídia internacional: The New York Times, The Economist,
BBC, Le Monde e El País;
b) Grande mídia nacional: Folha de São Paulo e O Globo;
c) Mídia oficial: Diário Oficial da União, Agência Senado e Superior
Tribunal Federal;
d) Mídia alternativa: Mídia Ninja e Brasil de Fato.
Inicialmente, foram definidas quais mídias seriam monitoradas
dentro do levantamento. O primeiro ponto que consideramos foi que
as fontes deveriam ser online, de maneira que a coleta pudesse ser feita
rapidamente. Os dados sobre as notícias têm sido registrados em uma
planilha que reúne os seguintes dados acerca de cada notícia: data de
coleta, data de publicação da notícia, título da notícia, nome da fonte,
endereço eletrônico, descrição da notícia e sua classificação por tema.
Buscamos filtrar os dados desde o momento da coleta, por meio
da elaboração de categorias amplas que facilitam identificar os temas e os
principais tópicos contidos em cada notícia:
a) Protestos: nesta categoria, estão as notícias que abordam
manifestações de rua, ocupações, manifestações virtuais, cartas,
manifestações e demais protestos, a favor ou contra o governo interino ou
quaisquer atos a ele relacionados;
b) Medidas de governo: nesta categoria, encontram-se as
notícias que abordam alterações de ministérios, secretarias, cargos ou
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funções; criminalização de protestos ou de movimentos sociais; medidas
orçamentárias relacionadas a cortes, novos gastos, impostos, metas
econômicas ou ajustes fiscais; nomeações de pessoas investigadas ou
condenadas por quaisquer crimes; parcerias público-privado, concessões,
privatizações e Plano Nacional de Desestatização; reforma trabalhista;
reforma previdenciária; ausência de representatividade e diversidade;
revisão de políticas sociais nas áreas da educação, habitação e moradia,
indígenas e populações tradicionais, transferência de renda e saúde;
c) Análise de conjuntura: entram nesta categoria as notícias que
visam explicar de maneira mais geral o panorama político, econômico ou
social do atual contexto brasileiro e das ações do governo interino.
A partir desta categorização inicial, a equipe de pesquisa MOvE
pretende construir um banco de dados9 com notícias publicadas pelas
mídias pesquisadas durante os 180 dias do governo interino de Michel
Temer. Contudo, para o presente artigo, analisamos apenas as notícias
publicadas durante os primeiros 20 dias do governo interino, ou seja, de 12
a 31 de maio de 2016. Coletamos um total de 549 notícias relativas a este
período, sendo que 155 notícias foram categorizadas como “Protestos”,
284 como “Medidas de governo” e 110 como “Análise de conjuntura”.
Elaboramos abaixo um gráfico com porcentagens sobre as notícias por
categoria.
Apesar de partilharem o interesse comum pelo enfoque das Ciências Sociais, as participantes
do MOvE possuem formação diversa (Administração, Antropologia, Direito, Ciência Política e
Jornalismo) e temáticas de pesquisa variadas, o que trouxe vantagens no trabalho de construção
de um banco de dados.
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Outros grupos e coletivos já divulgaram algumas iniciativas
semelhantes sobre perda de direitos e retrocessos nas políticas sociais que
se concretizaram desde a posse do presidente interino Michel Temer.10 O
levantamento da equipe de pesquisa MOvE busca, portanto, contribuir
com esta agenda de pesquisa acerca das consequências do golpe em curso
no país, especialmente no que se refere à forma em que a mídia tem
divulgado as ações do governo interino.
Alguns exemplos neste sentido: Alerta social. Qual direito você perdeu hoje? Disponível
em: http://alertasocial.com.br; INTINI, João Marcelo. 40 dias de TEMERidades no Rural
Brasileiro. Disponível em: http://www.mst.org.br/2016/07/04/40-dias-de-temeridadesno-rural-brasileiro.html; MobilizaIE – Estudantes em greve do Instituto de Economia da
Unicamp. As consequências sociais e econômicas do Sr. Temer. Disponível em: https://drive.
google.com/file/d/0B_PfUBl3I_yeYW56SF9WN2JxTDQ/view; Monitor do debate político
no meio digital. Disponível em: https://www.facebook.com/monitordodebatepolitico. Todos
as páginas eletrônicas foram acessadas em 12 jul. 2016.
10
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20 DIAS DE TEMER NA IMPRENSA INTERNACIONAL
A periodicidade das notícias em jornais e mídia estrangeira acerca
de um determinado país e o foco dado às informações é delimitado na
maioria das vezes por conjunturas que se materializam em eventos e
situações específicas: conflito armado, ocupantes de cadeiras importantes
na ONU, países que sediam eventos mundiais, acordos econômicos e
políticos. Neste cenário, o Brasil ocupa uma posição de destaque por ser
líder econômico na América Latina e integrar o bloco econômico que,
juntamente com Rússia, Índia, China e África do Sul, compõe o denominado
BRICS. Entretanto, nos últimos meses o que vem chamando a atenção
da mídia internacional é a crise política que toma conta do país. Com
a votação pelo afastamento de Dilma Rousseff da presidência do Brasil
e a instalação do governo interino presidido por Michel Temer, no mês
de maio de 2016, medidas de governo, protestos e análises econômicas e
sociais foram os principais temas nas manchetes de jornais internacionais,
seja dentro de sessões de “política” ou “mundo”, ou, no caso de jornais
como El País e Le Monde, em colunas especiais dedicadas especificamente
ao Brasil. Não podemos esquecer que, conforme relatou recentemente
Maurício Savarese11 do Associated Press, os olhos de jornalistas estrangeiros
e da mídia internacional estão no Brasil principalmente porque o país
será a sede do maior evento esportivo do mundo, os Jogos Olímpicos.
Portanto, o caráter da periodicidade neste tipo de mídia relaciona-se com
acontecimentos que extrapolam acontecimentos e as repercussões locais.
O mote de diversas notícias publicadas na imprensa internacional é
a construção de um panorama que seja capaz de explicar satisfatoriamente
o processo jurídico-político de afastamento de um presidente numa
democracia tão recente como a brasileira. No total, contabilizamos 43
notícias, somente no mês de maio, em cinco fontes internacionais: El País,
Le Monde, BBC, The Economist e The New York Times.
Informação fornecida em palestra durante o evento “A mídia e a crise política no Brasil”,
atividade de greve organizada pela Associação de Docentes da Unicamp - Adunicamp, em
Campinas, em 9 de junho de 2016.
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No dia 11 de maio, dia em que se votava o afastamento de
Rousseff, um artigo publicado no El País sob o título “El fantasma de
1964” comparava o que haveria de comum entre o impeachment de
Rousseff e processos políticos acontecidos em outros países, como o caso
Watergate de Nixon, nos Estados Unidos, em 1974. Para surpresa do leitor
estrangeiro (mas não de muitos brasileiros e brasileiras), a situação mais
próxima anunciada no texto de David Alandete é a do próprio Brasil,
durante o golpe de 1964.
Es descorazonador y negativo para la imagen de Brasil ver
cómo una ola de indignación callejera ha dado legitimidad a
una iniciativa puramente política. Es, hablando llanamente,
una operación liderada por legisladores mucho más
sospechosos de corrupción que Rousseff. Un dato: más
de la mitad de parlamentarios de Brasil tiene problemas
con la justicia, con acusaciones de delitos como secuestro,
agresión o robo. Todo esto, aderezado de una verdadera
crueldad. No hay palabra que describa mejor el voto que
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el congresista conservador Jair Bolsonaro depositó hace un
mes a favor de la recusación de Rousseff. Se lo dedicó al
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsable durante
la dictadura de incontables actos de tortura, entre ellos la de
la propia presidenta. Su hijo y también congresista, Eduardo
Bolsonaro, votó en homenaje a “los militares del 64.12
El País foi o jornal que mais gastou tinta falando das medidas
econômicas e mudanças políticas adotadas pelo governo interino de
Michel Temer. Em outro artigo publicado em 13 de maio, assinado pelo
jornalista Antonio Jiménez Barca, se enfatiza que o governo interino não
demorou nem um dia para advertir os brasileiros da implementação de
“duras medidas” que implicariam em ajuste fiscal, impostos, menos gastos
públicos e o emagrecimento do Estado.13
Outras notícias de destaque no El País, claramente uma mídia de
posição mais progressista, foram as mudanças realizadas por Temer nos
Ministérios, avaliadas como uma desconexão com a realidade da sociedade
brasileira e como uma afronta aos direitos das mulheres e o combate à
corrupção.
Le Monde, menos crítico do que El País em relação ao processo de
impeachment e às mudanças de rumo na economia brasileira, dedicou
várias das suas matérias à análise dos impactos de curto prazo, das medidas
tomadas para tranquilizar o mercado, da manutenção de programas sociais
e do recuo social e civilizacional, com destaque para uma análise mais
minuciosa feita em um formato especial do jornal chamado de “Compte
rendues”.
Tanto El País como Le Monde deram grande destaque aos protestos
e manifestações contra as medidas tomadas pelo governo interino. Mais da
metade do total de notícias tiveram como foco formas em que a população
brasileira mostrou seu descontentamento: o dia-a-dia de ocupações de
ALANDETE, David. El fantasma de 1964. Disponível em: http://internacional.elpais.com/
internacional/2016/05/11/actualidad/1462993497_235422.html. Acesso em 10 jun. 2016.
13
BARCA, Antonio Jiménez. El Gobierno de Temer anuncia duras medidas de recorte de
gasto público. Disponível em: http://internacional.elpais.com/internacional/2016/05/13/
actualidad/1463163737_636961.html?rel=mas. Acesso em: 10 jun. 2016.
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escolas no Rio de Janeiro, o panelaço durante a primeira aparição pública
de Michel Temer em rede nacional de TV, os protestos de artistas e músicos
com o desmonte do Ministério da Cultura e - o que mais fez barulho - o
protesto silencioso realizado em Cannes pela equipe de atores e diretor do
filme brasileiro Aquarius. Le Monde foi o único jornal nas fontes por nós
levantadas a dar destaque na sua coluna internacional, em notícia publicada
em 27 de maio14, ao protesto realizado em redes sociais por milhares de
mulheres contra a reportagem tendenciosa e conservadora “Bela, recatada
e do lar”, da revista Veja, acerca da primeira dama “provisória” Marcela
Temer.
No concernente aos jornais de língua inglesa, as notícias de destaque
têm como foco principal a análise da conjuntura política e seus impactos no
plano econômico, notícias nas quais a retomada da história recente do país
se torna fundamental para entender o processo político atual. Para isso,
analisa-se o contexto histórico do partido que, eleito democraticamente,
liderou a maior nação latino americana por 13 anos. O fato do recente
regime democrático (1985- dias atuais) após um longo período de ditadura
militar estar sofrendo o segundo processo de impeachment é também
considerado nesta conjuntura.
A BBC traça em suas notícias de maio uma retrospectiva da atuação
política de Temer em governos anteriores e a participação do seu partido
(PMDB) no Executivo15. Diferente das mídias nacionais, as redações dos
veículos de informação internacionais costumam retratar panoramas gerais,
menos detalhados, utilizando-se de vocabulário e personagens que sejam
palatáveis ao repertório dos leitores de língua estrangeira (língua inglesa,
francesa e espanhola, por exemplo), buscando alcançar os habitantes de
diversos países. A título de exemplo, uma reportagem direcionada ao leitor
brasileiro não precisaria da trajetória detalhada de certos políticos que se
GATINOIS, Claire. Au Brésil : Marcela, la femme du président Michel Temer, fait
le buzz. Disponível em: http://www.lemonde.fr/international/article/2016/05/27/
au-bresil-marcela-la-femme-du-president-michel-temer-fait-le-buzz_4927491_3210.
html#prjbMzMMblr8dOzA.99. Acesso em 10 de junho de 2016.
15
GALLAS, Daniel. Michel Temer: the man who now lead Brazil. Disponível em: http://www.
bbc.com/news/world-latin-america-36070366. Acesso em 14 de junho de 2016.
14
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destacam no cenário nacional, pois estes leitores têm acesso diferenciado
a estas informações. Em contrapartida, em uma notícia16 do The New York
Times que comparava o Congresso brasileiro a um circo na votação do
processo de afastamento da presidenta Dilma na Câmara, o jornal precisou
traduzir o nome do deputado federal Tiririca (PR/SP) como Grumpy (que
significa “facilmente irritável”, em português) e explicar que ele participou
de vários programas humorísticos na televisão aberta brasileira. É desta
maneira que, na mídia estrangeira, presidentes, ministros, análises de
conjuntura e o cenário econômico brasileiro ganham destaque.
No campo das análises de conjuntura, uma mesma notícia trata
de diversos aspectos no espaço de um mesmo texto, dando ênfase para
análises gerais, quadros explicativos que tratam do processo jurídico de
um impeachment no Brasil, gráficos com dados da economia, slides de
fotos e vídeo-reportagens. O governo interino tem sido considerado
uma promessa no que diz respeito às medidas orçamentárias que
buscam minimizar os danos da crise econômica. As matérias publicadas
principalmente no The Economist e BBC apresentam um tom de otimismo
em relação às medidas tomadas pelo governo interino e apostam para
melhorias no cenário econômico. O jornal The Economist, em especial,
aponta Michel Temer como um homem de muitas qualidades, capaz de
uma gestão competente e equilibrada, diferentemente de Dilma Rousseff.
Entretanto, tanto BBC, como New York Times e The Economist, indicam que
os cortes realizados no intuito de diminuir os gastos públicos virão dos
investimentos feitos na área da saúde, educação, políticas de distribuição
de renda, previdência e habitação.
Ainda no campo de análises e medidas do governo interino, a
BBC destaca as escolhas do corpo ministerial, composto por 23 homens
brancos, chamando a atenção para uma escolha que não reflete a
diversidade da população brasileira e exclui as mulheres17. O baixo número
JACOBS, Andrew. Brazil’s Graft-prone Congress: a circus that even has a clown. Disponível
em: http://www.nytimes.com/2016/05/15/world/americas/brazils-most-entertaining-showmay-be-congress.html?rref=collection%2Ftimestopic%2FBrazil . Acesso em 14 de junho de
2016.
17
SALEK, Silvia. How Rousseff has highlighted Brazil’s sexism problem. Disponível em:
16
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Elizabete Pellegrini Garcia at el.
de mulheres na política brasileira e os ataques midiáticos que a presidenta
afastada sofreu ao ser retratada como uma mulher histérica em capas de
revista também foram retratados. A campanha “Tchau, querida” levantada
contra a presidenta e utilizada em faixas no dia da votação na Câmara
dos Deputados é mencionada pela mídia internacional como exemplo que
revela o problema da representatividade feminina na política.
The Economist costuma se opor ao governo Dilma em suas
publicações e aposta em Michel Temer como a grande esperança de
recuperação da crise econômica, ao passo que questiona a legitimidade do
processo do impeachment e critica os argumentos dos deputados federais
ao justificarem seus votos. Já o The New York Times destaca o envolvimento
de dois terços dos deputados federais em casos de corrupção, faz críticas
à gestão de Dilma Rousseff, aponta Eduardo Cunha como o criminoso
envolvido com corrupção como força propulsora do processo de
impeachment e questiona se há, de fato, crime de responsabilidade fiscal
da presidenta, além de explicitar o processo como golpe parlamentar. Por
fim, a BBC, em matéria18 que tratava do vazamento do áudio de Romero
Jucá, mostra a reação da imprensa brasileira e aponta falas que apontam
o impeachment como tentativa de barrar as investigações da Lava Jato,
mostra as reações das pessoas em redes sociais com as postagens de “Fora
Temer” e destaca o drama político brasileiro.
Por fim, de maneira geral, através do levantamento realizado, foi
possível observar a maneira que a mídia internacional vem questionando
as bases jurídicas do processo de impeachment e a integridade moral
dos parlamentares que o vêm conduzindo, indicando como ameaças à
democracia brasileira.
TEMER NA FOLHA
A Folha de São Paulo apresenta-se como um dos principais veículos
jornalísticos do país. O fluxo e o volume de informações produzidos,
http://www.bbc.com/news/world-latin-america-36303001 . Acesso em 14 de junho de 2016.
18
GALLAS, Daniel. Brazilian press reacts to latest leaked tape scandal. Disponível em: http://
www.bbc.com/news/world-latin-america-36370799 . Acesso em 14 de junho de 2016.
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A (in)constância do provisório:...
125
diariamente – um número que varia de 300 a 400 matérias por dia, dentre
colunas, notícias, reportagens e artigos de opinião disponibilizados em
seu site - demonstram uma importante marca produtiva e sinalizam
considerável alcance nacional, o que nos permite chamar atenção para
sua atuação na produção de narrativas sobre eventos e processos políticos
representativos no país.
Nesse sentido, a partir da análise da cobertura realizada pelo jornal
Folha de São Paulo sobre o atual momento político econômico nacional,
nos propomos descrever e refletir sobre a produção de notícias nas
primeiras semanas do governo provisório de Michel Temer.
Destaca-se que, nesse período, alguns episódios e temas específicos
se tornaram recorrentes e foram, insistentemente, enfatizados pelo veículo.
Como exemplo, temos a superação de uma crise financeira; o vazamento
de áudios que revelaram o envolvimento de ministros de seu governo em
ações que sugeririam um “pacto” para deter as investigações da Operação
Lava Jato; protestos contra o fechamento do Ministério da Cultura (MInC)
e ocupações em órgãos e instituições ligadas à pasta, como Funarte,
museus, entre outros; e ainda a política externa brasileira.
No levantamento de notícias realizado pela equipe de pesquisa do
MOvE foram coletadas 339 matérias do jornal Folha de São Paulo. Destas,
208 foram identificadas com temas referentes às medidas do governo
interino, as quais apresentavam, sobretudo, uma forte preocupação com os
planos econômicos de Temer. O gráfico a seguir indica o total de notícias
da Folha de São Paulo de acordo com as categorias de classificação que
utilizamos.
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Já nos primeiros dias de governo, foram noticiadas medidas
consideradas polêmicas por movimentos sociais organizados e pela
opinião pública, como a proposta de reforma previdenciária, na qual se
prevê a alteração da idade mínima para aposentadoria e o aumento de
tempo de contribuição, e a intenção de cortes de despesas públicas, que
sinaliza futuros encaminhamentos no Congresso, como uma possível
desvinculação constitucional de gastos públicos com educação e saúde.
Entre os dias 20 e 21, a Folha intensifica a divulgação do anúncio do
novo cálculo de déficit primário, ampliado de 96,7 bilhões de reais previsto
pelo governo Dilma para 170,5 bilhões apresentado pela equipe de Temer.
Tal anúncio antecedeu um outro, subsequente, ocorrido no dia 23, no qual
o governo divulgou medidas econômicas para o aumento da arrecadação
e redução de despesas e cortes de gastos, a fim de reduzir o “rombo” de
170,5 bilhões dos cofres públicos.
Ainda no dia 23, o jornal divulgou o encaminhamento da
proposta do governo Temer de meta fiscal para o Congresso Nacional.
Coincidentemente, no mesmo dia, a Folha revelou gravações de diálogos
entre Romero Jucá, então Ministro do Planejamento de Temer, e Sérgio
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Machado, ex-presidente da Transpetro, “pactuando” estratégias para travar
as investigações da Operação Lava Jato. Das 28 notícias levantadas no dia
23 de maio, metade fazia referência ao vazamento do áudio, que veio a
caracterizar a primeira crise do governo interino que levou à renúncia de
Romero Jucá como Ministro do Planejamento. A meta fiscal, citada pela
Folha em um volume considerável de notícias, foi aprovada dia 25 de maio
– dois dias depois de divulgado o diálogo entre Jucá e Machado – e foi
classificada pelo jornal como a “primeira vitória” de Temer. Em meio a
“primeira crise” do governo interino, sua “primeira vitória”.
Vale ressaltar, também, a repercussão nacional aos fechamentos
e fusões de alguns ministérios. Além disto, a mobilização de artistas e
produtores culturais em uma série de protestos e ocupações contra o fim
do MinC pautaram intensamente a cobertura jornalística da Folha. Foram
levantadas 78 notícias sobre protestos no jornal Folha de São Paulo,
que faziam referência às ocupações em órgãos ou entidades ligadas ao
MinC. Tal repercussão e pressão popular levou a reabertura do Ministério
também enfocada pelo jornal.
Quanto à política externa do país, o foco de notícias da Folha
qualifica positivamente a nomeação de José Serra para o Ministério das
Relações Exteriores, enfatizando o novo enfoque da política externa
ao sinalizar interesses de estreitamento de laços com Europa e Estados
Unidos e afastamento dos países da América Latina, com exceção da
Argentina, presidida pelo liberal Maurício Macri.
Em uma breve análise sobre as notícias publicizadas pela Folha
de São Paulo torna-se perceptível uma perspectiva de harmonização e
superação da crise, que foca em questões relacionadas ao governo interino
e em medidas políticas institucionalizadas pela equipe de Temer, sobretudo
no que se refere ao âmbito econômico.
Tal enfoque pode ser compreendido como reflexo da política
editorial do jornal, que evidencia, no contraste do espaço reduzido
disponibilizado às notícias referentes aos protestos e mobilizações
populares que tendem a reagir contra as políticas instauradas pelo
governo de Temer ou que se posicionam positivamente ao governo de
Dilma Rousseff - em relação ao grande espaço reservado às políticas de
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superação de crise desenvolvidas pelo governo. As narrativas produzidas
pelo jornal sinalizam para superação de uma crise e apontam, de forma
positiva, para uma temporalidade específica: um futuro, que se configura
como parte de uma espécie de uma narrativa de salvação.
Por outro lado, as mídias alternativas - a qual discutiremos com
maior atenção no próximo tópico - vem na contramão, numa tentativa
de expor e evidenciar as fragilidades e (in) consistências de um governo
provisório que media um processo de mudança no país, que vem sinalizar
retrocessos - por meio dos dados até agora coletados nesta pesquisa - no
que diz respeito a perdas de direitos sociais, conquistados historicamente,
por lutas de povos, comunidades e movimentos sociais do Brasil.
DE NINJAS E FATOS NO GOVERNO TEMER: MÍDIA
ALTERNATIVA
A mídia alternativa tem desenvolvido um papel importante como
divulgadora de notícias, ao apostar em análises que dão protagonismo
aqueles que dificilmente possuem centralidade na grande mídia, e na lógica
colaborativa, em que diferentes pessoas podem produzir notícias. Muitas
vezes compartilhando o conteúdo em tempo real na internet, as matérias
parecem ser uma via para quem busca ter sua própria interpretação dos
fatos.
No Brasil de Fato, dentre o que classificamos por protestos, medidas
de governo e análise de conjuntura, foram veiculadas cerca de 72 notícias.
A maioria delas noticiando os protestos contra o governo interino e
discorrendo em tom crítico sobre as medidas de governo adotadas pelo
presidente interino.
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Entre os dias 23 a 25 de maio houve uma grande circulação de notícias
sobre a nova meta fiscal e as possíveis perdas de investimentos sociais que
ela traria, além da repercussão do vazamento do áudio de Romero Jucá
em que ele afirma que uma “mudança” no governo federal resultaria em
um pacto para “estancar a sangria” desencadeada pela Lava Jato. Foram
noticiados não só artigos que associavam os áudios à confirmação de que
o impeachment se trataria de um golpe em curso no país, mas também
notícias de outras fontes que se manifestaram em relação ao golpe após
o vazamento do áudio, tanto na mídia nacional quanto na internacional,
como foi o caso do jornalista norte-americano Glenn Greenwald que
publicou em seu site uma matéria em que dizia que “as transcrições estão
cheias de declarações fortemente incriminadoras sobre os reais objetivos
do impeachment e quem está por trás dele”19.
A Mídia Ninja tem como principal fonte de divulgação de notícias
o Facebook, porém, para o levantamento de notícias relativas ao mês de
GREENWALD, Glenn. Mídia terá que começar a dizer que é um golpe. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2016/05/24/glenn-greenwald-midia-tera-que-comecar-adizer-que-e-um-golpe/. Acesso em: 17 jun. 2016.
19
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maio, foram analisadas apenas as notícias veiculadas em seu site oficial.
Mesmo que o Facebook seja o veículo principal de circulação de notícias,
já que a aposta da mídia é ser uma plataforma colaborativa de informação
em movimento, a imensa maioria das matérias do site também noticiavam
atividades de protesto, como apresentações artísticas que aconteceram
dentro de algumas ocupações, e os protestos que aconteceram em diversas
partes do país, não só em grandes centros urbanos ou capitais, mas
também em diversas cidades, periferias e até mesmo as manifestações que
aconteceram nas redes sociais, como os “vomitaços” feitos por internautas
em páginas do PSDB e PMDB. No site da Mídia Ninja, os dias de maior
publicação e circulação de notícias foram os dias 22 e 23 de maio. Porém,
ao contrário do Brasil de Fato, as notícias que receberam destaque foram
as manifestações em torno da casa de Michel Temer, localizada em um
bairro nobre da cidade de São Paulo, e a consecutiva repressão da Polícia
Militar aos atos. Outro destaque foram as manifestações “Fora Temer”
nos diversos shows da Virada Cultural paulistana.
Encontramos notícias nas quais apenas o título era diferente nas
duas mídias analisadas, sendo todo o resto da matéria idêntica. Isso chama
atenção para o fato de que a produção das notícias nesses veículos de
informação, conforme explicou Rafael Vilela, jornalista da Mídia Ninja20,
se faz de maneira colaborativa, isto é, jornalistas de diversas regiões do
Brasil tem liberdade para enviarem suas matérias a mais de um jornal,
além de criarem matérias em parcerias21. As matérias se utilizam de uma
linguagem informal com expressões corriqueiras. Assim, a compreensão
do conteúdo parece ser mais acessível à população e a públicos variados.
Além disso, as matérias não costumam ser tão extensas. Em alguns casos,
aparece apenas o título, uma descrição breve e logo abaixo vídeos de
Informação fornecida em palestra durante o evento “A mídia e a crise política no Brasil”,
atividade de greve organizada pela Associação de Docentes da Unicamp - Adunicamp, em
Campinas, em 9 de junho de 2016.
21
Vide exemplo: SAMPAIO, Cristiane. Militantes “abraçam” prédio do extinto Ministério
do Desenvolvimento Agrário. Disponível em Mídia Ninja (https://ninja.oximity.com/
article/Militantes-abra%C3%A7am-pr%C3%A9dio-do-1) e no Brasil de Fato (https://
www.brasildefato.com.br/2016/05/13/militantes-abracam-predio-do-extinto-ministerio-dodesenvolvimento-agrario/). Ambas as páginas foram acessadas em 17 jun. 2016.
20
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manifestações ou de pessoas de renome analisando a conjuntura atual. É
perceptível a posição política em relação às pautas que foram divulgadas:
a palavra “golpe” foi usada na maioria das notícias, bem como “governo
golpista” e “retrocesso político” ao se referirem à conjuntura política atual.
De maneira geral, ambas as mídias se colocaram criticamente
em relação às ações do governo interino e noticiaram repercussões
negativas em relação ao mesmo. Ambas deram destaque aos protestos,
sejam eles de rua, ocupações ou manifestos de grupos que dificilmente
conseguiriam destaque na mídia convencional, como comunidades
quilombolas, indígenas e LGBTTs. As análises de conjuntura deixaram
explícitas uma preocupação a respeito das perdas de direitos sociais dessas
comunidades e de outros grupos que fazem parte da parcela da população
mais marginalizada. A exoneração do ex-presidente da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC), que tinha mandato até maio de 2020, também foi
uma pauta bastante noticiada e criticada por essas mídias, que entendem
que essa medida prejudicará a democratização da mídia de maneira geral
pois segue a linha de ação do governo interino de perdas de direitos sociais
e autonomia para que qualquer cidadão possa se tornar um “cidadão
multimídia”.
NA MEDIDA CERTA? DE PARLAMENTARES, SENADORES E
OUTRAS TEMERIDADES
Vários questionamentos se somam quando partimos da coleta
e da categorização dos assuntos surgidos nas notícias desses vinte dias
de governo interino. Dos questionamentos mais significantes, nos
perguntamos, primeiramente, qual o papel da mídia institucional (nesse
caso, a Agência Senado, que é a seção de notícias do Senado Federal) na
formação e informação dos cidadãos? Seria esse veículo midiático uma
fonte transparente de informação, sem vieses partidários? Já sobre o
conteúdo das notícias, tomando como base o noticiamento de Medidas
Provisórias (MP), Propostas de Emenda à Constituição (PEC) e Projetos
de Leis (PL), dentre outras intervenções à Constituição de 1988, nos
perguntamos a respeito dos principais caminhos seguidos pelo governo
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interino de Michel Temer, sobre o que os partidos de situação e os de
oposição no Senado têm para nos esclarecer sobre esse momento tão
sombrio da política brasileira.
Foram coletadas 39 notícias entre os dias 12 e 31 de maio. Dessas,
enquadramos as notícias dentro de duas categorias classificatórias: medidas
de governo e análise de conjuntura.22
O início do governo interino de Michel Temer é marcado por
notícias que versam, primordialmente, sobre o crescimento da economia,
sejam por meio de uma “facilitação” ou “desburocratização” nos
diferentes setores da máquina pública, tal como as concessões públicas
federais, conforme abordado na notícia “Temer cria por medida provisória
programa para destravar concessões”23. Por meio da MP nº 727/2016,
o presidente interino criou o Programa de Parcerias e Investimento
(PPI), um instrumento que visa tornar mais ágeis as concessões públicas
federais, com o objetivo de eliminar os “entraves burocráticos e excesso de
interferências do Estado que atrapalham as concessões”.
Em conjunto com a MP nº 727/2016, Michel Temer lançou a MP
nº 726/2016, que foi amplamente noticiada, pois tratou da remodelação
da Presidência da República e dos ministérios. Estas Medidas Provisórias
foram as duas primeiras medidas do governo interino. Elas possuem caráter
de lei, possuindo vigência por até 60 dias e podendo ser prorrogadas por
mais 60 dias.
Da mesma forma encontrada nas MPs citadas, nos deparamos com
o mesmo artifício de diminuir a atuação do Estado nos usos e manejos do
Como citado na parte metodológica deste texto, foram pensados três tipos de categorias
de notícias: “medidas de governo”, “análise de conjuntura” e “protestos”. No entanto,
como o site de notícias do Senado Federal é uma mídia oficial, não localizamos notícias que
discorressem sobre protestos. Desta maneira, especificamente para esta mídia, classificamos
como “medidas de governo” as notícias que englobam os planos de ação votados dentro do
Senado, e como “análise de conjuntura” aquelas que tratam de apreciações dos senadores sobre
a política nacional ou sobre algum assunto específico. Assim, foram coletadas 31 notícias que
se enquadram na categoria “medidas de governo” e 8 em “análise de conjuntura”.
23
AGÊNCIA SENADO. Temer cria por medida provisória programa para destravar
concessões. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/13/
temer-cria-por-medida-provisoria-programa-para-destravar-concessoes. Acesso em: 26 jun.
2016.
22
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território brasileiro, neste caso específico, nos trâmites de licenciamento
ambiental. A proposta da PEC nº 65/2012, atualmente em votação no
Senado dentro da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, não
somente elimina alguns estágios do processo de licenciamento ambiental,
como também relega aos estágios restantes a atuação mista entre entes
público e privado, diminuindo a atuação e poder de decisão das instituições
governamentais.
Partindo das análises iniciais, podemos perceber que as primeiras
ações do governo Temer foram voltadas para o incremento da economia
nacional, por vias de uma menor atuação do Estado brasileiro no que
concerne à facilitação, por via legal, dos processos de entrada de capital
privado na economia do país. Podemos inferir, na verdade, que essa
entrada de capital privado reverbera não somente no investimento de
capital financeiro na economia brasileira, mas nos indica que essa abertura
a outros investidores pode trazer uma série de remodelações na forma de
fazer política (e porque não dizer na própria Constituição) que beneficiam
estas corporações, uma vez que, quando se investe, se pede o retorno
desse investimento.
Em um segundo momento, as notícias coletadas na Agência Senado
tratam de alguns temas que aqui merecem destaque. Um desses temas
diz respeito à instabilidade interna entre os partidos políticos de situação
e oposição dentro do próprio Senado, como exemplificam as seguintes
manchetes: “Jorge Viana diz que ministério montado por Temer é ‘o
que há de pior’”24, “Telmário Mota anuncia ‘oposição crítica’ ao governo
Temer”25, e “José Medeiros elogia equipe econômica de Temer e volta
a descartar tese de golpe”26. Nelas, há um claro teor antagônico entre
AGÊNCIA SENADO. Jorge Viana diz que o ministério montado por Temer é “o que há
de pior”. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/16/jorgeviana-diz-que-o-ministerio-montado-por-temer-e-o-que-ha-de-pior. Acesso em: 26 jun. 2016.
25
AGÊNCIA SENADO. Telmário Mota anuncia ‘oposição crítica’ ao governo Temer.
Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/16/telmario-motaanuncia-oposicao-critica-ao-governo-temer. Acesso em: 26 jun. 2016.
26
AGÊNCIA SENADO. José Medeiros elogia equipe econômica de Temer e volta a descartar
tese de golpe. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/27/
jose-medeiros-elogia-equipe-economica-de-temer-e-volta-a-descartar-tese-de-golpe.Acesso
24
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a opinião dos senadores, o que ilustra a instabilidade e a incerteza das
alianças firmadas antes do afastamento da presidenta Dilma Rousseff.
Desta forma, o que se mostra perceptível, ao analisar as notícias, é
a produção de uma polaridade instrumentalizada entre aqueles que foram
a favor do impeachment e aqueles que foram contra. Certamente, não
estamos dizendo que essa polarização nunca existiu, mas percebemos
que ela está mais nítida e evidente nos discursos dos senadores. Um bom
exemplo para indicar essa polarização pode ser percebido nos seguintes
trechos proferidos pelos parlamentares José Medeiros (PSD-MT)26 e Jorge
Viana (PT-AC)24:
Neste momento o Brasil precisar ir para frente, nem para a
direita, nem para a esquerda. O governo está trabalhando
para o país ter um novo horizonte, uma nova saída. Torço
pela equipe econômica porque isso é ajudar o Brasil. (José
Medeiros, PSD-MT)
Se estão tirando a presidente Dilma por conta das alianças
que foram feitas, dos erros que foram cometidos, eu não sei.
Certamente, o remédio não é esse. Hoje, vejo empoderado
nesse governo interino o fisiologismo, o que há de pior na
política brasileira. O que há de pior. Este país não aguenta
um governo como esse que o senhor Michel Temer montou.
Não aguenta. (Jorge Viana, PT-AC).
Outro tema que surge tangencia a situação fiscal e previdenciária. A
notícia “Plenário deve analisar PEC que trata da desvinculação de receitas”27,
que trata da desvinculação obrigatória, de até 25% da arrecadação de
tributos da União, dos Estados e dos Municípios, com saúde e educação,
também teve efeitos diferenciados entre os parlamentares. Caso essa
emenda seja aprovada, os rendimentos dos impostos recolhidos pela
União, Estados e Municípios poderão ser administrados livremente pelos
em: 26 jun. 2016.
27
AGÊNCIA SENADO. Plenário deve analisar PEC que trata da desvinculação de receitas.
Disponível
em
:http://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2016/05/plenario-deveanalisar-pec-que-trata-da-desvinculacao-de-receitas. Acesso em 05 de julho de 2016.
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gestores, sem a obrigatoriedade de investimento de até 25% na educação
e saúde. Atualmente, esses rendimentos são repassados automaticamente.
No que concerne à situação fiscal, foi bastante debatido no Senado a
proposta de meta fiscal 2016 com um déficit de R$170,5 bilhões, o que
significa, segundo a matéria28, que o Brasil terá o terceiro ano sem reservas
para o pagamento dos juros da dívida.
O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff voltou
ao debate29 após o vazamento do áudio de Sérgio Machado, ex-presidente
da Transpetro, levando alguns senadores a questionarem a validade
do processo de impeachment, tanto pela constatação da ausência de
“pedaladas fiscais”, como pela revelação de que a Operação Lava Jato seria
contida após afastamento da presidenta Dilma, demonstrando o caráter
seletivo e oportunista desta operação.
De todas as notícias acima descritas e brevemente analisadas, as
de maior número (levando em consideração uma única temática) foram
aquelas veiculadas no dia 31 de maio, que possuem como porta voz o
presidente do Senado, Renan Calheiros. Nessas notícias, com as manchetes
“Renan Calheiros defende liberdade de expressão e independência entre
Poderes”30 e “Renan defende liberdade de expressão”31 o presidente
do Senado reitera, em seu discurso, o compromisso com a liberdade
de expressão e a independência dos três poderes. Segundo esta análise,
AGÊNCIA SENADO. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/
materias/2016/05/27/sancionada-a-nova-meta-fiscal-de-2016-com-deficit-de-r-170-5bilhoes. Acesso em 05 de julho de 2016.
29
AGÊNCIA SENADO. Senado deveria suspender Comissão do Impeachment, avalia Vanessa
Grazziotin. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/30/
senado-deveria-suspender-comissao-do-impeachment-avalia-vanessa-grazziotin. Acesso em 09
de julho de 2016; AGÊNCIA SENADO. Lindbergh Farias crê que gravações implicam PSDB
em “complô para o impeachment”. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/
materias/2016/05/30/lindbergh-farias-cre-que-gravacoes-implicam-psdb-em-complo-parao-impeachment. Acesso em 11 de julho de 2016.
30
AGÊNCIA SENADO. Disponível em : http://www12.senado.leg.br/noticias/
videos/2016/05/renan-calheiros-defende-liberdade-de-expressao-e-independencia-entrepoderes. Acesso em 11 de julho de 2016.
31
AGÊNCIA SENADO. Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/
materias/2016/05/31/renan-defende-liberdade-de-expressao. Acesso em 11 de julho de 2016.
28
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o Presidente se mostra interessado em mostrar que, mesmo havendo
assuntos e setores divergentes dentro da câmara, sua posição é de permitir
a discussão destas posições, uma vez que os parlamentares têm os plenos
direitos de exercer suas opiniões, ressaltando que o que deve prevalecer é
a opinião da maioria do Senado.
Da breve análise realizada por nós, foi possível percebermos que
há, tanto na Agência Senado, como nas outras mídias abordadas nesse
texto, a conformação de uma ideia de segmentos antagônicos no cenário
político atual. Tais segmentos antagônicos, são polarizados, noções duais,
que fazem jogo e analogia como se fizessem parte ou do “bem” ou do
“mal”. Temos conhecimento que a política é tão performática como um
jogo, com lances de interesses e estratégias, porém essas jogadas têm
se mostrado cada vez mais arriscadas e perigosas, uma vez que estão
colocando em questão a própria base da democracia brasileira. E é nessa
arena de lances arriscados que o atual governo de Michel Temer atua, nos
fazendo crer, cada vez mais, na in-constância de seu governo provisório.
MÍDIA OFICIAL: DIÁRIO DE UM GOVERNO INTERINO
Com o intuito de mapear as ações que representam perdas de
direitos conquistados nas últimas três décadas do curto e frágil período
de redemocratização brasileira, buscamos no Diário Oficial da União
(DOU) como estes retrocessos em políticas públicas se efetivam através
de Decretos, MPs e Portarias expedidos no governo interino de Michel
Temer.
Optamos por inserir o DOU entre nossas fontes de busca, por
tratar-se de um veículo de divulgação e validação, junto ao interesse
público, dos atos administrativos e da legislação expedida em âmbito
estatal, cujo acesso é universalizado pela Imprensa Nacional em edição
impressa e eletrônica32.
IMPRENSA NACIONAL. Diário Oficial da União completa 152 anos. Disponível em:
http://portal.imprensanacional.gov.br/noticias/diario-oficial-da-uniao-152-anos-hoje. Acesso
em 17 jun. 2016.
32
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137
Elencaremos, na tabela a seguir, um conjunto de atos do Executivo
Federal, no período estipulado como recorte temporal para a nossa
pesquisa, entre 12 e 31 de maio de 2016, que evidenciam e põem em
prática a agenda e o direcionamento político do governo interino, previstos
no documento “Uma Ponte para o Futuro”, tais como a contenção de
gastos públicos; a flexibilização da economia e o enxugamento do Estado,
através de concessões, privatizações e parcerias público-privado; a revisão
de programas e da previdência social; e o rearranjo da política externa,
voltada a investidores transnacionais e ao alinhamento com os Estados
Unidos e a Europa. Esta agenda dificilmente passaria pelo crivo das urnas
por seu caráter impopular, mas se efetiva nas primeiras ações do governo
interino.
EDIÇÃO DO DOU
12/05/2016 (Edição extra)
17/05/2016
23/05/2016 (Edição extra)
27/05/2016
30/05/2016
ATOS DO EXECUTIVO FEDERAL
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 726, DE 12 DE
MAIO DE 2016.
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 726, DE 12 DE
MAIO DE 2016.
DECRETO DE 16 DE MAIO DE 2016 EXONERAÇÃO DO DIRETOR-PRESIDENTE
DA EBC, RICARDO PEREIRA DE MELO.
PORTARIAS Nº 185 E 186, DE 13 DE MAIO DE
2016 - MINISTÉRIO DAS CIDADES
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 728, DE 23 DE
MAIO DE 2016.
LEI FEDERAL Nº 13.291, DE 25 DE MAIO DE
2016.
DECRETO Nº 8.780, DE 27 DE MAIO DE 2016
Fonte: Diário Oficial da União, Brasília, DF, maio. 2016.
Em sua primeira medida provisória, a MP nº 726, de 12 de maio
de 2016, oficializada em edição extra do DOU, Temer levou a cabo a sua
reforma ministerial. A partir da fusão e da extinção de pastas, o número
de Ministérios passou de trinta e dois para vinte e cinco33. Com esta MP,
o Ministério da Cultura foi fundido à pasta da Educação, comandada por
A Medida Provisória sugere também a criação de uma PEC que reveja o status constitucional
de Ministério atribuído à Advocacia-Geral da União (AGU) e ao Banco Central (BC).
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Mendonça Filho (DEM/PE). Pela primeira vez desde o fim da ditadura
civil-militar, o país ficaria sem uma pasta exclusiva para a Cultura. Após
uma série de protestos, mobilizações e ocupações de prédios públicos por
parte da classe artística e movimentos sociais, em várias regiões do país,
bem como de uma cobertura crítica por parte da imprensa nacional e
internacional, o presidente interino retrocedeu de sua decisão, revogando
a extinção do MinC a partir da medida provisória nº 728, de 23 de maio
de 2016.
Em nome de uma economia de gastos, apontada por diversos
analistas como meramente simbólica, uma pasta central à garantia
de visibilidade de minorias e à promoção de direitos, o Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos
foram extintos, sendo subordinados à estrutura do Ministério da Justiça
e Cidadania, pasta chefiada pelo controverso ex-Secretário de Segurança
Pública de São Paulo, Alexandre Moraes (PSDB/SP).
Ainda com este temerário rearranjo ministerial, a Previdência Social
foi desvinculada do Ministério do Trabalho, tornando-se uma secretaria
incorporada à Fazenda. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) fundiu-se às Comunicações, decisão alarmante para a comunidade
científica, uma vez que esta alteração diz respeito diretamente aos rumos
da ciência e do desenvolvimento tecnológico no país. No que tangencia as
políticas voltadas às populações camponesas e tradicionais, em 12 de maio
houve a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
fundido no Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Dias depois,
a partir do Decreto nº 8.780, de 27 de maio de 2016, os órgãos diretamente
responsáveis por políticas de reforma agrária (a Secretaria Especial
de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, a Secretaria
de Reordenamento Agrário, a Secretaria da Agricultura Familiar, a
Secretaria de Desenvolvimento Territorial, a Secretaria Extraordinária
de Regularização Fundiária na Amazônia Legal e o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária - INCRA) passaram a ser submetidos à
estrutura ministerial da Casa Civil da Presidência da República.
Por meio da MP nº 726/2016, Temer autorizou a criação do Ministério
de Estado da Transparência, Fiscalização e Controle, incorporando
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a estrutura da Controladoria Geral da União (CGU). Manifestações
contrárias a esta mudança apontam para o retrocesso representado pela
perda de autonomia e independência do órgão, responsável por fiscalizar
e combater a corrupção dos agentes públicos, ao vinculá-lo à estrutura
ministerial da Presidência da República.
Ainda em seu primeiro dia na presidência interina, Temer também
editou a MP nº 727, de 12 de maio de 2016, cujo texto versa sobre a
criação do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), firmando, em
linhas gerais, o compromisso do Estado em promover parcerias com a
iniciativa privada para a execução de serviços públicos de infraestrutura e
demais medidas voltadas à desestatização.
Na edição de 17 de maio, o DOU publicou as Portarias nº 185
e 186 de 13 de maio de 2016, relativas ao Ministério das Cidades. De
acordo com estas medidas, o ministro interino Bruno Araújo (PSDB/
PE) revoga as duas portarias editadas pela presidente afastada Dilma
Rousseff que ampliavam recursos para o Programa Minha Casa Minha,
suspendendo a construção de 11.250 unidades habitacionais voltadas a
famílias com renda igual ou inferior a R$ 1.800, além de alterar as regras
para a participação na modalidade Minha Casa Minha Vida - Entidades.
Estas medidas geraram reação dos movimentos sociais e frente de lutas
por moradia. Entre as manifestações, destaca-se o ato e montagem de
acampamento pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a
Frente Popular Brasil Sem Medo na frente da casa do presidente interino,
no dia 22 de maio, em São Paulo.
Em decreto de 16 de maio de 2016, publicado na edição do DOU do
dia seguinte, Temer exonera o recém-nomeado jornalista Ricardo Pereira
de Melo do cargo de presidente da Empresa Brasil de Comunicação
(EBC), descumprindo a legislação que prevê o mandato de 4 anos para o
cargo. Ao nomear para a função Laerte Rimoli, jornalista ligado a Eduardo
Cunha e Aécio Neves, Temer corrobora com o desmonte da TV pública,
bem como para a censura de opiniões e posicionamentos de oposição ao
seu governo. Dias depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias
Tofolli, concedeu decisão liminar suspendendo a exoneração.
Na edição de 27 de maio é publicada a Lei Federal nº 13.291, de 25
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de maio de 2016, que versa sobre as diretrizes elaboradas pela a equipe
econômica do governo interino para a elaboração e execução da Lei
Orçamentária de 2016, impondo tetos de despesas federais, o que sinaliza
arrochos em áreas cruciais como a saúde, educação e previdência social.
NOTAS FINAIS
Em seu primeiro discurso34 como Presidente da República, durante
a cerimônia de posse dos novos ministros de Estado, Michel Temer referiuse ao novo governo como “de salvação nacional”, incitando a população
a “não falar em crise”, mas falar em ‘trabalho’. Remetendo à “imagem de
um País pacífico”, Michel Temer usou termos como harmonia, pacificação,
diálogo, colaboração, consenso, moderação e soluções negociadas.
No dia seguinte à posse dos ministros (no segundo dia do governo
provisório), um dos principais veículos de comunicação do país, a Folha
de São Paulo, publicou uma entrevista35 curta com o ministro Geddel
Vieira Lima, titular da Secretaria de Governo, órgão responsável pelo
auxílio na coordenação política e social com parlamentares e entidades da
sociedade civil organizada. As declarações de Lima seguem a mesma linha
do discurso de Temer: remetem à importância do diálogo, especificamente
com movimentos sociais que estariam nas ruas protestando contra o
governo interino. Sobre estes movimentos, Lima afirma: “[o] Brasil não
pode continuar dividido, conflagrado, na situação como está”.
Num primeiro momento, a ideia de um governo que dialogue
com a sociedade e busque a pacificação não parece tão ruim. O que
nos perguntamos, com base nas tantas notícias consultadas no nosso
levantamento, é o que haveria, afinal, por trás do discurso de harmonia e
consenso proferido por representantes políticos que tomaram o Executivo
O discurso na íntegra pode ser consultado na seguinte página eletrônica: http://www2.
planalto.gov.br/presidente-em-exercicio/discursos/discursos-do-presidente-em-exercicio/
discurso-do-presidente-da-republica-michel-temer-durante-cerimonia-de-posse-dos-novosministros-de-estado-palacio-do-planalto.
35
VERPA, Danilo. “Não somos bichos-papões”, diz Geddel. Disponível em: http://www1.
folha.uol.com.br/poder/2016/05/1770907-nao-somos-bichos-papoes-diz-geddel.shtml.
Acesso em 8 jul. 2016.
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à força, por meio de um golpe parlamentar-judicial36.
Nossa reflexão remete à utilização do modelo legal de harmonia
como uma técnica de pacificação. Segundo a antropóloga norte-americana
Laura Nader37, as oscilações entre o modelo de harmonia e o modelo de
conflito foram descritas por vários autores como instrumento para acalmar
ou incitar conflitos de classe e descontentamentos sociais. Estudando o
contexto da institucionalização de soluções alternativas de conflitos pelo
Judiciário norte-americano, Nader observou um esforço estatal para pôr
fim aos movimentos da década de 60 que lutavam por direitos civis e para
O termo “golpe parlamentar-judicial” parte da ideia de golpe de estado de Álvaro Bianchi:
“O golpe de estado não é um golpe no Estado ou contra o Estado. Seu protagonista se
encontra no interior do próprio Estado (...) O fim é a mudança institucional, uma alteração
radical na distribuição de poder entre as instituições políticas, podendo ou não haver a troca
dos governantes. Sinteticamente, golpe de estado é uma mudança institucional promovida sob
a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos
excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político”. Adotamos esta
linha de raciocínio, após refletirmos sobre alguns fatos contidos nas notícias coletadas em
nosso levantamento. Afinal, como acreditar na idoneidade de instituições que afastam uma
presidenta eleita pelo povo com o argumento de que ela teria cometido um crime (a famigerada
“pedalada fiscal”), quando o próprio Estado não reconhece tal conduta como crime*? Como
acreditar na disposição de parlamentares e juristas em colaborar com a sociedade civil pelo
“bem comum” de superação de uma “crise”, enquanto senadores e ministros do Superior
Tribunal Federal protagonizam uma conspiração contra colegas que os investigam, tal como
evidenciam os áudios vazados após o afastamento da presidente Dilma**? Como acreditar que
o impeachment fez parte de um jogo político usual, quando os maiores responsáveis por ele são
os mais interessados no afastamento de Dilma e na culpabilização de poucos pelos escândalos
de corrupção***? (*AMORA, Dimmi. Pedalada não é crime, decide procurador do Ministério
Público. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/07/1791699-pedaladanao-e-crime-decide-procurador-do-ministerio-publico.shtml; **VALENTE, Rubens. Em
diálogos gravados, Jucá fala em pacto para deter avanço da Lava Jato. Disponível em: http://
www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774018-em-dialogos-gravados-juca-fala-em-pactopara-deter-avanco-da-lava-jato.shtml; ***PITOMBO, João Pedro. Ministros do governo Temer
são alvo de investigações além da Lava Jato. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/
poder/2016/05/1772725-ministros-do-governo-temer-sao-alvo-de-investigacoes-alem-dalava-jato.shtml - acessadas em 17 jun.16.) BIANCHI, Álvaro. O que é um golpe de estado?
Disponível em: http://blogjunho.com.br/o-que-e-um-golpe-de-estado/. Acesso em 8 jul.
2016.
37
NADER, Laura. Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. Disponível
em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rcbs26_02.htm. Acesso em 8
jul. 2016.
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esfriar os protestos contra a guerra do Vietnã. As resoluções alternativas
de disputas (tais como a conciliação e a mediação) foram associadas à
paz, cooperação, consenso, enquanto a luta por direitos mediante disputa
judicial era associada ao confronto, insensibilidade, destruição da confiança.
Era uma mudança menos preocupada com a justiça e as causas básicas dos
conflitos e muito voltada para a harmonia e o consenso.
Assim, observadores dos Estados Unidos perceberam
que, em comparação com a intensa atividade política dos anos
60, os americanos estavam contidos e apáticos nas três décadas
subsequentes à implementação massiva das resoluções alternativas
de conflitos. A antropóloga destaca que o processo pelo
qual ideologias, que são força de mudança, seriam moldadas através do
discurso, estende-se além das leis, para incluir diversos elos sociais. Seria
algo semelhante a uma “colonização mental”, na qual a harmonia seria
coerciva, forçada, e concorreria para silenciar os povos que falam e agem
de forma irada. A conclusão de Nader é de que é altamente provável que a
“ideologia da harmonia” faça parte do sistema de controle hegemônico que
teria se espalhado no mundo com a colonização europeia e a evangelização
cristã. Desta maneira, ao mesmo tempo que o discurso de Temer na posse
dos ministros trazia o contexto da harmonia, também trazia a necessidade
de “conjugação de esforços” em prol do futuro. Estaríamos presenciando
um processo de hegemonização, de harmonização coerciva, que buscaria
calar as reivindicações de direitos, já declaradamente ameaçados pelas
medidas iniciais do governo interino?
O contexto estudado por Nader é bastante diferente do contexto
político, econômico e social no qual o Brasil está inserido. Contudo, a
semelhança do discurso da harmonia nos faz pensar se não haveria uma
intenção de silenciamento das ruas que se movimentam em prol e contra
a perda de direitos conquistados desde a Constituição de 1988. Afinal,
um diagnóstico da crise econômica brasileira, conforme já havia sido
apresentada pela maior base aliada do governo em 2015 no documento
“Uma Ponte para o Futuro”, é de que a Constituição de 1988 não cabe no
orçamento federal.38
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“A BELA E A FERA” – AS MULHERES
E A POLÍTICA NO DISCURSO MIDIÁTICO
Giulia Mendes Gambassi1
Thaís Tiemi da Silva Yamasaki2
RESUMO: Neste trabalho iremos analisar duas reportagens feitas no ano de 2016,
acerca de Dilma Rousseff e Marcela Temer, para observar quais performances do gênero
feminino aparecem na mídia em um contexto (que interpretamos como) de golpe políticomidiático e quais são as produções de sentido que emergem desses textos em relação às
mulheres neles citadas. Ressaltamos que este artigo foi produzido em contexto de greve
de estudantes, funcionários e docentes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
que durou de maio a julho de 2016, sendo resultado de discussões feitas no GT: Gênero e
Sexualidade, formado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) no primeiro
semestre do mesmo ano, coordenado pela Profa. Dra. Isadora Lins França e pela Dra.
Carolina Branco Castro Ferreira.
PALAVRAS-CHAVE: estudos de gênero; discurso midiático; análise do discurso; Dilma
Rousseff; Marcela Temer.
INTRODUÇÃO
Considerando que gênero, de acordo com Judith Butler, é um gesto
performativo que produz significados e que, de acordo com Joan Scott,
é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças
Mestranda em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos de Linguagem na Unicamp.
E-mail: giugambassi@gmail.com
2
Mestranda em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos de Linguagem na Unicamp.
E-mail: thais.tiemi.yamasaki@gmail.com
1
150
Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
percebidas entre os sexos, sendo uma forma primária de dar significado
às relações de poder, pretendemos analisar duas reportagens publicadas
no primeiro semestre de 2016, que têm como enfoque Dilma Rousseff,
Presidenta da República, e Marcela Temer, Primeira-dama em exercício
quando da escrita deste artigo. Ambas foram produzidas a partir de
um contexto de golpe3 político-midiático, ocorrido em abril de 2016 e,
partindo de uma perspectiva da Análise do Discurso, neste trabalho
buscaremos observar quais performances do gênero feminino se
dão nesses textos e que possíveis significados são produzidos neles,
considerando como o feminino é percebido pelos autores dos textos e
como essa percepção dá significado às relações de poder.
Lançamos mão da representação de bela e de fera, tal
qual do conto francês “A Bela e a Fera” originalmente escrito
por Gabrielle-Suzanne Barbot em 1740, para classificar nossos
resultados de análise, levando em conta que esse conto apresenta versões
diversas por se adaptar a diferentes momentos sociais, como o que, aqui,
estamos inseridos. Longe de buscar um paralelo entre príncipe e princesa
e deixando de lado o romantismo, focamo-nos nos estereótipos (ou nas
performances) lançados entre os personagens: enquanto vemos que
Marcela Temer é, literalmente, retratada como bela, mas também como
recatada e do lar, Dilma Rousseff é mostrada como monstro, fera, louca.
O antagonismo apresentado tanto no conto quanto nas reportagens
que analisamos não é ingênuo ou ocaso do destino, mas desenhado
para compor uma história, um ato, uma performance que, no caso deste
trabalho, se refere ao gênero feminino.
Ainda julgamos importante colocar que entendemos o conceito de
acontecimento, assim como consideramos o contexto de um golpe políticomidiático: como um evento que produz discursos. Isso é, adotamos a
concepção de acontecimento discursivo como “constituído pelo conjunto
de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos),
Interpretamos como “golpe” o processo que levou à admissibilidade do impeachment da
Presidenta da República, Dilma Rousseff, em seu segundo mandato (2015-2018), no qual
não foi provado nenhum crime de responsabilidade que, conforme previsto na Constituição
Brasileira, justificaria o impedimento de um mandato presidencial.
3
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em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um
(...), uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral”
(FOUCAULT, 1995, p. 30). Atualmente, observamos a explosão de vários
acontecimentos que mostram o quanto as mulheres (além das pessoas
indígenas, negras, LGBT, entre outros grupos) estão sendo não apenas
colocadas em segundo plano, como também ameaçadas no que concerne
aos seus direitos. Entre as várias medidas que Michel Temer aplicou,
o Presidente em exercício iniciou seu “mandato” anunciando apenas
ministros homens em seu “governo”. Ademais, por meio da mídia, assim
como nos conteúdos produzidos por ela, observamos um discurso que
maneja determinadas convenções sobre feminilidades e masculinidades
em um contexto de relações de poder, sendo que nele podemos verificar
assimetrias em relação aos lugares destinados às mulheres e aos homens.
Dilma foi o grande alvo desse tipo de discurso, não só nos recortes que
aqui trazemos, mas durante todo o seu governo, assim como Marcela, que
tampouco escapou desse cenário.
A partir do panorama apresentado e considerando que a mídia tem
grande papel, tanto no golpe – cenário deste trabalho – quanto em relação
à produção de identidades, é de extrema importância que analisemos e
problematizemos o que é dito e não dito nos meios de comunicação, pois
as palavras nunca são neutras, tudo que é dito e silenciado é de extrema
importância, mas raramente nos damos conta disso.
O objetivo deste trabalho, então, é analisar possíveis efeitos de
sentido que duas reportagens evocam naqueles que as leem, no que diz
respeito às representações de mulher que são construídas nos e pelos
dizeres do discurso midiático. Os textos foram selecionados considerando
o contexto no qual se inserem e a forma como variam em sentido, de
acordo com as ideologias que os constituem. Ou seja, visamos analisar
determinados aspectos presentes no corpus, buscando encontrar marcas
de como o gênero4 feminino é performado, bem como das relações
de poder e de opinião que o cingem, através do léxico utilizado nas
Entendemos que as performances de gênero, neste trabalho, estão ligadas a posições-sujeito,
sendo o sujeito visto enquanto inserido em um contexto histórico-social e o rastreamento de
suas marcas no corpus essencial para compreender as produções de sentidos.
4
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Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
matérias. Buscaremos compreender a produção de sentidos por meio da
materialidade da linguagem, no caso, das revistas online e a analisaremos
não apenas sob o viés linguístico, mas entendendo que o discurso também
é engendrado e constituído nas e pelas práticas sociais, relações de poder
que são como jogos, pois envolvem estratégias e um ou mais objetivos a
serem conquistados (FOUCAULT, 2003, p. 9).
A BELA – MULHER ENQUANTO BELA, RECATADA E DO LAR
Para iniciar a análise, partiremos da polêmica reportagem, escrita
por Juliana Linhares para a site da revista Veja, publicada em abril de
2016, que causou revolta, principalmente devido ao título: “Bela, recatada
e ‘do lar’”5,6. Nesse texto, Marcela Temer, casada com o Presidente em
exercício, Michel Temer, é retratada como uma mulher que preza muito
pela discrição, pela família e pelo cultivo de sua beleza. Em adição, apesar
da reportagem ser sobre ela, são colhidos depoimentos de familiares e
profissionais de estética, apagando sua voz e colocando-a num lugar de
subserviência e não protagonismo quando de seus desejos e hábitos.
Houve grande mobilização nas redes sociais em geral (Facebook,
Instagram, Tumblr e Twitter), tanto refutando quanto endossando o artigo,
e a maior parte das respostas que se manifestava contrária ao estereótipo
atrelado à Marcela se deu por meio de fotos de mulheres7 que mostravam
não se limitarem a uma imagem de “bela, recatada e ‘do lar’”, revelando,
pelo contrário, que poderiam ser do jeito que quiserem. Mesmo não tendo
sido entrevistada, mas alvo de um relato, Marcela Temer foi exposta de
forma negativa e recebeu muitas críticas pelo que a reportagem mostra ser
seu comportamento, tornando-se alvo de piadas e de rechaço também nas
redes sociais.
Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/bela-recatada-e-do-lar. Acesso jun
2016.
6
Por se tratar de uma publicação online, não há indicação de número de página a ser
referenciado em cada recorte.
7
Exemplos disponíveis em: http://belarecatadaedolar.tumblr.com/. Acesso ago 2016.
5
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Como objeto de análise, consideramos que a publicação no site da
revista Veja não deveria ser criticada por trazer como foco as atividades
domésticas de Marcela, assim como seus gostos e prioridades, pois há
muitas mulheres que optam por trabalhar em suas casas e, nem por isso,
são menos relevantes socialmente, mas pela forma panfletária em que
esses aspectos foram trazidos à tona. É interessante observar que essa
reportagem foi escrita por uma mulher que, além de não se encaixar
no padrão “do lar”, por exercer uma atividade profissional que não é
doméstica, em detrimento do que foi colocado como exemplo a ser seguido,
reforça os parâmetros que endossam certas convenções estereotipadas e
normatizadoras do feminino e do que é ser mulher. Frisamos, entretanto,
que não consideramos que necessariamente os argumentos apresentados
correspondem ao que Linhares toma como norte para si, mas revela
uma posição-sujeito que foi produzida considerando o acontecimento
em que estava inserida: era benéfico construir uma imagem positiva do,
então, Vice-Presidente da República, Michel Temer, com quem Marcela é
casada, já que no dia seguinte da publicação da reportagem, o processo de
Impeachment seria aprovado na Câmara dos Deputados8, aproximando-o
de assumir o cargo presidencial como Presidente interino.
Como comentamos anteriormente e veremos no recorte a seguir,
a repórter não “dá voz” em nenhum momento à Marcela, mesmo a
reportagem sendo sobre ela, buscando, em dizeres de outros, quaisquer
representações de sua personalidade e de seus desejos pessoais. Além disso,
a autora a coloca em um lugar de subserviência, que faria qualquer um
descrer da existência de uma possível sororidade9. Mesmo sendo colocada
como exemplo a ser seguido, Marcela Temer foi deslegitimada como
profissional e retratada como uma pessoa passiva, que segue os interesses
de seu marido e de sua família, de forma “recatada”. A seguir, trazemos
cinco recortes da reportagem publicada no site da revista Veja para analisar
como o dizer sobre uma mulher como a Marcela Temer é construído.
Disponível
em:
http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/a-linha-do-tempo-doimpeachment-de-dilma-ate-agor a. Acesso ago 2016.
9
Relação de união, de afeição ou de amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente
haveria entre irmãs. Disponível em: http://www.priberam.pt/DLPO/sororidade. Acesso em
ago 2016.
8
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Recorte 1
A quase primeira-dama, 43 anos mais jovem que o
marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos
joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice10.
Nesse recorte, podemos observar que Marcela é, antes de qualquer
atributo, caracterizada pelo fato de ser muito mais jovem que seu marido,
ou seja, o primeiro juízo de valor feito sobre ela parte de uma figura
masculina. Ela ser casada com alguém do sexo masculino é o fato que a
introduz. Em seguida, a reportagem mostra, como sendo muito relevante,
que a moça prefere vestidos na altura dos joelhos e não curtos, o que
poderia ser entendido como recato por parte de Marcela. Tal imagem beira
o vitorianismo11, por representar uma mulher que preza “a moral e os bons
costumes”, acompanhada do “clássico” sonho materno que toda mulher
tem ou deveria ter, seguindo a lógica apresentada na reportagem. Para
refletir sobre essa imagem atribuída à Marcela Temer, retomamos o que
Maria Rita Kehl, psicanalista, afirma em seu aclamado livro Deslocamentos
do Feminino (1998, p. 58):
[...] a feminilidade aparece aqui como o conjunto de atributos
próprios a todas as mulheres, em função das particularidades
de seus corpos e de sua capacidade procriadora; partindo
daí, atribui-se às mulheres um pendor definido para ocupar
um único lugar social – a família e o espaço doméstico –
a partir do qual se traça um único destino para todas: a
maternidade.
O que aparece, então, é Marcela sendo caracterizada por seu lugar
como esposa de Michel Temer, tendo-o como referente para qualquer
menção a ela, ou seja, por sua juventude em relação a ele, pelo tipo de
Grifo nosso.
A era vitoriana (meados do século XIX) foi uma época em que o ocultamento da nudez
feminina compunha o padrão estético, e a divisão social de gênero era sobremaneira
determinada (ROCHA, 2014, p. 219).
10
11
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roupa que veste, respeitando o marido, assim como pelo sonho de ser
mãe, tendo ele como pai de sua prole. Outras informações poderiam ter
sido ditas sobre ela, assim como seus desejos para além das obrigações
sociais, mas os atributos apresentados foram escolhidos e não por acaso.
É interessante, também, observar o uso da palavra “quase” antes de
primeira-dama, visto que a reportagem foi veiculada antes do controverso
processo de impeachment ser aprovado pela Câmara dos Deputados,
levando, a posteriori, ao afastamento da Presidenta Dilma Rousseff. O
recorte temporal de publicação no site da revista Veja já é, por si só,
um acontecimento, nos termos de Foucault, por preceder, em um dia,
o desdobramento do golpe. Se nos arriscarmos a fazer uma crítica mais
incisiva, é como se essa reportagem fosse mais um passo dado no golpe
político-midiático que tomou forma em maio de 2016.
Recorte 2
Michelzinho, de 7 anos, cabelo tigelinha e uma bela janela
no lugar que abrigará seus incisivos centrais, é o único filho
do casal (Temer tem outros quatro de relacionamentos
anteriores). No fim do ano passado, Marcela pensou que
esperava o segundo filho, mas foi um alarme falso. “No
final, eles acharam que não teria sido mesmo um bom
momento para ela engravidar, dada a confusão no
país”, conta tia Nina, irmã da mãe de Marcela. Ela se refez
do sobressalto, mas não se resignou – ainda quer ter uma
menininha.12
Reforçando o papel de Marcela, além de esposa de Michel, como mãe,
o dizer da “tia Nina”, assim como a reportagem com um todo, não coloca
a Primeira-dama em exercício como sujeito da frase ou como detentora
de poder decidir o que ocorre em seu próprio corpo. Tomando como
pressuposto que expressões de gênero são socialmente construídas na e
pela linguagem, notamos que se tentam produzir determinadas vivências
e identidades femininas diretamente relacionadas à estética e a um padrão
12
Grifo nosso.
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de beleza nesse recorte. No caso que aqui trazemos, a imagem feminina
deve refletir um corpo controlado, sexualizado, fértil e jovem, reforçando,
ainda um padrão cisgênero13 de “feminilidade”, em que a mulher deve
ter uma genitália biologicamente feminina e reprodutora, cabelos longos,
maquiagem aplicada em seu rosto, usando salto e vestidos para se encaixar
em padrões tidos pela sociedade como femininos. Além de cercear o
comportamento de mulheres cis que podem não se identificar com esse
padrão, a reportagem acaba por invisibilizar a existência de mulheres trans
e travestis, preservando a normatividade em seus dizeres. Entretanto, é
premente dizer que
(...) não há uma única feminilidade ou masculinidade
com que as mulheres e os homens individuais possam se
identificar em seus contextos sociais, mas sim uma variedade
de feminilidades e masculinidades possíveis fornecidas pelos
discursos concorrentes e contraditórios que existem, e que
produzem e são reproduzidos por práticas e instituições
sociais. No entanto, a sexualidade está intimamente ligada
ao poder, de tal modo que o próprio poder e a própria
força são sexualizados, isto é, estão inscritos na diferença
de gênero e na hierarquia de gênero (MOORE, 2000, p. 35).
Quando se referem à Marcela como alguém que é bela e usa vestidos
em determinado comprimento, não só se evidencia uma tentativa de
controlar o feminino, mas como uma mulher só vai ser considerada como
tal se se comportar e apresentar de determinada maneira, deslegitimando
as diversas expressões do feminino. Todavia, retomamos Moore e
enfatizamos que não existe um único modelo ou padrão de feminilidade,
mas uma variedade fornecida por discursos concorrentes e contraditórios.
Além disso, é tangível o modo como o poder está inscrito na diferença
de gênero, quando Marcela é colocada como mulher de Michel, tendo ele
como ponto de referência (ex.: “43 anos mais jovem” – R1), endossando,
ainda a hierarquia de gênero também trazida à tona por Moore.
Em estudos de gênero, cisgênero é um termo usado para se referir a pessoas cuja identificação
de gênero é a mesma que a designa biologicamente em seu nascimento.
13
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A questão da reprodução nesse recorte mostra, ainda, como é
relevante, nessa reportagem, a visão da mulher como geradora e cuidadora
de sua prole. Ademais, na reportagem a decisão da gravidez aparece como
dependente de outros fatores que não somente a vontade de Marcela,
como podemos ver em: “eles acharam que não teria sido mesmo um bom
momento para ela engravidar, dada a confusão no país”. Ao atrelar a “nãogravidez” de Marcela com a “confusão no país”, produz-se um efeito de
sentido de que a crise é muito mais grave do que se imagina e, mais uma
vez, colocando as vontades e os desejos de Marcela como inexistentes ou
em segundo plano.
Recorte 3
Bacharel em direito sem nunca ter exercido a
profissão, Marcela comporta em seu curriculum vitae
um curto período de trabalho como recepcionista
e dois concursos de miss no interior de São Paulo
(representando Campinas e Paulínia, esta sua cidade natal).
Em ambos, ficou em segundo lugar. Marcela é uma viceprimeira-dama do lar. Seus dias consistem em levar e
trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São
Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas
três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da
pele).14
Esse recorte, à primeira vista, poderia destoar da expectativa social
de mulher, mãe, dona de casa apresentada até então, ao ser colocada em
pauta a vida profissional, fora do lar, de Marcela. Entretanto, a primeira
informação apontada na reportagem é a de que ela estudou Direito “sem
nunca ter exercido a profissão”. O uso da preposição “sem”, aliada ao
advérbio “nunca”, provoca o efeito de sentido de que seu diploma não
seria válido ou que a profissão não deveria ser exaltada, já que Marcela não
chegou a exercê-la.
14
Grifos nossos.
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Em seguida, salienta-se que o período de trabalho, fora do lar,
de Marcela foi “curto”, o que não chegaria a atrapalhar a imagem de
“primeira-dama do lar”, pois ela não abandonou seu posto doméstico por
muito tempo. Aqui, observamos novamente a construção da associação
entre mulher e domesticidade, reforçando um conservadorismo e um
recato dignos, novamente, da era vitoriana.
Mais adiante, o enunciado indica que Marcela vive “apenas” para
cuidar do filho e da casa, ainda que cuide “um pouco” dela mesma,
reforçando uma preocupação padronizada do feminino com a estética e
suas normas, pois os parênteses utilizados no excerto, “(nas últimas três
semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele)”, reforçam a
natureza desse cuidado.
Recorte 4
Por algum tempo, frequentou o salão de beleza do
cabeleireiro Marco Antonio de Biaggi, famoso pela clientela
estrelada. Pedia luzes bem fininhas e era “educadíssima”,
lembra o cabeleireiro. “Assim como faz a Athina Onassis
quando vem ao meu salão, ela deixava os seguranças do
lado de fora”, informa Biaggi. Na opinião do cabeleireiro,
Marcela “tem tudo para se tornar a nossa Grace Kelly”.
Para isso, falta só “deixar o cabelo preso”. Em todos
esses anos de atuação política do marido, ela apareceu em
público pouquíssimas vezes. “Marcela sempre chamou
atenção pela beleza, mas sempre foi recatada”, diz
sua irmã mais nova, Fernanda Tedeschi. “Ela gosta de
vestidos até os joelhos e cores claras”, conta a estilista
Martha Medeiros. Marcela é o braço digital do vice. Está
constantemente de olho nas redes sociais e mantém o
marido informado sobre a temperatura ambiente15.
Dando sequência à construção da imagem de Marcela como “bela”
e preocupada com estética, foram inseridas falas de seu cabeleireiro e de
uma estilista, havendo uma ânsia por controlar a imagem da Primeira15
Grifos nossos.
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dama em exercício e por torná-la um ícone. Porém, apesar de ser bela e de
ter tudo para ser uma grande “imagem”, é reforçado que Marcela prefere
não chamar muita atenção, apesar de em nenhum momento isso ter sido
perguntado diretamente a ela.
Duas figuras são mencionadas e usadas como comparativo à Marcela:
Athina Onassis e Grace Kelly. Athina Onassis é uma hipista francesa, radicada
em São Paulo, neta e descendente de Aristóteles Onassis, lendário armador
grego e um dos maiores magnatas da história, sendo a única herdeira de uma
fortuna de milhões de dólares. É interessante notar que essa
referência poderia trazer um efeito de sentido de classe e elegância
para Marcela, se os leitores do texto souberem quem é Athina,
reforçando mais uma vez um estereótipo conservador. A menção à
Grace Kelly, por sua vez, também não foi feita despretensiosamente, pois
a atriz americana encerrou sua carreira ao se casar com o príncipe de
Mônaco e, apesar de ainda ser lembrada por suas atuações, é considerada,
principalmente, um ícone de moda e beleza e referida como princesa de
Mônaco – titulação que a atrela a seu marido –, mais uma vez trazendo a
questão da imagem como algo principal para uma mulher ser “notável”.
No parágrafo seguinte, Marcela é colocada enquanto braço
digital de Michel Temer. Da forma que o fato é apresentado na
reportagem, parece que a mulher é parte do homem e não uma
pessoa, como se fosse uma prótese ou uma continuação de Temer.
Além disso, ela não apenas cuida da casa e da família, mas
também administra e se mantém informada sobre o que
acontece nas redes sociais, sendo o centro de sua vida e de suas
atenções, o marido. A objetificação de Marcela, no entanto, não
é feita só como prótese ou “braço digital”, na reportagem publicada no
site da revista Veja, a Primeira-dama em exercício tem o papel de manter o
marido informado sobre a temperatura do ambiente online, sendo não só
um braço, mas também um termômetro.
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Recorte 5
Sacudida, loiríssima e de olhos azuis, Norma Tedeschi
acompanhou a filha adolescente em seu primeiro
encontro com Temer. Amigos do vice contam que, ao
fim de um dia extenuante de trabalho, é comum vêlo tomar um vinho, fumar um charuto e “mergulhar
num outro mundo” – o que ocorre, por exemplo, quando
telefona para Marcela ou assiste a vídeos de Michelzinho,
que ela manda pelo celular.
Para falar da mãe de Marcela, são utilizados, novamente, adjetivos
relativos à sua aparência (adequada aos padrões de beleza), sendo
ainda mencionada por conta do primeiro encontro de Marcela, então
adolescente, com Temer. Observamos que a todo momento a Primeiradama em exercício é colocada como subserviente, dependente de alguém,
nunca autônoma, se quer para dizer de si em uma reportagem sobre ela.
Além disso, uma relação intergeracional levantaria suspeitas e reprovação,
caso se tratasse de uma mulher mais velha com um rapaz mais novo, ou
se fosse um relacionamento homoafetivo com essa diferença de idade.
Mesmo considerando que não deveria haver comentários ou reprovações
em casos como esse, não podemos deixar de notar que aqui, além da visão
estereotipada de uma mulher padrão, o gênero é usado politicamente,
sendo “uma forma primária de dar significado às relações de poder”
(SCOTT, 1995, p. 86), ou seja, se o feminino não estivesse em posição
inferior ao masculino, haveria comentários, estranhamentos e chacotas
desse relacionamento.
Por fim, é desenhada uma imagem “bonita” acerca de Temer como
patriarca trabalhador e responsável que, após o labor, toma vinho e fuma
charuto, mas “mergulha num outro mundo” quando entra em contato
com a esposa que, pelo que parece, nada tem a ver com o trabalho (sendo
que foi dito que Marcela se mantém atualizada nas redes sociais e tem sua
vida toda condicionada por conta do trabalho do marido). Além disso, a
reportagem, que pretendia ser sobre a moça, orbita, a cada linha, em um
universo com Temer como ponto central e acaba dando valor ao homem
em questão, mesmo falando de sua esposa.
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Nessa reportagem, então, podemos observar um exemplo do quanto
existem modelos aceitos e recomendados amplamente pela sociedade, que
tentam padronizar as mulheres, privilegiando determinada estética, assim
como beneficiando um comportamento que poderia ser considerado como
submisso, estabelecendo um papel doméstico à Marcela. A reportagem,
em seu conteúdo, parece ditar como as mulheres devem ser circunscritas
ao espaço da domesticidade, tendo a Primeira-dama em exercício como
modelo a ser seguido.
Ressaltamos novamente que, apesar da matéria ser sobre Marcela,
ela não foi entrevistada. Quando se fala de seu passado, de seus desejos e
preocupações atuais ou de seu futuro, não há falas dela, mas apenas a de
familiares (a tia, a irmã e a mãe) e de profissionais da beleza (cabeleireiro e
estilista), tendo espaço até para os “amigos do vice”. É o discurso do outro
que constituí uma representação sobre Marcela e isso poderia funcionar
como um recurso da reportagem, para fugir a uma possível culpabilização
da moça. Mesmo sendo uma mulher branca, dentro dos padrões cisgênero
e de uma classe social alta, sua voz é silenciada brutalmente, afinal,
[o] gênero é construído através do parentesco, mas não
exclusivamente; ele é construído igualmente na economia
e na organização política, que, pelo menos em nossa
sociedade, operam atualmente de maneira amplamente
independente do parentesco (SCOTT, 1995, p. 87).
A performance do feminino, então, nessa reportagem e cerceada
por normas regulatórias, que se apresentam no texto, mas que também
são reforçados tanto pelo parentesco (tia, irmã, mãe) quanto por fatores
econômicos e políticos, como aponta Scott. Na introdução de seu livro
Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo, Judith Butler coloca que
normas regulatórias teriam a finalidade de assegurar o funcionamento da
hegemonia heterossexual, na formação daquilo que pode ser legitimamente
considerado como um corpo viável. Logo, qual corpo seria mais viável,
qual corpo importaria ou pesaria mais do que o da Primeira-dama em
exercício bela, recatada e do lar na sociedade contemporânea?
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A FERA – A MULHER ENQUANTO LOUCA
O site da revista IstoÉ publicou uma reportagem extensa sobre
a Presidenta Dilma Rousseff, escrita por Sérgio Pardellas e Débora
Bergamasco, intitulada “Uma presidente fora de si”16,17, publicada em
abril de 2016. Nela, a Presidenta é taxada como louca e a revista traz com
caráter de denúncia “o descontrole da presidente”. Nota-se, já de início, o
desrespeito para com a vontade de Dilma de ser chamada de Presidenta
nessa reportagem, apesar da palavra ser dicionarizada desde 1872. A
associação entre a mulher e a loucura não vem de hoje, já que desde a época
vitoriana muitas mulheres são classificadas como histéricas18. Entretanto,
essa colocação da mulher como louca não ficou no passado. Ainda nos
dias de hoje observamos inúmeros casos de gaslighting19, sendo que o
descontrole, a desestabilidade emocional e os surtos são sempre associados
ao feminino. Exemplos desse “fenômeno” podem ser observados nos dez
recortes que trazemos a seguir.
Recorte 1
Bastidores do Planalto nos últimos dias mostram que
a iminência do afastamento fez com que Dilma
perdesse o equilíbrio e as condições emocionais
para conduzir o país.20
16
Disponível em http://istoe.com.br/450027_UMA+PRESIDENTE+FORA+DE+SI/.
Acesso em jun 2016.
17
Por se tratar de uma publicação online, não há indicação de número de página a ser
referenciado em cada recorte.
18
A palavra “histeria” vem do grego e significa “útero”.
19
Gastlighting é considerado “uma forma de abuso psicológico no qual informações são
distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com
a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade”, disponível
em: http://lugardemulher.com.br/precisamos-falar-sobre-gaslighting/.
20
Grifo nosso.
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“A Bela e a Fera”- As mulheres e a política...
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Logo no início da reportagem é colocada a “iminência” do
afastamento do posto presidencial, como motivo pelo qual Dilma teria
“perdido o equilíbrio” e as “condições emocionais” para conduzir o país.
Essas primeiras colocações se contradizem no restante da reportagem, pois,
ao longo do texto, é posto que a Presidenta sempre fora “descontrolada”
e “agressiva”, logo, não poderia ter perdido algo que, de acordo com a
publicação, nunca teve. A falta de sustentação de argumentos, como a que
acabamos de apresentar, é recorrente, visto que as premissas elencadas
se baseiam em relatos de fontes não especificadas ou simplesmente em
opiniões.
Começamos por questionar o que seria “perder o equilíbrio”? Seria
ele possível ou igual para todos? Quais seriam as condições emocionais
adequadas para conduzir um país? O texto não apresenta esses parâmetros
nem se preocupa em embasá-los, pois são construídos a partir da ideia
de que Dilma está “fora de si”, o que ganha força pela crença cultural de
que mulheres são loucas e/ou estão de TPM. Tal colocação poderia ter
como propósito afirmar que a Presidenta está mentalmente incapacitada
de exercer a função para a qual foi legitimamente eleita, podendo ser um
subterfúgio para apoiar o impedimento de sua função.
A proposta da reportagem, como veremos adiante, é fazer
uma análise psicológica da presidenta, o que poderia ser considerado
tendencioso, visto que autores do texto não têm conhecimento na área
ou contato suficiente com a pessoa em questão para fazê-la. Ressaltamos,
como fizemos na análise da reportagem veiculada no site da revista Veja, que
não consideramos que necessariamente os argumentos apresentados pelos
autores desse texto correspondem a uma versão fidedigna de suas opiniões,
mas eles revelam uma posição-sujeito que foi produzida considerando o
acontecimento em que estava inserida: era necessário ressaltar a falta de
competência (emocional e/ou profissional) para justificar ou tornar mais
palatável o processo de impedimento da Presidenta.
Ademais, esse processo de apuração sanatório-mental não foi feito
com nenhum Presidente que apresentasse as mesmas e até mais intensas
“explosões”, como o Deputado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara
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Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
dos Deputados e seus ataques de ira21, sendo que ele talvez tenha mostrado
tanto ou mais “desequilíbrio” emocional que Dilma Rousseff em épocas
concomitantes.
Recorte 2
Os últimos dias no Planalto têm sido marcados por
momentos de extrema tensão e absoluta desordem com
uma presidente da República dominada por sucessivas
explosões nervosas, quando, além de destempero,
exibe total desconexão com a realidade do País. Não
bastassem as crises moral, política e econômica, Dilma
Rousseff perdeu também as condições emocionais
para conduzir o governo. Assessores palacianos, mesmo
os já acostumados com a descompostura presidencial,
andam aturdidos com o seu comportamento às vésperas da
votação do impeachment pelo Congresso. Segundo relatos,
a mandatária está irascível, fora de si e mais agressiva
do que nunca. Lembra o Lula dos grampos em seus
impropérios. Na última semana, a presidente mandou
eliminar jornais e revistas do seu gabinete. Agora, contentase com o clipping resumido por um de seus subordinados.
Mesmo assim, dispara palavrões aos borbotões a cada
nova e frequente má notícia recebida. Por isso, os mais
próximos da presidente têm evitado tecer comentários
sobre a evolução do processo de impeachment. Nem
com Lula as conversas têm sido amenas. Num de seus
acessos recentes, Dilma reclamou dos que classificou de
“traidores” e prometeu “vingança”. Numa conversa com
um assessor, na semana passada, a presidente investiu
pesado contra o juiz Sérgio Moro, da Lava Jato. “Quem
esse menino pensa que é? Um dia ele ainda vai pagar pelo
que vem fazendo”, disse. Há duas semanas, ao receber a
informação da chamada “delação definitiva” em negociação
por executivos da Odebrecht, Dilma teria, segundo o
testemunho de um integrante do primeiro escalão do
Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/temer-tenta-evitar-ira-de-cunha-pede-aopresidente-da-camara-que-reduza-ataques-ao-governo-17280142. Acesso ago 2016.
21
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016
“A Bela e a Fera”- As mulheres e a política...
165
governo, avariado um móvel de seu gabinete, depois de
emitir uma série de xingamentos. Para tentar aplacar as
crises, cada vez mais recorrentes, a presidente tem sido
medicada com dois remédios ministrados a ela desde
a eclosão do seu processo de afastamento: rivotril e
olanzapina, este último usado para esquizofrenia,
mas com efeito calmante. A medicação nem sempre
apresenta eficácia, como é possível notar22.
O primeiro trecho a ser analisado diz “os últimos dias no Planalto
têm sido marcados por momentos de extrema tensão e absoluta desordem
com uma presidente da República dominada por sucessivas explosões
nervosas, quando, além de destempero, exibe total desconexão com a
realidade do País”, provocando um efeito de sentido de que essa tensão
e essa desordem teriam causa específica, estando atrelados à Presidenta,
colocando o peso dessas palavras, já de início, vinculado aos supostos
“problemas emocionais” de Dilma. Quando Rousseff é citada como “uma
presidente da República dominada por sucessivas explosões nervosas”
que “além de destempero, exibe total desconexão com a realidade do
País”, podemos ver o estereótipo de mulher histérica que tem “explosões
nervosas” tomando corpo, afastando a Presidenta da seriedade esperada
por alguém que ocupa seu cargo. Entretanto, novamente, os autores caem
em contradição: ora, se Dilma está desequilibrada por conta da “iminência”
do afastamento, como poderia estar desconectada da realidade do país
se esse afastamento está totalmente ligado a ela? A pouca preocupação
em apresentar argumentos bem estruturados e muito interesse em fazer
um grande espetáculo, se fazem presentes novamente na reportagem,
marcando mais uma posição-sujeito nesse grande acontecimento que é o
golpe político-midiático de 2016.
Adiante, a Presidenta é colocada como a única responsável pela
crise moral, política e econômica do Brasil, sem referência às outras
esferas do poder que tornaram possível a instauração da citada e aclamada
crise. Ao citar uma crise “moral”, a reportagem nos convida a revisitar
22
Grifos nossos.
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Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
alguns momentos da empreitada de Dilma como Presidenta, pois,
desde as eleições até o processo de impeachment, um questionamento
comportamental e moral vem sendo feito, logo, nesse ponto, a dupla autoral
dessa extensa incoerência documental, peca pela repetição de argumentos
já cansados de serem esticados e explorados por outros conteudistas. Esse
questionamento comportamental e moral abrange: (i) sua imagem, pelo
fato da Presidenta não se encaixar no padrão social e estético esperado;
(ii) sua sexualidade, pois, por ser separada e não aparentar ter um parceiro,
já se deduz que Dilma é homossexual, logo, ela estaria escondendo isso
de todos, considerando que tal “abominável” comportamento fugiria
mais ainda das normas regulatórias heterocêntricas; (iii) sua família,
considerando seu divórcio e os possíveis e nefastos motivos para tal,
como sua pretensa homossexualidade; (iv) sua competência, afinal, uma
mulher com sua experiência política, tendo sido Secretária da Fazenda,
Diretora-geral da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Presidente da
FEE (Fundação de Economia e Estatística), Secretária de Minas, Energia
e Comunicações do governo Collares e do governo Dutra no Rio Grande
do Sul e Ministra de Minas e Energia, não era digna de confiança para
exercer um cargo executivo; (v) seu papel como mulher, já que ela foge
dos padrões esperados e aceitos na sociedade tanto de comportamento
quanto de carreira e de estética; e (vi) sua idoneidade, mesmo que não haja
nenhuma prova ou citação da Presidenta em casos de corrupção, afinal, se
uma mulher como ela chegou à presidência, deve ter feito isso de maneira
ilegal. Mesmo que essa crise moral, citada na reportagem, se remetesse
somente à corrupção, o argumento apresentado teria sido construído
sobre falsas acusações e informações batidas, desgastadas e repetidas anos
a fio.
A reportagem segue com nova menção a uma pretensa
“descompostura” de Dilma, agora sendo atribuído o adjetivo “presidencial”.
Por mais que busquemos apreender o efeito de sentido possivelmente
pretendido, deparamo-nos com alguns questionamentos: o que seria uma
descompostura presidencial? Uma descompostura relativa à presidência?
Se assim for, então o problema não está atrelado à pessoa de Dilma,
mas ao cargo de presidente ou até ao próprio sistema presidencialista.
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“A Bela e a Fera”- As mulheres e a política...
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A reportagem volta a apresentar sinais de contradição e o inconsciente
dos autores parece emergir na materialidade linguística numa possível e
perigosa crítica ao sistema presidencialista como um todo.
Referindo-se, em seguida, ao Presidente Lula, a publicação feita
no site da revista IstoÉ apela para a comparação de supostas atitudes de
Dilma com Lula durante a famigerada conversa telefônica grampeada23.
A associação, como é de se esperar, não foi feita por acaso, visto que
Lula está sendo alvo de investigações acerca de corrupção e que há uma
tentativa incansável de vincular a figura da Presidenta aos processos de
desvio e roubo de dinheiro público, como mencionamos anteriormente.
Até mesmo a medicação que a presidenta usa é alvo de análise e
crítica, como vemos em “rivotril e olanzapina, este último usado para
esquizofrenia”. Além de ser curioso o fato de saberem quais medicamentos
a presidenta usa e considerarem seu uso relevante para a reportagem,
é notável que a mídia busque se prestar a um papel patologizante, tão
criticado ultimamente. É apresentada, com tom desrespeitoso, uma
crítica à saúde mental de qualquer pessoa que utilize esses medicamentos.
Rivotril, por exemplo, é um dos medicamentos mais utilizados no Brasil,
com tiragem de 23 milhões de caixas em 201524. Se realmente os usuários
desse medicamento estiverem “fora de si”, os autores do texto estariam
impiedosa e corajosamente desafiando “loucos” de grande escalão a
tirarem satisfações no QG da IstoÉ.
Como a matéria é repetitiva, nos atentemos ao léxico e às construções
verbais utilizadas para caracterizar a “presidente fora de si”, no recorte a
seguir:
Recorte 3
(...) fora de si e mais agressiva do que nunca; dispara palavrões
aos borbotões a cada nova e frequente má notícia recebida;
num de seus acessos recentes; reclamou dos que classificou
Em março de 2016, houve o vazamento de uma conversa grampeada entre o Presidente Luís
Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/
noticia/2016/03/grampos-indicam-que-lula-atuava-para-fim-de-vazamentos-na-lava-jato.
html.
24
Disponível
em:
http://www.cartacapital.com.br/saude/rivotril-a-droga-da-pazquimica-3659.html. Acesso jul 2016.
23
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Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
de “traidores” e prometeu ‘vingança’; a presidente investiu
pesado contra o juiz Sérgio Moro, da Lava Jato; depois de
emitir uma série de xingamentos; não demonstra paciência
nem mesmo para esperar o avião presidencial etc.
Observamos que as acusações em geral atestam que a Presidenta
está agressiva, falando palavrões, tendo acessos, xingando e sem paciência
para esperar um avião. Para tornar a crítica ainda mais “consistente”,
incluem que Dilma “investiu pesado” contra o tão aclamado juiz Sérgio
Moro, argumento que vem reforçar um desmonte da figura da Presidenta,
já que Moro é visto como um herói por grande parcela da população.
Vemos, nesse trecho, mais um estereótipo feminino, que coloca que
a mulher jamais pode xingar, não ter paciência e falar palavrões, o que
seria normal para um homem, mas inaceitável nas normas regulatórias
do que é ser mulher. Ademais, a impressão passada é a de que Dilma é
a única presidente que já se encaixou no que se considera “fora de si”,
que fala palavrões, xinga e não tem paciência para esperar aviões. Seria
interessante que esse, ou outro veículo midiático, fizesse uma análise
tão esmiuçada das sessões da Câmara dos Deputados, por exemplo, nas
quais vemos deputados agindo de forma infantil e “histérica”, cantando,
defendendo os militares ou a memória de torturadores, chamando colegas
para “colocar a mão para cima” caso votassem a favor do impedimento,
até mesmo convocando suas famílias25 e Deus, apesar do Estado ser
supostamente laico, no momento de votar contra ou a favor do processo
de impeachment de Dilma. Além disso, na maioria dos votos favoráveis
ao impedimento da Presidenta não se falou da matéria em questão, que
era o crime de responsabilidade. Os votos foram justificados quase com
um “porque eu quis” ou “porque sim”. Caso uma análise desses votos
fosse feita, acreditamos que esse acontecimento daria oportunidade para
posições-sujeito interessantes se mostrarem no discurso midiático.
25
Considerando a tradicional família heteronormativa brasileira.
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Recorte 4
O modelo consagrado pela renomada psiquiatra
Elisabeth Kübler-Ross descreve cinco estágios pelo
qual as pessoas atravessam ao lidar com a perda
ou a proximidade dela. São eles a negação, a raiva, a
negociação, a depressão e a aceitação. Por ora, Dilma oscila
entre os dois primeiros estágios. Além dos surtos de
raiva, a presidente, segundo relatos de seus auxiliares,
apresenta uma espécie de negação da realidade.26
Nesse recorte, podemos ver que os jornalistas buscam, finalmente,
dar uma pequena sustentação às suas críticas (embasadas em comentários
não citados de terceiros), utilizando o modelo da psiquiatra Elisabeth
Kübler-Ross que diz respeito aos cinco estágios do luto27. A tentativa
da revista de encaixar as atitudes de Dilma nesses estágios, como se
eles realmente fossem como o descrito na reportagem, algo banal e
generalizante, converge no ensaio de psicologizar a presidenta e seus
“sintomas”. Tal, buscando, mais uma vez, passar a imagem de Dilma
como alguém que não teria mais capacidades de governar o país, sendo o
impedimento (ou uma internação psiquiátrica) a única forma de salvar o
Brasil.
Recorte 5
Aos integrantes do núcleo político, Dilma deixa transparecer
que não lhe importa mais a opinião pública. Seu objetivo
é seguir no posto a todo e qualquer custo e, se lograr
êxito, punir aqueles que considera hoje seus mais
ferozes inimigos.
Nesse trecho, há uma tentativa de criar uma imagem de vilã para
Dilma, aliada à figura de louca, construída no decorrer da reportagem,
mostrando-a como uma general ou figura de oficial do exército que, em
Grifos nossos.
Disponível em: http://psychologicalkingdom.blogspot.com.br/2011/06/as-cinco-fases-doluto.html. Acesso ago 2016.
26
27
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Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
situação de guerra, puniria seus inimigos. Todavia, seguindo o texto, eles
tomam a imagem de um general como modelo perfeito de governante,
causando desentendimento ou dúvida nessa controversa mudança de
posicionamento perante uma postura mais agressiva:
Recorte 6
É bem verdade que Dilma nunca se caracterizou por
ser uma pessoa lhana no trato com os subordinados.
Mas não precisa ser psicanalista para perceber que,
nas últimas semanas, a presidente desmantelou-se
emocionalmente. Um governante, ou mesmo um líder,
é colocado à prova exatamente nas crises. E, hoje, ela
não é nem uma coisa nem outra. A autoridade se esvai
quando seu exercício exige exacerbar no tom, com gritos,
berros e ofensas. Helmuth von Moltke, chefe do EstadoMaior do Exército prussiano, depois de aposentado,
concedeu uma entrevista que deveria servir de exemplo para
governantes que se pretendam grandes líderes. Perguntado
como se sentia como um general invicto e o mais bemsucedido militar da segunda metade do século XIX,
Moltke respondeu de pronto: “Não se pode dizer que sou
o mais bem-sucedido. Só se pode dizer isso de um grande
general, quando ele foi testado na derrota e na retirada. Aí
se mostram os grandes generais, os grandes líderes e os
grandes estadistas”. Na retirada, Dilma sucumbiu ao
teste a que Moltke se refere. Os surtos, os seguidos
destemperos e a negação da realidade revelam uma
presidente completamente fora do eixo e incapaz de
gerir o País.28
Devido ao fato de terem se passado somente 31 anos do fim da
ditadura, pode ter havido certa confusão no momento de tecer paralelos
entre o governo de Dilma e o do Estado-Maior do exército prussiano.
O leitor da reportagem poderia ainda ficar confuso ao ver a figura de
um homem general como um bom parâmetro para um governante
28
Grifos nossos.
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bem-sucedido em uma democracia, sabendo que, muito recentemente,
estávamos sofrendo o terror e os abusos de uma ditadura militar, mas
esse tipo de deslize é recorrente nessa reportagem. Por se tratar, então,
de uma crítica à figura de Dilma como mulher sã, tornando seu suposto
autoritarismo mais um reflexo de sua loucura, podemos notar os efeitos
negativos dos discursos que ditam um padrão feminino a ser seguido, os
quais estão tão introjetados em nossa cultura e que cegam os mais ferozes
críticos de supostas injustiças e despautérios, fazendo-os reproduzi-los.
Nesse mesmo recorte, é colocado que “não precisa ser psicanalista
para perceber que (...) a presidente desmantelou-se emocionalmente”,
entretanto, como vimos no recorte 4, eles mesmos aportaram suas
colocações na teoria de uma psiquiatra em uma tentativa de legitimá-las.
Além do fato de psiquiatria e psicanálise serem bem distintas, o único
momento em que se embasaram, ainda que de maneira insuficiente, em
uma teoria, pode ser desconsiderado, já que, em seguida, eles colocam
que não são especialistas em saúde mental. Apesar de esse ser um convite
para o leitor endossar esse “diagnóstico”, é de se estranhar que toda essa
conversa sobre loucura tenha sido feita sem nenhum aparato teórico.
Em seguida, a “análise” da revista toma um caráter histórico.
Buscam indícios da “loucura” de Dilma em períodos anteriores ao difícil
momento de crise, como podemos ver a seguir.
Recorte 7
Publicamente, a presidente tenta disfarçar seu estado
de ânimo atual. Mas nem sempre é possível deixar
transparecer serenidade quando, por dentro, os nervos
estão à flor da pele. Seus últimos discursos refletem a
tensão reinante nos corredores do Palácio do Planalto. Na
quarta-feira 30, Dilma converteu o evento de entrega de
moradias da terceira fase do Minha Casa Minha Vida em um
palanque contra o impeachment. Na cerimônia, estiveram
presentes integrantes de movimentos sociais, como o MST.
Os representantes, – muitos deles chamados de última hora
já que nenhum governador se dignou a ir e, dos 300 prefeitos
convocados, só oito compareceram – , foram acomodados
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Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
em lugares destinados a convidados, onde entoaram gritos
de guerra pró-governo mesmo antes de o evento começar.
Os presentes chamaram o juiz Sérgio Moro, o vice Michel
Temer e a OAB de “golpistas” e bradaram o já tradicional
“não vai ter golpe”. Detalhe: o coro foi puxado pela
militante travestida de presidente da República.29
Ao levantarem o passado de Dilma, que gera muitas controvérsias
por ter sido forte militante no período da ditadura militar, tentam alvejar seu
caráter. Além do comentário transfóbico30, colocando que a presidenta é
uma “militante travestida de presidente da República”, causando um efeito
de sentido negativo ao que se travestir significa, essa afirmação coloca que
Dilma Rousseff não é uma presidenta (apesar de ter sido legitimamente
eleita), mas uma militante que ocupa falsamente esse lugar.
Recorte 8
Durante a campanha eleitoral, a presidente Dilma
Rousseff pagou para seus marqueteiros desenvolverem
e disseminarem o nocivo “discurso do medo”. Espalhou
o pavor entre os brasileiros mais carentes dizendo que, se
seus concorrentes Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (na
época no PSB) ganhassem a eleição, os programas sociais
estariam em risco. Funcionou. Hoje, cara a cara com o
impeachment, ela coloca sua tropa de choque novamente
para atemorizar a população.31
Para deixar a imagem de malvada louca ainda mais consistente, a
revista recorre ao “discurso do medo”. E que discurso seria esse? Vladimir
Safatle, filósofo brasileiro, coloca em seu livro O circuito dos afetos, entre
diversos outros conceitos, o de que a sociedade é gestada a partir de
Grifos nossos.
Consideramos, neste artigo, como transfóbica, qualquer atitude, dizer ou manifestação
negativa em relação às pessoas travestis, transexuais e transgêneros, o que está se tentando
fazer ao colocar que Dilma está travestida de presidente.
31
Grifo nosso.
29
30
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sentimentos de medo e de esperança em que um não existe sem o outro.
Independentemente de posicionamento ou hierarquia política, o medo e
a esperança aparecem em nossos dizeres e em nossas ações. Em todo o
terror midiático construído sobre uma temida esquerda comunista que
parece estar umbilicalmente ligada ao PT, no recorte acima é trazido que
os marqueteiros de Dilma, como integrantes de um BOPE humanitário,
teriam inculcado nas propagandas partidárias que programas sociais
estariam em risco caso a oposição ganhasse as eleições. Por mais que
saibamos que esse tipo de colocação pode fazer com que as pessoas
votem por medo de perder benefícios, os jornalistas colocam esse artifício
somente como ligado ao PT e não a uma gestão social que mantém o
mundo, não só o Brasil, tal como é.
Recorte 9
Não bastasse a repetição da retórica cretina da campanha
eleitoral, a presidente disse nos últimos dias que o que
está se vendo o País é um verdadeiro “nazismo”, sem
lembrar que o discurso do “nós contra eles” foi gestado e
cultivado por sua equipe.
A Presidenta fez diversas colocações infelizes durante todo esse
processo, mas isolar uma menção feita ao nazismo para defender um ponto
de vista, é desconsiderar o contexto em que isso foi dito, ponderando
o fato de que ataques específicos à Dilma estavam sendo feitos por ela
ser mulher, pois em nenhum momento foram feitas colocações contra
suas habilidades reais e não mentais para governar um país. Tais ataques
reafirmavam um conceito de nação como algo a ser colocado acima da
individualidade da Presidenta e de possíveis falhas e fragilidades que, como
ser humano, ela apresentou. Considerando esse cenário, acreditamos que
foi um comentário desnecessário por parte da Presidenta, mas não sem
razão, em uma tentativa de mostrar o que tem sido feito na mídia como
um todo e também nessa reportagem: os supostos interesses da nação, de
acordo com a reportagem, devem ser colocados acima da individualidade
de Dilma, questionando sua moral, seu comportamento, os remédios que
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toma e sua saúde mental, como um governo autocrático, por exemplo,
da maioria da Câmara dos Deputados, da direita extrema e da mídia, que
buscasse se sobrepor de modo fascista à democracia, afinal, não importa
se seu afastamento é constitucional ou não, mas, sim, que existe um bem
maior a ser protegido e reconquistado, independentemente de como isso
vá ser feito.
No fim da reportagem, ainda é apresentada uma analogia da
presidente Dilma como a rainha Maria I, que podemos verificar no recorte
a seguir:
Recorte 10
As diabruras de “Maria, a Louca”
Não é exclusividade de nosso tempo e nem de nossas
cercanias que, na iminência de perder o poder, governantes
ajam de maneira ensandecida e passem a negar a realidade.
No século 18, o renomado psiquiatra britânico Francis
Willis se especializou no acompanhamento de imperadores e
mandatários que perderam o controle mental em momentos
de crise política e chegou a desenvolver um método
terapêutico composto por “remédios evacuantes” para
tratar desses casos. Sua fórmula, no entanto, pouco resultado
obteve com a paciente Maria Francisca Isabel Josefa Antónia
Gertrudes Rita Joana de Bragança, que a história registra
como “Maria I, a Louca”. Foi a primeira mulher a sentarse no trono de Portugal e, por decorrência geopolítica,
a primeira rainha do Brasil. O psiquiatra observou
que os sintomas de sandice e de negação da realidade
manifestados por Maria I se agravaram na medida em
que ela era colocada sob forte pressão.32
É dito que Maria I “foi a primeira mulher a sentar-se no trono de
Portugal e, por decorrência geopolítica, a primeira rainha do Brasil”, logo,
essa comparação não foi aleatória, visto que Dilma foi a primeira mulher a
ocupar a presidência do Brasil. É colocado em evidência que as primeiras
mulheres a assumirem cargos comumente atribuídos a homens foram
loucas, histéricas. Além disso, foi colocado que mulheres não aguentam
32
Grifo nosso.
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pressão desse tipo de cargo e de suas responsabilidades, reforçando mais
um traço do estereótipo de mulher e sua loucura/histeria. Vemos, então,
mais uma vez, o preconceito de gênero disfarçado de crítica política. Esse
desfecho endossa o que apontamos durante a análise dessa reportagem:
que não foi feita nenhuma crítica a Dilma enquanto presidenta, mas, sim, a
Dilma enquanto mulher. Isso, pois, não foram questionadas suas decisões
feitas como presidenta, mas seu comportamento demasiadamente histérico
ou, como pudemos notar, demasiadamente feminino33. Retomamos, então,
Scott, quando diz que
[o] gênero foi utilizado literalmente ou analogicamente
pela teoria política, para justificar ou criticar o reinado de
monarcas ou para expressar relações entre governantes
e governados. Pode-se esperar que tenha existido debate
entre os contemporâneos sobre os reinos de Elizabeth I da
Inglaterra ou Catherine de Médices na França em relação
à capacidade das mulheres na direção política; mas, numa
época em que parentesco e realeza eram intrinsecamente
ligados, as discussões sobre os reis machos colocavam
igualmente em jogo representações da masculinidade e da
feminilidade (1995, p. 89-90).
A alta política, ela mesma, já é um conceito de gênero porque
estabelece a importância decisiva de seu poder público, assim como
suas razões de ser e a realidade da existência da sua autoridade superior,
precisamente graças à exclusão das mulheres do seu funcionamento. O
gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi
concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição masculino/
feminino, ao mesmo tempo fundamentando seu sentido. Para reivindicar o
poder político, a referência tem que parecer segura e fixa fora de qualquer
construção humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Dessa
forma, a oposição binária e o processo social das relações de gênero,
tornam-se parte do sentido do poder. Colocar em questão ou mudar um
aspecto desse sistema o ameaçaria por inteiro.
33
Pelo que é considerado feminino nessa reportagem.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS IMAGENS DA BELA E DA FERA
Neste artigo apresentamos uma breve análise que convida os
estudiosos da área a aprofundarem algumas discussões e diálogos acerca
dos discursos sobre mulheres na mídia, seja de “belas, recatadas de ‘do
lar’” ou de loucas e histéricas. Observamos nas matérias analisadas que a
mulher é atacada por várias frentes em diversos ângulos. Marcela Temer,
quando enquadrada no padrão ideal de mulher, e Dilma Rousseff, colocada
enquanto histérica, mostra como os dizeres sobre o gênero feminino são
construídos na sociedade, principalmente pela mídia. Pelo que vimos, cabe
à mulher o governo dos espaços privados (mais especificamente, do lar)
e aos homens a governabilidade pública, já que, enquanto Temer fuma
charutos e toma vinho depois de exaustivos dias de trabalho, Dilma perde
o controle de si (quem dirá do país) e é medicada para esquizofrenia.
O fato de as duas reportagens terem autoria ou coautoria de
mulheres também não pode passar em branco, pois, por mais que haja
editoriais e vertentes específicas tanto na IstoÉ como na Veja, ver que as
críticas mais duras são trazidas por mulheres atacando outras mulheres,
mostra o quanto discursividades que ditam um padrão feminino e que
buscam cercear o comportamento, as ações, a carreira e os dizeres das
mulheres, sobrepõem-se à individualidade daqueles que os reproduzem.
Entretanto, é válido considerar que talvez colocar mulheres como autoras
ou coautoras possa ser um subterfúgio para que a reportagem não seja
taxada como machista.
Não buscamos, aqui, denunciar os autores dos textos em específico,
mas lembrar que “posicionar-se implica em responsabilidade por nossas
práticas capacitadoras” (HARAWAY, 1995, p. 27), ou seja, por mais que
sejam somente posições-sujeito criadas a partir de determinado conceito,
há uma responsabilidade sobre o que é dito e reproduzido em seus
dizeres que, aqui, consideraremos saberes localizados em determinado
acontecimento. Esses
[s]aberes localizados requerem que o objeto do conhecimento
seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou
um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um
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escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua
agência e em sua autoridade de conhecimento ‘objetivo’”
(HARAWAY, 1995, p. 36)
As colocações feitas em ambas reportagens acabam por legitimar
uma realidade que as mulheres envolvidas não vivem, pois ambas exercem
profissões na esfera pública e desconsideram toda a agenda normatizadora
que busca regular o que é ser mulher, o que é feminino. Os saberes
localizados que reproduzem são atores e agentes de um objetivo que busca
cercear e limitar as mulheres a um lugar específico.
Mulheres em posição de poder geram críticas geralmente
relacionadas à tirania e à loucura, tanto no governo quanto em cargos
executivos. Desde a visão da mulher como “bela, recatada e ‘do lar’” a
novas gerações de Marias Is, é mostrado como ainda prevalece a distância
do gênero feminino de uma posição de domínio nas esferas de poder.
Conquistamos espaços e direitos, mas ainda precisamos sujeitar nossos
corpos ao Estado ou a maridos e provar nossa sanidade, diariamente.
No contexto do golpe político-midiático, perceptível nas
reportagens analisadas, foi feito um cerceamento feminino de maneira
mais contundente, buscando deslegitimar posições e engessar identidades.
Em Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo, Judith Butler coloca
que, por vezes, discursos adquirem autoridade de produzirem o que
nomeiam, por citarem convenções de autoridade, ou seja, essas reportagens
que aqui analisamos, só tiveram espaço, repercussão e voz, por estarem
reproduzindo convenções de autoridade que atravessam não só discursos
midiáticos, mas dizeres sobre o feminino como um todo. Esses esquemas
regulatórios, coloca a autora, não são estruturas intemporais, assim como
as reportagens apresentadas não podem ser desprendidas de seu contexto
de produção, mas são critérios historicamente revisáveis de inteligibilidade
que produzem e submetem corpos que pesam, logo, fazem parte de uma
continuidade histórica na qual estamos inseridos, e que reproduz a ideia
de que existem corpos que importam mais do que outros, ou que pesam
mais do que outros, por estarem submetidos e terem sido produzidos por
determinada lógica.
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Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki
Então, dados os resultados de análise,
[a]gora não é mais possível analisar discursos sobre gênero,
onde quer que ocorram sem reconhecer as maneiras pelas
quais estão implicados em processos mais amplos de
mudança econômica e política muito além do controle das
comunidades locais. A experiência pessoal do gênero e das
relações de gênero está ligada ao poder e às relações políticas
em diversos níveis. Uma consequência disso é que fantasias
de poder são fantasias de identidade (MOORE, 2000, p. 35).
Isso, pois as imagens construídas, bela para Marcela e
fera para Dilma, estão ligadas a uma situação política de disputa de
poder que extrapola a individualidade dos autores, criando posiçõessujeito que legitimam ideias fantasiosas de ambas as figuras, sendo
fantasias de poder, mas também fantasias de suas identidades. Enquanto
paira sobre Marcela a figura da mulher perfeita, que obedece a padrões
estéticos e comportamentais independentemente de seus desejos e
de sua individualidade, cola-se em Dilma um espectro de loucura, de
descumprimento de regras e de convenções que a colocam em uma
categoria de “submulher” ou até de “sub-humana”.
Como explicamos na introdução deste artigo, o uso de uma analogia
com o conto “A Bela e a Fera” não foi em vão. No decorrer das análises
tentamos ressaltar que, enquanto Marcela era, literalmente, tida como bela,
Dilma foi colocada no lugar de fera. Entretanto, além disso, no fim do
conto, a Bela e Fera encontram um ponto comum, assim como Dilma e
Marcela. Para a Bela e a Fera, o amor era o que os unia, já para Dilma e
Marcela, os sentidos do que é feminino na sociedade atual as normatiza e
as faz serem categorizadas ignorando subjetividades ou qualquer item que
as classifique como humanas, mas as colocam como peças de um jogo de
poder, submetidas às suas regras, representando imagens específicas. Não
buscamos, aqui, desfazer um feitiço para que a Bela e a Fera fiquem juntas,
tal qual o conto, mas mostrar que a normatização do feminino é atroz e
precisa ser discutida urgentemente.
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“A Bela e a Fera”- As mulheres e a política...
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AS MULHERES NO CAMPO POLÍTICO:
GRAMÁTICAS DISCURSIVAS EM TORNO DE
GÊNERO NO CONTEXTO DO IMPEACHMENT
Lauren Zeytounlian1
Lorena R. P. Caminhas2
Marcela Vasco3
Natália Negretti4
Vanessa Ponte5
RESUMO: Neste ensaio investigamos os discursos midiáticos acerca de gênero
difundidos em três distintos momentos da política contemporânea brasileira: a eleição e
posse da presidenta Dilma Rousseff; o processo de impeachment instaurado em dezembro
de 2015 e finalizado em agosto de 2016; e o estabelecimento do governo interino de
Michel Temer. A análise foi realizada a partir de matérias jornalísticas veiculadas em jornais,
revistas e portais online do país no período dos acontecimentos (predominantemente
textos da primeira metade de 2016). Complementarmente, analisamos os comentários de
internautas relacionados às reportagens. O material estudado revelou que os principais
enunciados expressavam uma retomada do espaço doméstico como lugar da mulher e
enfatizavam uma incapacidade das mulheres para assumir cargos de relevo na vida pública,
constituindo-se como argumentos mobilizados para legitimar o impedimento de Dilma.
PALAVRAS-CHAVE: Impeachment. Discursos Midiáticos. Gênero.
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Campinas. E-mail: laurenzeytounlian@gmail.com
2
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Campinas. E-mail: lorenarubiapereira@gmail.com
3
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Campinas. E-mail: marcelavasco.doc@gmail.com
4
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Campinas. E-mail: nanegretti@gmail.com
5
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Campinas. E-mail: nessaponte@gmail.com
1
182
Lauren Zeytounlian et al.
INTRODUÇÃO
Em maio de 2016, nós, estudantes da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), seguidas6 posteriormente por funcionárias e
professoras da instituição, deliberamos em assembleia pela realização de
uma greve geral pautada pelo mote “Cotas, sim! Cortes, não. Contra o
golpe, pela educação, permanência e ampliação”. Com a paralisação do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), nossa disciplina eletiva
Teoria de Gênero I: Gênero e Sexualidade do curso de Doutorado em Ciências
Sociais foi interrompida. Durante a greve continuamos nos reunindo no
mesmo horário destinado às aulas com o intuito de debatermos a atual
conjuntura política do país e nos posicionarmos como pesquisadoras da
área de gênero e sexualidade.
O texto que apresentamos a seguir é fruto desses encontros e
das reflexões motivadas por eles. Com a difícil tarefa de escrever a dez
mãos, oferecemos um ensaio crítico ao invés de uma análise acabada
resultante de uma densa pesquisa de campo. Ressaltamos que o processo
de impedimento da presidenta eleita Dilma Rousseff ainda está em curso
no momento em que finalizamos este texto, de modo que nossa reflexão
ocorre no calor dos acontecimentos. Nestas páginas convidamos à leitora
a acompanhar conosco um pequeno percurso da recente história do país e
a refletir sobre a conjuntura em que o impeachment está se desenvolvendo,
principalmente no que diz respeito às questões de gênero.
Realizamos uma análise de algumas narrativas que povoaram as
matérias publicadas sobre o afastamento da presidenta Dilma Rousseff
e a formação do governo interino de Michel Temer, divulgadas em
veículos de comunicação nacionais. A seleção das notícias visa elucidar a
complexidade do contexto, principalmente quando se trata de compreender
os diversos sentidos em torno de temas como gênero. O cenário político
instaurado e as falas que nele circulam dialogam com outras formações
discursivas em nossa sociedade, revelando a dificuldade de dissociar
os diversos significados que estão em jogo na conjuntura atual. Nesse
Decidimos por universalizar o gênero feminino neste texto. Tal escolha problematiza a
universalização do masculino, tomada como a forma habitual da escrita.
6
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As mulheres no campo político:...
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momento, o que presenciamos é uma ebulição de narrativas diversas em
torno da mulher, que estão imiscuídas no campo político. As reportagens
elencadas relatam episódios desse processo político, histórico e social,
trazendo à tona a complexidade e diversidade de tais representações.
Elencamos oito matérias que abordaram a posse da presidenta eleita,
o seu afastamento e a formação do governo interino de Temer, publicadas
em sua maioria pelo portal de notícias G1 e também pelos portais das
revistas Exame e Istoé e pelo jornal Folha de São Paulo. O foco do trabalho é
a análise das matérias e dos temas abordados, bem como os comentários
publicados na internet por leitores e leitoras. As principais questões que
nortearam a investigação foram: quais os principais discursos de gênero
predominam no contexto do impeachment? Que tipos de gramáticas
morais7 eles sustentam? Quais são as principais terminologias utilizadas
nas reportagens e nos comentários? O que essas terminologias informam
sobre gênero? Ao levantarmos tais questões, propomos um debate acerca
das representações de gênero presentes no material analisado e discutimos
como elas se revelam e ressoam na nossa sociedade.
ENFOQUES TEÓRICOS
Para a elaboração deste ensaio acionamos o conceito de
“campo político” de Pierre Bourdieu (1989)8, compreendido como
um espaço no qual predominam lutas simbólicas que informam e
conformam os sujeitos nele inseridos. Como um espaço social, o
A expressão “gramáticas morais” refere-se ao conjunto de pressuposto acionados a respeito
das condutas/ discursos que podem ser performadas/proferidos na esfera pública que estão
de acordo com as normatividades vigentes em determinados períodos históricos e formações
sociais. No presente texto, trata-se de compreender quais enunciados são considerados possíveis
de serem proferidos (não são imorais, isto é, respeitam as regras tácitas que determinam as
normas morais) a respeito de gênero no contexto do impeachment.
8
O campo político “é o espaço em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se
acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos,
acontecimentos, em que os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de consumidores, devem
escolher com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do
lugar de produção” (BOURDIEU, 1989, p.164).
7
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Lauren Zeytounlian et al.
campo político está em constante diálogo com outras instâncias
da sociedade, e também com os veículos de comunicação que produzem
e divulgam representações e interpretações sobre as realidades
contemporâneas. As redes sociais, principalmente os canais que estão
diretamente atrelados às corporações midiáticas, também adentram
no campo do político, exercendo um tipo de retroalimentação (respostas
ao que circula nos meios), mas que se instaura em uma temporalidade
distinta. No que concerne ao contexto brasileiro, muitos portais de notícias
possuem sites e blogs, bem como páginas em redes sociais como o Twitter e
o Facebook, elementos que ampliam o acesso aos conteúdos publicados.
Tais canais de comunicação possibilitam a participação das leitoras nos
conteúdos que os media produzem através de comentários.
Outro componente que figura nesse ensaio e que se
apresenta como um desafio teórico no campo de estudos de
gênero são as transformações nas esferas públicas e privadas, na
medida em que ambas passam a compor o espaço da política. Como
adverte Adriana Piscitelli (2002), a conhecida expressão “o pessoal
é político” foi estabelecida para mapear o poder e as desigualdades no
interior das relações íntimas e reforçar que o “político é essencialmente
definido como poder” (PISCITELLI, 2002, p. 6). Tal compreensão
dos diálogos entre o político e o público/privado colabora para
entendimento de como questões que seriam consideradas particulares
aparecem no terreno das disputas sociais públicas, principalmente as que
estão em torno de gênero.
No presente trabalho os dispositivos midiáticos são compreendidos
como instâncias de formação e sustentação de discursos morais que
fundamentam quem pode (e quem não pode) se pronunciar, baseando-se
na legitimidade dos sujeitos e também naquilo que pode ser pronunciado,
instituindo a inteligibilidade de determinadas falas. Destarte, tais
dispositivos configuram espaços morais através dos quais textos e imagens
circulam, produzindo representações sobre os indivíduos e os contextos
que abordam. Neste exercício de reflexão, partimos do pressuposto de
que os comentários realizados no contexto dos textos midiáticos expõem
possibilidades discursivas abertas dentro da conjuntura atual, apontando
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para os contornos morais que perpassam o momento político.
A inserção de determinados discursos e imagens na esfera pública
(e também na midiática) depende de um reconhecimento prévio desses
discursos e imagens como proferimentos possíveis, isto é, como expressões
que possuem legitimidade e inteligibilidade dentro de determinados
contextos. É imprescindível que os sujeitos que sustentem tais falas e
representações pictóricas sejam considerados interlocutores legítimos,
indivíduos que contam dentro da distribuição sensível dos arranjos sociais
(RANCIÈRE, 2007), que possuem falas audíveis e inteligíveis (que não se
configuram como mero ruído). O princípio que sustenta a legitimidade
dessas pessoas é a partilha de uma humanidade comum (BUTLER, 2010),
fomentada pela consideração da dependência mútua para a formação do
self. Sendo assim, aqueles que são considerados seres humanos participam
de um mundo compartilhado, no qual inscrevem suas enunciações;
os outros estão à mercê da vulnerabilidade, na medida em que não são
seres que importam (BUTLER, 2002), se constituindo como existências
inabitáveis. Na base dessas discussões estão inscritas normas morais que
coordenam a vida social e delimitam as restrições a determinados tipos de
sujeitos, discursos e imagens.
Ademais, conforme salienta Michel Foucault (2007), para
compreendermos como a normatização dos corpos se estabelece na
sociedade ocidental, é preciso considerar o poder como disperso e
fragmentado: o “micropoder”. Dessa forma, analisando os dispositivos
pelos quais esses “micropoderes” se manifestam, discorreremos sobre as
matérias e os comentários elencados desde a posse de Dilma até o início
do governo interino de Temer, buscando desvelar as ideias expostas sobre
gênero, percebendo seus sentidos e significados, bem como o modo como
ressoam socialmente.
A POSSE DA PRESIDENTA DILMA
Os comentários mais recorrentes nas mídias sociais após a posse
da primeira presidenta da história do Brasil não estavam ligados às metas
do seu plano de governo nem ao seu discurso, mas sim à vestimenta
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escolhida para o ritual. O conjunto de saia e blusa rendadas, de cor
neutra, encomendado à designer gaúcha Juliana Pereira, especialista em
vestidos de noivas, ganhou destaque na mídia. As matérias discorriam
sobre a vestimenta de Dilma, esmiuçando seus mínimos detalhes de cor,
comprimento, tecido, corte, e também sobre o corpo da presidenta recémeleita: sua silhueta, seu porte e a adequação do figurino à sua idade foram
minuciosamente julgados.
No dia seguinte à posse do segundo mandato de Dilma, a revista
Exame publicou em seu site uma matéria intitulada Os melhores tuítes sobre
o vestido de Dilma na posse9. Nela, a jornalista Mariana Fonseca, autora da
matéria, ressalta que “Após uma dieta severa, Dilma apresentou uma
silhueta cinco quilos mais magra durante sua posse, segundo a revista Veja.
A meta é perder mais sete quilos. Mesmo assim, o vestido teria evidenciado
a silhueta em ‘A’10 da presidente”.
Alguns dos tuítes11 destacados pela matéria comparam
pejorativamente o vestido de Dilma a “capas de botijões de gás”:
o “Modelito da posse de DILMA q12 discretamente homenageou a
Petrobras”, ou ainda “Alguém pegou o paninho de cobrir o botijão
de gás e vestiu na Dilma”13. Com relação ao porte da presidenta,
seguem os mesmos julgamentos pejorativos. “Eu fico impressionada
com a deselegância – do vestir, do andar, do jeito de ser”, afirmou
uma internauta, enquanto outro ironiza: “Dilma estava elegantíssima
vestindo estilo retrô ‘crochê abajur da tia’, causando inveja a cronistas
sociais da economia. LINDA, LINDA!”.
Disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/roupa-de-dilma-rousseff-naposse-chama-a-atencao-no-twitter.
10
O comentário busca fazer uma analogia entre o formato da letra “A” e o corpo de Dilma,
composto por ombros estreitos e alargamento na parte inferior. Tal tipo de analogia entre
corpos e formas geométricas (“corpo de triângulo invertido”), corpos e frutas (“corpo em
formato de pera”) é muito comum no jornalismo de moda.
11
Textos postados por internautas na rede social Twitter.
12
Esta é uma abreviação comum para “que”. Optamos por manter a forma linguística adotada
nos comentários.
13
Trechos extraídos de comentários na internet.
9
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Segundo os comentários acima – destacados pelo texto da revista
Exame como sendo os “melhores” –, a aparência e performance de Dilma
estão ligadas a um corpo que não atende aos padrões de beleza femininos
estabelecidos pela sociedade, um corpo necessariamente jovem, branco,
magro, “elegante”. Na matéria da Exame, embora a autora não expresse
claramente ao longo do texto sua opinião sobre o vestido, é possível
indicar seu posicionamento ao considerarmos o título da matéria e os
comentários elencados para julgá-lo.
A matéria Look de Dilma na posse divide estilistas famosos14, publicada
pelo jornal Folha de São Paulo, busca dar espaço aos críticos e também
aos defensores da vestimenta escolhida pela presidenta. Um dos estilistas
entrevistados pela matéria foi o pernambucano Walério Araújo, que foi
bastante categórico: “as medidas maiores [da presidenta] não permitem
cores muito claras, pois mostram todas as imperfeições do corpo”. Já os
especialistas que elogiaram o vestido, por outro lado, criticaram o porte
da presidenta, como o paulista Reinaldo Lourenço, ao afirmar que Dilma
“acertou ao mostrar ‘uma fragilidade e feminilidade que não tem’”. No
entanto, sob a suposta imparcialidade do jornal, que tentou reunir elogios
e críticas, o assunto da vestimenta de Dilma continuou rendendo mais
discussão do que jamais ocorreu com qualquer outro presidente que
tenha assumido o país. Ronaldo Fraga é o único na matéria a apontar tal
incoerência: “Ela tem 67 anos e ocupa um cargo decisivo para o Brasil.
Não dá pra entrar na ‘pequenez’ de falar de moda”.
Chamar atenção para a centralidade que a aparência física assume
na posse da primeira presidenta do país é fundamental para entendermos
a disseminação de discursos que visam estabelecer o lugar das mulheres,
bem como disciplinar e normalizar a forma como elas lidam com seus
corpos. As críticas severas sobre sua imagem são realizadas em referência
ao modelo de beleza proposto socialmente. Discursos difundidos por
instituições de saúde, moda e comunicação encontram seu respaldo
também em comentários de internautas – muitas vezes anônimos. Tais
discursos têm por ensejo reforçar a ideia de que é imprescindível estar
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1570468-look-de-dilmana-posse-divide-estilistas-famosos.shtml.
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constantemente vigilante aos mínimos detalhes da sua aparência física,
tendo um autocontrole minucioso acerca das ações referentes a cada
parte do corpo. Esses discursos reforçam também o argumento de que o
indivíduo deve tomar conta de si. Tais cobranças sociais são ainda maiores
no que se refere ao corpo e à aparência física das mulheres.
O AFASTAMENTO DE DILMA ROUSSEFF
Em 12 de maio de 2016, pouco mais de um ano após a eleição
de Dilma, o plenário do Senado Federal aprovou a abertura do processo
de impeachment contra a presidenta, sob a acusação de ter promovido
crime de “pedaladas fiscais” em seu governo. Durante o processo, a revista
Istoé publicou a reportagem Uma presidente fora de si15, na qual é apontado
um suposto desequilíbrio emocional, ou, como ressalta a matéria, estar
“fora de si” em virtude do processo de impedimento. A edição da revista
trouxe em sua capa uma foto de Dilma aparentemente aos berros, o
que desencadeou uma série de respostas por parte de outros veículos da
imprensa, como foi o caso da revista Carta Capital16, que destacou como as
mulheres têm sido deslegitimadas no cenário político nacional.
Segundo a matéria da Istoé, Dilma estaria emocionalmente incapaz
de governar o país: “Não bastassem as crises moral, política e econômica,
Dilma Rousseff perdeu também as condições emocionais para conduzir o
governo”, afirma a matéria. A presidenta é ainda comparada à Maria I, que
no século XVIII tornou-se a primeira mulher a ocupar o trono de Portugal
e primeira rainha do Brasil, tendo sido afastada do governo por estar fora
de si e por “negar” a realidade. Como destaca a matéria da revista:
O psiquiatra [Francis Willis] observou que os sintomas
de sandice e de negação da realidade manifestados por
Maria I se agravaram na medida em que ela era colocada
sob forte pressão. “Maria I, a Louca”, por exemplo, dizia
Disponível em: http://istoe.com.br/450027_UMA+PRESIDENTE+FORA+DE+SI/.
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/quando-a-misoginiapauta-as-criticas-ao-governo-dilma.
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ver o “corpo” de seu “pai ardendo feito carvão”, quando
adversários políticos da Casa de Bragança tentavam alijála do poder. Nesses momentos, seus atos de governo
denotavam desatino, como relatou doutor Willis: “proibir
a produção de vinho do Porto na cidade do Porto”. Diante
desse quadro, era preciso que ocorresse o seu “impedimento
na Coroa”. Quanto mais pressão, mais a sua consciência se
obnubilava, até que finalmente foi “impedida de qualquer
ato na Corte”.
Duas figuras políticas consideradas desequilibradas e incapazes de
governar e, não por acaso, duas mulheres. A comparação entre Dilma e
Maria I “a louca” deixa claro as representações de gênero que povoam as
páginas da mídia. A primeira rainha do Brasil e a primeira presidenta eleita
são apresentadas como destituídas de capacidade emocional de gestão.
Os desdobramentos do processo de impeachment podem ser
ainda esmiuçados na manchete intitulada Processo de impeachment é aberto, e
Dilma é afastada por até 180 dias17, do portal G1. Na matéria são descritos
os trâmites envolvidos no afastamento da presidenta pelo senado e os
passos subsequentes para prosseguimento do processo. O texto é iniciado
com uma descrição dos principais acontecimentos durante a votação e
apresenta a quantidade de votos contrários e favoráveis, juntamente às
legendas de filiação dos senadores. Em seguida, são expostos trechos
de entrevistas realizadas com senadores que participaram da votação e
da decisão de afastamento: uma disputa entre, de um lado, argumentos
que embasam a acusação de crime de “pedaladas fiscais” como motivo
de abertura do processo e, de outro, denúncias de um suposto golpe de
Estado, fundamentado por interesses privados dos políticos envolvidos.
Já a matéria Imprensa internacional destaca afastamento de Dilma
Rousseff18, também do G1, compila as principais manchetes de veículos de
Disponível em: http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/
noticia/2016/05/processo-de-impeachment-e-aberto-e-dilma-e-afastada-por-ate-180-dias.
html.
18
Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/05/imprensa-internacionaldestaca-afastamento-de-dilma-rousseff.html.
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comunicação internacionais que acompanharam a abertura do processo
de impeachment. Em destaque, está o fato de que Dilma Rousseff é a
primeira mulher eleita presidenta no Brasil e de seu afastamento se
configurar como um choque para a recente democracia brasileira. Outros
dois temas aparecem citados na matéria: a impopularidade de Dilma e
do Partido dos Trabalhadores (PT), fator que desencadeou uma revolta
popular em relação à corrupção e à política econômica implementada,
bem como as possíveis articulações de Michel Temer para conseguir
alcançar o poder.
Na seção de comentários dessas duas matérias, percebe-se que
os enunciados travaram uma disputa entre os indivíduos favoráveis e
os contrários à abertura do processo de impeachment. Nesse contexto,
as postagens feitas eram comentadas exaustivamente na tentativa de
desqualificar o argumento contrário, conforme é possível notar nos
excertos abaixo:
TIRSO DUARTE: Ela vai, mas ELA VOLTA! Vamos
incendiar o país nos próximos meses. Não haverá um dia de
paz para os golpistas! Haverá greves, ocupações, travamentos
depredações. As universidades federais irão parar! O Senado
será obrigado a trazer ela de volta, senão nós vamos invadir
o Congresso Nacional!
EDUARDO: Vai pro banheiro Tirso
MARIO: Tirso Duarte VAI TRABALHAR VADIA
MARCOS: Tirso, dá uma cagadinha pra criar mais espaço
no seu cérebro!
LUANA MARA: Bandido faz isso mesmo!! PT incentiva
a violência e desacato!! Bando de marginais, não vamos
deixar!! (TRECHOS extraídos de comentários da internet).
Nos comentários, não há indícios de tentativas de discussão
baseada em argumentação; pelo contrário, aparecem agressões e
opiniões sustentadas como verdades absolutas, proferidas, na maioria
das vezes, em oposição às argumentações contrárias: os indivíduos que
apoiam o impedimento apresentam-no como a melhor saída para a crise
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política e econômica do Brasil, apontando diversas motivações para a
admissibilidade do processo; os contrários ao afastamento da presidenta
eleita caracterizam o impeachment como “golpe”, buscando demonstrar
as brechas que possibilitam sua defesa. Um recurso muito comum
utilizado pelos internautas é desqualificar aqueles que possuem posições
divergentes, como podemos observar a seguir:
GLAUCO RODRIGUES: Esse Maurício é um idiota.
Deve ser um que se beneficiou com os benefícios do
governo e agora se acha rico, com isso se acha com
autoridade para criticar algumas regiões e classes sociais
do Brasil. Infelizmente no Brasil política social será sempre
combatida pelas elites que não aceitam a ascensão dos mais
pobres, com medo de ter que pagar um salário digno pra
babá, pro jardineiro, porteiro, etc. FATO.
JOÃO ANTUNES: quem colocou eles lá foram vcs
apoiando um processo viciado de impiachment...suas antas...
LUCAS ROLIM: Até que em fim o PT e os PETISTAS
voltaram para onde jamais deveriam ter saído: o papel de
oposição barulhenta e histérica
ANDRÉ: “e poeirenta, para não dizer.. suja
WILSON CURI: Demônios devem viver nas trevas.
Demônios são vermelhos, mentirosos, agressivos,
terroristas, parasitas (TRECHOS extraídos de comentários
da internet).
Nessa primeira análise dos comentários, além da utilização de
enunciados de oposição para rebater opiniões contrárias, aliada às estratégias
retóricas para desqualificar as possíveis interlocutoras (situando-os como
burras, incompetentes, ignorantes, alienadas, massa de manobra política),
notou-se outra questão fundamental sobre os discursos que circularam
sobre o impeachment: o menosprezo às figuras políticas as quais se
opõem os comentadores das matérias. Na maioria dos comentários, Dilma
Rousseff era o principal alvo de xingamentos e frases depreciativas, muitas
das quais enfatizavam o fato de sua incompetência ter relação com ser
mulher. Além disso, há xingamentos e palavrões acionados para se referir
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à Dilma como “vadia”, “maldita”, “capeta”, “anta”, “burra”.
A configuração exposta acima revela os caminhos para a
fundamentação de discursos polarizados. Compreende-se que a utilização
de tais estratégias discursivas serve para eliminar a legitimidade do sujeito
de quem se fala ou com quem se dialoga, revelando sua incapacidade e
inabilidade de compartilhar o mundo comum - porque são ignorantes,
burras, nordestinas, pretas, pobres, coxinhas, petistas. Se tais pessoas não
são reconhecidas como iguais, então elas podem ser atacadas a partir de
todo tipo de enunciado degradador. Ao criar essa separação radical entre o
eu e o outro, rompe-se com o princípio de dependência mútua (BUTLER,
2006), tornando possível sujeitar o outro à humilhação, à violência e à
desconsideração social.
O GOVERNO TEMER
Após o afastamento de Dilma, Michel Temer assume como
presidente interino e escolhe apenas homens para a composição dos
ministérios de seu governo. Para analisarmos algumas narrativas em torno
do início de sua gestão, verificamos um infográfico do G1 sobre a formação
do governo interino intitulado Um mês do governo Temer19, uma espécie de
dossiê publicado pelo portal com as principais notícias divulgadas durante
seu primeiro mês de governo. Dessa série de 30 matérias vinculadas
ao infográfico, enfocaremos mais precisamente em duas: Michel Temer
tem dia de articulações políticas em Brasília20, uma matéria do Jornal Nacional
disponibilizada pelo portal do G1, e Temer Recebe 20 deputadas após crítica
sobre ministério masculino21.
A primeira matéria aborda a configuração do novo governo: anuncia
os ministérios que serão mantidos, elenca os prováveis ministros, aponta
os ministérios que serão extintos e apresenta os partidos que constituem a
Disponível em: http://especiais.g1.globo.com/politica/2016/um-mes-de-governo-temer/.
Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/05/michel-temer-temdia-de-articulacoes-politicas-em-brasilia.html.
21
Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/05/temer-recebe-bancadafeminina-da-camara-apos-criticas-sobre-ministerio.html.
19
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base de apoio de Temer – partidos que, de acordo com o G1, apoiaram o
impeachment de Dilma Rousseff. A segunda aponta a tentativa de Michel
Temer de contemplar mulheres no alto escalão de sua gestão, sobretudo
após sofrer críticas acerca de sua equipe ministerial masculina e branca.
Nessas matérias, os discursos que incitavam o ódio estavam mais
presentes. As tentativas de ferir e ofender ganharam centralidade. Os
comentários que mais chamaram atenção foram: “sangue vermelho é
o que vai sair da buceta da sua mãe depois de eu arrobar ela, viado”,
“Já perdeu otário, vai se fuder vc a sua mãe deve tá no inferno por ter
parido vc”, “Demônios devem viver nas trevas. Demônios são vermelhos,
mentirosos, agressivos, terroristas, parasitas” e “Mortadela bom é
mortadela morto” (TRECHOS extraídos de comentários da internet).
Nesses comentários existe uma junção entre política e religião, por isso
vale ressaltar apontamentos em outros meios de informação em que
essa confluência foi retomada no processo de impeachment. O Jornal El
País, ao abordar a votação na câmara dos Deputados, intitulou a matéria
como Deus derruba a presidenta do Brasil e discorreu sobre as palavras mais
utilizadas pela maioria dos deputados: Deus e Família foram constantes22.
Na matéria que se refere ao primeiro dia do governo Temer,
apareceram várias postagens de comemoração, afirmando que o povo
tinha conseguido limpar o país da corrupção e que, finalmente, havia um
gestor competente e com boa formação: “Finalmente!!!! Que dia lindo!!
nemmm Temer é feio, linda é a Marcela” e “Amigo, já conseguimos o
que queríamos. Obrigado por sua participação nos protestos, mas agora,
ponha-se no seu lugar. Vai trabalhar e poupe-nos dos seus comentários
sem cultura. Vá conversar com seus amigos pedreiros”. Muitos eram
os comentários que exaltavam também a figura do presidente interino:
“Desde o final do mandato do FHC, o Brasil não tinha o presidente, hoje
o país voltou a ter um presidente, Graças a Deus” ou “Pelo menos Temer
tem formação, estudou bastante, é um cara inteligente e acredito que dará
conta do recado! Pelo menos não estamos nas mãos de uma orelhuda
Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/18/politica/1460935957_433496.
html.
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Lauren Zeytounlian et al.
marionete de 9 dedos e que mal sabe falar” (TRECHOS extraídos de
comentários da internet).
Nos comentários destacados é possível perceber a necessidade de
desqualificar o governo do Partido dos Trabalhadores, a presidenta Dilma
Rousseff e suas eleitoras. Também apareceram comentários que ressaltam
características atreladas ao feminino, as quais exaltam, por exemplo, a
beleza de Marcela Temer, esposa de Michel Temer, em oposição à “feiura”
de Dilma, ou ainda argumentos que caracterizam a presidenta como
histérica e incompetente por ser mulher ou como marionete de Lula,
enfatizando sua incapacidade de decisão e liderança.
Na matéria que trata da tentativa do governo interino em incluir
mulheres no alto escalão dos cargos públicos, os discursos que reforçam
uma posição doméstica da mulher na sociedade, enfatizando sua
incapacidade para posições de governança, são bastante difundidos,
trazendo imagens da mulher como dona de casa, como interesseira e
histérica, bem como incapaz de tomar decisões em cargos importantes:
“Mulher no comando não dá certo. A Argentina é prova disso, o Brasil
é prova disso; a Alemanha, não, pq Merkel é bem assessorada e o que é
melhor... Ela houve o que eles dizem”, “Mulher só sabe ‘eleger’ qual o
galã mais charmoso da novela das oito...”, “CRIEM O ‘MINISTÉRIO
DA CHIMBICA’ E COLOQUEM LÁ ESSA MULHERADA TONTA!”
(TRECHOS extraídos de comentários da internet). Outra postagem que
demonstra claramente o conteúdo da discussão na sessão de comentários
das matérias elencadas neste texto é a que segue abaixo:
LÚCIO ALBUQUERQUE: Não tenho nada contra
ter mulher ou negros nos ministérios, mas foi assim que
nasceu a zebra. Numa reunião de palpiteiro e mexeriqueiros
querendo aparecer e enfeitar o cavalo, criaram a zebra
que ficou bonitinha toda enfeitada com listras lembrando
os negros e homenageando a mulher, mas sem qualquer
eficiência produtiva (TRECHOS extraídos de comentários
da internet).
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Outra temática bastante presente nos comentários é a analogia entre
incompetência, a reserva de cotas e a falta mulheres e pessoas negras na
equipe ministerial de Temer: “Era só o que faltava nesse país....cotas nos
ministérios.....” ou “Chama aquela peladona da escola de samba”. A posição
do governo interino de tentar incluir mulheres em seu governo foi um dos
principais pontos de crítica a Temer. Os internautas ressaltavam que o
presidente interino estava apenas no início de sua gestão, mas já começava
a se submeter às demandas de mulheres e pessoas negras - pessoas
outras que não homens brancos cristãos heterossexuais escolarizados,
consideradas incapazes de atingir a liderança por sua falta de competência:
“Se começar a se preocupar com essa besteira de politicamente correto
não vai pra lugar nenhum. Tem de colocar pessoas competentes e não
ficar se preocupando com falatório bobo de preconceito para conseguir
fazer o país andar”, “Independentemente de cor, sexo, credo e . . . o que
precisamos é de pessoas com capacidade para assumir os cargos vitais para
que o Brasil volte a crescer. Essa ideia de divisão de raça e culturas é coisa
do PT” (TRECHOS extraídos de comentários da internet). Dessa forma,
a meritocracia aparece como critério central para definição daqueles que
deveriam compor o governo interino (excluindo mulheres e pessoas
negras com base nessa lógica).
Nesse contexto, é importante evidenciarmos as diferenças nas
representações de Dilma e Marcela Temer23. Diferenças encontradas não
só no cenário político, mas também no próprio curso da vida, de maneira
hierárquica e etária. Dilma tem posicionamento político e entrou para a
história como primeira presidenta do Brasil. Além das críticas políticas
e econômicas feitas ao seu governo desde o primeiro mandato, ela tem
recebido também inúmeros julgamentos ao seu corpo e modo de vestir.
Como uma mulher com mais de sessenta anos e divorciada, Dilma também
foi avaliada pela sua idade, sendo caracterizada inúmeras vezes como “tia”.
Marcela ocupa outro lugar no cenário político: esposa de político.
Com 33 anos de idade, sua juventude é vangloriada por parte da mídia.
No dia 18 de abril de 2016 a Revista Veja publicou um texto, assinado pela jornalista Juliana
Linhares, com o seguinte título “Marcela Temer: bela, recatada e do lar”. O texto repercutiu
nas redes sociais, causando reações diversas. É a esse texto, sobretudo, que fazemos referência.
23
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Enquanto Dilma é caracteriza como histérica e estressada, Marcela é vista
como uma moça tranquila e boa esposa. Quanto à sexualidade, Dilma é
estimulada a “transar mais” para combater o stress, enquanto Marcela é
descrita como “bela, recatada e do lar”. Na diferença de representação
dessas duas mulheres, podemos perceber claramente qual é o papel
exaltado como feminino. Embora Dilma tenha ocupado o cargo mais
importante do país, Marcela é quem ganha as graças da mídia, justamente
por colocar-se apenas em seu lugar: o lar.
OS DISCURSOS DO IMPEACHMENT
Sabemos que analisar situações em torno de um contexto político
e de gênero requer cuidado em torno das relações entre política, mídia
e opinião. No contexto do impeachment da presidenta, os espaços
midiáticos articularam discursos que reiteram as normas regulatórias do
contexto social e propagam uma linguagem excludente. Discursos cujo
intuito é enquadrar, classificar, distinguir, delimitar, examinar, nomear,
definir corpos e maneiras para lidar com eles.
O presente ensaio teve como objetivo abordar, sinteticamente, os
diversos discursos que foram produzidos no contexto de transição do
governo de Dilma Rousseff para o governo interino de Michel Temer,
buscando compreender como eles eram produzidos e quais eram seus
conteúdos. Há o intuito, também, de se criar um registro sobre o que
estamos vivendo neste momento, mesmo que a partir de impressões.
Nas matérias analisadas, percebemos a retomada de aspectos íntimos
da vida da presidenta eleita Dilma Rousseff, tais como seu peso e suas
metas para perdê-lo, suas roupas e porte. Tais aspectos passam a ser mais
importantes do que a posição política de Dilma, a primeira mulher a
ocupar a presidência no Brasil. Além disso, a análise demonstra qual seria
o lugar das mulheres na sociedade: o espaço doméstico e os cuidados com
o lar. Mais importante que destacar a competência política e formação
intelectual de Dilma foi enfatizar, conforme a lógica dos padrões estéticos
vigentes, sua falta de beleza, seu peso excessivo, sua falta de carisma e
feminilidade.
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Notamos também duas estratégias centrais que foram acionadas nos
comentários da internet: a) a oposição como tática retórica para demonstrar
a impertinência do comentário que se pretende refutar e b) o acionamento
de enunciados que menosprezavam aqueles que sustentassem opiniões
contrárias à da pessoa que comenta. Esses recursos certamente ajudaram
a promover uma separação radical entre sujeitos posicionados de lados
opostos, permitindo que discursos preconceituosos e de ódio fossem
proferidos. Diante da instabilidade política do país, agravou-se um cenário
de enunciações desrespeitosas para com mulheres, pessoas negras, pobres
e nordestinas, em especial defensores do Partido dos Trabalhadores ou de
Dilma Rousseff.
Nas sucintas análises realizadas acima, mostramos como os
discursos produzidos no contexto de matérias publicadas por veículos
de comunicação de grande difusão apontaram para uma tentativa de
desvalorização de determinados sujeitos, principalmente mulheres, a
partir da retomada de discursos conservadores24. Em relação à presidenta
eleita Dilma Rousseff, percebeu-se que a maior parte dos enunciados
buscou demonstrar como ela era incapaz de exercer seu cargo político,
principalmente por causa de sua condição de mulher. Ser mulher esteve
atrelado à histeria, ao descontrole e à domesticidade. Os sujeitos que
possuem tais características foram considerados inaptos para ascenderem
às esferas de poder tanto pelas matérias quanto pelos comentários.
Outro ponto de destaque da investigação realizada é a proliferação de
pronunciamentos que expressam ódio em relação à raça e classe: muitos
dos posts mostravam como negras e pobres estavam erradas em suas
escolhas eleitorais, porque supostamente apoiavam o governo de Dilma
e do Partido dos Trabalhadores, e como eles não possuíam legitimidade
para se posicionar, na medida em que não tinham capacidade intelectual/
moral para fazê-lo.
Trata-se da retomada de valores que vigoraram em tempos passados, que se contrapõem
às mudanças nos sistemas de valores, crenças e costumes. No caso do presente texto, esses
discursos recobram, sobretudo, a afirmação da posição doméstica da mulher.
24
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__________. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. 1ª ed. Buenos Aires:
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__________. Marcos de guerra: las vidas lloradas. 1º ed. Buenos Aires: Paidós,
2010.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 18ª ed. Rio de
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PISCITELLI, A. Recriando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, L. A
prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos. Campinas: IFCH/
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RANCIÈRE, J. Ten thesis on politics. Theory & Event, Maryland, v.5, p.116, 2001.
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br/450027_UMA+PRESIDENTE+FORA+DE+SI/>. Acesso em
junho de 2016.
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G1, Imprensa internacional destaca afastamento de Dilma Rousseff. Disponível
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Acesso em junho de 2016.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016
RELAÇÕES FAMILIARES, GÊNERO
E O GRANDE CONTRÁRIO: TONALIDADES
TOTALITÁRIAS NO BRASIL DA CRISE
Juliana Spagnol Sechinato1
Rodrigo Fessel Sega2
RESUMO: O recente processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a tomada
presidencial de Michel Temer, em 2016, não foi consenso entre os brasileiros. Participando
cotidianamente do debate político marcado por forte estigmatizações sociais, por vezes,
tratávamos e tratamos o outro como um rival. Neste ambiente polarizado, muitas vezes,
a estratégia dos sujeitos foi de ridicularizar, excluir e/ou negar o outro. Nesse sentido,
este artigo é um esforço em compreender este período de atropelamentos políticos
que estamos vivenciando e sentindo no cotidiano quando dentro da família temos
que conviver com um “grande contrário” em tempos de crise; em revelar um conflito
latente com aqueles que amamos e que esse cenário de crise não poupou. Partimos de
experiências e dos relatos cotidianos para entender essas tensões políticas com tonalidades
autoritárias que se acomodaram no ambiente familiar quando hostilidade e amor, enfim,
se confundiram. Destacamos, ainda, as assimetrias de gênero no seio e no conflito familiar
em que os estereótipos emergem do conflito político, para pensar como a negação do
outro, ao mesmo tempo em que pode representar o salvamento de si, não o faz sem causar
sofrimento no deslocamento e na suspensão de status na cédula familiar.
PALAVRAS-CHAVE: Conflito; Estigma, massas; Redes de poder; Performatividade.
Mestra em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS/UFSCar). E-mail: jusechinato@gmail.com
2
Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de São Carlos (PPGS/UFSCar) e doutorando em Sociologia no Programa de Pós
Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Campinas (PPGS/UNICAMP). E-mail:
rodrigofsega@gmail.com
1
202
Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega
INTRODUÇÃO
Sentados no banquinho do centro da cidade, conversando com
uma senhora sobre o processo de impeachment da Presidenta da República
Federativa do Brasil, reeleita em 2014, Dilma Rousseff, do Partido dos
Trabalhadores (PT), e as novas direções do governo interino do vicepresidente Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB), o panfleteiro de repente interrompe: “Desculpa,
eu ouvi a conversa e preciso perguntar: foi golpe ou não foi?”. Daí em
diante, nós3 colocamos em pauta até o Programa Bolsa Família4 e o papo
continuou sem que ele deixasse de entregar os panfletos a quem passasse.
O interesse pela política chegou atropelando um senhor que
conversava sobre o clima com o atendente de caixa do mercado. Ao
perguntar, despretensiosamente, se achava que o clima estava feio – pois
temia que chovesse e ainda queria comprar uns maços de cigarro antes de
voltar para casa –, o caixa respondeu que o clima estava pesado no Brasil.
O senhor, confuso, sorriu desconcertado.
Esse interesse atropelado chegou à padaria, às escolas, às
universidades, aos jornais, aos pontos de ônibus – e dentro deles também.
Chegou e ficou entre os panfleteiros do centro à classe médica. E chegou
às nossas famílias. Em um país onde se julga que religião, futebol e
política não se discutem, veio a pergunta: “Não era isso que havíamos,
longinquamente, desejado?”.
Este artigo, embora compelido pelos dois autores, é fruto dos debates realizados no
contexto da greve dos alunos, docentes e funcionários da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Grupo de Trabalho
“Gênero e Sexualidade na atual conjuntura”, da UNICAMP. É resultado e consequência
daquilo que foi ouvido, informado, dito, discutido, e silenciado na relação entre os seus autores
e os muitos outras e outros. As personagens e os enredos das histórias contadas aqui foram
embaralhadas e optamos por usar o termo “nós” para preservar a identificação das pessoas
envolvidas.
4
Proposto em 2003 pelo Governo Federal, e previsto pela Lei Federal nº 10.836, de 9 de janeiro
de 2004, o Programa Bolsa Família é um programa social de transferência de renda baseado
em complemento de renda, acesso a direitos e articulação com outras ações e programas do
estado (BRASIL, 2015).
3
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Relações familiares, gênero e o grande contrário:...
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A polêmica invadiu nossas casas. A grande contradição assentou-se
sobre nossas famílias e nosso cotidiano. No jantar, no café da manhã e na
hora da novela. O grande contrário entrou elegante pela porta da frente e
brincou conosco no casamento do nosso tio: “Soube que tem alguém aqui
nessa mesa que vai votar naquele partido... Espero que não ganhe e que
ela volte no pau de arara de onde veio”. Choque: nós, nossos pais, nossos
irmãos, primos e tios. Já o amigo do tio saiu leve com a tal brincadeira.
A única defesa que conseguimos foi de nosso irmão. Contudo,
sabíamos que no próximo domingo ele iria votar no outro candidato. Ao
final do dia seguinte, na sala da nossa casa, foi anunciado que este tinha
ficado em segundo lugar nas eleições federais. Agora raivoso, nosso irmão
se incomodou profundamente com nossa satisfação.
Se, por um lado, chegou ao ponto em que era inevitável o choque
entre os grandes contrários e nós fomos, em algum momento, orientados
a negar esses embates políticos mais diretos, orientados a debater
pedagogicamente ou esculachá-lo, hoje nós que somos atropelados por
eles.
Opiniões avessas, propostas políticas contrárias e ideologias
antagônicas passaram a ser defendidas com maior impetuosidade.
Os contrários já existiam, mas agora nossas convicções ficaram mais
equidistantes. Vivenciamos o tempo dos grandes contrários, em que ver o
outro no horizonte está mais difícil, embora almoçando na mesma mesa
aos domingos.
Este artigo representa um esforço em compreender este período de
atropelamentos políticos que estamos vivenciando e sentindo no cotidiano
familiar. Focamos na família – na nossa e em muitas outras – por perceber
a dificuldade de convivência que vem paulatinamente se assentando com
aqueles que desenvolvemos relações familiares.
O que se segue vem das experiências e dos relatos das estratégias
cotidianas para lidar com as tensões políticas somadas aos autoritarismos
que se acomodaram no ambiente familiar. Vem do desconcerto de não
sabermos o que fazer com o afeto que temos uns pelos outros quando
inventamos uma desculpa para não irmos ao aniversário do avô, por conta
daquela tia que nos incomoda com suas ideias sobre política nacional.
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Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega
Já não conseguimos disfarçar a falta de coragem de sentar à mesa para o
jantar, ou a cara de desconforto ao encontrar o cunhado que, não mais que
de repente, brada normas morais e análises políticas. Hostilidade e amor,
enfim, se confundiam.
Como essas sensações afetam nossas vidas? Quais estratégias são
lançadas para evitar ou enfrentar o grande contrário? Como compreender
esse momento social de pluralidades rígidas e estigmatizadas dentro
da própria família? Como as diferenças de gênero e hierarquizações
familiares deslocam posições de poder e de legitimidade entre aqueles
que convivemos? Como continuar amando aquele que em determinados
contextos nos defende e se preocupa conosco, mas em outros é ofensivo,
raivoso e nos humilha? Como continuar amando aquele cuja nossa
felicidade o incomoda?
Esse ensaio, portanto, trata do cotidiano das famílias que viveram
e ainda vivem esse momento político no Brasil e que convivem com os
grandes contrários dentro das suas – e nossas – redes familiares. Mais do
que explorar saídas, o que se segue é uma reflexão sobre aqueles que não
têm como alternativa ignorar ou fugir do embate.
A QUE ‘NÓS’ EU PERTENÇO?
Uma Presidenta, eleita legitimamente, afastada. Um vice-presidente
que rompe coligações aliadas e se junta aos partidos declarados
ideologicamente opostos. Um processo de impeachment pleiteado pela grande
mídia, acusada, por sua vez, pela oposição e pelas mídias independentes de
ser o verniz de um Golpe de Estado. Grupos conservadores marchando em
ensolarados domingos, clamando por justiça e com cartazes reivindicando
“a volta da ditadura militar”. A palavra “crise” sendo pronunciada ora
aos sussurros, ora aos berros, estampando capas de revistas de ampla
circulação nacional e mencionada em títulos de blogs classificados como
comunistas.
O aprendizado e a reiteração na vida social das categorias do
“petralha” e do “coxinha”, cuja apropriação por grupos sociais que se
reconhecem em posições não apenas diferentes, mas manifestamente
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016
Relações familiares, gênero e o grande contrário:...
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incompatíveis, se dá por meio da consolidação de cores, símbolos e
signos identitários (vermelho versus verde e amarelo; estrela versus tucano;
mortadela versus caviar; impeachment versus golpe etc.). Vivenciamos a
ressignificação das inteligibilidades da vida social, a reatualização das redes
de poder – desde o âmbito nacional até as relações mais íntimas – e o
rearranjo de estigmas.
Segundo Goffman (2004), os estigmas, tratados como “defeito”,
tentam, por meio de marcações físicas ou simbólicas, desqualificar
moralmente o estigmatizado. Ao estigmatizar, estabelecem-se distinções
entre o eu e o outro.
Por meio de fragmentos de discursos, os estigmas formam um
conjunto de significados que operam através de preconcepções. Os
estigmas geram expectativas normativas sobre a identidade social daquele
ao qual nos relacionamos, operando, assim, como uma organização
cognitiva de como o outro é visto e daquilo que é esperado dele.
Nesse trânsito (des)ordenado, a tendência de organização de uma
massa que adere a um tipo de discurso com tonalidades totalitaristas5
nos assusta pela estigmatização compulsória e galopante, que não poupa
nossas relações e nossos afetos mais genuínos. É nesse sentido que
Hannah Arendt nos parece uma boa interlocutora para pensar a família –
e a nós mesmos – que temos vividos, cotidianamente, esse novo momento
político.
Os escritos de Arendt foram confeccionados no catastrófico
período do entre guerras, da estigmatização e da exclusão de determinados
grupos sociais. Embora compreendamos que o período brasileiro não se
configura, até o atual momento, em um sistema político no qual o Estado
não reconhece qualquer limite à sua autoridade, é notável a organização
Tal como Arendt (2013, p. 342), utilizamos a palavra “totalitarismo” com cautela.
Compreendemos que existem ainda diferenças cruciais entre o atual período político brasileiro
e o período totalitarista o qual Arendt experienciou, tanto no grande cenário, como nas
entrelinhas do contexto, tais como a aliança temporária entre a elite e a “ralé” (grupos excluído
socialmente, moralmente e fisicamente, com os prisioneiros, as prostitutas, os criminosos, etc.)
(ibidem, p. 376-82), a exclusão máxima da vida através dos campos de extermínio (ibidem, p.
28) e o total altruísmo de seus adeptos (ibidem, p. 357), o que nos faz ter um cuidado maior ao
articular o termo.
5
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Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega
de uma massa de pessoas clamando por uma maior regulação moralista do
Estado e pelo Estado na vida social.
As massas não se unem pela consciência de um interesse
comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes
que se expressa em objetivos determinados, limitados e
atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com
pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua
indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem
integrar numa organização baseada no interesse comum,
seja partido político, organização profissional ou sindicato
de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em
qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e
politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido
e raramente exercem o poder de voto (ARENDT, 2013, p.
361).
As manifestações das massas nas ruas é algo que vem se tornando
cada vez mais familiar. Adquirem nuances de movimentos totalitários
quando esses sujeitos desenvolveram certo gosto por uma organização
política arbitrária, em que a negação do outro é o modo mais acessível
para se justificar.
Ao passo que as normas e as regulações que reivindicam comportam
e comprometem a liberdade de expressão de outros grupos ou pessoas,
ou evocam, ainda que silenciosamente, a estigmatização e a exclusão do
próximo,
[...] há situações em que, com certeza, todos devemos assumir
a responsabilidade por nós mesmos. Entretanto, à luz dessa
formulação, despontam para mim algumas questões críticas:
sou responsável apenas por mim mesmo? Existem outros
por quem sou responsável? [...] Sou responsável por todos
os outros ou só por alguns? [...] é possível ao menos pensar
em mim sem esse mundo de outros? Na verdade, pode ser
que, através do processo de assumir responsabilidade, o
‘eu’ se revele, pelo menos parcialmente, um nós? [...] Mas
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então quem estaria no ‘nós’ que pareço ser ou do qual
pareço fazer parte? [...] a que ‘nós’ eu pertenço? [...] quais
enquadramentos implícitos da condição de ser reconhecido
estão em jogo quando ‘reconheço’ alguém como ‘parecido’
comigo? Que ordem política implícita produz e regula as
semelhanças nesses casos? (BUTLER, 2015, p. 60).
Pensando os contextos de guerras e de conflitos como Hannah
Arendt, Judith Butler escreve “Quadros de Guerra” (2015) em resposta
às guerras contemporâneas. Separadas por momentos históricos distintos,
as autoras se preocupam em compreender esses períodos de exceção
por meio de como as violências – muitas vezes não apenas simbólicas –
permeiam os vínculos sociais na modernidade.
Trazemos ao texto o “nós” para pensá-lo em conjunto com essas
autoras. A noção de sujeito produzida nos períodos de guerra nos faz pensar
em nossas famílias, cujas conturbadas relações tem a potencialidade de
intensificar a violência simbólica e física no período que experimentamos.
Se antes, indiferentes; agora, nacionalistas. Antes, partidários; hoje,
revisionistas. Antes, apartidários; hoje, autoritários. Exemplos como esses
fazem-nos considerar o momento atual brasileiro como um período de
exceção, pois entendemos que estamos passando por uma latente revisão
e reorganização da vida social, em que os velhos contratos sociais foram
postos em riscos, deixando, no entanto, os pilares da casa em pé.
Transtornos políticos de massa que coloquem as ordens
antigas em caos e engendrem novas, podem revisar os termos
(e, portanto, a organização) do gênero na sua procura de
novas formas de legitimação. Mas eles podem não fazê-lo;
[...]. A emergência de novos tipos de símbolos culturais pode
tornar possível a reinterpretação ou mesmo a reescritura
da história Edipiana, mas ela pode servir para atualizar
este drama terrível em termos ainda mais eloquentes. São
os processos políticos que vão determinar o resultado de
quem vencerá – político no sentido de que vários atores e
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várias significações se enfrentam para conseguir o controle.
A natureza desse processo, dos atores e das ações, só pode
ser determinada especificamente se situada no espaço e no
tempo (SCOTT, 1989, p. 15).
Atualmente, um dos elementos centrais para compreender como os
estigmas se disseminam pelas massas é a associação frequente e impiedosa
entre as elites brasileiras e a grande mídia, que expõem, maquiavelicamente,
as contradições da vida social, antagonizando o mal, o errado, o corrupto
e o outro, o bom, o certo e o honesto.
Como observa Arendt (2013, p. 530), “O famoso extremismo
dos movimentos totalitários, longe de se relacionar com o verdadeiro
radicalismo, consiste, na verdade, em ‘pensar o pior’, nesse processo
dedutivo que sempre leva às piores conclusões possíveis”.
As contradições, agora, e mais do antes para aqueles que ainda
não haviam vivido tal conflito político, estão expostas à luz do dia, entre
sons e imagens construídas com muita destreza e veiculadas nos jornais
nacionais, nos programas de rádio, disseminadas por grupos de Whatsapp
e na boca de personalidades famosas e carismáticas, como também nas
prosas do dia-a-dia com nossos pais, irmãos, primos e parceiros.
Antes que a política totalitária conscientemente atacasse
e destruísse a própria estrutura da civilização europeia,
a explosão de 1914 e suas graves consequências de
instabilidade haviam destruído a fachada do sistema político
— o bastante para deixar à mostra o seu esqueleto. Ficou
visível o sofrimento de um número cada vez maior de
grupos de pessoas às quais, subitamente, já não se aplicavam
as regras do mundo que as rodeava. Era precisamente a
aparente estabilidade do mundo exterior que levava cada
grupo expulso de suas fronteiras, antes protetoras, a parecer
uma infeliz exceção a uma regra sadia e normal, e que, ao
mesmo tempo, inspirava igual cinismo tanto às vítimas
quanto aos observadores de um destino aparentemente
injusto e anormal. Para ambos, esse cinismo parecia
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sabedoria em relação às coisas do mundo, mas na verdade
todos estavam mais perplexos e, portanto, mais ignorantes
do que nunca (ARENDT, 2013, p. 300).
A regularidade das manifestações do próximo nos assusta, pois
nos indagamos se seus adeptos, ao produzir e reproduzir os estigmas e a
negação do outro, ainda tem o potencial de reconhecer o outro enquanto
humano. Sobre os estigmatizadores, Goffman (2004, p. 8) aponta que,
“isolado por sua alienação, protegido por crenças de identidade próprias,
ele sente que é um ser humano completamente normal e que nós é que
não somos suficientemente humanos”.
O mais humano, aquele que nunca pode ter o estigma para si, ou,
pelo menos, aquele que sabe viver com seu estigma dentro dos padrões
esperados, não se crê potencialmente estigmatizado, e assim se crê fonte de
humanidade e de normalidade. É neste modelo que se baseia a “verdade”,
o que é “normal” e digno de reconhecimento.
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a
múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados
de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
“política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que
ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos
e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que
têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro
(FOUCAULT, 1979, p. 12).
O que Foucault (1979) chama de regimes de verdade são os
mecanismos e as instâncias que produzem verdades e se relacionam com
este momento político em que vivemos, dando prestígio a comportamentos
específicos. São redes de controle, e por isso de poder, imbricadas em
instituições governamentais e também cotidianas que reatualizam discursos
categóricos e que regulam distinções.
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As fronteiras protetoras desse regime de verdades, ao serem
desnudadas para as massas por meio dos discursos e de bandeiras midiáticas
de grande circulação nacional, produz não um reconhecimento da nossa
humanidade frágil e solitária, mas um terror e um medo que ronda nossa
época e que habita determinados grupos sociais.
Com base nos discursos de amplo alcance popular e nas próprias
crenças, que pelo contexto de efervescência política agora se requerem
públicas e sólidas, nosso cotidiano familiar foi alagado por um dia-a-dia
não poupado de polêmicas que nenhum jornal ou rede social deixou
apagar.
Está fora de moda não discutir política, está fora de questão não ter
posição. Quando nos damos conta, o nicho familiar, ao invés de abrigar
sementes de uma mesma consciência e simbolizar um lugar de resistência
ou respeitar os contraditórios pontos de vista, emerge como um latente
campo de guerra, agregando agora grandes contrários.
Os debates que antes se mostravam até certo ponto tranquilos,
parecem se transformar em conflitos carregados de ódio, que outrora
desconfiava dos estigmatizados e dos desconhecidos, mas agora não
poupa nós, nossos pais e irmãos. Nas crenças que não abrem mais espaços
para questionamentos, também não há mais espaço para o outro, que é
excluído, negado e hostilizado.
As tonalidades totalitaristas, que se fazem férteis e se constroem
nos movimentos de massa do Brasil atual, são pensadas aqui a partir dessa
lente. O “raciocínio frio como o gelo”, tal como diz Arendt (2013, p.
530), é mais do que uma violência gratuita contra o outro no centro da
célula familiar. É, antes, um salvamento de si, é o medo de perder um “eu”
construído fora da possibilidade das contradições humanas.
Os nós só existem quando há algum tipo de cisão e o grande
contrário só existe quando também somos contrários de outros. A dúvida
que nos restou, agora, é como conviver nesse espaço sem abandonar a nós
e nem ao outro, sem excluir violentamente aqueles que vamos continuar
amando.
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O problema não é apenas como incluir mais pessoas nas
normas existentes, mas sim considerar como as normas
existentes atribuem reconhecimento da forma diferenciada.
Que novas normas são possíveis e como são forjadas? O que
poderia ser feito para produzir um conjunto de condições
mais igualitário da condição de ser reconhecido? Em outras
palavras, o que poderia ser feito para mudar os próprios
termos da condição de ser reconhecido a fim de produzir
resultados mais radicalmente democráticos? (BUTLER,
2015, p. 20).
GÊNERO IMPORTA, FAMÍLIA IMPORTA
Nosso irmão zombou aquele dia da nossa cara e não parou mais.
Acusou-nos de corruptas. “O país está no buraco e você defende ladrão?
Você quer sua família perca tudo o que conseguiu trabalhando duro?”.
Pelas perguntas que não requerem respostas, mas sim obediência, as
palavras nos faltam algumas horas.
Dentro do conflito familiar nesse contexto político brasileiro, diante
de tantos debates e diálogos que nós ouvimos e falamos, percebemos algo
peculiar nos momentos de tensão compartilhados: mulheres que, sendo
elas historicamente a expressão do contrário, foram tratadas nas relações
familiares como desviantes, hostilizadas por teias de poderes patriarcais
que exercem sobre nós insistentes provocações intelectuais, causando dor
e isolamento familiar.
Essas tensões familiares e assimetrias de gênero que vivemos não
é exclusiva de nosso tempo, desse período de exceção e da revisão dos
significantes sociais. Contudo, a maneira impositiva como aparecem,
associadas à “crise” econômica, a evocação moral dos senadores em nome
da família e de Deus para destituir uma Presidenta6, essencializa uma ideia
No dia 17 de abril de 2016, em que houve a votação na Câmara dos Deputados pela
instauração do pedido de impeachment, aceito pelo então presidente da casa, Eduardo Cunha,
dos 513 deputados (dos quais, cabe dizer, apenas 45 são mulheres), 367 votaram a favor da
instauração do processo. Dentre as justificativas dos favoráveis, Deus foi citado 58 vezes,
família 110 vezes e 78 parlamentares dedicaram os votos aos seus filhos, contando ainda, entre
outras bizarrices, com uma dedicação ao general militar que ordenava e que torturou Dilma
6
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de mulher e de feminino bastante perigosa para “nós”.
Estes processos políticos ressignificam, nestes lares da crise,
as experiências generificadas que foram cultivadas em nossas relações
familiares, percebidas, muitas vezes, ora legitimando a violência doméstica,
ora tentando regular e reduzir uma feminilidade boa ou ruim dependendo
de quem nós votamos nas últimas eleições.
Entretanto, se os processos políticos ditam como as significações
de gênero mudam, as ressignificações de gênero também determinam os
processos políticos. Joan Scott (1989) nos ajuda a realizar esse movimento
analítico entre período de exceção e de revisão de símbolos culturais
a partir do conceito de gênero, categoria que utiliza como referência para
analisar o poder político.
O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o
poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se
refere à oposição masculino/feminino e fundamenta ao
mesmo tempo seu sentido. Para reivindicar o poder político,
a referência tem que parecer segura e fixa fora de qualquer
construção humana, fazendo parte da ordem natural ou
divina. Desta forma, a oposição binária e o processo social
das relações de gênero tornam-se, os dois, parte do sentido
do poder, ele mesmo. Colocar em questão ou mudar um
aspecto ameaça o sistema por inteiro (SCOTT, 1989, p. 15).
Reivindicar o poder político é reivindicar um lugar para as
masculinidades e feminilidades na sociedade. Não é casualidade que
Deus (ordem divina) e a família heterossexual, casada, monogâmica, com
filhos e higienizada de suas contradições (ordem natural), são fortemente
evocadas pelos deputados que aprovaram, no congresso, a instauração do
processo de impeachment, mas também pela grande mídia, por bon vivants em
Rousseff na época de sua prisão durante a Ditadura Militar no Brasil. Fonte: <http://g1.globo.
com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/04/deus-filhos-veja-ostermos-mais-citados-na-votacao-do-impeachment.html>, acessado em 02/08/2016.
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eventos beneficentes, por nossas mães, pais, irmãs, irmãos, avós, avôs, tios,
sobrinhas e parentes distantes.
Em momentos de instabilidades sociais e de perda de referenciais
políticos, acreditar em essencialismos binários, também de gênero, parece
fazer sentido para as massas insatisfeitas e amedrontadas.
O grande contrário também é uma rede de relações situacionais
que está sendo combatido ou defendido por meio da naturalização de
classificações e de estigmas políticos (“comunista” e o “coxinha”, “cidadão
de bem” e o “baderneiro” etc.) e de modelos identitários de gênero
(“o corrupto” e “a vagabunda”, “tchau querida” e “o patriota” etc.), tanto
no ambiente público quanto dentro das nossas famílias.
Entretanto, não compreendemos gênero como a essência do ser, mas
enquanto ato discursivo performativo, enquanto prática, comportamento
aprendido pela vivência cotidiana, como “prática reiterativa e citacional
pela qual o discurso produz os efeitos que nomeia” (BUTLER, 2001,
p. 18). A ênfase da performatividade do gênero recai sobre esse aspecto:
pensá-lo enquanto discursos que tem a capacidade de produzir aquilo que
anuncia. Não mais em “ser” feminino ou masculino, mas em “tornar-se”
femininos ou masculinos específicos.
A força da performatividade reside justamente em conseguir
naturalizar classificações, modelos ou comportamentos, uma vez que
ao ser repetidamente citada essa norma, produz um apagamento dos
dispositivos que a produzem.
Aqui, compreendemos que selecionar um modelo de feminilidade,
de masculinidade e de família como legítimo é também hierarquizar
os modelos praticados no social. É dessa seleção e dessa classificação
contextual e moralmente mais rígida, mais polarizada, com tonalidades
menos variadas e contrastes mais intensificados, que observamos a família
e a construção de assimetrias de gênero estigmatizadas.
Os estigmas se deslocaram e não sabemos muito bem, ainda, para
onde foram e para onde nos levaram. Somos impelidos a revisitar aquilo
que estava naturalizado e que crescemos naturalizando nas relações entre
nossos familiares.
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Amamos o outro e, por isso, a rigidez por meio da qual os estigmas
recaem sobre todos nós, nos leva a repensar os limites das negociações
entre as diferentes gerações, entre a feminilidade e a masculinidade, entre
as autoridades e as liberdades que performamos na mesa de domingo,
cheia de pratos com macarronada e de posicionamentos diversos.
Compreendemos a performatividade do gênero como um ideal
regulador (FOUCAULT, 1993), que gesta desejos e comportamentos que
ao mesmo tempo são construídos e constroem a própria noção do que é
um brasileiro e uma brasileira “boa” e “normal”.
Não apenas nos informa as práticas sociais, mas articula discursos
morais, gesta representações e corporalidades privilegiadas, naturalizando
e favorecendo categorizações generificadas e, por consequência, gerindo e
legitimando um modelo de família.
Ao negociar a legitimidade e a legalidade da nossa subjetividade
perante nossa família, não necessariamente corremos o risco de perder
nosso vínculo com eles, mas de perder a nossa humanidade já confessada
por eles. Se não negociarmos, corremos o risco de perde-la para nós
mesmos.
Então, nos questionamos, o que fazemos com o nosso amor,
principalmente com aquelas pessoas que temos uma história singular pelos
laços familiares? Para onde deslocamos nossos afetos se não podemos
mais reiterar identicamente a mesma performatividade sem que ela seja
violentada e que não violentemos a performatividade do outro?
Pensar nessas redes em que, atualmente, o conflito político é latente,
é lidar com o “grande contrário”, com as contradições que se tornaram mais
rígidas e que estamos experienciando no convívio com nossos parentes.
Ora estamos curiosos para entender o outro, ora estamos estigmatizando
e, assim, recebendo de volta um outro estigma para nós.
As expectativas geradas sobre como o outro é visto e o que é
esperado dele, neste contexto de conflito familiar, geram uma instabilidade
emocional. Esses estigmas sobre nossa identidade pessoal e social estão
sendo reatualizados, renegociados e reorganizados.
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[...] no final das contas, é a capacidade de sobrevivência
do eu que está em questão. Porque o eu? Afinal, se minha
capacidade de sobrevivência depende da relação com o
outro – com um “você” ou com um conjunto de “vocês”
sem os quais não posso existir –, então minha experiência
não é apenas minha e pode ser encontrada fora de mim,
nesse conjunto de relações que precedem e exercem as
fronteiras de quem sou. [...] Assim, a fronteira é uma função
de relação, uma gestão da diferença, uma negociação na
qual estou ligado a você na medida da minha separação. Se
procuro preservar sua vida, não é apenas porque procuro
preservar a minha própria, mas também porque quem “eu”
sou não é nada sem a sua vida, e a própria vida deve ser
repensada como esse conjunto de relações – complexas,
apaixonadas, antagônicas e necessárias – com os outros
(BUTLER, 2015, p. 72-3).
Buscamos, então, o reconhecimento do eu, primeiramente, naquilo
que nos é mais familiar, naquela socialização mais primária e basilar,
naquelas pessoas com as quais crescemos juntos e hoje fazem parte de
nós. No entanto, neste momento de exceção, o conflito familiar mostrou
potencializar-se devido às contradições expostas rigidamente no meio
social, disseminadas em larga escala entre as massas pela grande mídia e
pelas redes sociais da internet.
Talvez seja nos momentos de estar entre os nossos que buscamos
não apenas o conforto do outro, mas também a nós mesmo, o encontro
com o nosso próprio eu. Estas buscas, quando fogem à ordem da rotina
familiar, ou seja, nos períodos de exceção, trilham caminhos que, pouco
explorados, podem sabotar as próprias relações que as sustentam.
A crise de âmbito nacional – quer ela exista ou não – é praticada
no cotidiano como real pelas massas e é também uma crise da identidade
social e de reconhecimento de si pelo outro. É uma crise das configurações
de gênero, das relações diferenciadas entre irmãs, entre irmãos e entre
irmãs e irmãos. Entre pais e mães, e entre pais e filhas, mães e filhas, avós
e netos, sobrinhos e enteadas.
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Ao perceber que aquele familiar mais familiar que temos afeto
não corresponde às nossas expectativas, não nos reconhece e nos coloca
hostilmente do outro lado do front, sentimos que a solidão que pode
devastar o ser humano aparece como um profundo frio na barriga. Se o
que torna a solidão insuportável é a perda do próprio eu (ARENDT, 2013,
p. 529), então o grande contrário carrega esse medo da perda de si, antes
mesmo da perda do outro.
Quando o grande contrário é confirmado no clima familiar, em
nossas explicações e em nossas justificativas para as tias que nos incomodam
e as quais também incomodamos, ele tem o potencial assolador de, por
meio do estranhamento do outro que lhe era familiar, não reconhecer a si
mesmo, gerando reações abruptas e violentas.
Neste contexto, consideramos que as experiências das mulheres,
em particular, têm sido ocultadas pelo uso genérico e homogêneo das
unidades de análise como família cuja tendência é de se igualar a categoria
mulher, enquanto a categoria homem é separada e lhe é concedida um
status individualizado (THORNE, 1982).
Quando pesquisamos a família pela perspectiva dos estudos de
gênero, percebemos ela não apenas como um ponto de partida para a
solidariedade de gênero, em que as mulheres têm centralidade e voz nos
processos decisórios cotidianos (VALE DE ALMEIDA, 1995), mas
também como um lócus de opressão feminina (GABACCIA, 1992, p. XIV).
Pensar a família é uma tentativa de compreender aonde existem e
resistem os estereótipos aprendidos e reiterados nas massas. É uma tentativa
de compreender como as assimetrias e as performatividades de gênero
importam ao analisar a sociedade brasileira, sobretudo quando discutimos
as relações de poder e de autoridade no seio familiar (MOROKVASIC;
EREL; SHINOZAKI, 2003).
“A FAMÍLIA”
Um parente distante tomou a liberdade de escrever em uma
postagem no nosso Facebook: “Eu também já fui como você, na minha
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época votei no fulano várias vezes, mas não percebia o quanto ele era
corrupto”. No aniversário do vô, apesar da nossa falta de coragem de
estar lá ser evidente, sentou ao nosso lado aquela tia que nos incomoda,
com todo seu peso emocional e olhos intrigados. Disfarçamos pedindo
mais um pedaço de carne, que soou mais como um pedido de socorro.
Sentimos todos nos olhando enquanto éramos esmagados pelo clima
pesado que pairou sobre nós.
Temos um afeto por eles (em diferentes graus, obviamente):
crescemos juntos, nos pediram ajuda, nos apoiamos em momentos
diferentes da vida e também já fomos apoiados, mas o estranhamento
deles, neste momento conturbado de incertezas e de rigidezes, envernizava
seus corpos, impedindo-os de sentir nosso terror àquela situação.
A tia, enfim, como que em tom professoral, fez a pergunta: “Mas
você acredita mesmo que esse partido corrupto seja bonzinho?”. Todos
ao redor, cheirando a fumaça e a cerveja, se movimentaram lentamente.
Uns pararam de mastigar, disfarçando o indisfarçável. Outros, abaixaram
um pouco o tom da voz.
Nós, pegos de surpresa pela facilidade com que a tia nos disparou
as palavras – como se fôssemos crianças –, só conseguimos pedir para
que esperasse um minuto, pois iríamos pegar o pão para comer junto
com a carne malpassada, sangrando, salgada e ardente, recém-saída do
fogo da churrasqueira, mas entregue a nós por um primo risonho. Nos
sentíamos acuados ou ultrajados, mas conseguimos ganhar um tempo
estratégico para organizar nossas ideias e fazer com que elas soassem as
menos violentas possíveis.
“A Família”, com suas letras maiúsculas e entre aspas, segundo
Thorne (1982), é uma construção ideológica que distorce a função de criar
e de educar para uma coletividade de pessoas específicas (presumivelmente
relações nucleares), associadas aos espaços específicos (domicilio) e aos
vínculos afetivos particulares (amor).
Na linguagem contemporânea, “A Família” frequentemente implica,
além dessas definições, uma divisão sexual do trabalho característico:
um marido que sustenta a família, autônomo e voltado para uma esfera
econômica separada do lar; e uma esposa e mãe, cuja existência é muitas
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vezes sinônimo da própria família.
Hirata e Kergoat (2007) corroboram Thorne (1982) e argumentam
que a própria divisão sexual do trabalho é um reflexo das desigualdades
de gênero sociabilizadas em contextos específicos. Em resumo, a família
nuclear moderna tem sido citada em larga escala como “A Família”
e elevada como o mais desejado e legitimado modelo familiar.
Esse modelo está implícito e explicito no nosso cotidiano, das
políticas públicas às convenções sociais. Esse é o modelo legitimado de
família, que molda nossas experiências e subjetividades, um modelo aceito
e reproduzido socialmente.
Segundo Souza (2002), todos desenvolvemos performatividades
que garantem nossa aceitação social dentro desse núcleo familiar, no
qual fomos sociabilizados, seja apoiando, confrontando ou ignorando os
membros dessa nossa rede. Entretanto, o momento político mudou.
Inúmeras vezes já foi afirmado que as guerras promoveram
mudanças nas relações entre homens e mulheres, isto é,
que as guerras trouxeram mais oportunidades para elas de
ganharem autonomia financeira, o que, conseqüentemente,
levou à conquista de direitos políticos, reduzindo as
hierarquias de gênero. Será verdade? É isto que a historiadora
citada [Françoise Thébaud]7 focaliza e questiona. Considera
que as mudanças ocorridas foram apenas provisórias, e
que, após a guerra, presenciou-se um retorno aos antigos
significados do gênero, com reforço na rigidez das afirmações
da diferença. Ou seja: é como se, após a guerra (período
considerado de exceção), homens e mulheres tivessem
voltado aos seus “devidos lugares”; assim, todas aquelas que
haviam sido convidadas a participar de diferentes funções
costumeiramente atribuídas aos homens, teriam sido
convidadas a retornar para suas antigas atividades, ligadas à
casa e ao privado (PEDRO, 2005, p. 89).
THÉBAUD, Françoise. A grande guerra. O triunfo da divisão sexual. In: DUBY, Georges
e PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente (O século XX), v.5. Porto:
Afrontamento; São Paulo: Ebradil,1995, p.68.
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A guerra, neste artigo, foi evocada das mais diversas maneiras.
Porém, a que queremos destacar é a negociação travada, muitas vezes
violenta, entre aqueles que amamos. Quando dizemos que gênero importa
é porque conseguimos perceber não apenas a relação entre as tonalidades
totalitárias presentes nos movimentos de massa e nas relações familiares,
mas chamamos à atenção para os estereótipos evocados nessa relação e em
como a figura feminina, quando colocada do lado de lá do front, pode se
tornar mais vulnerável em contextos domésticos, principalmente quando
isolada politicamente.
Não nos basta reconhecer o outro na sua biografia, precisamos
também reconhecer as assimetrias de gênero que o moldam. Nossa
aproximação teórica com Scott (1989), nos proporciona pensar como o
momento político brasileiro leva a revisitar a categoria de gênero dentro
do âmbito familiar.
Só podemos escrever a história desse processo se
reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo
tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque
elas não têm nenhum significado definitivo e transcendente;
transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, elas
contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas
ou reprimidas (SCOTT, 1989, p. 16).
É urgente entender essas categorias como plurais, situacionais e
relacionadas entre si. O período o qual estamos passando, ao adquirir essas
tonalidades totalitárias, nos leva a perguntar não apenas qual é o modelo
socialmente aceito de família, mas quais deslocamentos estão influenciando
nas relações assimétricas de gênero. Propor medidas mais democráticas é
aceitar a ambivalência que essas categorias de reconhecimento comportam.
A crise identitária não indica necessariamente uma transição, mas
uma realocação daquilo que nunca será localizado, sobretudo no seio
familiar. Os estereótipos são percebidos como estruturas de poder e de
conflito, podendo constranger ou ampliar as possibilidades da agência dos
sujeitos generificados.
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Entretanto, o estigma construído dentro e por meio da família tem o
poder talvez não de excluir o outro no sentido de anular ou desertar laços,
mas de categorizar e de designar, mesmo que momentaneamente, um lugar
para aquele membro. Transitar entre esses espaços e momentos, agora um
tanto imprevisíveis, de ódio e de amor, embora no mesmo lugar e com
o mesmo círculo de pessoas – que não desejamos nos afastar, tampouco
queremos –, configura um doloroso desafio aqueles que tiveram seus status
familiares suspensos pelos tempos de “golpe” e de “impeachment”, de
“petralha” e de “coxinha”.
Esse trânsito de suspensão de status não impede que o grande
contrário possa retomar ao seu lugar quando tempos de reconciliação são
lançados, embora sem ainda sabermos como ficarão, a longo prazo, essas
cicatrizes de tempos de ódio.
Nossa pretensão aqui não foi, em nenhum momento, afirmar os
caminhos a serem tomados, mas levantar as possibilidades que esses
conflitos familiares podem nos levar, revelando um espaço em que as
tensões políticas e suas expressões de ódio em tempos de guerra (simbólicas
ou não) não pouparam. Como amar quem nós estamos odiando? Como
minimizar os estragos do nosso ódio àquela pessoa que temos afeto?
A quem confiar nossas experiências?
Embora ainda conflituoso, não temos estas respostas, haja vista que
no meio de discussões tão inevitáveis e públicas, nos pareceu muito mais
simples assumir uma postura política intransigente, esculhambar aquele
que não conhecemos, que não nos orgulharmos, e rirmos daqueles que
não vamos ter com que compartilhar as mesmas toalhas.
O grande contrário é permeado pelas assimetrias de gênero e
quando evocado dentro do núcleo familiar tem a potencialidade de não
reconhecer o outro e nem a si próprio, provocando e, ocasionalmente,
pondo em risco os laços familiares.
Este artigo não buscou uma saída para o que é situacional e
performado, mas reúne nossos esforços em repensar e pôr em evidência as
práticas e as estratégias de sobrevivência no âmbito das relações familiares
neste período de exceção e, consequentemente, de fortes tensões políticas.
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Relações familiares, gênero e o grande contrário:...
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IDEOLOGIA DE GÊNERO?
NOTAS PARA UM DEBATE DE POLÍTICAS E
VIOLÊNCIAS INSTITUCIONAIS1
Alex Barreiro2
Flávio Santiago3
Nathanael Araújo4
Tiago L. C. Vaz Silva5
RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir a respeito do combate às políticas para a
conquista da equidade de direitos e luta pelo fim da violência a grupos como a população
LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros e Homens Trans) e as
mulheres no campo da educação. A centralidade adquirida na conjuntura nacional
destes temas vem sendo assinalada por parte de uma ala conservadora da sociedade
que, nos últimos anos, tem elencado tais políticas como cartas em um jogo marcado
Esse artigo é fruto dos debates realizados no Grupo de Trabalho “Gênero e Sexualidade
na atual conjuntura”, formado no contexto da greve dos alunos, docentes e funcionários da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre os meses de maio e agosto de 2016.
Agradecemos às professoras Dra. Isadora Lins França e Dra. Carolina Branco de Castro
Ferreira pelo estímulo para que as ideias aqui presentes ganhassem corpo e pelas leituras
minuciosas ao longo do processo.
2
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor
nos cursos de História e Pedagogia das Faculdades Integradas Maria Imaculada. E-mail:
barreiroalex86@gmail.com
3
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista
FAPESP. E-mail: flavio.fravinho@gmail.com
4
Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
E-mail: araujo.nathanael@gmail.com
5
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Bolsista FAPESPA. E-mail: tvazsilva@
gmail.com
1
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por discursos vazios e intuitos obscuros. A partir das contribuições teóricas das Ciências
Sociais, da educação e dos estudos de gênero e sexualidade, exploramos documentos
da área das políticas educacionais, a fim de apresentarmos aos leitores as bases legais
que fundamentam, orientam e destacam a importância de propostas pedagógicas para
a formação de alunos e docentes quanto às questões relativas ao gênero e à sexualidade
humana. Nosso argumento central é o de que o combate a esses pressupostos, envoltos na
ideia de propagação de uma “ideologia de gênero”, se dá pela supressão de condicionantes
oficiais (leis que possibilitem recursos) e vigilância das práticas cotidianas (via currículo
oculto).
PALAVRAS-CHAVE: Educação; Gênero e sexualidades; Poder; Política; Moralidades.
INTRODUÇÃO
Em tempos de recessão econômica, a crise política instaurada no
país adquiriu maior gravidade a partir do afastamento da presidenta eleita
democraticamente Dilma Rousseff (PT), por meio da admissibilidade do
processo de impeachment votado pelo Senado Federal, em 12 de maio
de 2016. O mandato interino do vice-presidente, Michel Temer (PMDB),
ao alterar o projeto de gestão do país legitimado pelas eleições, em pouco
tempo vem acumulando uma série de problemas de gravidade impossíveis
de serem mensurados. No plano do simbólico, a mudança chama atenção
a olho nu ao percebermos a alteração do quadro governamental6 e nele
observamos apenas a presença de homens de meia idade, todos brancos e
pertencentes à parte mais abastada da sociedade. No âmbito comparativo,
tal construção não ocorria desde o governo Geisel (1974-1979), na
ditadura militar.
Mais do que a ausência meramente formal de mulheres e negros
à frente de Ministérios, esta configuração assusta, por não corresponder
com o retrato do país, em que, de acordo com os dados mais recentes
do censo demográfico de 2014, observa-se a composição da sociedade
brasileira, formada por 51,6% de mulheres, 53,6% de negros e pardos e
Para maiores detalhes acessar: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/politica/
noticia/2016/05/ministerio-da-cultura-e-outras-pastas-sao-extintas-em-reforma-ministerialde-temer-5800482.html Acesso em: 19 jul. 2016.
6
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Ideologia de gênero?
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14,17% de jovens entre 20 e 29 anos de idade (IBGE, 2015)7. Em 2014,
com o salário mínimo ajustado para R$ 724 reais8, notou-se ainda que
47,3% da população declarou receber até um salário mínimo e 37% de um
a três salários (IBGE, 2015)9.
Nesse esteio, a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade
Racial e dos Direitos Humanos10 sinaliza para dimensões simbólicas,
representando um corte na esfera da representatividade que histórica e
duramente vinha sendo conquistada pelos movimentos sociais no país.
O Ministério supracitado, ao passar a compor o Ministério de Justiça e
Cidadania, aponta para a diminuição de sua agenda enquanto prioridade
frente ao governo em exercício – externadas também pela ausência de
figuras plurais no governo.11
A nebulosidade do atual contexto político brasileiro assinala
para uma série de (des)caminhos que comprometem os poucos
avanços conquistados em nossa curta experiência democrática. Para
nós, pesquisadores e militantes das questões relacionadas a gênero e
sexualidades, o cenário é demasiadamente preocupante. Dentro de um
conjunto mais amplo de apreensões, o texto em pauta pretende discutir
a construção de determinados discursos, nos quais noções de gênero e
de sexualidade passaram a se constituir como alvo de uma moralidade
política na investida de uma parcela da direita conservadora (em particular,
Portanto: 48,45% da população brasileira é composta por homens, onde 45,4% se declararam
brancos. 30,3% têm até 19 anos, 48,1% têm entre 30 e 69 anos e 6,1% possui 70 anos ou mais
(IBGE, 2015).
8
Disponível em: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2013/12/valor-do-salariominimo-vai-para-r-724-em-2014. Acesso em: 19 jul. 2016.
9
Ademais, 11,4% alegaram receber de três a cinco salários mínimos e 4,4% não recebiam ou
não declararam seus rendimentos (IBGE, 2014).
10
Para
maiores
informações
acessar:
http://www12.senado.leg.br/noticias/
materias/2016/05/16/primeira-medida-provisoria-de-temer-reduz-de-32-para-23-o-numerode-ministerios. Acesso em: 19 jul. 2016.
11
A extinção do Ministério da Cultura e sua recriação, após protestos e pressão da classe
artística do país, dividiram as matérias dos principais jornais do país bem como os escândalos
que acabaram por provocar a exoneração de três ministros que, de alguma forma, tiveram seus
nomes associados ao escândalo de corrupção da “Operação Lava Jato”.
7
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atores sociais religiosos cristãos), ao instituírem uma verdadeira “cruzada
moral” (BECKER, 2008) em favor da retirada dos conteúdos que fazem
referência a gênero e à sexualidade no currículo escolar.
IDEOLOGIA E PODER
O movimento organizado que promove campanhas para retirada
dos conteúdos de gênero da educação básica tem sua base política entre
os religiosos cristãos. Ronaldo de Almeida (2017) propõe compreender
o avanço conservador e a participação evangélica12 na atual conjuntura
político-religiosa pela qual o país atravessa, por meio da composição de
quatro linhas de força que cooperam entre si: econômica (meritocrática e
empreendedora), moral (moralmente reguladora), securitária (repressiva
e punitiva) e interacional (socialmente intolerante). Nesse debate acerca
da relação entre conservadorismo e evangélicos, Almeida (2017) aponta
que a moral religiosa tem sido um orientador significativo das questões
relacionadas aos direitos reprodutivos e sexuais e à família, para a
atuação de um conjunto de políticos na esfera legislativa (vereadores,
deputados, senadores) denominados no cenário político como “Bancada
Evangélica”13. Na disputa pela moralidade pública, em sua faceta mais
conservadora, esses religiosos buscam não apenas garantir proteção à
moralidade e aos valores próprios ao seu grupo. Mas, também, pretendem
garantir que essa moralidade seja inscrita na ordem legal do país, sob
o discurso da necessidade de contenção dos avanços do secularismo
Vale ressaltar que, em seu estudo, Almeida não considera os evangélicos como sendo a causa
e nem a resultante deste avanço conservador que assola o país, mas aborda a articulação deste
grupo religioso ao processo social mais amplo: “Assim como nem todos os evangélicos são
conservadores, a pauta conservadora vai além da pauta dos evangélicos conservadores. Dela
participam também católicos, outras religiões e não religiosos” (ALMEIDA, 2017, s/p).
13
De acordo com Ronaldo de Almeida, a designação “Bancada Evangélica talvez seja a
expressão mais acabada do sentido negativo que o termo ‘os evangélicos’ adquiriu nas últimas
décadas, qual seja: um conjunto de deputados moralistas que ameaçam a laicidade do Estado
brasileiro” (ALMEIDA, 2017, s/p). O autor ainda acrescenta que tal laicidade ameaçada
pelos evangélicos é apenas presumida, uma vez que não houve condições para sua existência
em um país onde o catolicismo e a igreja católica se beneficia de legitimidade e oficialidade
naturalizadas por sua profundidade histórica, cultural e jurídica.
12
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Ideologia de gênero?
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nos comportamentos e nos valores que afligem a sociedade brasileira
(ALMEIDA, 2017).
No que diz respeito à retirada dos conteúdos de gênero da educação
básica, a polêmica se desenrola desde 2014, com a aprovação do Plano
Nacional de Educação (PNE) na Câmara dos Deputados, que alterou a
redação aprovada em 2012, suprimindo do texto referente às desigualdades
educacionais a “ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de
gênero e de orientação sexual” (2014, p.22), substituída genericamente
por “ênfase na promoção da cidadania e erradicação de todas as formas
de discriminação” (2014, p.12). A partir de então, a pauta seguiu para os
municípios e o debate nas câmaras dos vereadores em todo o país tem sido
marcado por preconceitos e homofobia no combate ao que se rotulou de
“ideologia de gênero14”.
O argumento mobilizado para a implementação de um conjunto
de ações por esses religiosos conservadores seria a de uma “ameaça real”,
representada sob o escopo de uma “ideologia de gênero”. Segundo o
argumento destes, a “ideologia de gênero” é um perigo à integridade moral
das crianças e dos adolescentes, visto que os conteúdos abordados no
ensino em sala de aula e a distribuição de material didático com “ênfase na
promoção da igualdade de gênero e de orientação sexual” (que fora
suprimido do PNE) corromperiam supostamente o “caráter biológico” e
as “estruturas postuladas historicamente sobre as relações entre homens
e mulheres”.
O que se observa nas sessões promovidas nas Câmaras de
Vereadores por todo o país é a emergência daquilo que o sociólogo Stanley
Cohen definiu como pânico moral, a saber, quando
Uma condição, um episódio, uma pessoa ou um grupo de
pessoas passa a ser definido como um perigo para valores
e interesses societários; sua natureza é apresentada de uma
forma estilizada e estereotipada pela mídia de massa; as
As frases estão entre aspas porque correspondem a alguns das formas corriqueiras de
argumento que encontramos atualmente. Para saber mais acesse: https://padrepauloricardo.
org/blog/associacao-americana-de-pediatras-fulmina-ideologia-de-genero. Acesso em: 19 jul.
2016.
14
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barricadas morais são preenchidas por editores, bispos,
políticos e outras pessoas de Direita; especialistas socialmente
aceitos pronunciam seus diagnósticos e soluções; recorre-se
a formas de enfrentamento ou desenvolvem-nas (COHEN,
2002, p.9)15.
Desta forma, a crença na existência de uma “ideologia de
gênero” é construída como uma espécie de “doutrinação”, que serviria
para “confundir a cabeça de crianças e adolescentes”16 ao “acabar com
os elementos usados para identificar os dois sexos” e “estimular a
homossexualidade”; além de contribuir para “desestruturar a moral” das
relações no âmbito familiar ao “desconstruir” a maternidade e “incentivar”
a prática do aborto. Julian Rodrigues elucida bem este projeto: “Uma certa
interpretação moral religiosa muito específica no que tange à compreensão
das relações sociais de gênero é elevada ao modelo universal e que não
pode ser conspurcado por ‘atos abomináveis’” (RODRIGUES, 2016,
p.13). Aqui se faz necessário destacar que o entendimento de família
contido nesses discursos está circunscrito apenas àquelas formadas pela
união heterossexual.
Uma característica marcante de pânicos morais se refere à presunção da
existência de um dado “problema” que ameaça a ordem e os valores morais
tradicionais ou parte deles, sem que haja de fato provas de sua existência
ou severidade, estabelecendo um ambiente de ansiedade, insegurança e
medo na sociedade. A veiculação em diferentes meios de comunicação
tem papel importante no processo de caracterização do pânico moral entre a
opinião pública, pois o sensacionalismo midiático tende a contribuir para
“fabricar” a extensão da preocupação desproporcionalmente ao perigo
real que o problema possa acarretar, gerando, consequentemente, reações
coletivas também desproporcionais (COHEN, 2002). É neste cenário que
surgem as figuras dos empreendedores morais (BECKER, 2008) no combate
Tradução livre do original em inglês.
As frases estão entre aspas porque correspondem a alguns das formas corriqueiras de
argumento que encontramos atualmente. Para saber mais acesse: https://padrepauloricardo.
org/blog/associacao-americana-de-pediatras-fulmina-ideologia-de-genero Último acesso em
19 de julho de 2016.
15
16
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Ideologia de gênero?
229
ao ensino e ao debate a respeito de gênero e sexualidade nas escolas.
Esses empreendedores morais mobilizam o pânico sexual (RUBIN, 1998), uma
variação do pânico moral, para gerar ansiedade nas famílias e na sociedade
de modo geral em torno de questões relacionadas à sexualidade.
Na epidemia de pânicos sexuais que se alastrou pelos EUA entre as
décadas de 1970 e 1980, a antropóloga Gayle Rubin (1998) chamou atenção
para o quão poderosos são os discursos que mobilizam a necessidade de
“proteção das crianças”, consideradas mais “vulneráveis” às investidas de
“pervertidos sexuais”. Naquele contexto, homossexuais e consumidores
daquilo que foi rotulado por pornografia infantil17 foram alvos de duras
perseguições realizadas pelos empreendedores morais e pelo Estado a partir
de dispositivos normativos. Neste escrutínio, observou-se a proliferação
de um verdadeiro pânico sexual, elemento geralmente mobilizado pelos
empreendedores morais para veicular outras preocupações como, por exemplo,
aquelas relacionadas à decadência moral ou a desorganização social
(PISCITELLI, GREGORI & CARRARA, 2004).
A construção de problemas sociais em causas políticas também
tem ocorrido no Brasil com expressiva intensidade. Tendo como pontapé
a Operação Carrossel, orquestrada pela Polícia Federal em fins de 2007,
Laura Lowenkron (2013) analisou a construção da “pedofilia” como
causa política e caso de polícia e a consequente produção do “pedófilo”
como inimigo. Ao traçar uma etnografia da Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) da Pedofilia no Senado Federal e das investigações da
Policia Federal em torno das redes de pornografia infantil na internet,
a antropóloga desvelou o modo como se deu a instauração da CPI e a
produção desse monstro contemporâneo – enclausurado entre discursos
médicos patológicos e morais cristãos – como problema social levada ao
cabo pelo senador Magno Malta, um dos líderes da bancada evangélica.
Rubin aponta que as leis produzidas sobre a pornografia infantil no âmbito dos pânicos morais
são mal concebidas e mal orientadas ao estabelecerem como obsceno qualquer representação
de menores que apresente nudez ou que envolva atividade sexual, o que configurou significativo
retrocesso de liberdades civis naquele país. Traçando um paralelo com os dias atuais, podemos
perceber a semelhança com discursos que acionam pânicos sexuais no combate a pedofilia e a
produção do “pedófilo” como o novo monstro contemporâneo (LOWENKRON, 2013).
17
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Nos discursos contra a “ideologia de gênero” nas escolas, ao
que parece, o foco da moralidade está centrado na orientação sexual e
de gênero das crianças e adolescentes. Ou melhor: na crença de que o
ensino e o debate de gênero e sexualidade nas escolas visam doutrinar
aos estudantes, como se professores e demais educadores fossem utilizar
de sua condição de autoridade para (des)orientá-los no que eles devem
“ser” e no que devem “fazer” em termos da sua sexualidade. O que está
em jogo aqui, portanto, é a manutenção de um modelo hegemônico de
sociedade construído a partir de noções da heterossexualidade compulsória18
(BUTLER, 2008) e de valores morais cristãos, nos quais o padrão de
família, constituída exclusivamente por um homem, uma mulher e sua
prole, está em pauta.
JOGOS DE CONTROLE
No dia 1º de junho de 2016, em sessão na Câmara de Vereadores
da cidade de Campinas, em São Paulo, o vereador Campos Filho (DEM)
referiu-se à “ideologia de gênero” como “... nefasta, é contra a família”.
O material de divulgação política do vereador Jorge Schneider (PTB),
intitulado Diga sim a Família. “Ideologia de gênero”: conheça e entenda o perigo que
você e seus filhos estão correndo!19, demonstra as estratégias de regulação da
educação e da sexualidade via poder legislativo. Ao reduzir, empobrecer e
subverter anos de reflexões acadêmicas e científicas, a premissa mobilizada
é a de se estar informando para poder defender a população das tentativas
de transformação de “nossas escolas em laboratórios para a manipulação
da personalidade de seus filhos”.
18
A expressão heterossexualidade compulsória é utilizada pela filósofa Judith Butler (2008) para se
referir ao ordenamento social que visa produzir uma coerente correlação entre sexo, gênero e
desejo heterossexual.
19
Só esse material já renderia uma discussão muito interessante sobre a questão. Para
maiores informações, acessar o link do vereador citado https://www.facebook.com/
vereadorjorgeschneider/photos/pcb.937683952920300/937683786253650/?type=3&theater
Acesso em: 19 jul. 2016.
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Ideologia de gênero?
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Para os autores Toni Reis e Edla Eggert (2017, p.20):
Criou-se uma falácia apelidada de “ideologia de gênero”, que
induziria à destruição da família “tradicional”, à legalização
da pedofilia, ao fim da “ordem natural” e das relações
entre os gêneros, e que nega a existência da discriminação
e violência contra mulheres e pessoas LGBT comprovadas
com dados oficiais e estudos científicos. Utilizou-se de
desonestidade intelectual, formulando argumentos sem
fundamentos científicos e replicando-os nas mídias sociais
para serem engolidos e regurgitados pelos fiéis acríticos
que os aceitam como verdades inquestionáveis. Utilizou-se
também de uma espécie de terrorismo moral, atribuindo
o status de demônio às pessoas favoráveis ao respeito à
igualdade de gênero e diversidade sexual na educação, além
de intimidar profissionais de educação com notificações
extrajudiciais com ameaça de processo contra quem
ousasse abordar esses assuntos na sala de aula. Criou-se um
movimento para “apagar” o assunto gênero do currículo
escolar. (REIS; EGGERT, 2017, p.20)
O antropólogo Sérgio Carrara argumenta que o embate que cria e
correlaciona “ideologia de gênero” e educação compõe mais um dos muitos
conflitos instalados no que denomina como “processo de cidadanização
de diferentes sujeitos sociais”, em que se nota a articulação de identidades,
seja com a linguagem de gênero, seja com a da sexualidade ou orientação
sexual (CARRARA, 2015). Neste embate, o autor nos auxilia na reflexão
acerca do modo com que atores políticos religiosos cristãos fazem uso
da política sexual por meio da agenda educacional para reagir contra o
reconhecimento da importância de se discutir diversidade de gênero e
orientação sexual nas escolas, desprezando-as enquanto um valor legítimo.
Contudo, a emergência da reinvindicação de direitos sexuais,
compreendida na perspectiva de agenciamento de novos direitos por
novos sujeitos, ocorre em um cenário bastante complexo em que o próprio
saber empregado para legitimar a importância de se criar e dar acesso a tais
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Alex Barreiro et al.
direitos tem sido utilizado estratégica e discursivamente para combatê-lo e
desreconhecê-lo nas esferas legislativa e do direito, forjado com base naquilo
que Foucault (2010) denomina de polivalência do discurso. O discurso
político empregado por esse movimento conservador é assombrado pela
própria “instabilidade” das categorias sexo e gênero, embora procurem
mobilizá-las de modo a cultivar identificações a serviço de um objetivo
político normativo, movendo tanto a política feminista quanto a política
queer em prol da legitimação de uma norma regulatória pela qual a diferença
sexual é materializada (BUTLER, 2001). Observa-se, da parte de políticos
locais e nacionais, o maciço combate ao conhecimento produzido por
especialistas por meio do arcabouço legal previsto na educação brasileira
que garante as discussões a respeito das desigualdades de gênero, direitos
humanos e sexuais, combatendo as diferentes formas de discriminações
que atravessam os muros da escola.
É válido sempre destacar que nos três primeiros artigos das Leis de
Diretrizes e Bases (LDB) da educação brasileira20, tem-se que:
Art. 1º A educação abrange os processos formativos que
se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana,
no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e
nas manifestações culturais.
Art. 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do
trabalho e à prática social.
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios: I – igualdade de condições para o acesso
e permanência na escola; II – liberdade de aprender,
ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento,
a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e
apreço à tolerância (BRASIL, 2015:9, grifos nosso).
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes/
paginas-individuais-dos-livros/lei-de-diretrizes-e-bases-da-educacao-nacional Acesso em: 27
jan. 2016.
20
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Ideologia de gênero?
233
O documento afirma que o processo educativo abrange a formação
dos indivíduos que se desenvolvam nos movimentos sociais e manifestações
culturais, além de vincular-se também à prática social, e ressalta que o
ensino exige condições de igualdade para o acesso e a permanência dos
estudantes na escola, além da liberdade de aprendizagem, ensino, pesquisa
e divulgação cultural, corroborando para o pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas.
Atualmente, a realidade da educação brasileira apresenta dados que
contrariam as propostas colocadas pela LDB, sobretudo, com relação ao
número de evasão de travestis, mulheres transexuais e homens transexuais
a violência contra alunos e alunas gays, lésbicas e bissexuais, como apontam
os pesquisadores Borges & Meyer (2008), Junqueira (2010) e Dinis (2011).
Como aponta Facchini; Ferreira (2016), na contramão do
fortalecimento de políticas públicas ligadas às mulheres e às demandas
dos feminismos, bem como as evidências de que é fundamental o combate
da violência de gênero por meio da construção de políticas educacionais,
grupos conservadores têm adotados medidas no executivo e no legislativo
e tem encorajado discursos e práticas que reforçam a violência de gênero.
Desta forma, uma das finalidades requeridas pela lei de Diretrizes e
Bases da Educação Básica não está sendo assegurada, a formação para
a cidadania e o respeito recíproco em que se assenta a vida social, como
descritos nos artigos abaixo:
Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver
o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável
para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para
progredir no trabalho e em estudos posteriores (BRASIL,
2015:17, grifos nosso).
[...]
Art. 32. IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos
laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca
em que se assenta a vida social (BRASIL, 2015, p.23,
grifos nossos).
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Alex Barreiro et al.
No âmbito de questões de gênero e sexualidade, a LDB postula
tais temas como assuntos transversais, aptos a estarem distribuídos em
todas as disciplinas escolares. Todavia, observa-se verdadeira ausência nos
livros didáticos de tópicos a respeito de movimentos sociais identitários
conduzidos pelas chamadas minorias sexuais que emergem no país a
partir dos anos de 1970 (HEILBORN & SORJ, 1999). O sexo, e não
tanto a sexualidade, aparece minimamente apenas nos livros da disciplina
de biologia para tratar do tema da reprodução humana e da prevenção a
DST/Aids em relações heterossexuais.
Pensado como instrumento passível de oferecer subsídios, o
material Escola sem Homofobia, popularmente conhecido por “kit gay”, foi
proibido nas instituições de ensino em 2012, devido a negociatas políticas
do então governo com parlamentares religiosos cristãos. Este, resultado
de um projeto desenvolvido pela Pathfinder Brasil, Ecos e Reprolatina,
em articulação com a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
Travestis e Transexuais (ABGLT) e financiado pelo Ministério da Educação
(MEC), via emenda parlamentar, trazia como proposta recursos com fins
a combater a prática da homofobia no ambiente escolar (2010).
Ainda nesse caminho, para a efetivação de mudanças no cenário de
violência contra as mulheres e a população LGBTT nas escolas do país,
observou-se no Brasil algum empreendimento para modificar tal realidade.
A promulgação de resoluções que possibilitassem aos docentes o exercício
de atividades e propostas pedagógicas desde a infância tornou-se uma
possibilidade, a partir da resolução do Conselho Nacional de Educação
(CNE/CP) n. 01 de 15 de maio de 2016, que prevê que:
Art. 5º O egresso do curso de Pedagogia deverá estar apto a:
X - Demonstrar consciência da diversidade, respeitando as
diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial,
de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões,
necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras21;
Conforme a resolução emitida, os estudantes egressos nos cursos
de Pedagogia deverão, ao término da formação, encontrarem-se aptos a
21
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_06.pdf. Acesso em: 31 dez. 2015.
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Ideologia de gênero?
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respeitar as diferenças de natureza étnico-raciais, geracionais de gênero
e sexuais, demonstrando, portanto, consciência acerca da diversidade
existente no mundo. Esta formação, que deve estender-se aos demais
profissionais da educação que atuam e exercem suas funções em diferentes
campos do conhecimento e ciclos de ensino, é salutar.
Contudo, ao não se ter afixado na grade curricular da formação
de professores disciplinas de gênero e sexualidade, por exemplo, a
formação de uma base de saberes a respeito do tema ainda se encontra
pouco institucionalizada. Deste modo, aquilo que parece ser um caminho
positivo abre para outra instância de disputas: a da vigilância das práticas
cotidianas de educadores no espaço escolar.
GUERRA OCULTA
A vigilância cotidiana da prática docente tem aumentado de forma
avassaladora. Isto porque as temáticas de gênero e sexualidade podem
ser trabalhadas por meio do currículo oculto, uma vez que o currículo
oficial tem se demonstrado incapaz de prever as necessidades locais de
cada escola e programar um conteúdo a ser desenvolvido especificamente
para a realidade de cada unidade educacional, o que reforça a importância
do currículo oculto (SACRISTÁN, 1998). Conforme o educador Tomaz
Tadeu da Silva, “o currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos
do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito,
contribuem, de forma implícita para aprendizagens sociais relevantes”, de
modo que “o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente
atitudes, comportamentos, valores e orientações” (SILVA, 1999, p.78). O
currículo oculto, portanto, aparece como um importante espaço para que
possamos no dia a dia da sala de aula e da experiência com o cotidiano
escolar e dos estudantes, elucidar alternativas temáticas, educativas e
valorativas que respondam aos conflitos e anseios presentes na comunidade
e que inevitavelmente atravessam os muros da escola.
Se, por um lado, a percepção acerca do currículo oculto nos
permite vislumbrar a possibilidade de construções coletivas de trabalhos
pedagógicos que tenham como temática as relações de gênero e sexualidade,
bem como perceber que o processo de ensino e aprendizagem transborda
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Alex Barreiro et al.
as grades curriculares, por outro lado ela também nos coloca frente
à questão de que estes temas não estão elencados dentro do conjunto
de conteúdos valorizados para a “transmissão” nas instituições formais
de ensino, ficando a cargo dos/as profissionais “sensíveis à temática”
problematizá-la e instigar as discussões entre seus pares e com os/as
estudantes.
A construção de uma legislação que torna obrigatória a discussão a
respeito das relações de gênero e sexualidade na educação básica garantiria
a problematização da temática fornecendo um respaldo legal para que não
fosse menosprezada ou tornada algo desnecessário dentro do processo
de ensino e aprendizagem. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil, publicada pelo Ministério da Educação em 201022, isto já
aparece, constando que as instituições de educação infantil devem garantir
que elas cumpram plenamente sua função sociopolítica e pedagógica:
Construindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade
comprometidas com a ludicidade, a democracia, a
sustentabilidade do planeta e com o rompimento de
relações de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial,
de gênero, regional, linguística e religiosa (BRASIL, 2010,
p. 17).
As contribuições do trabalho pedagógico são de suma importância
para que as crianças desenvolvam reflexões e posturas éticas com relação
às demandas políticas propostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil, o que inclui necessariamente construir novas
relações de sociabilidade e subjetividade a partir das perspectivas de gênero,
consolidando as plataformas de acesso para a equidade e valorização das
atividades e papéis sociais de gênero na cultura brasileira.
Quando pensamos as relações de gênero no currículo da Educação
Infantil, é fundamental destacarmos suas especificidades, principalmente
no que tange à não existência de um currículo dividido em disciplinas. As
Link
para
obter
acesso:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 05 jan. 2016.
22
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016
Ideologia de gênero?
237
creches e pré-escolas não cabem dentro das grades do currículo, podendo
ser concebidas como espaço de produção intempestiva de pedagogias
que não “didatizam” a “experiênciação” do mundo, mas sim que criam
processos abertos e dinâmicos de reinvenção das relações sociais.
Mas se, de um lado, notam-se possibilidades de avanços, de outro
lado tem-se o peso das perdas. Neste esteio, o debate a respeito da
“ideologia de gênero” e educação na cidade de Campinas dá máxima lição.
Ao analisar o imbróglio em terras campineiras, Zanoli & Mascarenhas
Neto (2016) apontam para a especificidade local, em que o impedimento
não adveio por meio de nova proposta de Plano Municipal de Educação,
mas por proposta de emenda à Lei Orgânica do Município de 2015, o que
sinaliza para as disputas de saber e de poder mobilizadas pelo conjunto de
atores contrários ao reconhecimento da diferença como valor, e mesmo
para a desqualificação do tema para um debate profundo, conduzido por
estudiosos da questão23.
Em uma escola de educação infantil da região metropolitana de
Campinas, que atende a crianças de 0 a 5 anos, por sua vez, a coordenadora
pedagógica comprou algumas bonecas sexuadas para as crianças
brincarem24. “Elas vêm em família, é aquela família tradicional, pai, mãe,
filho e avós”, enunciou. A proposta da coordenadora era desmontar as
famílias e oferecer às meninas e aos meninos outros arranjos possíveis,
deixando-os brincar e mesmo inventar outras relações. Mas a proposta
não deu certo, uma vez que algumas professoras da instituição ficaram um
pouco assustadas em oferecer para as crianças as bonecas com vagina e que,
ainda por cima, simula a gravidez e o parto de um bebê que sai da boneca
com a placenta! E os bonecos masculinos, por sua vez, atemorizavam por
terem pênis. Muito se pensou e as bonecas quase nunca foram usadas.
O não oferecimento das bonecas, em alguma medida, informa as
dificuldades das educadoras em lidar com assuntos relacionados a gênero
e sexualidade, bem como apontam uma não “formação inicial” com
Para uma análise da votação do primeiro turno e de alguns aspectos do texto da emenda, ver
Zanoli & Mascarenhas Neto (2016).
24
Esta cena faz parte do caderno de campo de Flávio Santiago que vem desenvolvendo o
projeto de doutoramento intitulado: (Re) interpretações das intersecções entre o processo de racialização e
relações de gênero em culturas de pares entre crianças pequenininhas de 0-3 anos em creche.
23
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016
238
Alex Barreiro et al.
relação a essa temática. Com base nesses percalços, o medo de mostrar os
órgãos sexuais e, principalmente, mencionar a possibilidade de existência
de outros arranjos familiares se tornou maior do que a coragem. Para as
crianças ainda menores, de zero a três anos, a hipótese de trabalhar com as
bonecas nunca foi cogitada. Como se algo de impuro pudesse contaminar
a pureza destas. Diante deste quadro, as escolhas dos bonecos(as) que
oferecemos às crianças, as histórias que contamos a elas, bem como as
diferentes formas de se brincar que nós, adultos(as), legitimamos enquanto
correta, correspondem a um projeto de infância que temos estruturado
para que meninos e meninas vivenciem e apreendam as relações sociais.
As docentes, ao não quererem oferecer as bonecas sexuadas para
meninas e meninos brincarem, apresentam uma percepção acerca do que
é infância, estando esta diretamente relacionada à ideia de que as crianças
não têm contato com os órgãos sexuais, bem como devem ser prevenidas
de uma suposta sexualização do corpo. Este tipo de concepção tende a
reforçar na prática a criação de armadilhas identitárias ligando os corpos
ao sistema sexo e gênero e, posteriormente, ao modelo de sexualidade
heteronormativa.
Como exercício reiterativo deste processo de aprendizagem, é
comum ouvirmos frases como: “isto é coisa de menino, você deve brincar
com esta boneca aqui”, “Nossa, como essa menina é agitada, parece até um
moleque”, construindo os aspectos normativos referentes ao binarismo
correspondente do que seriam o masculino e o feminino dentro da nossa
sociedade. Este processo estabelece o que Butler (2008) categoriza como
gêneros “inteligíveis”, os quais instituem e mantêm a relação de coerência
e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, buscando
estabelecer linhas causais expressivas de ligação entre o sexo biológico, o
gênero culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na
manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual.
O pânico moral construído no tocante às supostas “ideologias de
gênero”, responsáveis por incitar as crianças a vivenciarem e construírem
outras formas de relações, revela que a elas deve sempre estar disponível
apenas uma norma e que deve ser seguida a rigor, principalmente no que
tange à normatização dos desejos. Este modo de percepção cria imagens
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016
Ideologia de gênero?
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distorcidas referentes a algumas ações pedagógicas desenvolvidas no
interior das escolas, pré-escolas e creches, construindo a ideia de que ao
se trabalhar com a desconstrução dos estereótipos de gênero, como no
momento da construção das filas de entrada em salas de aula, durante
as leituras realizadas com as crianças ou a revisão de materiais didáticos,
haveria a incitação para que todas as crianças se tornassem lésbicas,
gays, travestis ou transexuais. A impossibilidade de se cogitar o acesso
de bonecos sexuados para crianças de zero a três anos brincarem, por
sua vez, remonta ao pânico de corrupção do “caráter da inocência das
crianças”; pois como salienta Preciado,
Os defensores da infância e da família apelam à família
política que eles mesmos constroem, e a uma criança que se
considera de antemão heterossexual e submetida à norma
de gênero. Uma criança que privam de qualquer forma de
resistência, de qualquer possibilidade de usar seu corpo livre
e coletivamente, usar seus órgãos e seus fluidos sexuais.
Essa infância que eles afirmam proteger exige o terror, a
opressão e a morte (PRECIADO, 2016, p. 96).
Não cabe, neste meandro, perguntas como: e as crianças? O que
acham de tudo isso? Não pensam? Será que elas concebem as relações
de gênero da mesma forma que nós adultos/as percebemos? Inúmeras
vezes as crianças brincam com objetos conceituados socialmente como
de menino ou de menina, de modo a não reproduzir os significados que
eles carregam socialmente. Uma panelinha pode se transformar em um
disco voador e não representar em nada a sua utilização prática referente
ao universo adulto.
Neste esteio, são as atividades cotidianas dos adultos, sob o bojo
do currículo oculto desenvolvido pelos/as docentes, as responsáveis
por retransmitir parte dos modelos socioculturais vigentes, sendo sua
desconstrução ou reflexão parte fundante da função dos/as professores/
as, cabendo a estes/as tensionar os processos de hierarquização das
desigualdades sociais.
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240
Alex Barreiro et al.
CONSIDERAÇÕES FINAIS DE UM DEBATE EM ABERTO
O atual movimento conservador que tem crescido pelo país entende
que temáticas relacionadas ao gênero e à sexualidade devem ficar restritas
somente à educação no âmbito familiar, não sendo papel de outro agente
(profissionais da educação formal, por exemplo) abordar tais questões em
suas aulas. No que tange a este pensamento, considera-se ser impossível
pensar a prática escolar sem uma educação emancipatória, que tenha
como princípio a diversidade e a pluralidade de ideias. Para tanto, não
discutir temas que envolvam gênero e sexualidade na principal e uma das
mais longas instâncias de convívio entre pessoas diferentes, a escola, é
impensável quando o objetivo comum é o de promoção de uma educação
que vislumbre a possibilidade do exercício de uma cidadania mais plena.
Ao refletir a respeito da aplicação da lei nº 10.639/2003, que versa
acerca da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
no ensino fundamental e médio, o antropólogo Kabengele Munanga
aponta que o resgate da história e da cultura da população afro-brasileira
não interessa somente aos estudantes negros, mas também aos de outras
ascendências étnicas que tiveram sua estrutura psíquica afetada por terem
sido criados em uma sociedade que reproduz de forma sistemática e
duradoura preconceitos contra os afro-brasileiros (MUNANGA, 2003).
A referência à questão racial nos parece muito oportuna, na medida
em que as questões de gênero e sexualidade também dizem respeito a
todos/as, independentemente de orientação sexual e identidade de gênero.
Isto se deve ao fato de vivermos em uma sociedade com profundas
desigualdades nesse domínio, na qual a heterossexualidade compulsória
e os modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade oprimem e
excluem aqueles/as que não se enquadram a tais padrões estabelecidos.
Mais do que isso, refere-se a todos, na medida em que, em uma sociedade
comandada por valores estéticos e performáticos, “ser” e “parecer” tornase face de uma mesma moeda. Ao fim e ao cabo, trata-se de relações
de poder atravessadas pela construção de discursos úteis e públicos na
tentativa de regular o sexo e a sexualidade (FOUCAULT, 2010).
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241
Contudo, diferentemente do âmbito de conquistas observadas
a partir da lei nº 10.639/2003, que instaura formação e material sobre
História e Cultura Afro-Brasileira para debate dentre outros, buscamos
neste texto evidenciar as práticas de minar qualquer jurisprudência no
âmbito das questões de gênero e sexualidade no campo do ensino. A
ausência de maiores respaldos nos documentos educacionais e a perda
do pouco conquistado, somada à vigilância dos profissionais dispostos
a refletir abertamente a respeito da existência de diferenças na sociedade
e a produção destas em desigualdades, só nos apontam para a dimensão
alarmante com que abrimos este artigo.
Se pensarmos em resistências, novos ventos apontam para feixes
de esperança. É bem-vindo o livro recém-lançado Diferentes não desiguais:
a questão de gênero na escola (2016). Publicado pelo selo Reviravolta,
pertencente à Companhia das Letras, e escrito pelas(os) antropólogas(os)
Beatriz Accioly Lins, Bernardo Fonseca Machado e Michele Escoura;
a obra visa disponibilizar material acerca de gênero e sexualidade a docentes
interessados. Em conversa com esta última, a também pesquisadora
assinalou para a ideia de que o livro sirva como material propedêutico,
pois: “Mesmo o professor mais bem intencionado não encontra material
que o auxilie a tratar dos assuntos que envolvam orientação sexual e
identidade de gênero”.
Assim, mantemos a expectativa de que a emancipação do saber e
a prática de um conhecimento verdadeiramente libertador possam servir
como instrumentos teóricos e políticos para que possamos construir
plataformas que tenham como horizonte a equidade das relações de gênero,
ao combate às discriminações que estabelecem por meio da orientação
sexual critérios de distinção da cidadania, nos possibilitando, como
destacado pela socióloga Letícia Sabsay (2014), “des-heterossexualizar”
o acesso aos direitos, possibilitando avançar na construção de uma
democracia efetiva25.
Segundo a pensadora, “há necessidade de se generizar a cidadania, porque quando ela não é
generizada, tende a ser masculina. Também é preciso sexualizá-la, isto é, ‘des-heterossexualizála’ ou ‘des-heteronormativizá-la’. Creio que este é um campo político que não se pode
abandonar” (SABSAY, 2015, p.39).
25
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242
Alex Barreiro et al.
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Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016
#OCUPAPARANÁ – AS OCUPAÇÕES DAS
ESCOLAS PÚBLICAS PARANAENSE
EM OUTUBRO DE 2016
Conrado Pereda Minucelli1
Jaqueline Aparecida Alves dos Santos2
Osmir Dombrowski3
RESUMO: O presente trabalho empreende a reconstituição de uma cronologia dos
acontecimentos que cercam o movimento das ocupações de escolas públicas paranaense
por estudantes secundarista em outubro de 2016, seguida por uma descrição sucinta da
organização interna das ocupações e conclui com a apresentação de algumas reflexões
sobre aspectos particularmente relevantes para a análise dos movimentos sociais no século
XXI. O trabalho está baseado em observações in loco de ocupações ocorridas nas cidades
de Cascavel e Toledo no extremo oeste do estado, complementadas por informações
divulgadas pela grande imprensa e por diferentes canais na internet.
PALAVRAS-CHAVE: Ocupações; Movimento Estudantil; Secundaristas; Movimentos
Sociais.
INTRODUÇÃO
Durante o mês de outubro, início da primavera de 2016, estudantes
secundaristas ocuparam 850 escolas públicas no estado do Paraná em
protesto contra a MP 746 que instituiu a reforma do ensino médio e a
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE.
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE.
3
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná, UNIOESTE. Coordenador local do PIBID/CAPES. E-mail: osmirdom@
yahoo.com.br
1
2
248
Conrado Pereda Minucelli et al.
PEC 245 que congelou por vinte anos os investimentos públicos em
políticas sociais. Esse movimento surpreendeu a todos por sua magnitude
e pela velocidade viral com que se propagou, contagiando até estudantes
de escolas de pacatos distritos rurais. O estudo aqui apresentado é
resultado de observações feitas diretamente em ocupações nas cidades de
Cascavel e Toledo durante as quais foram efetuadas entrevistas, rodas de
conversa e bate-papos com os estudantes mobilizados, complementadas
por informações divulgadas pela grande imprensa e por diferentes
canais na internet. Em algumas escolas foi possível acompanhar todo o
processo, desde antes da tomada de decisão pela ocupação, a organização
e o andamento das atividades ao longo do tempo em que escola esteve
ocupada, até sua desocupação ao final. Assim foi possível perceber o
sentimento de indignação que motivou aqueles jovens, com muito pouca
experiência política, a protagonizarem um dos maiores movimentos
da história do país e acompanhar a forma como a escola, um espaço
público tradicionalmente identificado como hierárquico e repressor,
foi reconfigurada por uma prática baseada em relações horizontais e
transformada, ainda que por um breve momento, em espaço do exercício
de liberdade por grupos e segmentos excluídos e/ou subordinados.
Para compreender o movimento em sua totalidade, o mesmo não
pode ser isolado do conjunto de fatos que marcam o cenário político
brasileiro pós-2013 que inclui o movimento que culminou com a
deposição da presidenta eleita Dilma Rousseff e o estabelecimento de um
governo comprometido com uma pauta reconhecidamente neoliberal, a
postura autoritária do governo do Paraná que recentemente submeteu
professores e demais servidores do estado a uma repressão brutal em
evento conhecido como o “massacre de 29 de abril”; assim como a
ocupação dos espaços públicos por novos atores – ou por atores não tão
novos, mas que assumiram novas formas de organização e manifestação4.
Tudo isto ao lado de causas de natureza mais profunda, como a estrutura
arcaica, repressiva e desmotivadora do sistema escolar público e a cultura
hegemônica que nega ao jovem a sua autonomia e menospreza o valor
Pensamos aqui principalmente no que sido designado como “onda conservadora” (DEMIER
e HOEVELER, 2016).
4
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As ocupações das escolas públicas paranaense:...
249
da sua participação política; bem como as grandes transformações na
organização do capitalismo que sob a orientação do projeto neoliberal,
dissemina incertezas, sobretudo, para aqueles que estão prestes a entrar
para o mercado de trabalho.
Evidentemente que nas dimensões modesta desse trabalho não é
possível abordar todas essas variáveis com um mínimo de profundidade.
De modo que, abdicando de qualquer ambição explicativa totalizadora,
nos contentamos aqui em efetuar a reconstituição de uma cronologia dos
principais acontecimentos noticiados ao longo do mês de outubro de
2016 em uma primeira seção, para em seguida fazer uma breve descrição
da organização interna das ocupações e finalizar com a apresentação de
algumas reflexões sobre aspectos particularmente relevantes para a análise
dos movimentos sociais no século XXI.
CRONOLOGIA DOS ACONTECIMENTOS
Em 02 de dezembro de 2015 o presidente da Câmara dos Deputados
autorizou a abertura de processo de impeachment contra a presidenta
Dilma Rousseff. Concluído na Câmara o processo seguiu para o Senado
Federal. Em 12 de maio de 2016 o senado aprovou a abertura do processo
afastando provisoriamente a presidenta eleita até a sua conclusão. Naquele
momento o então vice-presidente Michel Temer assumiu interinamente
o cargo de presidente e não demorou em deixar clara sua intenção de
aplicar rigorosamente o receituário neoliberal e promover um corte
profundo nos gastos com políticas sociais. Apenas um mês depois, em
15 de junho de 2016, o interino apresentou uma Proposta de Emenda
Constitucional (PEC-241) estabelecendo como regra que por um período
de vinte anos os gastos públicos terão crescimento limitado ao valor da
inflação5. A apresentação da PEC-241 ainda durante a sua interinidade foi
a forma encontrada pelo vice-presidente para demonstrar publicamente
suas intenções e consolidar o apoio das forças que naquele momento
trabalhavam para derrubar a presidenta eleita. Em 31 de agosto de 2016,
na conclusão de um tumultuado processo que praticamente paralisou
5
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351.
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Conrado Pereda Minucelli et al.
o governo por dezoito longos meses, a presidenta Dilma Rousseff foi
deposta pela Câmara dos Deputados e o interino Michel Temer assumiu
definitivamente a presidência, comprometido com uma pauta neoliberal
de reformas.
Em 22 de setembro de 2016 o governo federal divulgou Medida
Provisória reestruturando o Ensino Médio brasileiro (MP-746). A
medida causou surpresa entre especialistas dentro e fora do Estado.
Primeiro porque o ministro da educação havia assumido no dia 1º de
setembro, e apenas vinte e dois dias depois, de forma intempestiva, o
governo encaminha, por medida provisória, uma mudança de tamanha
profundidade. Segundo, porque desde 2013 estava em debate no
Congresso Nacional um projeto de lei com a finalidade de estabelecer
novas diretrizes para o Ensino Médio. A tramitação daquele projeto
e os debates nas comissões técnicas do Congresso vinham sendo
acompanhados pela comunidade organizada em torno do Movimento
Nacional pelo Ensino Médio (MNEM)6 e suas ações já haviam produzido
um substitutivo ao PL 6840/13 aprovado na Comissão Especial da
Câmara dos Deputados em dezembro de 2014. Terceiro, como não podia
deixar de ser, pela forma como foi encaminhada, a reforma pretendida
pelo governo apresentava inúmeros pontos que foram prontamente
rechaçados pelo MNEM e especialistas da área. Entre os quais destacamse: a) o desmembramento do currículo em cinco partes ou “itinerários
O Movimento Nacional pelo Ensino Médio foi criado por dez entidades do campo educacional
– ANPED (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação), CEDES
(Centro de Estudos Educação e Sociedade), FORUMDIR (Fórum Nacional de Diretores das
Faculdades de Educação), ANFOPE (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da
Educação), Sociedade Brasileira de Física, Ação Educativa, Campanha Nacional pelo Direito à
Educação, ANPAE (Associação Nacional de Política e Administração da Educação), CONIF
(Conselho Nacional Das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional Científica e
Tecnológica) e CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e foi criado
no início de 2014 com vistas a intervir no sentido da não aprovação do Projeto de Lei no
6.840/20131. Para esse fim empreendeu um conjunto de ações junto ao Congresso Nacional
e ao Ministério da Educação, além de criar uma petição pública. Destas ações resultou um
Substitutivo por meio do qual, se não se logrou obter avanços, ao menos evitou-se o maior
retrocesso. O Substitutivo ao PL 6.840/13 foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos
Deputados em dezembro de 2014.
6
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016
As ocupações das escolas públicas paranaense:...
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formativos”, sob o argumento de dar aos alunos a opção de escolher a
formação para a qual se julgarem vocacionados. O movimento denunciou
que na prática não serão os alunos, mas os sistemas oficiais que decidirão
quais os itinerários poderão ser cursados, pois a MP não determina que
todas as escolas ofereçam os cinco itinerários. b) A despeito de muitos
esforços empreendidos pelos governos federal e estaduais nos últimos
anos para melhorar a formação de professores, a MP estabelece que
pessoas sem formação específica possam assumir disciplinas para as quais
não foram preparadas com base em um suposto e indefinido “notório
saber”. c) A MP-746 determina a ampliação da carga horária do nível
médio, com a implantação do ensino em tempo integral, sem considerar
que, em sua grande maioria, as escolas públicas brasileiras não possuem
sequer espaço físico para a prática de atividades fora da sala de aula e
o período integral não pode se reduzir ao confinamento de estudantes
em sala por um dia inteiro. A MP também não explica o que acontece
com o atual período noturno, deixando implícito o seu fim, e com ele
a única oportunidade de estudo dos estudantes trabalhadores. d) O
“itinerário” profissionalizante estabelecido pela MP-746 indica o caminho
da privatização, por meio de “parcerias”, posto que as redes públicas
estaduais não dispõem de estrutura física e de pessoal para esse tipo de
atividade. e) Por fim, a retirada da obrigatoriedade das disciplinas de Artes,
Educação Física, Filosofia e Sociologia representa a opção do governo
por um tipo de saber tecnicista e acrítico, e a negação ao estudante do seu
direito ao conhecimento integral.
Na noite de 03 de outubro cerca de 30 estudantes ocuparam as
instalações do Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen em São José dos
Pinhais, região metropolitana de Curitiba, em protesto contra a MP-746 e
a PEC-241. O jornal paranaense Gazeta do Povo, um dos mais influentes
do estado, dava a notícia sem grande destaque: “A ocupação foi definida,
segundo os estudantes, sem a liderança de um movimento específico, após
um debate realizado na última sexta-feira (30)”. No encontro, informava
o jornal, se reuniram cerca de 400 estudantes de 27 das 30 escolas estaduais
de São José dos Pinhais e a intenção anunciada era ampliar o movimento:
“A ocupação não é só dos alunos do Arnaldo – dizia uma estudante
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Conrado Pereda Minucelli et al.
entrevistada – é importante lembrar que outros estudantes estão aqui ou
virão para organizar novas ações”. O jornal não tinha como prever, mas
estava registrando o início de um movimento que alcançaria cerca de 850
escolas no estado do Paraná7.
Na mesma matéria a Gazeta do Povo informava ainda que a
Secretaria de Estado da Educação (SEED) comunicou que representantes
da secretaria estiveram com os estudantes para explicar que “a
reforma será amplamente debatida com a comunidade escolar antes da
implementação de qualquer mudança”. Note-se que, apesar de dizer
que estiveram na escola, os representantes da SEED parecem não ter
entendido a complexidade da situação. Os estudantes não queriam debater
a “implementação” das mudanças; eles não concordavam com o teor da
reforma imposta por medida provisória e queriam a sua revogação. O fato,
entretanto, não indica apenas um ruído na comunicação. Na verdade, ele
é expressão de uma conduta conhecida pelos adolescentes; é desta forma
que as instituições se relacionam com jovens de uma maneira geral e é essa
a relação que se estabelece no interior da escola. Os jovens quase nunca
são ouvidos e, quando são, suas opiniões não são seriamente consideradas.
Três dias depois daquela primeira notícia cerca de 30 escolas estavam
ocupadas, entre elas Colégio Estadual do Paraná, a maior escola pública
do Estado. O roteiro parecia ser sempre o mesmo: os alunos faziam
assembleias nas escolas, debatiam a MP-746 e a PEC-241 e deliberavam
pela ocupação. De passagem, ao entrevistar alguns alunos sobre o
movimento, o jornal deixa perceber a importância da internet no processo
de mobilização: uma estudante entrevistada fala que ao acordar na manhã
da ocupação tinha “mais de 400 mensagens” no grupo de WhatsApp da
sua turma8.
No dia 06 de outubro os sindicatos dos docentes da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná e da Universidade Estadual de Ponta Grossa
anunciam greve a partir de segunda-feira, dia 10. Naquele mesmo dia o
http://www.gazetadopovo.com.br/conta/cadastre-se/?referrer=http://www.gazetadopovo.
com.br/educacao/alunos-ocupam-escola-em-sjp-em-protesto-contra-reforma-do-ensinomedio-a1w3v5fr4edc1gpxcu9scixu8.
8
http://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/colegio-estadual-do-parana-eocupado-por-alunos-ja-sao-quase-40-escolas-fechadas/.
7
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253
sindicato dos professores da rede estadual de ensino básico, APP-Sindicato,
também anuncia que está convocando greve a partir do dia 15. Embora
colocassem em suas pautas manifestações contra a MP-746 e a PEC 241,
se juntando assim aos estudantes mobilizados, os sindicatos docentes
estavam se mobilizando por questões salariais: o governo estadual havia
anunciado que não cumpriria um acordo anterior que previa reposição de
perdas salariais para o próximo mês de janeiro.
Ainda que os jornais insistissem em informar que a Secretaria da
Educação do Paraná (SEED) estava acompanhando de perto as ocupações,
o governo do estado, em cada declaração, deixava transparecer que
continuava não compreendendo o caráter do movimento dos estudantes.
No dia 08 de outubro, o G1 – portal de notícias da Rede Globo – reproduziu
uma declaração do governador do estado sob a manchete: “Beto Richa diz
que alunos não sabem por que estão protestando no Paraná”:
Sindicatos ligados à CUT e ao PT que querem a baderna
no país usando, de forma criminosa, as nossas crianças nas
escolas que estão nas ruas protestando não sabem nem o
que. Numa perfeita doutrinação ideológica das escolas do
Paraná e do Brasil. Aqui, talvez, com mais intensidade, pela
agressividade dos sindicatos daqui.9
A tentativa do governo de ligar o movimento dos secundaristas ao
sindical apenas reafirma um tipo de pensamento conservador que trata
os estudantes como seres sem agência, incapazes de qualquer ação e que,
portanto, se estão se manifestando, é porque estão sendo manipulados por
alguém. Esse pensamento será seguidamente reafirmado em diferentes atos
e declarações do governo. Não temos como dimensionar a ressonância do
argumento junto à toda sociedade, mas entre os estudantes mobilizados ele
causou muita indignação, e como tal, funcionou como combustível para
os manifestantes. Em 09 de outubro, domingo, mais de 4 mil estudantes
realizaram uma manifestação pelas ruas da capital do estado10. Naquele
http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/estao-protestando-nao-sabem-nem-oque-diz-richa-ocupacao-de-escolas.html.
10
http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/estudantes-se-reunem-para-protestarcontra-reforma-do-ensino-medio.html.
9
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momento já eram mais de 50 escolas ocupadas e o movimento que havia
se iniciado na região metropolitana de Curitiba, estava presente em mais de
15 cidades, incluindo Toledo e Cascavel, no extremo oeste do estado, onde
foram feitas as observações e entrevistas que fundamentam esse trabalho.
Em 10 de outubro estudantes secundaristas compareceram a uma
reunião do Comando de Greve da Unioeste no Campus de Toledo e
informaram que o Colégio Estadual Novo Horizonte havia sido ocupado
na véspera, que outras escolas no município de Toledo seriam ocupadas
em breve e que eles gostariam de ter o apoio dos professores e estudantes
da universidade. Uma rede de apoio foi ativada naquele momento e os
secundaristas puderam contar com a presença de docentes da universidade
em debates sob a MP-746 e a PEC-241, palestras, oficinas e aulas durante
as ocupações.
Naquele mesmo dia a imprensa divulgou um ofício do Ministério
Público do Estado do Paraná onde afirma que:
O direito à livre manifestação de pensamento, de associação
e mesmo o protesto pacífico diante de posturas tidas como
arbitrárias por parte das autoridades constituídas é inerente
a todo cidadão, nada impedindo que seja exercitado por
meio da ocupação de um espaço público que tem como
missão institucional o preparo para o exercício da cidadania
(art. 205, da Constituição Federal).11
No mesmo documento o Ministério Público orienta “os órgãos
públicos que atuam na defesa dos direitos das crianças e adolescentes”
a acompanharem as ocupações “num viés eminentemente preventivo”.12
Esse encaminhamento cumpriu uma importante função tranquilizadora,
pois conteve parte da pressão que aqueles órgãos recebiam para atuar
repressivamente e contribuiu para neutralizar o discurso governista,
largamente difundido na imprensa e nas redes sociais, que tentava
criminalizar as ocupações.
http://www.educacao.mppr.mp.br/modules/noticias/article.php?storyid=100&tit=OficioCircular-no-569--2016-Ocupacao-das-escolas-por-alunos-adolescentes.
12
http://www.educacao.mppr.mp.br/modules/noticias/article.php?storyid=100&tit=OficioCircular-no-569--2016-Ocupacao-das-escolas-por-alunos-adolescentes.
11
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Crescendo em progressão geométrica, em 11 de outubro o
movimento secundarista contabilizava 210 escolas ocupadas. Nesta data,
os estudantes das universidades estaduais, seguindo o mesmo modus operandi
dos secundaristas, ocupam os campi da Unioeste de Toledo e Marechal
Cândido Rondon.
Nesse momento o governador do estado parece mudar sua opinião
sobre o movimento e a capacidade de agência dos estudantes e, via facebook,
convida o presidente da União Paranaense de Estudantes Secundaristas,
UPES, para dialogar. Ao dirigir-se ao presidente da UPES, entretanto, o
governador mostra que, apesar de ter mudado sua avaliação inicial, ainda
não havia entendido a dinâmica e a organização do movimento. Ele
procurava um interlocutor que falasse em nome de todas as ocupações,
quando este não existia. O movimento era completamente descentralizado
e cada escola possuía total autonomia de ação. Em coletiva de imprensa na
tarde de quarta-feira, 12 de outubro, em Curitiba o presidente da UPES,
Matheus Santos, explicou que o convite do governador não seria aceito
prontamente e que todos os alunos das escolas ocupadas deveriam ser
consultados. O dirigente estudantil demonstrou ter consciência de que
o controle do movimento não passava pela UPES como o governo
parecia acreditar. Não obstante, por ser dirigente de uma entidade
estudantil tradicional, ele não deixaria de tentar uma ação organizadora
e centralizadora que ampliasse a influência da sua entidade: “Queremos
construir assembleias de maneira democrática. Tem muito estudante que
nem conhece a Upes, é preciso que saibam do nosso trabalho.”13
A SEED, em mais um movimento visando conter as ocupações,
determinou a organização de seminários em todos os seus Núcleos
Regionais para debater a reforma do ensino médio no dia 13 de outubro.
Os diretores de escolas, ocupadas ou não, receberam instruções para
encaminhar para estes seminários representantes dos estudantes, pais
de alunos, técnicos e professores. Na maioria dos Núcleos, entretanto,
os seminários se tornaram verdadeiros atos de repúdio à MP-746. Os
estudantes mobilizados compareceram em grande número aos seminários
http://www.gazetadopovo.com.br/educacao/estudantes-decidirao-em-assembleias-seaceitam-dialogar-com-richa-1d3l7nlfhg095gji4r2928it0.
13
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e reafirmaram a posição do movimento pela imediata revogação da Medida
Provisória.
Em 14 de outubro o governo sofreu uma derrota na arena jurídica.
A Defensoria Pública do estado derrubou as liminares de reintegração de
posse de escolas ocupadas no município de São José dos Pinhais. Naquela
data as ocupações já somavam 420 em todo o estado e a derrota do
governo funcionou como mais um estímulo para novas ocupações.
Em 17 de outubro já eram mais de 600 escolas ocupadas e o
movimento falava em chegar a mil – a rede pública paranaense possui
2148 unidades. Nesta data a Associação dos Conselhos Tutelares
do Estado do Paraná (ACTEP) publicou uma nota reconhecendo o
“direito dos adolescentes que estão participando do movimento” e
recomendando ao sistema de Conselhos Tutelares que os conselheiros
“previnam e combatam ações repressivas contra os manifestantes (...)14. As
recomendações da ACTP foram importantes para neutralizar as pressões
que os conselheiros tutelares estavam recebendo da parte do governo e
de setores conservadores de modo geral para tomar medidas repressivas
contra os estudantes mobilizados. O discurso conservador, repetido
diuturnamente pela imprensa, exigia a intervenção dos conselhos tutelares
alegando que crianças e adolescentes que ocupavam escolas estavam fora
do alcance do controle paterno e, portanto, expostos ao tráfico de drogas
e consumo de álcool nas escolas ocupadas.
No dia 17 de outubro teve início, de fato, a anunciada greve
dos professores da rede estadual de ensino básico. O movimento dos
professores ofuscou um pouco as ocupações na grande mídia. Nos dias
seguintes a imprensa se encarregou de fornecer balanços sobre a adesão
à greve e o andamento das negociações com o governo. Não obstante o
movimento continuava em ascensão e no dia 20 de outubro o número de
ocupações ultrapassava a marca das 700 escolas.
Em 19 de outubro o ministro da educação, Mendonça Filho, e a
presidente do INEP, Maria Inês Fini, anunciaram que o Exame Nacional
do Ensino Médio, ENEM, seria suspenso nas escolas ocupadas caso elas
não fossem desocupadas até o dia 31 de outubro. A fala, recebida como
14
https://www.facebook.com/ACTEP.PR/posts/1285655121468037.
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arrogante e autoritária, foi a única resposta dada ao movimento pelo
Ministério da Educação. A intenção clara do governo era jogar parte da
comunidade contra as ocupações, uma vez que o ENEM é aguardado
ansiosamente por um grande número de famílias de estudantes que jogam
seu futuro naquelas provas15. Das 2148 escolas estaduais do Paraná, naquele
momento pouco menos da metade estava ocupada e entre elas apenas
145 deveriam sediar as provas. Para os estudantes ficou patente que se
houvesse um mínimo de boa vontade, as provas poderiam ser remanejadas
para outros locais.
Novamente a grande imprensa e a rede governista escolheram o
presidente da UPES como interlocutor para saber a posição do movimento
diante do fato provocado pelo ministério. O site Paraná Portal, hospedado
no portal UOL do grupo Folha de São Paulo, divulgou declaração do
presidente da UPES informando que “só quem sabe a possibilidade
das escolas serem desocupadas ou não são a maioria dos alunos” e que
deveria ser “realizada uma assembleia estadual para definir isso”.16 O
jornal Gazeta do Povo publicou matéria de teor semelhante com título
em letras garrafais: “Líderes das escolas ocupadas pedem que governo
aguarde decisão da assembleia”.17 No mesmo dia 19 de outubro, a página
#OcupaParaná na internet divulgou uma “Nota de esclarecimento sobre
o Enem 2016”, cujo teor oscila entre falar em nome do movimento e
reconhecer que as ocupações são autônomas:
Nós do movimento Ocupa Paraná deixamos claro que
já nos aproximamos de 800 escolas ocupadas e que não
temos intenção alguma de prejudicar ninguém no ENEM,
sabemos que os estudantes das 145 escolas não hesitariam
em suspender temporariamente as ocupações para que
a prova acontecesse (...). No entanto, não cabe a nós
A nota do Enem é usada pela maioria das universidades públicas do país em seus processos
seletivos, e também para o financiamento de universidades privadas pelos programas FIES e
PROUNI.
16
http://paranaportal.uol.com.br/cidades/com-773-escolas-ocupadas-inep-vai-suspenderenem-no-parana/.
17
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/lideres-das-escolas-ocupadas-pedemque-governo-aguarde-decisao-da-assembleia-7ikumc9i7yd30qrkuzcivdeh.
15
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decidir o que fazer nesse caso, essa será mais uma pauta da
ASSEMBLEIA ESTADUAL que irá acontecer dia 26 (10
dias antes do prazo dado pelo MEC) e só essa assembleia
decidirá quais rumos nossas ocupações tomarão18.
As declarações do presidente da UPES à imprensa, bem como a
nota publicada, explicitam um problema. Até aquele momento cada
ocupação era absolutamente autônoma e não havia nenhuma instância
deliberativa além das reuniões no interior de cada escola. Mas a assembleia
de representantes proposta pelos dirigentes da UPES surgia como uma
instância superior, com poder normativo sobre a totalidade das ocupações
como se vê na afirmação de que “só essa assembleia decidirá quais
rumos nossas ocupações tomarão”. O movimento que em suas origens
era autônomo, desburocratizado e estruturado com base na participação
direta dos estudantes mobilizados, se via assim, diante de uma estrutura de
poder representativa e burocrática.
O caráter burocrático e representativo da nova instância proposta
ficou ainda mais evidente no processo de organização da assembleia.
A página do facebook e o site #OcupaParaná divulgaram uma série de
orientações na forma de perguntas e respostas onde se lia:
A assembleia construirá a ponte entre todas as ocupações
que hoje passam das 800, para definir os próximos passos
da educação e também se os estudantes das ocupações têm
interesse em dialogar sobre as demandas especificamente do
Paraná com o governo do estado. A defensoria Pública do
estado hoje se coloca a disposição e convoca os estudantes
e o governo para mediar uma negociação quanto às pautas
do estado19.
Durante os seminários organizados pelos Núcleos Regionais de
Educação os estudantes já haviam manifestado claramente que o objetivo
das ocupações era protestar contra a MP-746 e a PEC-241 e que nenhum
http://www.ocupaparana.com.br/2016/10/nota-de-esclarecimento-sobre-o-enem-2016.
html.
19
http://www.ocupaparana.com.br/p/comunicacao.html. #ocupaparaná #assembleia.
18
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As ocupações das escolas públicas paranaense:...
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diálogo com o governo seria possível enquanto aqueles instrumentos não
fossem revogados. No interior das ocupações poucos compreenderam
a proposição da UPES naquele momento de abrir negociação com o
governo do estado.
Na sequência, a página orientava os estudantes para que fosse
realizada “uma assembleia em cada escola ocupada” onde deveria ser
escolhido “o representante da ocupação que virá participar da Assembleia
Estadual dos Estudantes”. Após isto, “um dos ocupantes” deveria
fazer um cadastro no sistema do site (www.ocupaparana.com.br) por
meio de um formulário eletrônico ativado exclusivamente por meio
de uma conta no Google (gmail).20 Esses elementos levam a crer que a
UPES estava buscando, por um lado, legitimar-se como interlocutora
junto ao governo estadual obtendo autorização para falar em nome do
movimento em futuras negociações e, por outro, buscava aumentar seu
controle sobre o movimento criando uma instância superior, centralizada,
com poder vinculante sobre o conjunto das ocupações. Naquela altura
dos acontecimentos restava saber se o movimento se submeteria a tal
instituição.
Como reconhecimento da legitimidade do movimento, e com
uma postura diferente daquela mostrada pelo Ministério da Educação, o
Tribunal Regional Eleitoral comunicou no dia 21 de outubro que estava
transferindo para locais alternativos a votação que deveria ocorrer em
escolas ocupadas nas cidades de Curitiba, Ponta Grossa e Maringá, os três
municípios do estado onde seriam realizados segundo turno nas eleições
municipais de 2016.
Poucos dias depois o movimento sofreria o primeiro grande abalo.
Toda a imprensa noticiou com grande destaque a morte de um estudante
no interior de uma escola ocupada. No dia 24 de outubro o estudante
Lucas Mota, de 16 anos, foi morto em decorrência de uma briga dentro
do Colégio Estadual Santa Felicidade em Curitiba. A escola começou a
ser desocupada horas depois do corpo ter sido encontrado. Em entrevista
coletiva na qual anunciou que a polícia havia apreendido um adolescente
20
http://www.ocupaparana.com.br/p/comunicacao.html. #ocupaparaná #assembleia.
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260
Conrado Pereda Minucelli et al.
que confessou ter assassinado o colega após uma discussão no interior
da escola. O secretário estadual de segurança pública reconheceu que
o incidente foi um fato isolado e que, ao contrário do que a imprensa
havia especulado, não tinha qualquer relação com o movimento das
ocupações. Apesar disso, o secretário afirmou que se tratava de uma
“tragédia presumida” por conta do grande número de denúncias de tráfico
e consumo de drogas no interior das instituições ocupadas.21
O incidente deu novo fôlego para o discurso conservador e animou
a ação de reacionários de várias espécies. Para o governador do estado,
“A ocupação de escolas no Paraná ultrapassou os limites do bom senso
e não encontra amparo na razão, pois o diálogo sobre a reforma do
ensino médio está aberto, como bem sabem todos os envolvidos nessa
questão”22. A senha estava dada. Grupos organizados passaram a ameaçar
e a atacar ocupações. Relatos anteriores informavam que ações desse tipo
vinham sendo empreendidas por pessoas identificadas como membros
do MBL, Movimento Brasil Livre. Em 19 de outubro secundaristas que
ocupavam o Colégio Estadual do Paraná, a maior escola pública do estado,
denunciaram que viveram momentos de assédio e terror quando cinco
homens, apresentando-se como integrantes do MBL, liderados por um
candidato a vereador derrotado nas últimas eleições em Curitiba, tentaram
invadir o Colégio. Vídeo divulgado dia 24 de outubro pelo movimento
Advogados Pela Democracia mostra a ação de um grupo de pessoas
arrombando os portões adentrando as dependências do Colégio Estadual
Guido Arzo em Curitiba. Ações desse tipo proliferam por todo o estado e
cenas como a registrada no vídeo se repetiriam em muitas escolas gerando
um clima de terror23.
No dia 26 de outubro aconteceu em Curitiba a aguardada
assembleia estadual dos representantes das ocupações. A reunião contou
com a presença de delegados de cerca de 600 das escolas ocupadas e foi
https://educacao.uol.com.br/noticias/2016/10/24/amigo-matou-colega-a-facadas-emescola-diz-secretario-de-seguranca-do-pr.htm.
22
http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/adolescente-e-encontrado-mortodentro-de-colegio-estadual-ocupado.html.
23
http://www.esmaelmorais.com.br/2016/10/richa-organiza-milicias-fascistas-paradesocupar-900-escolas-no-parana/.
21
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As ocupações das escolas públicas paranaense:...
261
acompanhada por membros da Defensoria Pública e do Ministério Público
do Paraná, mas a imprensa não pôde acompanhar e os participantes
firmaram um acordo para que ninguém concedesse entrevista24. Ao
final, foi divulgado na página #OcupaParaná um comunicado contendo
uma lista um tanto confusa com as “principais pautas levantadas” pela
assembleia, mas finalizado com uma informação de extrema relevância:
Para finalizar informamos também que NÃO HÁ nenhuma
orientação para desocupação de escolas, entendemos em
assembleia que esta decisão cabe APENAS ao conjunto
dos estudantes de cada escola e não é uma decisão coletiva.
Sendo assim, os estudantes em cada escola podem decidir
se vão ou não desocupar suas escolas. Na assembleia, no
entanto ficou claro que não haverá desocupação sem a
garantia do atendimento de nossas pautas25.
O movimento reafirmava, assim, a autonomia das ocupações,
negando a transferência do poder local para outra instância.
A inexistência de alguém que falasse em nome de todo o movimento
era um problema que se recolocava constantemente. A grande imprensa
mostrou que tem dificuldades para se relacionar com um movimento
descentralizado e não-hierárquico e em diversos momento indicava o
presidente da UPES como “líder” ou “direção” das ocupações, como
quem procura um novo Lindberg entre os “caras pintadas”26. Mas no dia
26 de outubro a imprensa encontraria outro “porta voz” dos secundaristas.
A estudante Ana Júlia Ribeiro, aluna do Colégio Estadual Senador Alencar
Manuel Guimarães, de apenas 16 anos, falou por dez minutos na tribuna
da Assembleia Legislativa do estado. Ela foi convidada pelo deputado
http://g1.globo.com/pr/parana/educacao/noticia/2016/10/estudantes-do-paranadiscutem-em-assembleia-rumos-das-ocupacoes.html.
https://cbncuritiba.com/2016/10/26/estudantes-realizam-assembleia-sobre-ocupacao-dasescolas-no-parana/.
25
http://www.ocupaparana.com.br/search?updatedmax=20161103T14:57:0007:00&maxresults=1&reversepaginate=true (Destaque dos autores).
26
Lindberg Farias, hoje senador da república era presidente da UNE durante o movimento
pelo impeachment do presidente Collor e foi apresentado nacionalmente pela imprensa como
o “líder dos caras pintadas”.
24
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Conrado Pereda Minucelli et al.
oposicionista Tadeu Veneri (PT) para falar como resposta a um grupo
de estudantes contrários às ocupações que haviam falado no dia anterior
a convite da bancada governista. Em seu discurso a jovem secundarista
defendeu a legitimidade das ocupações, criticou a MP-746, a PEC-241 e o
projeto Escola Sem Partido, e rechaçou o discurso criminalizador fazendo
um convite para que todos os deputados fossem conhecer as ocupações
para compreender como o movimento acontecia de fato. O vídeo com o
discurso emocionado da estudante viralizou na internet. Em pouco tempo,
até então desconhecida, estudante estava na pauta dos principais jornais
do país e de alguns veículos internacionais. A prestigiada revista Forbes
publicou em seu site que ‘’Nas últimas 24 horas, o Brasil foi apresentado
ao que muitos brasileiros acreditam que é a mais promissora voz ouvida
em muitos anos’’27. O blog do jornalista Esmael de Moraes, ativista de
oposição aos governos estadual e federal, anunciou em manchete no dia
28 de outubro que a “Estudante Ana Júlia, porta-voz das escolas ocupadas,
denunciará à ONU milícias fascistas de Beto Richa no Paraná”, dando
conta de que a rede política de oposição levaria a jovem ao Senado Federal
e, depois, à Organização das Nações Unidas, fazendo um uso particular
do movimento28.
A reação governista não tardaria, e viria na forma de repressão
jurídico-policial e pela ação de tropas auxiliares mobilizadas pelo governo.
No dia 27 de outubro o Paraná Portal noticiou a reintegração de posse
de 25 escolas da região de Curitiba: “A liminar foi concedida a pedido da
Procuradoria Geral do Estado. Na decisão, a juíza Patrícia de Almeida
Gomes, da 5ª Vara de Fazenda Pública, estabelece ainda uma multa no
valor de R$ 10 mil por dia em caso de descumprimento”. No despacho
a magistrada determinava também à polícia militar que tomasse “as
providências necessárias para assegurar o cumprimento da decisão”29.
http://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br/2016/10/27/forbes-discurso-da-estudante-anajulia-e-o-futuro-da-juventude-do-brasil/.
28
http://www.esmaelmorais.com.br/2016/10/estudante-ana-julia-porta-voz-das-escolasocupadas-denunciara-a-onu-milicias-fascistas-de-beto-richa-no-parana/
(Destaque
dos
autores).
29
http://paranaportal.uol.com.br/cidades/justica-determina-reintegracao-de-posse-de-25escolas-ocupadas-em-curitiba/.
27
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No dia 28 de outubro membros da comunidade fizeram um cordão
de isolamento em torno do Colégio Estadual Pedro de Macedo em
Curitiba para conter a ação de agentes do MBL que tentavam forçar sua
desocupação30.
No dia 31 de outubro, após a justiça autorizar o governo a cortar
os salários dos professores em greve, uma assembleia do Sindicato dos
Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato) delibera
pelo fim da greve dos professores. O movimento sofria mais um revés,
desta vez, partindo do interior da sua rede de sustentação. Na assembleia
dos professores, uma aluna do Colégio Estadual Arnaldo Jansen, a primeira
escola ocupada no Paraná, chorou enquanto criticava o que avaliava como
“traição” dos professores que votaram pela suspensão da greve31.
No dia 03 de novembro, sintomaticamente no dia em que o
movimento completou um mês, a polícia fazia cumprir a determinação
judicial de reintegração de posse de 23 escolas32. Nesse mesmo dia o Blog
do Esmael e o portal G1 noticiavam que a Procuradoria Geral do Estado
havia requerido a extensão dos efeitos daquela liminar para todas as demais
escolas no estado33.
Na tarde da sexta-feira 04 de novembro a polícia militar entrou no
Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen e retirou os estudantes que saíram
pacificamente após terem permanecido no local por 32 dias34. Algumas
poucas ocupações ainda resistiram por mais alguns dias.
http://g1.globo.com/pr/parana/educacao/noticia/2016/10/justica-determina-reintegracaode-posse-de-dezenas-de-escolas-do-pr.html.
30
https://www.youtube.com/watch?v=wc2eMsPHu7c.
31
http://www.esmaelmorais.com.br/2016/10/estudante-vai-as-lagrimas-pela-traicao-deprofessores-que-suspenderam-greve-no-parana-assista/.
32
http://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/reintegracoes-de-1a-liminar-contraescolas-ocupadas-em-curitiba-sao-cumpridas/.
33
http://www.esmaelmorais.com.br/2016/11/beto-richa-quer-desocupar-a-forca-todas-asescolas-do-parana/.
http://g1.globo.com/pr/parana/educacao/noticia/2016/11/estado-pede-reintegracao-deposse-de-44-escolas-ocupadas-em-curitiba.html.
34
http://pr.ricmais.com.br/educacao/noticias/pm-cumpre-reintegracao-de-posse-emprimeira-escola-ocupada-no-parana/.
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Conrado Pereda Minucelli et al.
A ORGANIZAÇÃO DAS OCUPAÇÕES
O roteiro das ocupações no Paraná estava dado desde a primeira,
ocorrida no Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, e apresenta os
seguintes passos: um debate sobre a MP-746 e a PEC-241, seguido pela
organização de uma assembleia na escola, a ocupação das instalações
com a tomada do controle sobre o acesso às instalações, organização e
resistência. Por vezes esse roteiro não foi rigorosamente seguido, com
alguma parte sendo suprimida ou alterada, porém, em seus traços centrais,
ele descreve o processo com bastante propriedade.
No capítulo inicial já se configura alguns dos primeiros, e decisivos,
embates. Por um lado, os estudantes mobilizados enfrentam a oposição
das direções das escolas. Por outro, a indiferença dos seus próprios
colegas. As escolas tradicionais normalmente oferecem inúmeras razões
para a indignação dos estudantes (Ver por exemplo, LIBANEO,1992 e
SAVIANI, 1991) e no sistema de ensino do estado do Paraná a situação
não é diferente. As escolas públicas paranaenses, em sua maioria, são
instalações insuficientes e deterioradas, com um corpo de técnicos e
docentes sobrecarregados, mal remunerados e desmotivados, e que
fazem da imposição de uma disciplina rigorosa e constante o principal
recurso para obter dos alunos o comportamento por eles esperado. Por
isso a manutenção da disciplina é uma das mais importantes funções dos
dirigentes escolares. Nessa escola rigorosamente disciplinada não existe
espaço para a manifestação de saberes e valores diferentes, e até mesmo
os elementos da vida sentimental, afetiva e sexual dos sujeitos são negados
e reprimidos. Em uma escola assim, um debate proposto e organizado
pelos estudantes, sobre assunto de seu interesse, não é algo que se realize
tranquilamente; pelo contrário, ele tende a aparecer como uma grande
ameaça à ordem estabelecida. Na iminência de uma reforma do sistema
imposta por medida provisória, entretanto, algumas direções de escolas
não apenas não tinham argumentos para impedir a organizações de debates
sobre o tema, como, muitas vezes, elas mesmas estavam interessadas em
conhecer em detalhes o teor da MP-746 e da PEC-241.
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De um modo geral, os secundaristas em processo de mobilização
contam com a insatisfação generalizada que eles sabem existir entre seus
colegas para angariar apoio. No cotidiano os estudantes não se submetem
passivamente à rigidez disciplinar das escolas; eles desenvolvem táticas e
estratégias de resistência, mobilizam recursos e criam alternativas35. Não
obstante, a passagem daquelas formas de resistência encontradas no
cotidiano da instituição para uma ação coletiva protesto representa uma
grande transformação que, como toda ruptura no cotidiano, é cercada
por incertezas e insegurança. No caso do #OcupaParaná, o peso de
elementos prévios de organização ou experiência política nessa passagem
foi incerto e irregular. Em algumas escolas observadas grêmios estudantis
e representantes de sala foram importantes agentes de mobilização e em
torno deles se formou o grupo embrionário que deu origem ao processo de
ocupação. Em outras, a mobilização se deu à revelia daquelas instituições,
com pequenos grupos de estudantes indignados se organizando por meio
das redes sociais. De resto, a grande maioria dos jovens que protagonizaram
as ocupações tinha muito pouca, ou nenhuma, experiência política anterior;
nunca havia participado de qualquer movimento ou manifestações políticas
e sequer tinha votado em alguma eleição.
Ocupada uma escola todos os poderes instituídos eram suspensos e
novas relações estabelecidas. A primeira medida adotada pelos ocupantes
era constituir comissões autogeridas, responsáveis pela execução de
atividades essenciais como segurança, ações pedagógicas e culturais,
cozinha, limpeza, comunicação, mobilização etc. As tarefas práticas eram
divididas, mas a unidade política preservada: todos os dias os estudantes se
reuniam para analisar o desenrolar da conjuntura e deliberar coletivamente
sobre os rumos e ações do movimento. Nesse ponto ficou evidente a
influência das orientações disponíveis na internet sobre a organização das
ocupações. Alguns dias após o início do movimento o site #OcupaParaná
já exibia a página #Como Ocupar, contendo “10 Passos para Ocupar
uma Escola”36. As orientações que constavam na página eram uma versão
Sobre a resistência no cotidiano ver Michel de Certeau (1998) e sobre o cotidiano escolar
Peter McLaren (1992).
36
http://www.ocupaparana.com.br/p/como-ocupar.html.
35
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Conrado Pereda Minucelli et al.
resumida da cartilha “Como ocupar um colégio?” que circulou entre os
secundaristas de São Paulo durante as ocupações de 2015, a qual por sua
vez, consistia na tradução de uma publicação de estudantes da Argentina e
do Chile (CAMPOS, MEDEIROS E RIBEIRO, 2016; pp. 338-345).
Quem visitou uma escola no período da ocupação, ao chegar
encontrou um grupo de alunos controlando o acesso, cuidando para que
apenas membros da comunidade escolar entrassem e, quando autorizado,
registrando nome, data, hora e motivo da entrada do visitante. No interior,
ao lado de faixas e cartazes feitos à mão com palavras de ordem contra
a reforma do Ensino Médio e em defesa da educação pública, o visitante
podia ver cartazes com regras e normas de conduta alertando para a
necessidade de manter a limpeza do local e proteger equipamentos e
instalações da escola, e proibindo taxativamente o consumo de bebidas
alcoólicas e outras drogas no interior da escola. Essa proibição, mais que
um caráter moral, cumpria uma função política de combate ao discurso
criminalizador difundido pela mídia tradicional e repetido na internet que
denunciava o consumo de drogas nas ocupações. É importante observar
que o consumo de álcool e outras drogas, assim como o envolvimento de
estudantes com o tráfico e até mesmo a morte de jovens são eventos que
fazem parte do cotidiano da maioria das escolas brasileiras e constituem
uma realidade cuja dinâmica foi muito pouco afetada pelo advento das
ocupações. Tais eventos, entretanto, não recebem no dia a dia o destaque
no noticiário que tiveram durante as ocupações.
Durante os dias, as escolas ocupadas eram frequentadas por
um grande número de estudantes que participavam das mais diversas
atividades. As aulas de preparação para o ENEM, quando ocorriam,
normalmente eram bastante concorridas, assim como oficinas sobre
temas curriculares e extracurriculares. A prática de atividades lúdicas e
esportivas também foi constante durante o período das ocupações que
acompanhamos. Para divulgar a programação das atividades os estudantes
recorriam, principalmente, às páginas do Facebook e também ao Twitter e
ao WhatsApp. Não eram todos que pernoitavam nas escolas ocupadas. Na
maior parte dos casos, apenas um pequeno grupo com cerca de 20 a 40
estudantes dormia no local, em colchonetes ou colchões de ar, espalhados
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por salas transformadas em alojamentos feminino e masculino separados.
Para a alimentação e a higiene pessoal também muitos voltavam para
suas casas, mas as refeições coletivas, feitas com alimentos doados pela
comunidade, eram constantes. Em alguns casos os estudantes usavam a
infraestrutura da escola, em outros, foram improvisadas cozinhas com
equipamentos próprios para acampamento, também emprestados pela
comunidade. Algumas ocupações deliberaram por usar o estoque de
alimentos da merenda escolar, entendendo que não havia qualquer desvio
da finalidade dos mesmos, outras preferiram usar apenas alimentos
recebidos em doação.
Se um visitante qualquer procurasse o “líder” ou “porta-voz” da
ocupação, não teria sucesso. Somente encontraria coletivos, equipes ou
comissões, responsáveis pela execução de diferentes tarefas, entre elas, a
comunicação com a comunidade interna e externa. Isto, entretanto, não
impediu que durante o processo, aqui e ali, algumas pessoas se destacassem
entre as demais, quase sempre por sua disposição e entrega ao movimento, e
se tornasse uma espécie de referência para os colegas. Nesse ponto chamou
a atenção nas escolas acompanhadas o grande número de meninas e de
pessoas LGBTs que assumiram a frente dos trabalhos, atribuindo à escola
um perfil diferente. A organização horizontal do movimento, ao abolir
as hierarquias anteriormente instituídas, permitiu uma expressão maior
de pessoas e segmentos, normalmente, subordinados e/ou excluídos e
provocou uma ressignificação do espaço público (GOHN, 2014): a escola,
palco das ocupações, foi transformada de instrumento de repressão e
reprodução das desigualdades em um espaço de exercício da liberdade e
da autonomia onde todas as individualidades são respeitadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em trabalho recente, Maria da Glória Gohn classifica os
movimentos como clássicos, novos e novíssimos. Os clássicos são aqueles
“que se organizavam de forma tradicional, no meio rural ou urbano,
especialmente os de partidos políticos, sindicatos, movimentos rurais e
organizações oficiais de estudantes, a exemplo da UNE” (GOHN, 2017,
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p. 20). Suas estruturas são rígidas e “copiadas de partidos hierarquizados,
com concepções e estruturas organizacionais centralizadas, focalizadas
em líderes e lideranças” (IDEM, p.20). Para a autora, esses movimentos
ainda que nos dias atuais utilizem intensamente a internet, as redes
sociais e diferentes tipos de mídias como ferramentas de apoio, “pouco
se reinventaram” e, em sua maioria, “ainda tem as mesmas estruturas e
formas de agir do século XX”, e não alteraram o “modo centralizado de
operar repertórios e se relacionar com suas bases” (IDEM, p. 20-1). Os
novos movimentos sociais, por sua vez, surgiram nas últimas décadas
do século XX e “se organizaram ao redor de questões de gênero, etnia,
culturais, ambientalistas etc. (…) ou como movimentos populares de
demandas sociais urbanas” (IDEM, p. 19). São movimentos que “tinham
na identidade cultural seu eixo articulatório central” (Idem, p.19),
“buscavam se firmar pela identidade que construíam – ser mulher, ser
negro, ser jovem, ser índio, ser morador de periferia etc.”, e em contraste
com os movimentos clássicos, se organizavam em estruturas menos rígidas
e menos verticalizadas. Para Gohn, estes movimentos novos, “criados
a partir do final da década de 1970”, ainda hoje “mantêm o perfil de
movimentos de luta pela identidade cultural”, mas alteraram suas práticas
cotidianas e as relações diretas, baseadas em reuniões e assembleias
“deixaram de predominar”. Para a autora, estes movimentos “articularamse em redes, junto com ONGs, e passaram a atuar focalizando muito nos
processos participativos institucionalizados, (...) e em programas e projetos
de parceria criados pelas administrações públicas”. (IDEM, p. 21)
Por fim, Gohn identifica a entrada de “novíssimos sujeitos em cena”,
a partir de 2013. Estes “não são homogêneos” e “representam diferentes
correntes e contracorrentes do mundo da política e da cultura” (GOHN,
2017, p. 21), não obstante, criados na era da internet, eles são “plurais,
mais autônomos, mais horizontais porque nascem de redes de grupos
ou coletivos” (IDEM, p. 24). Os coletivos, segue a autora, “são vistos
como agrupamentos fluidos, fragmentados, horizontais, e muitos têm a
autonomia e a horizontalidade como valores e princípios básicos” (IDEM,
p. 23). E a própria rede atua como “organização-suporte”, agindo como
“filtro que agrega ou separa correntes de contracorrentes”. Para Gohn,
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“as redes sociais virtuais, digitais, são a forma básica de constituição e
atuação da maioria dos coletivos” (IDEM, pp. 24-5). Também Hardt e
Negri (2014, p. 120) sugerem que os movimentos neste início de século
XXI, não apenas “utilizam tecnologias como a internet como ferramentas
de organização, como também começam a adotar tais tecnologias como
modelos para suas próprias estruturas organizacionais”. A ideia central aqui,
em grande medida presente também em Castells (2013), é que a estrutura
policêntrica da web imprime nos movimentos que se organizam a partir do
ciberespaço, características como a horizontalidade e a irredutibilidade de
seus nodos a um comando central unificado.
Se admitirmos que esse início de século está testemunhando a
manifestação de novíssimas formas de movimentos sociais como sugere
Gohn (2017), a relação do movimento de ocupações paranaense com as
entidades clássicas do movimento estudantil fornece uma boa chave para
compreender e – por que não? – problematizar as transformações pelas
quais passam os movimentos sociais nesse início de século XXI.
O site #OcupaParaná e a página no Facebook organizados pela
UPES se consolidaram como importantes referências, principalmente,
para quem buscava informações sobre o movimento. No entanto, as
relações que se estabeleceram entre aquela entidade e o conjunto das
ocupações foram ambíguas e eivadas de contradições. Isso fica bastante
evidente quando, como relatado acima, o presidente da UPES, embora
reconhecendo a autonomia das ocupações que escapam ao controle da
sua entidade, propõe a realização de uma assembleia estadual para decidir
sobre os rumos do movimento, incluindo possíveis desocupações para
a realização do ENEM. O dirigente secundarista parece não perceber
que estava propondo a criação de uma instância superior com poderes
normativos sobre um movimento, que até aquele momento era constituído
por ocupações autônomas e independentes, geridas exclusivamente em
nível local. Na prática, ele estava opondo duas concepções distintas de
democracia. O caráter da assembleia então proposta é essencialmente
representativo e centralizador: tratava-se da organização de uma reunião
de “representantes” das ocupações que, uma vez instituída, deveria ter
suas decisões acatadas por todo o conjunto do movimento. Nas palavras
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do dirigente da UPES, “somente a assembleia” poderia tomar a decisão
de desocupar uma escola para a realização do ENEM. Do outro lado,
permanecia a experiência vivida no cotidiano das ocupações do exercício
permanente de uma democracia direta, sem mediadores ou representantes.
Ao fim, como se viu, os estudantes não estavam dispostos a abrir mão
de sua autonomia em benefício de qualquer instância de poder superior,
centralizada, e se manifestaram no sentido de que a desocupação de uma
escola era uma decisão que somente caberia aos estudantes da própria
escola.
A UPES é uma instituição clássica, típica do século XX, que se
apresenta como “a entidade máxima de representação de todos(as) os(as) estudantes
de ensino fundamental, médio, técnico, pré-vestibular e ensino para jovens
e adultos das redes pública e particular municipal, estadual e federal”37.
Esse caráter de “entidade representativa” presente na autoidentificação
da UPES não pode ser negligenciado. Lavalle, Houtzager e Castell (2006)
chamam a atenção para o fato de que os problemas da representação
política há tempos transbordam os limites do sistema eleitoral e partidário
alcançando movimentos e associações da sociedade civil e embora
estes últimos sejam frequentemente saudados como responsáveis pelo
aprofundamento da democracia, têm sido pouco analisados sob o prisma
da representação política.
No cotidiano o movimento estudantil secundarista38 existe nas
escolas, nos pátios, corredores e salas de aulas. Apenas extraordinariamente
ele sai dos colégios para se manifestar em outros espaços, quando assume
a forma de passeata, marcha, comício, ato público etc. Tais manifestações
públicas do movimento, entretanto, são ocasionais e tendem a ocorrer em
conjunturas específicas de radicalização dos conflitos. No dia a dia, sua
presença nos espaços públicos, assim como a de muitos outros movimentos,
se faz por meio da ação de representantes, sejam eles membros orgânicos,
líderes, ou porta-vozes instituídos. Esta é uma das funções esperadas dos
institutos de representação política: efetivar a presença do representado
nas diferentes arenas políticas, publicizando seu repertório de demandas,
37
38
http://upespr.webnode.pt/sobrenos/ (Destaque dos autores).
O mesmo se poderia dizer do universitário que, entretanto, não é objeto desse estudo.
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interesses, vontades, ou simplesmente divulgando a sua visão de mundo.
Outra, segue em sentido oposto, e deve levar as disputas e conflitos que
se estabelecem na esfera pública até a presença dos representados. É isso
que permite a unificação de lutas particulares e esparsas em um mesmo
movimento. Na prática do movimento estudantil é o que significa levar as
questões políticas “para dentro das salas de aula”.
Nossa hipótese é de que estas funções da representação, no âmbito
dos movimentos aqui observados, têm sido profundamente atingidas pelo
desenvolvimento da internet e das redes sociais. Como ferramenta de
comunicação de fácil acesso e grande poder de difusão, por um lado, a
internet permite que as pessoas se façam presentes em diferentes arenas
tornando possível a publicização de demandas, o compartilhamento e a
articulação em redes independente da figura de um representante, fazendo
com que ele deixe de ser visto como necessário. Por outro, proporciona
um controle mais efetivo e constante sobre a fala e ações daqueles que
assumem a função de representantes aumentando a inevitável dissociação
entre representantes e representados reduzindo exponencialmente a
margem de dissintonia entre ambos. Por isso, por mais que entidades
como a UPES estejam presentes no ciberespaço e lancem mão das novas
tecnologias de comunicação, constituam e participem de redes, elas não
conseguem impedir o crescimento progressivo da fissura existente entre
entidade e movimento, representante e representado, e o consequente
aumento de manifestações independentes, que escapam ao seu controle.
Nesse sentido parece forte a hipótese de Hardt e Negri (2014) de que as
ações de resistência atuais, os protestos e manifestações, cada vez mais
tendem a assumir a forma de uma multidão e, como diz Negri (2004), “a
multidão desafia qualquer conceito de representação”.
Nas ocupações de outubro no Paraná se pôde testemunhar a
manifestação de um movimento que não queria ser representado. Um
movimento que, em determinado momento, recusou taxativamente a
representação. A contrapartida desse tipo de ação, entretanto, é que a falta de
um porta-voz legitimamente constituído, de alguém que tenha autorização
para falar em nome do movimento, permite que uma multiplicidade
de vozes seja ouvida. A polifonia instituída não chega a constituir um
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Conrado Pereda Minucelli et al.
problema, podendo, pelo contrário, até ser considerada uma vantagem do
ponto de vista da expressão da diversidade que tende a ser sacrificada
em nome da unidade política instituída na figura de um representante.
Mas a falta de mecanismos – ou momentos – de expressão da vontade
coletiva pode permitir que alguém, do interior do próprio movimento,
mas dispondo de mais recursos como, por exemplo, maior acesso a canais
de comunicação, ou integração em redes mais amplas, possa fazer sua voz
se sobrepor à dos demais. E, o que é ainda mais grave, a ausência de
uma referência clara permite que forças externas ao movimento – sejam
apoiadoras ou adversárias, de boa ou de má-fé – se sintam livres para agir
como se o seu discurso sobre o movimento correspondesse plenamente
ao conteúdo do próprio movimento ou como se o sentido do movimento
correspondesse exatamente aos seus interesses particulares. Nesses casos,
todos os problemas e distorções da democracia atribuídos à representação,
expulsos pela porta, retornam, sorrateiramente, pela janela.
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Rio de Janeiro: Record, 2014.
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LIBANEO, J. C. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos
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MCLAREN, P. Rituais na escola. Petrópolis: Vozes, 1992.
NEGRI, A. Para uma definição ontológica da Multidão. Lugar Comum, nº
19-20, janeiro de 2004.
SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 1991.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016
nORMaS paRa apRESEntaçãO DE ORIgInaIS
InfORMaçõES gERaIS
A Revista TEMÁTICAS publica trabalhos originais de alunos,
professores e pesquisadores em Ciências Sociais, na forma de artigos,
resenhas, entrevistas, comunicações e traduções. Serão aceitas resenhas de
livros que tenham sido publicados no Brasil, nos dois últimos anos, e no
exterior, nos quatro últimos anos.
Prioritariamente, os trabalhos devem ser redigidos em português ou
espanhol. O Resumo e as Palavras-chave, que precedem o texto, escritos no
idioma do artigo; os que sucedem o texto, em inglês (Abstract/Keywords).
É permitida a reprodução parcial ou total dos trabalhos da Revista
TEMÁTICAS em outras publicações ou sua tradução para outro idioma,
desde que citada a fonte original.
A publicação de artigos não é autorizada aos membros do Conselho
Editorial da Revista TEMÁTICAS.
pREpaRaçãO DOS ORIgInaIS
Apresentação. Os trabalhos devem ser apresentados em cd
e acompanhados dos printers (três cópias impressas, fiéis ao cd, sendo duas
cópias sem nome do autor do texto), em um dos seguintes programas: Word
6.0 ou superior, não devendo exceder 12.000 palavras.
Estrutura do trabalho. Os trabalhos devem obedecer à seguinte
seqüência: folha de rosto com Título; Autor(es) (por extenso e apenas
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Normas para apresentação de originais
o sobrenome em maiúscula); programa e área aos quais está(ão) vinculado(s),
vínculo docente, endereço residencial e telefone para contato; no corpo do
texto: Título, Resumo (com máximo de 200 palavras); Palavras-chave (com até
sete palavras tiradas do Thesaurus da área, quando houver); Texto; Abstract
e Keywords (versão para o inglês do Resumo e Palavras-chave); Bibliografia
(indicar também obras consultadas ou recomendadas, não referenciadas no
texto, se houver).
Referências Bibliográficas. Devem ser dispostas em ordem alfabética pelo
sobrenome do primeiro autor e seguir a NBR 6023 da ABNT.
Abreviaturas. Os títulos de periódicos deverão ser abreviados conforme
o Current Contents.
Exemplos:
• Livros e outras monografias:
FIGUEIREDO, A. C., FIGUEIREDO, M. O plebiscito e as
formas de governo. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 98.
• Capítulos de livros:
JOHNSON, W. Palavras e não palavras. In: STEINBERG,
C. S. Meios de comunicação de massa. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 47-66.
• Dissertações e teses:
BITENCOURT, C.M.F. Pátria, Civilização e Trabalho ensino nas
escolas paulistas (1917-1939). São Paulo, 1988. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 275-278, fev./dez. 2016
Temáticas
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• Artigos de periódicos:
LESSA, S. Lukács. Trabalho, objetivação, alienação. Trans/
Form/Ação, São Paulo, v. 15, p. 39-51, 1992.
Citação no texto. O autor deve ser citado entre parênteses pelo sobrenome,
separado por vírgula da data de publicação (Torres, 1978). Se o nome do autor
estiver citado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses: “Segundo
Schaff (1992)...” Quando for necessário especificar página(s), esta(s)
deverá(ão) seguir a data, separada(s) por vírgula e precedida(s) de p. (Delouya,
1994, p. 54). As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas
no mesmo ano, devem ser discriminadas por letras minúsculas após a data,
sem espacejamento (Marx, 1984a) (Marx, 1984b). Quando a obra tiver dois
autores, ambos são indicados, ligados por & (Lamounier & Meneguello, 1986)
e quando tiver três ou mais, indica-se o primeiro seguido de et al. (Weffort et
al., 1988).
Notas. Devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no pé de página.
As remissões para o rodapé devem ser feitas por números arábicos, na
entrelinha superior.
As opiniões e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão
das referências bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores.
RESEnhaS E tRaDUçõES
As resenhas devem seguir o padrão de publicação de Temáticas
contendo no máximo 6000 palavras.
Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 275-278, fev./dez. 2016
temáticas
Revista dos Pós-Graduandos
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Pedidos:
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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH
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