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temáticas número 47/48 ano 24 2016 Entre greves, ocupações e golpes: o Brasil de 2016 revista dos pós-graduandos em ciências sociais IFCH - Unicamp temáticas Publicação semestral dos alunos de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas ISSN 1413-2486 Conselho Editorial Nacional Adalberto Paranhos (UFU) Luciana Aparecida Aliaga de Oliveira (UFPB) André Kaysel Velasco e Cruz (UNICAMP) Luis Alexandre Fuccille (UNESP) Antonio Silveira Brasil Junior (UFRJ) Luiz Gustavo da Cunha de Souza (UFSC) Carla Cecília Rodrigues Almeida (UEM) Luiz Henrique Passador (UNIFESP) Edson Silva de Farias (UnB) Maíra Machado Bichir (UNILA) Emil Albert Sobottka (PUCRS) Manuela Carneiro da Cunha (USP) Euzeneia Carlos (UFES) Marcelo Siqueira Ridenti (UNICAMP) Felipe Ferreira Vander Velden (UFSCar) Maria Arminda do Nascimento Arruda (USP) Flávia Lessa de Barros (UnB) Mário Augusto Medeiros da Frederico Normanha Ribeiro Silva (UNICAMP) de Almeida (UNICAMP) Rogério Proença Leite (UFS) João Marcelo Ehlert Maia (FGV) Sabrina Areco (UNICAMP) Leandro de Oliveira Galastri (UNESP) Samira Feldman Marzochi (UFSCar) Lilia Moritz Schwarcz (USP) Thiago Aparecido Trindade (UnB) Comitê Editorial Conselho Editorial Internacional Adriana Cattai Pismel (UNICAMP) Alejandro Raúl Blanco (Universidad Antônio Marcos Santos (UNICAMP) Nacional de Quilmes, Argentina) Enrico Paternostro Bueno (UNICAMP) Isabel Maria Casimiro (Universidade Flávia X. M. Paniz (UNICAMP) Eduardo Mondlane, Moçambique) Jonatan Jackson Sacramento (UNICAMP) Pedro Meira Monteiro (Princeton Maria Caroline M. Tresoldi (UNICAMP) University, EUA) Nathanael Araújo (UNICAMP) Sydnei Melo (UNICAMP) Diretor Alvaro Gabriel Bianchi Mendez Produção Editorial e Divulgação Diretor Associado Setor de Publicações do IFCH/Unicamp Roberto Luiz do Carmo Capa Saulo Marzochi Organização do Dossiê Impressão Flávia Xavier Merlotti Paniz Gráfica do IFCH / UNICAMP Glaucia S. Destro de Oliveira Coordenação de PósCoordenação geral de Pós-Graduação Graduação em História Michel Nicolau Netto Patrícia Dalcanale Meneses Coordenação de Doutorado Coordenação de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Demografia Isadora Lins França Joice Melo Vieira Coordenação de Pós-Graduação Coordenação de Pós-Graduação em Ciência Política em Antropologia Social Andréia Marcondes de Freitas Antônio Guerreiro Coordenação de PósCoordenação de Pós-Graduação Graduação em Sociologia em Ambiente e Sociedade Mário Augusto Medeiros da Silva Célia Regina Tomiko Futemma Coordenação de PósCoordenação de Pós-Graduação Graduação em Filosofia em Relações Internacionais Yara Adario Frateschi Andrei Koerner Flávia Xavier Merlotti Paniz Glaucia S. Destro de Oliveira Dossiê ENTRE GREVEs, oCUPAÇÕEs E GoLPEs: o BRAsiL DE 2016 temáticas revista dos pós-graduandos em ciências sociais ano 24, nº47/48, 2016 - IFCH/UNICAMP FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH – UNICAMP Bibliotecário: Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272 Temáticas : revista dos pós-graduandos em ciências sociais / Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. vol. 1, n.1. (1993 -). Campinas, SP : UNICAMP/IFCH, 1993 v.24, n.47/48, 2016 Semestral ISSN - 1413-2486 1. Golpe. 2. Ocupações. 3. Greves. 4. Gênero. 5. Política Brasil. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. II. Título. CDD - 320.1 Em homenagem a Marielle Franco e Maria Érbia Cássia Carnaúba Dossiê ENTRE GREVEs, oCUPAÇÕEs E GoLPEs: o BRAsiL DE 2016 SUMÁRIO DOSSIê: EntRE gREvES, OcUpaçõES E gOlpES: O BRaSIl DE 2016 Apresentação Flávia X. M. Paniz e Glaucia S. Destro de Oliveira 13 Nada novo em 400 homens brancos decidirem o destino do Brasil Mário Augusto Medeiros da Silva 19 Ocupa Mendes: quando a droga da obediência não funciona mais! Relatos da ocupação estudantil do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes, a primeira escola ocupada no Estado do Rio de Janeiro Aluana Guilarducci Cerqueira, Ana Clara Alves, Andreh Luiz Faustino Rodrigues da Silva, Annie Caroline dos Santos Ferreira e João Victor de Souza Argemiro 27 Não tem arrego: vocês tiram nossos direitos e nós tiramos o seu sossego! Isabela Gonçalves 47 O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política da Unicamp tem a nos dizer sobre injustiça social? Ana Cláudia Lopes Silveira, Hyury Pinheiro, Maria Elisa Perez Pagan, Mariana Toledo Borges, Nathalia Rodrigues da Costa e Pedro Henrique Santos Queiroz 51 A greve das federais e os desafios de mobilização na pós-graduação João Pedro de Lima Campos 65 La mercantilización de la educación superior y la irrupción del movimiento estudiantil en Chile (2006 / 2011) Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras 77 Sobre greve, liberdade e rinocerontes Eros Sester e Sara Vieira Antunes 99 A (in)constância do provisório: 20 dias de governo interino mídia Elizabete Pellegrini Garcia, Equipe de pesquisa MOvE, Lídia Torres, Lorena Aragão, Maiane Fortes Ribeiro, Marina Sousa, Maiara Dourado e Nashieli Rangel Loera 113 A bela e a fera: as mulheres e a política no discurso midiático Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki 149 As mulheres no campo político: gramáticas discursivas em torno de gênero no contexto do impeachment Lauren Zeytounlian, Lorena R. P. Caminhas, Marcela Vasco, Natália Negretti e Vanessa Ponte 181 Relações Familiares, Gênero e o Grande Contrário: tonalidades totalitárias no Brasil da crise Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega 201 Ideologia de gênero? Notas para um debate sobre políticas e violências institucionais Alex Barreiro, Flávio Santiago, Nathanael Araújo e Tiago Luís Coelho Vaz Silva 223 #OcupaParaná – as ocupações das escolas públicas paranaense em outubro de 2016 Conrado Pereda Minucelli, Jaqueline Aparecida Alves dos Santos e Osmir Dombrowski 247 Eu sempre fui da opinião de que o Brasil não vive uma onda conservadora, ao contrário. Um país escravocrata, com 354 anos de escravidão e o último a abolir, mais de 20 de ditadura militar, sempre foi conservador. O que tivemos nos últimos anos foram marolas progressistas, importantes, mas marolas. Hoje, após esse golpe, podemos constatar o quanto o conservadorismo está na base desse país. Justo agora que aprendíamos a surfar. (Djamila Ribeiro, 31 de agosto de 2016) APRESENTAÇÃO1 Flávia X. M. Paniz2 Glaucia S. Destro de Oliveira3 A proposta de organizar este dossiê surgiu no segundo semestre de 2016, como forma de criar um registro das diferentes perspectivas sobre os acontecimentos ocorridos ao longo do ano, e que pudesse ser utilizado como apoio nas pesquisas e reflexões futuras sobre este período, que ficou historicamente marcado pelo processo de votação do impeachment da ex presidenta eleita Dilma Rousseff, seguido de seu afastamento; pelos protestos contra a realização da copa do mundo; e a prisão de Rafael Braga, um catador de material reciclável que portava uma garrafa de produto de limpeza no contexto dos protestos no Rio de Janeiro. Estes últimos fatos, juntamente com o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza em 2013 e o assassinato de Claudia Silva Ferreira em 2014, escandalizaram a situação de encarceramento em massa e genocídio da população negra e periférica e o processo de precarização no ensino público no país. A educação básica e a superior voltaram a ocupar lugar de destaque no debate público nacional, seja por meio de política institucional – Este dossiê foi organizado durante os anos de 2016-2017, e devido ao processo de restruturação editorial por qual passou a revista, sua publicação ocorreu apenas no primeiro semestre de 2018. 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: flaviapaniz@gmail.com 3 Doutora em Ciências Sociais (IFCH/UNICAMP) e docente temporária na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) em Ciências Sociais. E-mail: gdestro@gmail.com 1 14 Flávia X. M. Paniz e Glaucia S. Destro de Oliveira como os novos cortes de investimento na Educação que ocasionam a intensificação de problemas de manutenção e infraestrutura já existentes; e o contínuo processo de desvalorização da carreira docente –, seja através da forma como a política reflete na vida cotidiana das pessoas – como é caso da política de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro e seu reflexo no acesso e segurança no espaço escolar em comunidades afetadas pelos conflitos, e também pelo cerceamento do conteúdo das discussões em sala de aula, como as discussões em torno de questões de gênero. No ensino superior, por sua vez, os cortes nos repasses, que comprometem o funcionamento das atividades de ensino, pesquisa e extensão nas Universidades Estaduais e Federais brasileiras, a desvalorização e até mesmo suspensão do pagamento dos salários e benefícios de docentes e servidores ocasionaram uma nova onda de greves e paralisações. Neste processo, funcionárias, funcionários, alunas, alunos e professoras e professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estadual de Londrina (UEL), dentre outras, se mobilizaram publicamente para relatar a ausência de investimento e negociação com os respectivos governos estaduais que comprometem o funcionamento destas instituições de ensino e pesquisa. No contexto da Universidade Estadual de Campinas, a pauta central dos movimentos estudantis que aderiram à greve se concentrou sobre a luta pela implementação dos sistemas de cotas raciais e étnicas, foi encabeçada pela frente pró-cotas da Universidade e pelo Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP e culminou na histórica aprovação de cotas raciais e indígenas no vestibular de 2019. As medidas que pautaram as mudanças na política educacional naquele ano, como a incorporação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações ao Ministério das Comunicações, reascenderam o debate em torno da celebre frase de Darcy Ribeiro que diz a crise da educação não é uma crise, mas um projeto. A proposta de reforma da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio; o processo de reorganização das escolas, que culminaram na superlotação e/ou fechamento de salas de aula em diferentes estados; as inúmeras tentativas de minar debates que envolvam questões de gênero e sexualidade no espaço escolar através da Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016 Apresentação 15 elaboração de um suposto embate sobre neutralidade, ciência, ideologia e política no campo da educação, que acabou culminando na discussão sobre “ideologia de gênero” (termo amplamente contestado por pesquisadoras e pesquisadores da área de educação e de gênero) trazem à luz reflexões sobre a questão que atravessa a composição temática dos artigos presentes neste dossiê, de mostrar como os movimentos políticos ocorridos no ano de 2016 no campo da educação estão fortemente conectados com o processo de constituição do golpe. O processo de formação das ocupações de diferentes escolas públicas do país e da construção das greves por diferentes categorias em dezenas de Universidades foram atravessados pelo mal-estar e assombramento coletivo provocado pelos discursos dos deputados na votação que resultou na deposição da ex presidenta em 17 de abril desse ano. Nesse cenário, surgiu a proposta de documentar o estado das condições materiais e da sentimentalidade coletiva no curso da situação, sabendo que se trata de expor diferentes narrativas sobre esse mesmo período. Deste modo, a especificidade deste dossiê decorre não somente da particularidade da busca por retratos do Brasil de 2016, mas também da abertura e acolhida de perspectivas políticas de sujeitos que tradicionalmente não ocupam os espaços de publicação científica. Assim, a Revista Temáticas, valendo-se de sua autonomia institucional e política e para ampliar o escopo de autoras e autores para além dos espaços científicos, convidou alunas e alunos que participavam dos movimentos de ocupações das escolas públicas, professoras e professores das redes Municipais e Estaduais de Ensino, funcionárias e funcionários, estudantes de graduação e pós, via de regra, organizados e mobilizados através dos grupos que se formaram nos espaços de greve para narrarem suas experiências e percepções nesta edição. O resultado desta empreitada é um trabalho que concentra múltiplos esforços de abordagens de questões de mobilizações, gênero, raça e classe na ciência, na política e na educação do Brasil de 2016. Este volume conta, então, com dois artigos sobre (e das) ocupações de escolas. O “Ocupa Mendes: Quando a droga da obediência não funciona mais!” é um registro do movimento secundarista e foi elaborado Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016 16 Flávia X. M. Paniz e Glaucia S. Destro de Oliveira por quatro estudantes e uma professora do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes – a primeira escola ocupada no estado do Rio de Janeiro. E, em “Não tem arrego! Vocês tiram nossos direitos e nós tiramos seu sossego!”, Isabela Gonçalves, – secundarista da Escola Estadual Dom Barreto em Campinas (SP) – também reconstrói o cenário que culminou na ocupação da escola da qual faz parte, trazendo detalhes de sua dinâmica e expectativas. Ainda em torno da discussão de precarização do ensino, o “A corte e a corte: o que a crise orçamentária e política da Unicamp” foi resultado do debate realizado pelo grupo de trabalho em torno de questões orçamentárias da Universidade Estadual de Campinas durante a greve de 2016. O texto foi elaborado conjuntamente por dez estudantes de pósgraduação do IFCH. Em “A greve das federais e os desafios de mobilização na PósGraduação”, João Pedro de Lima Campos desenvolve reflexões sobre as atuações do governo no ensino e na ciência e apresenta os desafios de mobilizações entre os pós-graduandos durante a greve na Universidade Federal Fluminense (UFF) desde 2015. Em “La mercantilización de la Educación Superior y la irrupción del Movimiento Estudiantil en Chile (2006 / 2011)”, Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras recuperam o contexto e às reações dos estudantes frente às iniciativas do governo chileno acerca da educação superior. Na continuidade do tema sobre movimentações políticas no contexto contemporâneo, em “Sobre greve, liberdade e rinocerontes” Eros Sester e Sara Vieira Antunes resenham uma peça teatral com a finalidade de pensar desigualdades, espetacularização da vida e brutalização presentes no cotidiano em 2016. Na esteira do governo interino, em “A (in)constância do provisório: 20 dias de governo interino na mídia”, Elizabete P. Garcia, Lídia Torres, Lorena Aragão, Maiane F. Ribeiro, Maiara Dourado, Marina Sousa, Nashieli R. Loera analisam o processo de construção midiática do impeachment que levou à imposição do governo de Michel Temer. Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki, em “A bela e a fera: as mulheres e a política no discurso midiático”, discorrem Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016 Apresentação 17 acerca da produção de feminilidades e relações de gênero através da abordagem da mídia de Dilma Roussef e Marcela Temer. Em “As mulheres no campo político: gramáticas discursivas em torno de gênero no contexto do impeachment”, Lauren Zeytounlian, Lorena R. P. Caminhas, Marcela Vasco, Natália Negretti e Vanessa Ponte apontam como a cobertura dos meios de comunicação sobre o golpe no cenário político nacional também foi atravessada por discursos sobre relações de gênero. Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega retratam as tensões, as desavenças e os constrangimentos na esfera familiar presentes durante o processo do impeachment no ensaio “Relações Familiares, Gênero e o Grande Contrário: tonalidades totalitárias no Brasil da crise”. Ainda no contexto de golpe, em “Ideologia de gênero? notas para um debate sobre políticas e violências institucionais”, Alex Barreiro, Flávio Santiago, Nathanael Araújo e Tiago Luis Coelho trabalham temas que contornam a discussão acerca de papéis de gênero na escola no contexto de Campinas (SP). Este dossiê conta ainda com dois artigos escritos por convidados: “Nada novo em 400 homens brancos decidirem o destino do Brasil”, de Mário Augusto Medeiros da Silva – que abre a nossa edição – para traçar uma leitura sobre as mudanças políticas no cenário nacional de 2016 e a luta antirracista dentro e fora das Universidades. E “#OCUPAPARANÁ – As ocupações das escolas públicas paranaense em outubro de 2016” no qual Conrado P. Minucelli, Jaqueline A. A. dos Santos e Osmir Dombrowski exploram as reações dos secundaristas em resposta às iniciativas do governo, de modo a recuperar marcos importantes de estado em tal movimentação política no contexto paranaense. Este dossiê flana por temas amplos que ganharam destaque em 2016 e pontua algumas das discussões presentes no contexto da educação e da política durante esse ano. Em razão do caráter de registro de um contexto social e político deflagrado concomitante à redação e entrega dos artigos, esta edição é lançada em 2018, quando o processo de organização e de produção da revista são finalizados. Com a abertura para recepção de textos produzidos por secundaristas, professoras e professores das redes Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016 18 Flávia X. M. Paniz e Glaucia S. Destro de Oliveira públicas de ensino, alunas e alunos de graduação e de pós-graduação de diferentes universidades e também docentes das Universidades públicas brasileiras, acreditamos que este trabalho pode oferecer perspectivas de análise diversificadas sobre esse ano tão marcante no cenário brasileiro contemporâneo. Assim, através destes registros, esperamos que ele se torne um documento de época na condição de fonte e objeto para pesquisas futuras e que, por fim, permita compreender que como as disputas políticas, em diferentes campos, na via institucional e na vida cotidiana, são marcadas por disputas por nomeação das categorias que constituem a própria noção de narrativa. Desta forma, o uso do termo “golpe”, as reflexões sobre gênero, política e educação refletem a posição das organizadoras frente às disputas políticas na construção de um léxico sobre esse ano. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 13-18, fev./dez. 2016 “NADA NOVO EM 400 HOMENS BRANCOS DECIDIREM O DESTINO DO BRASIL”1 Mário Augusto Medeiros da Silva2 Fará 100 anos, em 2018, o alerta que o jurista e sociólogo Francisco José de Oliveira Vianna escreveu em seu Populações Meridionais no Brasil para aqueles que, cifradamente, eram seus interlocutores. Ele chamava a atenção de seus pares, na introdução do primeiro volume do livro, para que parassem de titubear, como o faziam desde um século antes e assumissem o destino do país. Mais adiante, dentro do livro, o autor aprofundava seus argumentos, afirmando que um dos grandes problemas da organização da vida social brasileira, nos seus quatro séculos de existência, teria sido o controle da anarquia branca. Grosso modo, numa terra onde havia muitos chefes, com diferentes níveis de poder e que o Estado se mostrava ausente ou um lugar em disputa, organizar a classe dominante era urgente, para manter o controle geral. É curioso que naquele argumento, o rei em Portugal, seu príncipe herdeiro, capitães hereditários ou latifundiários operam todos como chefes de clã. Não irei discutir aqui como de nobres feudais da terra essas figuras passam, no livro, a caudilhos e chefes (portanto, flertando com o banditismo e a ilegalidade). O que importa reter é que, há quase um século, um dos diagnósticos conservadores mais influentes sobre a sociedade Contribuição do autor para a Mesa sobre conjuntura política -“Temer o presente? Reflexões sobre a crise brasileira”, realizada no mês de outubro de 2016 como atividade do III Fórum do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do IFCH, UNICAMP. 2 Docente do Departamento de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: mariomed@unicamp.br 1 20 Mário Augusto Medeiros da Silva brasileira explicitava a necessidade resolver pelo alto os problemas sociais. Além disso, se a grande questão era organizar a anarquia branca – e assim, criar formas de solidariedade mais orgânicas, especialmente entre o grupo dominante – a pergunta sobre a parte não-branca da população soa inquietante, não é mesmo? A resposta do nosso autor: a escravidão organizava os negros até 1888. Portanto, não era um problema. Quanto aos mestiços, brancos pobres e o resto, eles compunham o povo. E o povo, nos ensinava Oliveira Vianna, demanda um protetor, um chefe, se ressente da falta de mando. Espero que isto cause desconforto naqueles, progressistas e democratas, que nunca leram Populações Meridionais. Mas não um desassossego no sentido de jogar no lixo o pensamento deste autor ou de queimá-lo em praça. Isso seria errado e expressão de anti-intelectualismo. E demonstraria, uma vez mais, que nada compreendemos sobre a história e vida social brasileira, especialmente ao não compreendermos as formulações e ações práticas de seu pensamento e atitudes conservadoras ou autoritárias. Existe uma diferença importante entre apostar que a sociedade pode se organizar de maneira autônoma com as expressões da vida civil (associações, partidos, liberdade política etc.) e que ela precisa ser organizada pelo alto e conduzida. Recordo a vocês que nosso autor foi Ministro do Trabalho e organizador de Legislação Trabalhista nos anos 1930 e 1940. Mas o que isso tem a ver com os eventos que se desenrolam imediatamente desde abril de 2016? Algo e nada. Nada para aqueles que acham que investigar a história das ideias é exercício de arqueologia ruim. E também se consideramos que a História é fluxo contínuo e não se repete (não se banha no mesmo rio duas vezes). Mas pode sugerir algo se tentarmos observar a força social das ideias e como, infelizmente às vezes, elas insistem em se atualizar. A História, assim, deixa de ter o sentido de fluxo contínuo, mas de uma luta de interpretação e narrativa, com consequências. Inclusive, positivas para o combate ao conservadorismo e à reação. Os acontecimentos de 2016 não são apenas eventos corriqueiros e tampouco são resumíveis entre os fatos ocorridos entre 17 de abril (a Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016 Nada novo em 400 homens brancos:... 21 votação da admissibilidade do impeachment na Câmara Federal) e 31 de agosto (com a decisão do impedimento no Senado). E creio que a compreensão destes eventos, sociológica e historicamente, demandará ainda bastante tempo. Um tempo que é necessário às ciências sociais, mas de que não possuem e nem podem dispor os movimentos sociais, a luta política e os sujeitos atingidos pelo golpe. Eu não farei análise de conjuntura aqui. Procurarei refletir como sociólogo e cidadão com certo vagar. Os acontecimentos de 2016 são um espirro histórico e fazem parte de um processo social mais amplo, cujo balanço pode ser retornado a 1918, 1932, 1937, 1945, 1954, 1964, 1985. A todos os períodos que podemos ver como componentes de intervalos democráticos da vida republicana brasileira do século XX. Se são interregnos, a nossa regra, portanto, não tem sido a de conviver bem com a democracia. Pelo contrário: um outro diagnóstico bastante famoso a nosso respeito, escrito em 1936, vaticinava que, entre nós, a democracia sempre foi um lamentável entendido (Raízes do Brasil). Portanto, se quisermos ser modestos, os eventos de 2016 talvez precisem ser analisados à luz do nosso último intervalo democrático mais ou menos pleno, iniciado com o que se chamou de Nova República. Ironia da História: o termo novo, pixado no muro de uma casa em Barão Geraldo ou cunhado sobre o período inaugurado por José Sarney é algo esquisito. A República era nova com Sarney como presidente. Nada novo existe no nosso 2016 porque repetimos insistentemente aspectos da nossa história, com velhos personagens, dos últimos trinta anos, que se metamorfosearam diferentes vezes, atuando em papéis à esquerda ou direita, com a esquerda e com a direita, na reta sinuosa que é o centro. Pensemos em Sarney, Collor, Renan Calheiros, Lula, Aécio Neves, Espiridião Amin, Fernando Henrique Cardoso, Celso Bandeira de Mello, Marco Aurélio Mello, Hélio Bicudo e outros tantos personagens políticos revividos seus papéis. A velha novidade do golpe também se atualiza no que ele possui de mais dramático, enquanto operação. Ele organiza a anarquia branca e ela se expressa na configuração do novo ministério que toma posse como governo interino e posteriormente como governo definitivo. Homens, brancos, velhos, plutocratas e com base social numa parcela dominante da população que viu como ataques mortais em seus privilégios os acenos Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016 22 Mário Augusto Medeiros da Silva aos direitos sociais nos últimos 14 anos. Que pararam de flertar com seus inimigos de classe e antigos opositores, assim que estes lhes cortaram benefícios e vantagens, lícitas e ilícitas, denunciadas em mídias várias. 2016 é só um fim do flerte fatal. O desmantelamento do Ministério da Cultura, da Secretaria Especial de Mulheres, Secretaria de Promoção de Políticas Raciais, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, no primeiro dia do governo interino, não são apenas medidas de governo. Elas têm que ser lidas de forma mais incisiva e dramática porque atacam, simbólica e politicamente, os sujeitos sociais que tomaram expressão na cena pública inaugurada em 2002 com o PT: negros, mulheres, gays, sem terra, despossuídos, pobres, povo. Vejam: eu não disse que o PT inventou esses sujeitos e suas lutas sociais. Pelo contrário: o partido foi composto por ela e muitas outras. Mas o PT, com seus alcances, limites e dubiedades, os exprimiu na cena política em seus governos, durante certo tempo. Isso não é pouca coisa e este legado não pode ser esquecido, mesmo para criticá-lo. Ao organizar a anarquia branca contemporânea, portanto o golpe é uma reorganização da parcela dominante, com apoio enorme de uma parcela intermediária da vida brasileira, que foi às ruas pedir coisas como intervenção militar, fim da baderna, as instituições de força, a moralidade da justiça etc. É mais complexo que isso, evidente. Mas esta rusticidade analítica pode ser um ponto de partida para começar a pensar. A via democrática, da disputa de projetos, da luta nas urnas, não foi um pedido constante das ruas, depois de 30 anos de Nova República. E a parcela dominante que se organizava gestando o golpe – há quanto tempo não sabemos – soube usar bem o chamado da intervenção, neutralizando-o no instrumento legal e previsto na Constituição Federal, com o impedimento/impeachment. “Tudo foi feito dentro da estrita legalidade”, diz o presidente conspirador constitucionalista. Mas sabemos, cientistas sociais, que entre a letra da lei e a realidade da luta social podem existir oceanos de distância. Tudo foi feito dentro da lei porque previsto em Constituição. Mesmo que restem dúvida sobre o ponto de partida básico do impedimento – o crime de responsabilidade do Executivo. Este pontapé inicial gera guerras Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016 Nada novo em 400 homens brancos:... 23 de interpretação. E considero que somente o tempo nos permitirá olhálo, cientificamente, em sua dimensão maior. Porém, o tempo necessário da Sociologia e da História não são compassados com o tempo da cidadania. O aqui e agora em que estamos exigem uma tomada clara de posição. Assim, o golpe o é, para mim, porque emerge das sombras da luta política e escarra na boca que o beijou sistematicamente ao longo do presidencialismo de negociata e conciliação permanente desde 2002. Num dos primeiros atos públicos em defesa do governo Dilma, em 18 de março, o ex-presidente Lula discursou na avenida Paulista não para o povo que se encontrava ali – movimentos negros, LGBTT, CUT, MST, MTST, uma classe média de esquerda e movimentos da periferia paulistana. Ele discursava perplexo à parcela dominante que abandonava o barco: “Em meu governo, nunca antes na história deste país banqueiros, empresários, fazendeiros, comerciantes ganharam tanto dinheiro”. A organização do projeto dominante da classe dominante em torno do golpe, em torno das forças antes anarquicamente conciliadas com seus inimigos de classe, não representa apenas a capitalização do anti-petismo ou a destruição do sentido político de Lula, Dilma ou as derrotas acachapantes do partido e de outras expressões mais à esquerda da vida política nas eleições municipais de outubro. Isso é menor. Mesmo a liquefação, no presente, do PT enquanto partido é pequena e pouco importante. O grande golpe, o grande ataque, de fato, se revela nos sentidos concretos que este governo tem dado às suas ações. Não é apenas o PT que tem ido para o brejo. Mas, pelo menos, um século de luta social dos que vêm de baixo e que se opuseram historicamente à organização da anarquia branca. São os direitos dos trabalhadores do campo e da cidade, da cidadania que tem etnia, gênero e identidade sexual diversa, dos que vivem à margem de tudo que estão em jogo e sob ataque. Repito: É mais de um século de luta social, se quisermos modestamente marcar com a Abolição e a República o início de mudanças sociais importantes em nossa História, que estão sob ataque: mulheres, negros, gays, operários, camponeses, pobres, periféricos. Todos os que passaram de nomenclatura sociológica para sujeitos de direitos no século XX. Todo o Povo que entrou na cena histórica do século XX, com o pior ponto de partida, como nos ensinou Florestan Fernandes há mais Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016 24 Mário Augusto Medeiros da Silva de 50 anos em Integração do Negro na sociedade de classes. Por outro lado, convenhamos. Se nada há de novo em 400 homens brancos controlarem a cena política, isto significa que também nada há de novidade na necessidade da resistência e da luta social. Temer o presente? Não. Enfrentar o presente. Esta foi a tônica dos grupos sociais que estão agora sob ataque e que existiam muito antes do PT. Há algo muito bonito que aparece nas resistências ressignificadas ao golpe, por meio dos movimentos sociais e suas expressões no facebook. A frase, por exemplo, “Luto para mim é verbo”. Isso é de uma atualidade e coragem política impressionante. De estado catatônico e paralisia psíquica a palavra passa de substantivo negativo a verbo, portanto, a ação. Lutar é ato, agir, nos dizem os movimentos sociais. A luta social, portanto, a História, não acaba aqui. Se não compreendermos isso, não entenderemos também o contínuo retorno dos sujeitos sociais na História que sobrevivem aos massacres, flagelos, projetos de destruição permanentes. Não é apenas a resistência à mudança que permanece entre nós. Mas também a resistência à resistência à mudança, expressos na organização dos que vieram de baixo e de seus descendentes. Otimismo da minha parte? Nada disso. Estou sendo o mais sociologicamente cético. A história social é um processo de longa duração e não possui uma interpretação única. Portanto, é conflitiva, tanto em seu ato como em sua narração. Por outro lado, o drama do presente é que só conseguimos ver o fim imediato, que se estende na ponta do nosso nariz. E parece ser verdade, com a devida proporção, o que dizia Robert Kurz anos atrás, na famosa abertura de seu Colapso da Modernização: “Nunca houve tanto fim”! Os direitos conquistados se esboroam todos os dias numa narrativa neutra de austeridade, necessidade, moralidade e combate à corrupção. Nós nos esfacelamos a cada dia com esta narrativa. Mas a História não acaba aqui, não termina conosco, não chegou ao término. O que fazer? Não tenho receita. Nem um diagnóstico. Isso me leva a pensar o quanto pode parecer que faço parte de uma ciência inútil, como vaticinou o governador de nosso estado meses atrás. Estou apostando num princípio político, teórico e normativo da luta social como motor da História. É só isso. Nenhuma novidade também. De outro lado, na Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016 Nada novo em 400 homens brancos:... 25 sociedade burguesa de fins e ciência úteis à exclusão do capital, ser inútil tem um quê de resistência. Assim como face à organização da anarquia branca dominante, diferentes formas de resistência foram gestadas nos quatro ou cinco séculos de sociedade brasileira: suicídios e abortos escravos, insurreições, quilombos, associações religiosas camufladas, organizações políticas explícitas, festas populares, música e literatura, ressignificação de mitos e mesmo o riso. Da mesma maneira que face a um governo conspirador cujo lema é “Não pense em crise, trabalhe”, começar a parar para pensar é começar a resistir. Tudo isso pode soar principista ou assustadoramente vago. Especialmente para uma geração crescida nos anos 2000, em que parecia que os dias serão infinitamente promissores. A História não acaba aqui. Uma cena do futuro se fechou, mas não o futuro. Como dizia um personagem icônico de um filme desta época, “Benvindo ao deserto do real”. Benvindos, todos nós, ao enfrentamento do real. E este real é complexo, sinuoso, desliza por meio das questões sociológicas, que não compartilham do mesmo tempo da luta política. O tempo da reflexão exige perguntar, por exemplo, por que uma parcela significativa de sujeitos sociais que passaram da nomenclatura sociológica para sujeitos de direitos, como disse lá atrás, se tornaram apoiadores conscientes deste cenário; por que um século de luta social corporificada em trinta anos de vida partidária se liquefez em questão de meses; quais são as bases sociais do conservadorismo da vida política e cultural brasileira que se atualizam e resistem às mudanças sociais etc. Estas e muitas outras perguntas são convidativas às armas que possuímos, as armas da reflexão. Benvindos ao enfrentamento do real. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 19-26, fev./dez. 2016 “OCUPAMENDES”: QUANDO A DROGA DA OBEDIÊNCIA NÃO FUNCIONA MAIS! RELATOS DA OCUPAÇÃO ESTUDANTIL DO COLÉGIO ESTADUAL PREFEITO MENDES DE MORAES, A PRIMEIRA ESCOLA OCUPADA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Aluana Guilarducci Cerqueira1 Ana Clara Alves2 Andreh Luiz Faustino Rodrigues da Silva3 Annie Caroline dos Santos Ferreira4 João Victor de Souza Argemiro5 RESUMO: Situado no contexto das ocupações estudantis – que marcaram o cenário político brasileiro desde o fim do ano de 2015, chegando nas escolas fluminenses no início de 2016 – este trabalho tem como objetivo relatar e refletir sobre processo de surgimento do movimento de ocupação estudantil nesta escola e a sua articulação política com os demais atores da comunidade escolar, seus dilemas e conflitos, a experimentação política de gestão escolar dos estudantes secundaristas através da ocupação, as suas inserções nos espaços políticos, assim como os exercícios democráticos construídos na ocupação da escola e seus desdobramentos posteriores. Para isso foram utilizados relatos de quatro estudantes sobre o processo de ocupação, as suas demandas por participação política, as demandas específicas a respeito de gênero e sexualidade na escola, a experiência de representação estudantil e organização do Professora de Sociologia da rede estadual de educação do RJ, lotada no Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ. E-mail: aluanaguilarducci@gmail.com 2 Estudante do C.E.P. Mendes de Moraes até 2016. E-mail: anyfernandes77@gmail.com 3 Estudante da 2a Série do C.E.P. Mendes de Moraes. E-mail:andreh.luizr@gmail.com 4 Estudante do C.E.P. Mendes de Moraes até 2016. E-mail: anniecarolinesf@gmail.com 5 Estudante da 2a Série do C.E.P. Mendes de Moraes. E-mail: j_souza11@hotmail.com 1 28 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. espaço escolar, além das resistências internas (desmovimento6 “Desocupa”) e as conquistas. Buscamos também tratar dos processos políticos que precederam o surgimento do movimento de ocupação na escola, os limites da democracia no espaço escolar e as transformações a partir do processo de ocupação protagonizado pelos estudantes. Este artigo é fruto de um exercício coletivo, construído por alunos de séries variadas, que participaram da primeira experiência de ocupação estudantil no estado do Rio de Janeiro, em conjunto com uma das suas professoras, respeitando a linguagem livre e as escolhas argumentativas feitas pelos estudantes. PALAVRAS-CHAVE: Ocupação de escola, democracia escolar, participação política, estudantes secundaristas. INTRODUÇÃO São jovens entre 14 e 19 anos, moradores de favelas e periferias, de bairros populares, localizados à beira das grandes avenidas do Rio de Janeiro, filhos de empregadas domésticas, camareiras, mecânicos de automóveis, passadeiras, cozinheiras, caixas de supermercado, trabalhadores terceirizados do setor de serviços. Jovens que, apesar da precariedade do ensino público, veem na educação a possibilidade de superação das dificuldades sociais. Planejam suas vidas, projetam a entrada nas universidades, em um futuro melhor. A escolha da escola, muitas vezes longe da moradia, custa longos engarrafamentos que podem levar até duas horas. Tudo para garantir a vaga na escola que é considerada uma das melhores da região. Uma conhecida escola da Zona Norte, antiga, tradicional e considerada de qualidade, uma exceção na realidade do ensino público no Rio de Janeiro. Até a ocupação de 2016 seu cotidiano era extremamente disciplinador e coercitivo, equipada com de câmeras de vigilância pelos corredores e pátios, com muros altos e grades que cercam os ambientes, incluindo as janelas das salas de aula e os acessos aos pátios, regras rígidas de uso de uniforme (embora o estado não forneça as camisas há quase 3 anos), com fama de possuir bloqueador de celular7, inflexíveis normas de conduta e Termo criado pelos estudantes para se referir ao grupo mobilizado contrário aos movimentos ocupação. 7 Essa informação sempre circulou informalmente pelo colégio, embora nunca tenha sido confirmada, o boato evidencia o sentimento de vigilância na instituição de ensino. 6 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 29 nenhum espaço para questionamento e participação dos estudantes nas suas construções ou debates. Um dos maiores exemplos de um espaço escolar disciplinador e nada democrático. Tem sido assim a realidade dos estudantes do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes nas últimas décadas. Mas o que fez com que esses jovens se organizassem e se insurgissem contra a direção escolar e a secretaria de educação? Com esse panorama não é difícil entender. Essa suposta qualidade de ensino nos últimos meses esteve ameaçada, e esses jovens sentiram na pele a queda vertical na qualidade das instalações e condições de ensino. Com a redução das verbas para a educação desde o fim de 2015 pelo governo do estado, os servidores estaduais tiveram atraso no pagamento do décimo terceiro salário, o contrato dos porteiros das escolas foi rescindido, deixando as escolas sem os funcionários que garantiam o controle da entrada e saída de pessoas, e que muitas vezes, por desvio de função, atuavam como inspetores. Além disso, os atrasos no pagamento às empresas prestadoras de serviço, assim como às assistências técnicas dos aparelhos de ar condicionado e aos serviços de internet para as repartições públicas estaduais, transformaram o espaço escolar num ambiente quente e caótico. A precarização atingiu seu ponto de pico, mesmo nas “escolas vitrine” como o Mendes de Moraes. No retorno do Carnaval, quase todos os aparelhos de arcondicionado estavam danificados pela falta de manutenção. O calor escaldante carioca do mês de fevereiro castigava os quase cinquenta estudantes e seus professores, em salas de aula muito pouco ventiladas, pois foram projetadas para climatização, que possuíam nenhum ou apenas um ventilador funcionando. Diversos professores e estudantes se retiraram de sala ao longo da semana por queda de pressão ou desmaios devido ao calor. Essa situação torturante durou quase uma semana, enquanto os professores e funcionários se mantinham com os décimos terceiros salários atrasados desde dezembro, lecionando com ausência de porteiros e de inspetores. Todas essas condições eram caracterizadas pelos próprios docentes como de total insalubridade. Os profissionais de educação aguardavam a assembleia do sindicato agendada para a semana Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 30 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. seguinte, que posteriormente declarou greve a se iniciar na primeira semana de março. Mas nesta unidade escolar até o momento não havia surgido nenhuma mobilização docente de maior vulto, apenas uma iniciativa de elaborar uma carta abaixo-assinado, relatando as péssimas condições de trabalho, a ser enviada para a Seeduc8 pela direção escolar. Esforço em vão. Ao contrário dos tímidos esforços dos professores da escola – receosos com a retaliação da direção escolar, famosa por ser sempre a pioneira em abrir processos administrativos contra professores grevistas –, naquela quinta-feira do dia 25 de fevereiro, os alunos ocuparam os corredores, se sentaram ao chão e encerraram as aulas como protesto, exigindo uma solução imediata para a climatização das salas. Naquele momento eles possuíam uma unidade e mobilização estudantil há anos não vista na escola, segundo relatos dos docentes mais antigos. Sentiam na pele a precarização e o abandono do estado. A mesma precariedade que já viviam nos seus locais de moradia, nos hospitais públicos e agora também chegava violentamente no espaço escolar. A repressão da direção era famosa e naturalizada, muitos desses jovens estudantes moram em territórios militarizados9, ou vivenciam a experiência das operações policiais, amordaçados pela lei do silêncio que os mantêm sob o duplo cerco da violência que acomete as populações das favelas e periferias cariocas. A coerção no espaço escolar é uma extensão dessa opressão, a sua continuidade. Tal sentimento de “obediência necessária” é quase uma condição de sobrevivência para os jovens pobres e negros do Rio de Janeiro, “obedeça e saia vivo”, “obedeça e saia com diploma”. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo” expressão popular reproduzida pelos alunos, muitas vezes usada também para se referirem às regras da escola. Seeduc RJ- Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Um número significativo de estudantes dessa escola é residente de um complexo de favelas carioca, onde poucos meses antes da ocupação escolar, foi afetado por uma ocupação das forças de pacificação do Exército por mais de um ano. 8 9 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 31 Acontece que quem tem juízo, por ter juízo, resolveu desobedecer. Pois a obediência os “assava” nas salas de aula, sufocando suas vozes e seus incômodos. Dali resolveram investir na organização estudantil. Chamaram os representantes de cada turma e convocaram a primeira assembleia. Horas após a divulgação da assembleia estudantil, foram surpreendidos com a notícia de que a direção escolar retirou das paredes da escola os cartazes com a convocatória da primeira assembleia, numa medida extremamente autoritária e ilegal de repressão à organização estudantil.10 COMO PARTICIPAVAM OS ESTUDANTES ANTES... Segundo servidores responsáveis pela coordenação pedagógica, a secretaria de educação, até então, orientava as unidades escolares a organizar as chapas e eleições para grêmio estudantil nas escolas, submetendo assim as pautas e deliberações dos grêmios à aprovação da direção escolar e da secretaria de educação, ferindo a autonomia e liberdade política da organização estudantil. No site da Seeduc11 existem orientações públicas sobre as etapas para a organização dos grêmios estudantis, tendo com um dos documentos de referência uma resolução de 1986, que atribui às secretarias de educação a aprovação de um modelo de estatuto com as atribuições da organização estudantil previamente estipuladas, onde direções escolares teriam o papel de organizar as atividades associativas dos estudantes. Cabe lembrar que tal resolução, além de caduca diante da Lei do Grêmio Livre, é apenas uma resolução, portanto sem poder de lei, além de contrariar a deliberação da lei estadual de 199212, que no seu artigo segundo declara que: Tal tentativa de controle já tinha ficado evidente nos anos anteriores, quando um grupo de estudantes tentou organizar um debate sobre grêmio estudantil e a gestão da unidade exigiu “atestados de bons antecedentes” dos estudantes convidados para entrarem na unidade escolar, criando manobras diversas para dificultar qualquer intenção de organização de grêmio estudantil que não fosse absolutamente dependente e subordinada à gestão escolar. 11 http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=451406. 12 A Lei Estadual do Grêmio Livre está disponível em: http://gov-rj.jusbrasil.com.br/ legislacao/151149/lei-1949-92. 10 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 32 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. “Art. 2º- É de competência exclusiva dos estudantes a definição das formas, dos critérios, dos estatutos e demais questões referentes a organização dos Grêmios Estudantis.” Diante desse impasse, a gestão escolar não reconhecia que a organização dos secundaristas deveria ser uma iniciativa estudantil e autônoma, como previsto em lei, adotando inquestionavelmente as orientações da secretaria de educação. Nas experiências anteriores o grêmio era empossado através de uma lista de assinaturas passada em sala pelos funcionários da escola, sem que os estudantes compreendessem as atribuições de um grêmio estudantil, sem assembleias, ou debates entre chapas, cartazes de convocação, nem participação no processo eleitoral, apenas com a finalidade de cumprir a exigência da secretaria de educação da existência de um grêmio, tendo como objetivo a sua parceria com a direção e coordenação escolar13. Quando procurados por estudantes interessados na organização estudantil, os estudantes que eram os membros oficiais do grêmio organizado pela gestão escolar, nunca haviam se reunido ou executado qualquer atividade coletiva além da própria posse do grêmio estudantil, embora fossem usados constantemente como argumento para que a direção escolar não permitisse novas eleições. Na última investida da gestão escolar para organizar um grêmio estudantil foi feita a exigência de que os estudantes poderiam se reunir, mas deveriam encaminhar a ata da reunião para a direção, para que após análise, fosse aprovada pela Seeduc. Num nítido esforço de controle da política estudantil, contrariando o que se entende como um espaço escolar democrático e a autonomia política dos estudantes. Seguem abaixo os relatos desse processo, elaborados pelos próprios estudantes. 13 http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=451406. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 33 RELATO 1: QUANDO TUDO COMEÇOU... A partir do momento em que eu vi alunos passando mal de calor na minha escola, e depois vi adolescentes inconformados com aquele descaso, os vi sentados no corredor tentando de alguma maneira chamar atenção da direção. Tudo começou naquele momento, me lembro até hoje, quando ouvi dizer da assembleia e tal, percebi que eu poderia sim ter voz dentro da escola. Começamos a organizar reuniões, fomos para atos, conhecer secundaristas de outras escolas que de alguma forma também não se contentavam com aquela migalha. Depois de tantas tentativas, ocupamos. E sim, depois dali, aprendi tudo que não aprendi em doze anos no ensino público, não por incompetência dos meus professores, e sim pelo que o governo queria que nos tornássemos. No 3° ano nunca tinha aprendido tanto de história como aprendi na ocupação, nunca gostei de gays e lésbicas, por ter tido um ensino diferente em casa, mas lá aprendi que eles são seres como eu. Aprendi a questionar tudo, ter pensamento crítico, aprendi a me comunicar com as pessoas, me socializar. Aprendi a conviver com as diferenças, que o corpo é meu e que eu não preciso me incomodar com o que os outros vão pensar. Era totalmente machista, agora sei que a minha roupa não pode me definir. Tive aula de Geografia, História, Educação Física, Português, mas também tive de gênero, moral e política, tive aula sobre o mundo lá fora, e olha que eu era totalmente ignorante nessa questão. Aprendi que não posso me calar e nem abaixar a cabeça pra qualquer um, nem pra um PM. Sempre vi gente sendo humilhada, sempre fui parada por soldados e nunca pude me manifestar diante aquilo, pessoas morrendo baleadas.... E quando tive a oportunidade de lutar contra o governo que assassina pobres todos os dias, aí mesmo é quem me mantive nisso. Eu aprendi muito, mas devo tudo à ocupação. Ela acabou, mas minha vontade de lutar não, até hoje estou nessa, cansada, com psicológico abalado, quase desistindo, mas por tanto descaso, com mais vontade de lutar por ver minha escola “caindo”, por não ter caneta pros professores, por ter que pagar xerox, ou por não ter um simples papel higiênico. Mas a maior indignação é por ver uma direção tão opressora que tenta calar nossa voz, mas que mesmo assim a gente vai lá, e mostra que temos voz. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 34 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. RELATO 2: A ORGANIZAÇÃO INTERNA DA OCUPA Construímos uma organização entre os estudantes, para manter uma administração da escola, dividindo os alunos em comissões que ficariam responsáveis por cada função, como alimentação, segurança, comunicação, estrutura e atividades. Realizamos debates sobre assuntos que normalmente não são conversados nas escolas, como racismo, homofobia, feminismo. A partir disso os estudantes começaram a deixar mais o preconceito de lado e ter uma convivência de igualdade, que é muito importante. Não tratando as minorias com indiferença, e sim incluindo ao nosso meio social sem discriminação. Tinha dias na semana em que colocávamos o banheiro de forma unissex, fazendo com que ambos os sexos se respeitem dentro do banheiro. Construímos uma biblioteca livre, onde os próprios estudantes pegavam os livros que queriam ler, escreviam seus dados pessoais e poderia fazer empréstimo do livro sem ter uma pessoa para fiscalizar. Durante a ocupação também fizemos uma horta como forma de subsistência, onde podíamos plantar nossos temperos, ajudando na alimentação pois eram mais frescos e naturais. Foram realmente 56 dias de muita batalha, luta e inovação. A ocupação me ensinou a pensar que se eu tenho um direito tenho que lutar e reivindicar por ele, por mais difícil que seja consegui-lo. E, também de mostrar para os estudantes de todo o país que nós somos capazes, e que não podem nos privar de pensar. A luta só começou, e os estudantes não vão parar. É por mim e por todos, você pode vencer o sistema sim. A nossa luta não acabou, viemos para revolucionar. RELATO 3: OS ATAQUES DO DESMOVIMENTO “DESOCUPA” Eu sempre estudei em escola particular, mas sempre soube dos problemas que as escolas públicas tinham. Quando acabei o ensino fundamental, a minha última escolha era ir para um colégio estadual, mas fui obrigado por conta de condições financeiras, afinal, minha mãe é pensionista e meu pai faleceu há dois anos. Quando eu cheguei no colégio, vi logo os problemas, a estrutura da escola Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 35 é muito parecida com a de uma prisão, banheiros sujos e pichados com siglas de facções criminosas, tempos vagos; enfim vários problemas. Isso porque eu estudo numa das melhores escolas estaduais do Rio, o C.E. Prefeito Mendes de Moraes, uma escola dita como modelo. Eu sempre quis participar do grêmio estudantil do colégio, e quando alunos me chamaram para ajudar a organizar atos em prol de melhorias não só da educação, mas também em prol da estrutura da escola, eu amei a ideia e ajudei. Fizemos vários atos, e participei de praticamente todos, e não fomos ouvidos. O descaso que o governo do Pezão tinha com a gente era grande. Os professores começaram a greve e nós estudantes decidimos apoiar. Me falaram de ocupação e eu na mesma hora apoiei, sabia o que era e sabia seu significado. Então ocupamos, fomos atacados pela direção e pela mídia, não fisicamente, não ainda. Cinquenta pessoas, alunos, pais, apoiadores, professores, ocupando uma escola. Sentimos frio, fome, sono, mas não desistimos da luta. No segundo dia já ouve repressão. Um desmovimento começou a nos atacar, chamavam-se Desocupa, eram contrários a luta. Era formado por estudantes contrários ao movimento e tentaram rompê-lo de forma violenta. Nos primeiros dias com xingamentos, depois com pedras, garrafas, ovos, enfim, fomos atacados. Esses estudantes, quebraram e apedrejaram a escola de forma brutal, e com raiva, e sem nenhum motivo e argumento aceitável. Machucaram pessoas, e tentaram arremessar meu amigo do segundo andar do prédio anexo, isso me deixou bastante revoltado, me senti no tempo medieval, onde as pessoas não tinham diálogo e resolviam as coisas violentamente, e não aceitavam pensamentos opostos. Mas isso não enfraqueceu a luta dos estudantes, só nos deu iniciativa para começar um movimento muito maior. Na ocupação eu via uma escola limpa, linda e política, no período de ocupação eu tinha orgulho de falar para minha mãe: “Estou indo pra escola”. Lá foi onde meus conhecimentos de política cresceram e muito, aprendi mais sobre política na ocupação do que em toda minha vida. Fazíamos atividades como saraus, debates, assembleias e etc. Um dia o Desocupa veio, e não estávamos preparados, tínhamos poucas pessoas, Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 36 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. vi meus amigos apanharem, sangrarem, chorarem. O prédio anexo estava destruído, sujo... Foi horrível! A partir daquele dia, andamos preparados, e estávamos cansados, não queríamos mais apanhar, nem do governo, nem da polícia, muito menos de um desmovimento fraco mentalmente e politicamente. Fechamos a escola, totalmente. Fiquei um tempo sem ir para a ocupação, afinal, eu apanhei também. O último dia de ocupação, que eu fui, foi uma Guerra, a escola foi destruída, o desmovimento quebrou a escola, com bombas, pedras e tijolos. E nós resistimos até o último segundo. A ocupação foi tão boa para minha identidade política e pessoal, que até hoje estou na luta, indo nos atos, lutando contra esse governo corrupto que cada dia ataca ainda mais a saúde e educação. E vou continuar até acabar com isso, e que meus filhos possam estudar numa escola pública de qualidade. RELATO 4: A VOZ QUE ULTRAPASSA OS MUROS DA ESCOLA Sempre me interessei pelas formas da humanidade de se comunicar, nos se comunicamos de formas diferentes, seja por desenhos, por gestos, por palavras, por cores. Isso sempre me encantou de uma forma que eu nunca entendi. Eu sempre fui uma criança “fútil”, sempre quis ser rica. Por morar em uma das maiores comunidades do Rio e sempre estudar fora dela por “querer uma educação melhor”, eu sempre vi ser rica como a solução dos meus problemas. Todas as vezes que eu ligava a televisão e no noticiário estava falando sobre a minha comunidade eu comecei a acreditar naquilo, não por ser uma criança, mas sim porque não tinha ninguém pra me dizer que a tv mente e manipula. Eu que vivia ali entre as maiores vias do Rio de Janeiro comecei a acreditar. Estudei em escola pública a vida toda, meus pais sempre me incentivaram a estudar, a querer sair da “minha favela”. Nos últimos 5 anos da minha vida eu aprendi sobre algo que influencia muito na vida do “pobre e favelado”, política. Parece coisa pequena, mas não é. Eu descobri que o governo foi o responsável pelas vezes que eu estava brincando na rua e tive que me esconder com medo porque o caveirão14 estava na favela, foi o governo que me fez achar 14 Carro blindado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, utilizado nas operações policiais. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 37 que ser rica seria uma solução. Mais tarde com uns 13 ou 14 anos eu comecei a me sentir incomodada com os olhares que eu recebia na rua quando andava com uma roupa curta ou quando vinha sozinha de uma festa à noite, comecei a me questionar o porquê de ser olhada como um pedaço de carne. Com uns 15 anos na minha primeira aula de sociologia no Mendes, minha professora falou sobre o feminismo, falou como as mulheres eram objetificadas. Foi um “bum” na minha vida, eu estava fazendo política quando ensinava às minhas primas que se um homem te tocar sem a sua permissão é errado, e que quando você não quer não precisa acontecer. Aí chega 2016 e eu estava cansada. Com o pior verão dos últimos tempos com a Lúpus atacada, com o estado recusando a me dar os remédios, o hospital que eu me trato quase fechando, a universidade dos meus sonhos quase fechando as portas15. O ano de 2016 começou sendo o caos, tudo para dar errado, até que… Entram umas 3 pessoas na minha sala de aula avisando que haveria uma assembleia estudantil. Fiquei curiosa, e fui. Vamos fazer um ato no bairro? Vamos! Vamos reunir um grupo pra ir pra um ato no centro? Vamos! Vamos ocupar o colégio? Oi? Como? Vamos com calma, vamos ocupar, por quê? O colégio está em ótimo estado. Foi uma das primeiras coisas que eu falei. Mas ocupamos, nos dividimos em comissões. Comunicação Atividades, Alimentação, Estrutura. A palavrinha “comunicação” parecia que brilhava na hora que eu escolhi, eu sempre gostei de me comunicar com as pessoas, sempre quis fazer algo nessa área, foi a minha primeira oportunidade. A comissão de comunicação era responsável pela divulgação da ocupação, listas de doações, manter contato com outras escolas, falar com a mídia, mostrar o colégio entre outras coisas. Eu lembro que no terceiro dia de ocupação eu já tinha mudado minha opinião sobre o Mendes, tinha muita coisa errada sim! E a gente começou a pôr “o dedo na ferida”, começamos a nos locomover para outras escolas, trazer as outras escolas pra luta. Mas a ocupa acabou, o amor pela comunicação não. Logo após a A universidade relatada é a Universidade Estadual do RJ, que até hoje sofre com os constantes cortes orçamentários. 15 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 38 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. ocupação rolou uma inscrição para um curso de comunicação comunitária, uma extensão da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o “Favela Fala” foi umas das melhores experiências da minha vida, eu descobri que você não precisar ter um equipamento de última geração pra ajudar a sua comunidade, sua escola ou alguém. Conheci outros militantes de várias causas, causas diferentes, mas com o mesmo objetivo de mudar o estado, o país quem sabe um dia o mundo? O DESMOVIMENTO E A AUSÊNCIA DE DIREITOS O surgimento do “desmovimento Desocupa” nos cobrou um esforço para tentar compreender porque alguns estudantes ainda resistiam às mobilizações e à proposta de autogestão estudantil da Ocupamendes. Todo esse contexto nos sugere o quanto é difícil romper das amarras da ideologia disciplinar do modelo da escola tradicional, pautado em uma metodologia de ensino ultrapassada, onde se reproduz a ideia de que professor bom é aquele que garante a rigidez do ensino e notas baixas, onde a escola não é um espaço de educação, de alegria, músicas, artes, cores, mas um espaço de adestramento, silêncio e sobretudo de seleção. Muitos estudantes adolescentes entendem que o adestramento é sinônimo de qualidade de ensino, e podem se surpreender quando chegarem às universidades e encontrarem um modelo de ensino onde o adestramento é menos explícito; mas aqueles que da escola vão direto para o serviço militar ou para as fileiras dos trabalhos precarizados, são capazes de se adequar mais facilmente, afinal foi para isso que foram rigidamente educados, para servirem obedientemente a patrões e superiores sem questionamentos. De uma forma geral isso fica aparente nas principais críticas dos estudantes contrários à ocupação dirigidas às mobilizações políticas dos estudantes, aos professores grevistas, ao sindicato dos profissionais da educação e à presença de estudantes de outros segmentos como apoiadores da ocupação, em geral se baseavam em um profundo desconhecimento ou distorção de direitos, tanto políticos como sociais. Tinham como crítica fundamental a utilização da escola como espaço de educação com professores que não faziam parte do quadro docente Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 39 daquela unidade, o conteúdo das oficinas que debatiam direitos de minorias, ou atividades alternativas como hortas, teatro e dança, tratadas como secundárias ou desnecessárias ao ensino escolar. Mas, sobretudo, as principais críticas eram referentes às formas de organização interna e à desobediência à direção escolar e em consequência à secretaria de educação. Além dos discursos presenciais nesse tom, declarados nos momentos de confronto político entre os estudantes e pais de alunos, também eram encontrados nas redes sociais em posturas de ataque e difamação de estudantes e professores que participavam e apoiavam a ocupação. A falta de compreensão dos direitos políticos dos trabalhadores levou alguns desses estudantes a considerar os períodos de greve dos seus professores como falta, assim como as paralisações e licenças médicas. Num país com uma enorme quantidade de trabalhadores informais e precarizados, onde temos tradição em péssimas condições de trabalho, desrespeito às leis trabalhistas e assédio moral, não é difícil compreender como esses direitos possam ser considerados como abusos e regalias para essa fração de trabalhadores e seus filhos. Para jovens filhos de trabalhadores precarizados, informais, desempregados, cerceados de direitos diversos, sob ameaça constante de violações policiais, condicionados a uma educação pública de contenção disciplinar, ocupar e reinventar o espaço escolar é uma afronta quase imperdoável. Não é à toa que os maiores incômodos se referiam aos momentos de lazer organizados na escola durante a ocupação e a sexualidade dos estudantes envolvidos na ocupação. O Mendes é uma escola com um número significativo de jovens LGBTs, muitos destes engajados no movimento de ocupação, e que relatavam a identificação do espaço escolar ocupado como um espaço onde poderiam se vestir, dançar, usar o banheiro do gênero que se identificavam e ser quem eles eram. Foram muitos os relatos de que esse era o único espaço onde isso era possível. Ao contrário do caso das ocupações do estado de São Paulo, o governo do Rio de Janeiro não precisou acionar a polícia, se utilizou de jovens motivados pelo medo de perder o ano letivo, pela homofobia, Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 40 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. desinformados dos processos políticos aos quais estavam sujeitos, imersos numa sociedade extremamente violenta trazendo em reflexo nos seus atos. Tiveram o trabalho apenas de estimular os desentendimentos. Através de jornais de grande circulação a Secretaria de educação ameaçou a perda do ano letivo16. Divulgou manifestações contrárias à ocupação em sua própria página no Twitter17, e orientou a aliança das direções escolares com movimentos contrários, promovendo reuniões entre os profissionais que não aderiram à greve, pais temerosos pela perda do ano letivo com ocupação escolar e os estudantes do desmovimento, reuniões realizadas fora das instituições de educação, até mesmo em igrejas. Tal postura retrata a indisposição no diálogo com os estudantes que ocupavam a escola, a deslegitimação das suas demandas, através de um estímulo pelo conflito interno visando encerrar a ocupação, ignorando em absoluto as condições de boas relações futuras entre os membros do espaço escolar, polarizando a escola entre os que eram favoráveis e contrários à mobilização dos estudantes pela melhoria da educação pública. Onde antes se mantinham relações de respeito e afeto, se transformou numa arena de guerra. As cenas mais dantescas que aconteceram nesta e em outras escolas, onde se polarizaram movimento estudantil e desmovimento, são desdobramentos de uma investida do estado, que se manteve mesmo após ter sido negada judicialmente a reintegração de posse, demonstrando um total descompromisso com a educação, com a vida e segurança desses jovens. Nos parece que a ausência de direitos que assola esses jovens, desde o direito à vida, à uma moradia digna, ao acesso à saúde pública de qualidade, à qualidade de ensino, e tantos outros direitos que lhes são negados, dificulta que alguns possam enxergar como alternativa exigir educação de qualidade. A ausência de direitos é tão grande que para alguns a insubordinação aos abusos, ao autoritarismo e ao descaso são identificados como uma afronta a ser combatida. http://oglobo.globo.com/rio/escolas-ocupadas-secretaria-diz-que-alunos-podem-perderano-19226114. 17 Disponível no anexo I. 16 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 41 AS PAUTAS DOS ESTUDANTES E SUAS CONQUISTAS Em todo o estado do Rio de Janeiro, mais de setenta escolas após a ocupação do Mendes, também foram ocupadas, mobilizando uma luta estudantil estadual, unificando suas pautas comuns e integrando os estudantes de norte a sul do estado. As ocupações se iniciaram antes da greve dos profissionais da educação da rede estadual e algumas delas se estenderam utilizando parcialmente o espaço escolar, mesmo com o fim da greve. Foram quase cinco meses de greve. Sem dúvida a participação histórica e massiva dos estudantes foi fundamental para esse processo e teve grande responsabilidade pelas conquistas obtidas. Após cinquenta e seis dias de ocupação em meio a muitos ataques, uma desocupação violenta promovida pelos grupos de estudantes contrários ao movimento e a sua seguida reocupação, os estudantes do C. E. P. Mendes de Moraes decidiram em assembleia por encerrar a ocupação por dois motivos principais: As reivindicações específicas em pauta foram atendidas e os ataques violentos tornaram insustentável a permanência, colocando em risco a vida e a integridade física dos estudantes. Foram pautas conquistadas pelo movimento estudantil: • a exoneração do antigo diretor; • a quantia de quinze mil reais para o orçamento da escola; • a negociação com a nova direção para o uso dos espaços da escola como laboratórios de informática, auditório, sala de dança, etc, que antes tinham uso extremamente restrito ou inexistente; • a extinção da prova diagnóstico SAERJ e abolição das metas relacionadas à ela; • a eleições para diretor; • a eleição para grêmio organizado pelos estudantes e • o aumento da carga horária das disciplinas de Sociologia e Filosofia para dois tempos por semana. A exoneração do diretor foi publicada no Diário Oficial dias após a desocupação, sendo substituído pela sua mesma equipe de diretores Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 42 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. adjuntos, que passaram a atuar como diretores interinos, até as eleições para direção. Nas semanas seguintes, os estudantes da rede estadual ocuparam o edifício central da Seeduc, reivindicando o atendimento das pautas específicas de diversas escolas estaduais que, apesar dos acordos com a secretaria de educação, não tiveram as suas demandas efetivamente atendidas, entre elas o Mendes de Moraes. Atualmente a escola vive intenso debate político tanto no corpo estudantil como no corpo docente, no entanto ainda guarda profundas marcas da violência que assolou a escola. Apesar dos danos do clima de tensão e polarização constante, o debate político, sobre temas internos e externos à escola, hoje integra a vida escolar, sendo parte do repertório de assuntos em todas as turmas dentro e fora das salas de aula. Ao fim do ano de 2016 foi realizada a consulta para direção escolar nas unidades que passaram pelo processo de ocupação. No Mendes duas chapas disputaram o pleito, uma composta por professores grevistas e outra com professores que se posicionaram contrários à ocupação. Com um resultado apertado, assumiu o cargo a segunda chapa, entre seus membros se encontram servidores pertencentes à antiga equipe gestora, chefiada pelo diretor exonerado do cargo, conforme demanda da ocupação. As demais escolas da rede estadual passaram pelo processo consultivo no ano de 2017. A respeito do cenário político interno na escola, novos temas entraram em pauta pelos estudantes, como a organização de coletivo LGBT, atividades sobre questão racial articuladas com o movimento negro, propostas de debates sobre gênero, reivindicações de passe livre e riocard18, a utilização do teatro e da quadra esportiva além de outras demais pautas estudantis, todas protagonizadas pelos estudantes. No início de 2017 foram realizadas as eleições para o grêmio estudantil, onde duas chapas disputaram o pleito. Uma com integrantes contrários à ocupação e a outra com integrantes que participaram da ocupação. Venceu a última chapa, que hoje articula diversos debates entre 18 Cartão de passe do transporte público fornecido pela secretaria de transportes. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 43 os estudantes, participando ativamente da vida política na escola e fora dela. Além das conquistas da ocupação, somam-se ainda a recente criação de uma rádio e a construção do Pré-vestibular Rafael Braga19, organizado pelos estudantes com professores voluntários, realizado na escola no turno da noite. Infelizmente essa iniciativa encontrou resistência da direção escolar para a cessão do espaço, embora diversas salas se encontrem sem uso no turno da noite. Além disso, professores que apoiaram a ocupação, organizaram um Grupo de Trabalho e Estudos, associados a um projeto de extensão da Faculdade de Educação da UFRJ que tem organizado oficinas na escola, visando a formação dos docentes a fim de realizar um trabalho que atenda adequadamente a diversidade do corpo discente escolar, em especial a respeito das questões de gênero e sexualidade. As oficinas são realizadas mensalmente na escola, abertas a todos os docentes, com convite especial à direção. Na ocasião da primeira realização houve indisposição da direção para a cessão do espaço. Até a presente data já foram realizados 4 encontros e não houve a presença da equipe gestora em nenhum deles. Rafael Braga é um jovem negro catador de materiais recicláveis, preso injustamente em junho de 2013 sob o argumento de carregar material explosivo em uma sacola. Com ele foram encontrados uma garrafa de desinfetante e uma de água sanitária, o suposto material explosivo. Rafael Braga foi condenado a 11 anos de prisão em abril deste ano, se encontra preso desde 2013 e doente diagnosticado com tuberculose. A última decisão judicial recusou a sua prisão domiciliar para tratar da saúde. Atualmente ele, mesmo doente, ocupa cela coletiva com demais detentos. Seu caso é tratado por diversos movimentos sociais no Brasil como símbolo de luta contra o racismo institucional. 19 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 44 Aluana Guilarducci Cerqueira et al. ANEXO 120 https://www.facebook.com/OcupaMendes/photos/a.241383286215691.1073741828.2413 77779549575/272936223060397/?type=3&theater. 20 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 “Ocupamendes”: quando a droga da obediência... 45 ANEXO 2 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 27-46, fev/dez. 2016 NÃO TEM ARREGO! VOCÊS TIRAM NOSSOS DIREITOS E NÓS TIRAMOS SEU SOSSEGO! Isabela Gonçalves1 RESUMO: Nesse artigo analisou-se o processo de sucateamento realizado através de uma política neoliberal do Estado, o que originou o levante secundarista no país, além de despertar o debate sobre o modelo de educação que o Estado oferece. PALAVRAS-CHAVE: educação, escola, ocupação, política, neoliberal. O PROCESSO DE SUCATEAMENTO NESSES 20 ANOS DE PSDB Não é novidade que a educação do Estado de São Paulo é precarizada. Nesses mais de 20 anos de Governo de PSDB podemos observar um processo de sucateamento na educação através de uma política neoliberal. Durante os governos vemos que os nomes que ocupam o posto máximo na Secretaria da Educação são pessoas que não veem a educação como instrumento para a igualdade, mas sim pessoas que, além de verem a educação como mercadorias acreditam que não é papel do Estado garantir esse direito para todas as pessoas. Um exemplo disso é o que diz o atual secretário José Renato Nalini, em seu artigo Sociedade Órfã: “A população se acostumou a reivindicar. Tudo aquilo que antigamente era fruto do trabalho, do esforço, do sacrifício, e do empenho, passou a categoria de ‘direito’. E de Estudante secundarista da Escola Estadual Dom Barreto (Campinas-SP). E-mail: isabela.s.goncalves@outlook.com 1 48 Isabela Gonçalves ‘direito fundamental’”, ou seja, aquele que não pode ser negado e que deve ser usufruído por todas as pessoas”. Esse trecho só confirma a política neoliberal e meritocrática do Governo Tucano na Educação. Em 1995 iniciou-se o processo de municipalização; processo de reorganização que repassou a responsabilidade do Ensino Fundamental para os municípios e agrupou escolas em ciclos únicos. Essa medida foi sustentada por um discurso de que somente o agrupamento de determinados ciclos e separação de outros possibilitaria um atendimento mais adequado e qualificado, que garantiria estruturas, equipamentos, materiais, projetos pedagógicos específicos para o trabalho. Este discurso, na verdade, escondia o objetivo principal do governo tucano que era a política de redução de “gastos” e retirada, aos poucos, da responsabilidade do Estado. Apesar de ter transferido para os municípios as obrigações referentes às séries iniciais, não houve ampliação de investimentos no Ensino Médio e na Educação de Jovens e Adultos. As duas primeiras gestões do PSDB, além do processo de municipalização, também criaram projetos e programas que transmitiam um discurso que transferia para a comunidade, os profissionais das escolas e até mesmo para os próprios alunos a responsabilidade dos problemas nas escolas. Os projetos/programas que se destacam são o “Amigos da Escola” e o “Escola da Família”. O 1º usava o trabalho voluntário como forma de responder às insuficiências e falta de recursos. O 2º delegava funções das escolas a estudantes de Universidades Privadas em troca de concessão de bolsas de estudos. Em 1996 foi implantado o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar no Estado de SP (SARESP). Esse sistema não é uma avaliação da aprendizagem e do desenvolvimento do aluno durante sua trajetória escolar. Trata-se, isto sim, de uma avaliação que uniformiza os processos educativos, ainda que em diferentes escolas, com diferentes grupos e em diferentes localizações apresentem contextos e realidades muito distintas. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 47-50, fev./dez. 2016 49 Não tem arrego!... Por causa desse sistema de avaliação houve uma mudança no perfil do professor, que acabou se tornando “técnico”, pois basta a ele “ensinar” o conteúdo que irá cair na avaliação. O quadro do governo tucano depois de mais de 20 anos é totalmente dramático. Professores desgastados, escolas sem estrutura física e pedagógica. AS TENTATIVAS DE RETIRADAS DOS NOSSOS DIREITOS Os ataques contra os estudantes já começaram desde o início do ano de 2015, com o ajuste fiscal do Governo Dilma na Educação. Aqui, no Estado de São Paulo, já no início do ano, foram fechadas cerca de 3.000 salas de aula, que além de gerar superlotação, prejudica cada vez mais a aprendizagem. Os professores dos estados de SP/PR fizeram greves históricas e como sempre a única resposta que tiveram foi a repressão. No último semestre de 2015 o Governo Alckmin afirmou que iria reorganizar. A medida previa fechar cerca de 94 escolas, agrupando as demais escolas em ciclos únicos. Na prática essa medida iria superlotar cada vez mais as salas de aula e, consequentemente, mudando cerca de 300 mil alunos de suas próprias escolas, além de milhares de professores e funcionários que seriam demitidos. Em Goiás, o Governador Marconi Perrillo privatizou de uma forma diferente; por meio das Organizações Sociais (OS’s), o governo assumiu uma parceria com a iniciativa privada transferindo a essas organizações a gestão de uma escola. Essa medida afeta cerca de 512.000 alunos. Transforma a educação em mercadoria. No Rio de Janeiro e no Ceará, assim que os professores entraram em greve, os estudantes ocuparam suas escolas. No Rio Grande do Sul, em meio à crise no estado o governo de Satori parcela o salário dos servidores. Os estudantes se unificam com os servidores e ocupam suas escolas contra a precarização no ensino gaúcho. Além de ocuparem cerca de 160 escolas, os estudantes ocupam Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 47-50, fev./dez. 2016 50 Isabela Gonçalves a Assembleia Legislativa para vetar a tramitação do Projeto de Lei nº 44/2016 que visava privatizar serviços das escolas estaduais. O ESTADO VEIO QUENTE, ‘NOIS’ JÁ TÁ FERVENDO. Como vemos a velha política liderada pelos partidos da ordem cria medidas que tem como objetivo sucatear cada vez mais a educação. Em contrapartida, nós, estudantes secundaristas, ocupamos as ruas e as escolas de norte a sul do país, barrando essas medidas e enfrentando a polícia que nos tratou de forma desumana. Através das ocupações, fizemos das escolas um lugar de fato nosso. Construímos espaços de grandes debates, algo raro dentro da escola. Foram realizados debates sobre os mais diversos temas, como: gênero, sexualidade, negritude, legalização, direito à cidade. É importante ressaltar o papel das mulheres no movimento secundarista. Nós, mulheres, somos a maioria nos grêmios estudantis e nas ocupações não foi diferente. As meninas lideram as ocupações desde a organização, sendo porta-voz de sua escola e, até, sendo linha de frente das manifestações. A primavera secundarista começou junto com a Primavera das mulheres, na rua contra Cunha e todo seu retrocesso. As mulheres e os estudantes secundaristas desafiaram esse estado machista levando o debate feminista para os mais diversos lugares. Durante esse período de luta, tivemos diversas vitórias como: barrar a Reorganização Escolar (SP), Expulsão da Direção ditadora da EE Carlos Gomes (Campinas-SP), a Ocupação na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, que barrou o Projeto de Lei nº 44/2016, eleições diretas para direção e tantas outras. Mas, a principal é o despertar da nossa consciência. Durante esse período discutimos desde o nosso papel na sociedade ao modelo de educação que temos. Por meio disso, aprofundamos as nossas reivindicações: que a nossa luta é desde a merenda a uma educação que nos ensine a pensar e não a obedecer. Aprendemos na prática que é só a luta que muda a vida. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 47-50, fev./dez. 2016 O CORTE E A CORTE: O QUE A CRISE ORÇAMENTÁRIA E POLÍTICA DA UNICAMP TEM A NOS DIZER SOBRE INJUSTIÇA SOCIAL? Comissão de Orçamento do Comitê de Greve da Pós-Graduação – IFCH/2016 Participaram da redação: Ana Cláudia Lopes Silveira1 Hyury Pinheiro2 Maria Elisa Perez Pagan3 Mariana Toledo Borges4 Nathalia Rodrigues da Costa5 Pedro Henrique Santos Queiroz6 Doutoranda em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas- IFCH/Unicamp. E-mail: anitaclsilveira@gmail.com 2 Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp. E-mail: hyure.pnh@gmail.com 3 Mestranda em Teoria Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem - IEL/Unicamp. E-mail: elisappagan@gmail.com 4 Mestranda em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp. E-mail: marianatoledo.b@gmail.com 5 Mestranda em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp. E-mail: nathaliarodrigues1304@gmail.com 6 Doutorando em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/ Unicamp. E-mail: pedroqueirozpedro@hotmail.com 1 52 Ana Cláudia Lopes Silveira et al. Participaram das discussões: Caio Augusto Toledo Padilha7 Rafael Coca de Campos8 Sandro Barbosa de Oliveira9 Sandro Vimer Valentini Junior10 RESUMO: O objetivo deste texto é contribuir para o debate sobre os cortes no orçamento da Universidade Estadual de Campinas propostos pela reitoria no ano de 2016. Pretendese refletir sobre tal contingenciamento à luz da estrutura orçamentária em geral. Primeiro, apresenta-se o quadro atual do financiamento da Universidade Pública, e, particularmente, da Unicamp. Em seguida, discute-se esse quadro tendo em vista a estrutura tributária mais geral e das soluções de resolução apresentadas para o déficit orçamentário. Buscamos aqui pensar esses cortes no orçamento relacionando-os à atual conjuntura econômica, sem perder de vista a estrutura do financiamento do ensino universitário público. Com essa reflexão, pretendemos trazer mais subsídios para o debate sem abrir mão das demandas em favor de políticas de financiamento e de um projeto de ensino democrático e a serviço do público. PALAVRAS-CHAVE: Ensino Superior Público; Orçamento Universitário; ICMS; Justiça Social; Greve 2016. INTRODUÇÃO Neste ano de 2016, a reitoria da Universidade Estadual de Campinas apresentou à comunidade acadêmica, por meio da Resolução GR no 10/2016, medidas de contenção de despesas. Essa resolução teve como justificativa o baixo crescimento da arrecadação da principal Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp. E-mail: padilha.caio@hotmail.com 8 Historiador formado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp. E-mail: rufosa2004@hotmail.com 9 Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp. E-mail: ontologicosan@hotmail.com 10 Mestrando em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH/Unicamp. E-mail: sjvalentini@outlook.com 7 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política... 53 fonte de financiamento da Universidade – o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) – e o déficit orçamentário que já se apresentava no Fechamento do Orçamento de 2015, ambos como reflexo da crise econômica que atinge o país. Se do ponto de vista da totalidade do orçamento da Unicamp essa contenção não representa uma soma quantitativamente significativa, o fato dela incidir majoritariamente sobre elementos-chave para o funcionamento da Universidade faz dessa medida algo qualitativamente grave.11 É em face da apresentação destas e de outras medidas que deterioram o funcionamento da Universidade que a greve estudantil se construiu e se efetivou dentro da Unicamp. São apresentados como pontos de pauta: a oposição aos cortes provenientes dos contingenciamentos de despesas, a implementação de políticas afirmativas de ingresso e a demanda por políticas de permanência, sendo que as duas últimas são bandeiras já antigas do movimento estudantil. Concomitantemente, funcionários e professores juntaram-se aos estudantes acrescentando suas próprias demandas salariais e se solidarizando com as pautas dos estudantes. A despeito da pretensa desadequação de certas pautas à conjuntura econômica, fato é que todas as demandas postas pela greve estudantil estão subordinadas à questão estrutural do orçamento e do financiamento da Unicamp, em particular, e das Universidades Estaduais Paulistas em geral; bem como ao projeto político de Universidade pública, gratuita e de qualidade. Tal subordinação explicita a legitimidade do movimento e a necessidade de se discutir politicamente as decisões “administrativas” tomadas pela Reitoria. Se há necessidade de cortes orçamentários, eles devem estar submetidos a esse projeto político, de modo que o impacto seja o menor possível sobre os elementos essenciais para a produção democrática de conhecimento e reprodução financeira sustentável da Universidade. Por exemplo, no que tange a este projeto, não se pode Como gestão de pessoal; suspensão, por este ano, da convocação de candidatos à carreira PAEPE aprovados em concursos públicos; congelamento dos editais e o consequente não preenchimento de boa parte das vagas livres; reavaliação dos contratos de serviços terceirizados; serviços de impressão e cópias reprográficas; unidades da área da saúde; Programa de Manutenção de Predial, etc. 11 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 54 Ana Cláudia Lopes Silveira et al. desvincular as demandas de implementação de políticas afirmativas de ingresso das políticas de permanência, pois, na medida em que as políticas afirmativas raciais e sociais atendem aos grupos socioeconômicos mais vulneráveis, a necessidade por políticas de permanência é inevitavelmente aumentada. O objetivo deste texto é refletir sobre a crise orçamentária da Universidade procurando compreendê-la como parte inalienável da questão tributária brasileira. Primeiro, apresenta-se o quadro atual do financiamento da Universidade Pública, e, particularmente, da Unicamp. Em seguida, discute-se esse quadro à luz da estrutura tributária mais geral e das soluções de resolução apresentadas para o déficit orçamentário – que, note-se, não é apenas um problema conjuntural. Buscamos aqui pensar esses cortes no orçamento relacionando-os à atual conjuntura econômica, sem perder de vista a estrutura do financiamento do ensino universitário público. Com essa reflexão, pretendemos trazer mais subsídios para o debate sem abrir mão das demandas em favor de políticas de financiamento e de um projeto de ensino democrático e a serviço do público. DE ONDE VEM O DINHEIRO? O ORÇAMENTO DA UNICAMP E SEU LUGAR NA ARRECADAÇÃO PÚBLICA A principal fonte de financiamento da Unicamp é o repasse de parte do ICMS pelo governo estadual paulista. Segundo a Unicamp,12 no ano de 2015 cerca de 94% de seu orçamento foi proveniente dessa fonte. O repasse funciona da seguinte forma: do total da arrecadação de ICMS do Estado de São Paulo, 25% são distribuídos entre os municípios e 75% compõem o que se chama de cota-parte. Desta cota-parte, são deduzidos os valores destinados à habitação popular (cerca de 1%) e, do total restante, são destinados 9,57% a ser divididos entre as Universidades Estaduais Paulistas (Unicamp, Unesp e USP). Este montante tem como destino o pagamento de salários Os dados referentes ao orçamento da Unicamp de 2015 citados neste texto estão disponíveis em: http://www.aeplan.unicamp.br/revisao_orcamentaria/pdf/2015/3_revisao_ unicamp_2015.pdf. Acesso em: 27. jul. 2016. 12 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política... 55 e aposentadorias, dívidas, manutenção das instalações, compras e investimentos, e é gerido autonomamente pelas Universidades. Note-se que a maior parte desse valor – por vezes a quase totalidade, como tem sido o caso das três paulistas – é destinada à folha de pagamento (salários, férias e décimo-terceiro), sendo as demais despesas honradas mediante outras fontes menores de receita. À Unicamp cabe uma alíquota de cerca de 2,2% desse montante, porcentagem que correspondeu, no ano passado, à entrada de aproximadamente R$ 2 bilhões no caixa da Universidade. A vinculação dos valores destinados às estaduais paulistas é feita por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias do Estado de São Paulo, de forma que ela depende, anualmente, do seu processo legislativo de elaboração e da sanção do poder executivo estadual. A Unicamp tem uma segurança financeira um pouco maior em comparação com a USP e a Unesp: sua folha de pagamento em geral fica abaixo da receita proveniente do Tesouro Estadual. Além disso, a Unicamp dispõe hoje de uma reserva correspondente a cerca de R$ 1 bilhão, dos quais R$ 714,5 milhões já estão empenhados. O destino desses valores, no entanto, é obscuro.13 Sabe-se que boa parte está comprometida com as diversas “obras em andamento” na Universidade, cujos dados sobre licitações e contratações ainda permanecem opacos. Efetivamente, muitas dessas obras estão paralisadas – verdadeiros elefantes brancos – e intrigam a todos aqueles que caminham pelo campus. O restante, cerca de R$ 250 milhões, não seria suficiente sequer para suprir duas folhas de pagamento mensais. Trata-se, portanto, de uma privilegiada, mas questionável segurança. E, com esta configuração orçamentária, nada garante que a Universidade conseguirá se manter a longo prazo. A Unicamp, hoje, já enfrenta problemas no que diz respeito às políticas de permanência A disputa em torno dessa informação foi iniciada pelo Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU) em movimentos grevistas anteriores. Entretanto, apenas recentemente os dados foram amplamente divulgados mediante – em grande parte – a ação do coletivo Transparência Unicamp. Surgido no presente movimento grevista, o coletivo tornou público e acessível, por meio de infográficos, os dados presentes nas planilhas dos portais oficiais da Unicamp. 13 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 56 Ana Cláudia Lopes Silveira et al. estudantil e à manutenção e ampliação de sua infraestrutura. A atual conjuntura econômica brasileira é catastrófica. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu cerca de 3% em 2015 e a previsão é de nova retração em 2016. Esse movimento é geralmente mais sentido no estado de São Paulo, visto ser onde se encontra uma maior concentração de elos das cadeias produtivas nacionais e maior participação no PIB nacional14. A universidade não é uma realidade isolada. Cabe notar que o investimento em educação e pesquisa no estado de São Paulo apresenta uma configuração pró-cíclica: quando a atividade econômica está aquecida e a arrecadação do ICMS é elevada, as Universidades têm também um orçamento mais elevado; sendo que o contrário também é verdadeiro – com a arrecadação em baixa, o orçamento também fica muito mais comprometido, e um cobertor que já era curto fica ainda mais curto. É nesse contexto que as questões sobre a gestão do orçamento da Unicamp se colocam. Se, de um lado, a demanda do movimento estudantil por mais transparência na gestão, ainda que passe algo desapercebida, ganha força; de outro, as outras demandas que passam necessariamente por um aumento da receita são recebidas como disparates. No quadro mais amplo da disputa pelo orçamento público, o ensino superior passa a ser apresentado, no melhor dos casos, como um privilégio de elite, e, no pior, como um grande desperdício de dinheiro público. Aqui, a disputa pelo orçamento transforma-se em um tribunal de moralidades extemporâneas: as já abastadas Universidades públicas, não contentes em gerir mal seus recursos, ainda exigem mais do erário público. Pretendem que o Estado retire recursos do ensino básico e técnico, da saúde, da moradia, dos parcos programas sociais para que se invista em um ensino superior, de pesquisa notadamente básica, que forma poucos e privilegiados. Professores, funcionários e estudantes engrossam De acordo com o IBGE, entre os anos de 2010 e 2013 o Estado de São Paulo respondeu por cerca de um terço do PIB nacional mensurado pela renda. A região sudeste respondeu por 55% do PIB brasileiro no mesmo período, e a influência dessa região sobre o país advém do fato de que seus Estados são industrializados, apresentam atividade agropecuária significativa (exceto o Rio de Janeiro) e concentram o setor de serviços. Dados disponíveis em: ftp://ftp.ibge.gov. br/Contas_Regionais/2013/PIB_Renda_Revisto.pdf. Acesso em: 27. jul. 2016. 14 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política... 57 lunaticamente esse coro. Uma melhor gestão interna dos recursos e medidas simples como parcerias com empresas privadas e cobrança de mensalidades seria um bom começo, talvez a solução, para a conta que há anos não fecha. E a distribuição de riquezas no Brasil vai muito bem, obrigada... O PROBLEMA DO ORÇAMENTO DA UNICAMP E A ESTRUTURA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA A questão do orçamento universitário é complexa e deve ser apreendida tanto a partir da gestão interna dos recursos quanto da arrecadação pública em geral. Essas duas perspectivas devem ser tratadas de forma articulada; do contrário, corre-se o risco de recair em juízos mistificados e simplistas. Não é possível discutir o orçamento da Unicamp sem discutir seus mecanismos de financiamento e, por consequência, o financiamento das atividades do Estado e o conflito distributivo, isto é, as decisões sobre a destinação a ser dada ao excedente econômico socialmente produzido. De maneira sucinta, o Estado se financia de quatro formas: (a) emitindo dinheiro; (b) contraindo dívidas; (c) obtendo receitas não recorrentes (privatizações, por exemplo); e (d) cobrando tributos. Cada uma dessas formas de arrecadação implica em ônus determinados: (a) o ônus da emissão descontrolada de moeda é o aumento da inflação. Tratase de uma forma desorganizada de gestão do conflito distributivo, que é transformado então em batalha pela indexação das rendas; um jogo em que os pobres quase sempre perdem, entre outras razões, porque têm menos acesso a serviços bancários que os ricos. (b) O ônus da dívida é a própria dívida a qual, a princípio, tem que ser paga sob condições que podem ser abusivas – sem considerar, evidentemente, os casos excepcionais em que dívidas foram perdoadas ou ignoradas por meio de moratórias. (c) O ônus das receitas não recorrentes, por sua vez, deve ser discutido caso a caso, pois trata-se, por definição, de receitas advindas de eventos extraordinários, que não se repetem – não se privatiza duas vezes a mesma Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 58 Ana Cláudia Lopes Silveira et al. estatal. Sublinha-se, entretanto, que não é nem sensata nem sustentável uma política fiscal que torra o patrimônio público para fechar as contas no curto prazo. Por fim, (d) posto que é preciso que o governo decida por quem e em quais condições os impostos serão pagos, o ônus da tributação é, por excelência, um problema político; a forma que o sistema tributário assume é um instrumento que o governo tem para reorganizar a renda das diferentes camadas sociais. No nosso caso, ele contribui para uma concentração de renda crescente, penalizando os mais pobres com impostos regressivos, cobrando impostos risíveis dos mais ricos e, por consequência, contribuindo para uma sociedade cada vez mais desigual. Dentro do sistema tributário brasileiro o ICMS é um imposto estadual que incide sobre o consumo. Sua natureza é regressiva, já que incide de modo absolutamente idêntico e proporcionalmente desigual sobre as diversas faixas de renda. Isso ocorre tanto (a) pelo fato do impacto de um determinado valor absoluto ser tão maior quanto menor for a renda sobre a qual ele incide, como (b) pelo fato da classe trabalhadora de menor renda tender a consumir a totalidade dos seus ganhos, diferentemente das classes mais abastadas, que podem poupar uma parcela de seus rendimentos. Já é, ou deveria ser, ponto pacífico de que se trata de um imposto socialmente injusto.15 Quem paga a conta dos estados, no limite, são majoritariamente os mais pobres. O uso do ICMS para o financiamento da Universidade Pública gera uma situação perversa, já que este é um imposto que aprofunda a desigualdade social e, portanto, dificulta a superação da barreira social do vestibular pelos mais pobres, Apesar de injusto, o ICMS tem a maior participação entre as receitas tributárias estaduais. Ao analisar o Balanço Geral do Governo do Estado de São Paulo de 2014 (pp. 42-43), percebe-se que este imposto está localizado na rubrica “receitas tributárias”, englobada pelas “receitas correntes”. As tributárias corresponderam naquele exercício a 67,82% das correntes, as quais são ainda compostas por: contribuições, contribuições intra-orçamentárias, patrimonial, agropecuária, industrial, de serviços, de serviços intra-orçamentários, transferências correntes, outras receitas correntes e outras receitas correntes intra-orçamentárias. Essas receitas se dividem entre a administração direta e indireta. De qualquer forma, as receitas tributárias são a maior parte das receitas correntes. Dentro das tributárias figuram 1) impostos (96,59%); 2) taxas (3,41%); e 3) contribuições de melhorias (0%, embora conste o valor absoluto de R$1.853,00). O ICMS está contido em “impostos”, correspondendo a 86,09% do total; o IPVA aparece com 9,24% e o ITCMD, 1,25%. 15 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política... 59 que, não obstante, continuam a financiar uma Universidade à qual não terão acesso. O resultado é a manutenção de uma maioria de estudantes ricos nos espaços acadêmicos públicos, tal como nos mostram os dados da Comvest16. ALGUMAS “LUZES” PARA O PROBLEMA E SUAS “REFRAÇÕES” As propostas tecnocráticas para lidar com o déficit orçamentário das Universidades costumam ignorar esse quadro geral de tributação regressiva e seus efeitos sociais. Apresentam as parcerias com empresas privadas e a cobrança de anuidades ou mensalidades para estudantes “que podem pagar” como soluções pretensamente definitivas, tanto para as contas universitárias como para as injustiças sociais. As parcerias com empresas privadas já acontecem na Unicamp, particularmente nos setores chamados de “inovação”. Estas parcerias apresentam um certo potencial de efeito positivo a curto prazo sobre o orçamento das instituições, mas, sem dúvida, afetam negativamente, de modo sensível e a longo prazo, um projeto de Universidade pública, gratuita e de qualidade. Tal impacto negativo se deve, primariamente, a uma modificação paulatina, mas dramática, desse projeto que, de um espaço de livre pensamento e instrumento público de formação e inovação social, cultural e econômica para o próprio público, passa a ser um instrumento público submetido à ordem do privado. Ao receberem financiamento de empresas privadas, as pesquisas realizadas por estudantes e pesquisadores Segundo dados da Comvest, 41% dos estudantes matriculados na Unicamp em 2016 se situavam nas faixas de renda de até 5 salários-mínimos (sendo 18,8% até 3 SM e 22,2% entre 3 e 5 SM), enquanto os que se localizam entre 5 e 20 SM (49,9%) e acima de 20 SM (6,8%) são da ordem de 56,7%. Vale ressaltar que, em dezembro de 2015 (data-base utilizada pela Comvest), o salário mínimo oficial a nível federal era de R$ 788,00; porém, de acordo com o DIEESE, o salário-mínimo deveria corresponder a R$ 3.518,51. O cálculo do DIEESE, que equivale a 4,5 SM oficiais de dezembro de 2015, considera o valor necessário para um/a trabalhador/a e sua família serem supridos com alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência e é calculado com base na cesta básica mais cara do país. Tendo isso em vista, em 2016, cerca de um quinto dos ingressantes da Unicamp são provenientes de famílias que não dispunham do SM ideal. Por outro lado, pouco mais da metade se encontrava em situação socioeconômica privilegiada. 16 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 60 Ana Cláudia Lopes Silveira et al. poderiam ficar sujeitas a políticas de sigilo; isto é, o conhecimento gerado dentro da Universidade Pública, viabilizado pela sua estrutura de laboratórios e bibliotecas, pelo saber especializado de seu quadro de docência e pesquisa, ficaria a serviço dos interesses de atores privados. A cobrança de mensalidades, por sua vez, já acontece no eixo da extensão, embora corresponda a uma parcela mínima do orçamento total da Unicamp. Para além disso, a cobrança de mensalidades ou anuidades no eixo do ensino é um discurso que vem se consolidando no debate público – vide os recentes editoriais da Folha de S. Paulo de 25 de maio de 2016 e do Globo de 24 de julho de 2016, bem como a reportagem do Estadão de 2 de junho sobre os grupos “antiocupação”. Há ainda o projeto de lei em discussão no Senado, de autoria do deputado Marcelo Crivella (PRB-RJ), que propõe a cobrança de anuidade nas Universidades Federais para os estudantes cujas famílias tenham renda superior a trinta salários mínimos (PLS 782/2015). Nada mais justo. Nada mais justo? O pagamento de mensalidades ou anuidades por estudantes situados estatisticamente em faixas prepostas de renda familiar é uma solução simplista que vem disfarçada de justiça social ao sugerir uma espécie de distribuição de renda dentro das Universidades, mas que é inconsistente por diversas razões. Em primeiro lugar, esse tipo de medida inevitavelmente insere a Universidade Pública na mesma lógica das Universidades Privadas, nas quais a corrida por mensalidades e anuidades se sobrepõe à qualidade e à democratização da formação. Passaria a ser de interesse da administração que mais estudantes pagantes ingressassem na Universidade, minando o estímulo para o ingresso de alunos de baixa renda. Ironicamente, seriam necessários mais ricos na Universidade Pública para solucionar o problema da injustiça social dos ricos na Universidade Pública. O contrassenso é evidente: é aqui que a Universidade se torna, de direito e de fato, uma torre de marfim. Seria o triste fim de mais um dentre os já parcos instrumentos de mobilidade social. Em segundo lugar, esse tipo de proposta está ancorada na instrumentalização de um sentimento de injustiça social nutrido por parte da população, sentimento este compreensível dada a já mencionada dificuldade de acesso ao ensino superior público enfrentada pelos mais Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política... 61 pobres. A proposta de cobrança de mensalidades ou anuidades, no entanto, não ataca o centro do problema da desigualdade social, desviando o foco do debate público para longe da discussão de formas mais efetivas de combate às desigualdades, como seria o caso de uma reforma que distribuísse melhor a carga tributária de acordo com a capacidade contributiva de cada um, evitando assim concentrações de riqueza socialmente injustas e economicamente inúteis.17 Essa seria, efetivamente, uma política de redistribuição de renda: tributa-se os mais ricos e aplica-se esses recursos em políticas de inclusão e de criação/manutenção de serviços gratuitos. Nesse sentido, a demanda mais apropriada seria por mais alunos pobres em uma Universidade financiada por impostos pagos preferencialmente pelos mais ricos. A criação de taxações mais igualitárias, em detrimento de impostos regressivos é, portanto, indissociável da criação de uma Universidade também mais igualitária, em que a renda familiar não é uma barreira intransponível entre o sujeito e a educação. Além disso, as propostas de cobrança não especificam como lidariam com a questão operacional de determinação da renda familiar dos alunos pagantes, o que é um problema mais sério do que parece: em um mundo de volatilidade de rendas não provenientes do trabalho, em que são usuais as práticas de fuga para paraísos fiscais e a sonegação pura e simples, a riqueza daqueles situados no topo da pirâmide é largamente desconhecida e insondável (sobretudo devido à complexidade e ao caráter oblíquo de nosso sistema tributário). Isto é, se é relativamente simples determinar a renda das famílias ricas, não é nada fácil determinar a renda das famílias MUITO ricas. Afora esse dilema operacional, os exemplos recentes das revoltas estudantis no Chile e no Québec (Canadá), em 2011 e 2012, assinalam os problemas acarretados pela mercantilização do ensino superior. No Chile, Note-se que o Brasil compõe, juntamente com a Estônia, a única dupla de países que isentam totalmente de impostos os dividendos. A isenção da tributação sobre dividendos no Brasil surge em 1995, com a justificativa de que os lucros já tributados na empresa como Imposto de Renda da Pessoa Jurídica não fossem taxados novamente quando se convertessem em renda pessoal. Com isso, boa parte dos ganhos dos ricos não é tributada. Dados disponíveis em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/09/14/imposto-sobre-lucros-edividendos-geraria-r- 43-bi-ao-ano-diz-estudo. Acesso em: 27. jul. 2016. 17 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 62 Ana Cláudia Lopes Silveira et al. as manifestações foram de alcance nacional e envolveram universitários e secundaristas, com apoio majoritário da opinião pública, pedindo a revisão do sistema educacional herdado da era Pinochet, em que a gratuidade total é assegurada apenas no ensino básico e 75% do orçamento de todo o sistema é garantido por pagamentos de alunos. Já em Québec, as manifestações foram ocasionadas por uma proposta de aumento nas taxas cobradas nas Universidades (de 2.168 para 3.793 dólares canadenses), e resultaram na queda do governo e na anulação da medida. Em um sentido diferente, cabe também mencionar propostas que têm como objetivo flexibilizar as leis de doações às Universidades, como as apresentadas no Projeto de Lei 3407/2015, em trâmite na Câmara Federal, e no PL 4103/2012, arquivado no Senado. O primeiro tem por objetivo facilitar as doações dirigidas a setores ou projetos específicos, e o segundo -- que foi arquivado, mas pode ser reapresentado --, estabelece regras com incentivos fiscais para esse tipo de doação, à maneira da Lei Rouanet. Apesar de esse tipo de proposta não resolver por si só o problema orçamentário da Universidade, trata-se de um recurso bem-vindo. Melhor ainda seria se tais propostas viessem acompanhadas de uma taxação mais agressiva sobre heranças (que é muito baixa no Brasil, 3,9%, enquanto que, por exemplo, na Inglaterra é de 40%) que servisse como um incentivo a mais para esse tipo de doação: é perfeitamente legítimo que diante da perspectiva da morte (“ao pó da terra retornarás”), os ricos e poderosos prefiram satisfazer sua vaidade doando uma biblioteca com o seu nome para a Universidade ao invés de entregar parte de seu patrimônio “de mão beijada” para o Estado. NOSSA LUTA, À GUISA DE CONCLUSÃO As propostas discutidas acima e apresentadas no debate público como soluções ao problema orçamentário das Universidades – parcerias com a iniciativa privada e cobrança de mensalidades – são sintomáticas da compreensão da educação como mercadoria. Segundo essa percepção, a educação se subordina a uma lógica de mercado, o que significa que suas características constitutivas, como o exercício da reflexão, o cultivo da Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 O corte e a corte: o que a crise orçamentária e política... 63 cidadania, a elaboração de um senso crítico e o apuramento da autonomia, são ofuscadas pela racionalidade econômica e pela lógica de maximização dos lucros. Isto é: sacrifica-se o direito à educação em favor do cálculo frio de planilhas administrativas. Estão em jogo, portanto, dois projetos conflitantes: de um lado, a otimização do orçamento da Universidade Pública como missão última dessa instituição; de outro, a realização do potencial democrático da Constituição de 1988 por via institucional, na medida em que garante o acesso universal ao ensino superior público. Os estudantes em greve da Unicamp se colocaram ao lado do projeto que vê a educação como um direito. No entanto, sabemos que os recursos públicos dos quais dependem esse direito não são infinitos. A nossa pauta, contra a arbitrariedade das decisões sobre o contingenciamento, é por mais transparência na gestão do orçamento da Universidade, pois entendemos ser dever das Universidades prestar contas de maneira acessível e clara sobre os investimentos públicos que recebe. Além disso, pensamos que a gestão do orçamento não só deve ser transparente como deve ser mais participativa. Isso implica em uma organicidade dos três setores da comunidade acadêmica – estudantes, funcionários e professores – na elaboração e fiscalização do orçamento universitário. A nossa pauta é também por mais recursos e investimentos em políticas de permanência, como a já prometida – embora não cumprida – ampliação de vagas na moradia estudantil, e ampliação do acesso à Universidade por meio de políticas afirmativas. Nos solidarizamos também com as reivindicações salariais de funcionários e professores. Mas, particularmente, defendemos a efetivação das trabalhadoras terceirizadas no quadro de funcionários da Unicamp, pois a terceirização significa, aqui, tanto cerceamento de direitos trabalhistas quanto anulação de participação política nas decisões internas à comunidade acadêmica. É inadmissível para a Unicamp, sem dúvida um dos mais importantes centros de pesquisas da América Latina sobre relações de trabalho, conviver com esse tipo de precarização das condições de trabalho. E demandamos todos esses pontos ao mesmo tempo não porque ignoramos a grave crise econômica que nosso país enfrenta, ou porque vivemos numa lunática “torre de marfim”. Pensamos que o enfrentamento Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 64 Ana Cláudia Lopes Silveira et al. dos problemas do orçamento universitário não pode ser feito com o descarte de um projeto de Universidade Pública, de acesso democrático, gratuita e de qualidade e, tampouco, sem considerar o quadro mais amplo do sistema de tributação brasileiro. Repudiamos, sim, àqueles que efetivamente se consideram ungidos pelo direito divino – por terem nascido nos berços que nasceram, estudado nas escolas que estudaram, que ocupam posições privilegiadas tendo feito pouco ou nada para estarem onde estão; que são detentores e usufruem de um patrimônio herdado e/ou adquirido por meio da exploração e perpetuação da pobreza no Brasil – , e que ainda querem que a gente pague o corte. A nossa luta não é só contra os cortes, mas é também contra a corte. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 51-64, fev./dez. 2016 A GREVE DAS UNIVERSIDADES FEDERAIS E OS DESAFIOS DE MOBILIZAÇÃO NA PÓS-GRADUAÇÃO João Pedro de Lima Campos1 RESUMO: Neste artigo apresento um relato crítico sobre a greve de estudantes, docentes e trabalhadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) no ano de 2015 a partir da discussão sobre os desafios de mobilização na pós-graduação. Essa greve aconteceu no marco dos primeiros cortes orçamentários realizados ainda no início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, que afetou o equilíbrio financeiro das reitorias, resultando em atraso no pagamento de salários e bolsas. Para entendermos através de que mecanismos a redução do repasse impacta a universidade federal, analisamos a relação existente entre a greve de 2015 e o processo de desmonte do programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), razão medular para a organização da luta política relatada. Apresento também as lições aprendidas em um cenário de severos ataques à universidade pública a fim de apontar soluções para o problema da organização dos alunos de pós-graduação, que historicamente não conseguem se articular em defesa dos próprios interesses. PALAVRAS-CHAVE: Greve estudantil; Pós-graduação; REUNI. APRESENTAÇÃO Em maio de 2015 foi deflagrada greve na Universidade Federal Fluminense (UFF). Tal medida veio como reação aos cortes orçamentários do governo federal no montante destinado ao custeamento Mestre em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). E-mail: camposjpl@ gmail.com 1 66 João Pedro de Lima Campos do ensino superior no país. Uma após a outra, as três categorias da universidade – discentes, docentes e funcionários – votaram, em assembleia, a favor da mobilização e deram início a uma greve que durou 131 dias. Quase um ano após seu término2, a perspectiva ainda é de cortes e de ameaça ao futuro das universidades públicas no país. Apresento neste texto um breve relato da recente e persistente conjuntura político -orçamentária de uma universidade federal e os desafios que nós, estudantes de mestrado e doutorado, encontramos ao nos mobilizarmos durante essa greve que – como não podia deixar de ser – nos afetou diretamente. A GREVE DE 2015 NA UFF Após o anúncio do bloqueio de 1/3 no repasse de verbas para as universidades federais no início do segundo mandato da então presidenta Dilma Rousseff, a ordem do dia para os reitores era economizar.3 Sem dinheiro em caixa para arcar com seus compromissos, a Reitoria atrasou o pagamento de bolsas, deixou trabalhadores terceirizados sem salários, suspendeu obras em novos prédios4 e mesmo algo tão fundamental quanto o fornecimento de energia elétrica foi ameaçado.5 O impacto da crise orçamentária das universidades públicas foi primeiro sentido pelos trabalhadores terceirizados da limpeza, alimentação, manutenção predial e segurança, que já vinham realizando paralisações pontuais devido aos constantes atrasos no pagamento dos salários que já ocorriam antes do anúncio de cortes pelo Ministério da Educação (MEC)6. O artigo foi redigido em setembro de 2016. MEC bloqueia um terço da verba das federais; universidades atrasam bolsas. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2015-02-25/mec-bloqueia-um-terco-da-verbadas-federais-universidades-atrasam-bolsas.html. Acesso em: 30 ago. 2016. 4 Sem verbas federais, UFF mergulha na crise. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/ sem-verbas-federais-uff-mergulha-na-crise-17256420. Acesso em: 30 ago. 2016. 5 Corte no orçamento da UFF chega a R$20 milhões em 2015 e afeta funcionamento dos cursos. Disponívelem: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/corte-no-orcamento-da-uffchega-r-20-milhoes-em-2015-afeta-funcionamento-dos-cursos-16307386. Acesso em: 30 ago. 2016. 6 Aulas são canceladas na UFF por greve de funcionários terceirizados; salários estão atrasados 2 3 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 A greve das universidades federais e os desafios... 67 Longe de ser uma questão exclusiva da UFF, o atraso no pagamento de salários dos funcionários terceirizados foi um fenômeno geral nas universidades do Rio de Janeiro naquele ano. A situação financeira e política na UERJ, UFRJ e UNIRIO – sediadas na capital do estado – estava tão problemática quanto na federal de Niterói7 8, de modo que o movimento dos trabalhadores terceirizados assumia um caráter interinstitucional em que uma mobilização impulsionava a outra através de manifestações e atividades conjuntas. Esses trabalhadores pertencem à categoria mais precarizada na universidade, cujos contratos são elaborados sob a luz da flexibilização das leis trabalhistas que fragiliza o emprego e expõe o funcionário ao constante risco da demissão. Enquanto para os trabalhadores concursados da universidade a greve representa um instrumento de luta política e de proteção ao emprego, para os terceirizados ela significa, com sorte, a ameaça de desconto do vencimento na folha de pagamento; sem sorte, a greve resulta em retorno à larga fila do desemprego. Por isso a corda dos cortes arrebenta para o lado dos terceirizados, a classe com mais dificuldade de organização política dentro da universidade9 e por isso mais exposta à ameaça da demissão. No entanto, naquele ano a situação de atraso de salários se tornou alarmante e generalizada em um nível que mesmo esse setor politicamente vulnerável se mobilizou. Em defesa de seus direitos e afirmando que trabalhador terceirizado não é escravo, os funcionários cruzaram os braços. Inicialmente ocorreram paralisações pontuais em março e abril desde dezembro. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/educacao/aulas-saocanceladas-na-uff-por-greve-de-funcionarios-terceirizados-salarios-estao-atrasados-desdedezembro-15617777.html. Acesso em: 30 ago. 2016. 7 Cortes orçamentários geram crise nas universidades do Rio. Disponível em: http://exame. abril.com.br/brasil/noticias/cortes-orcamentarios-geram-crise-nas-universidades-do-rio. Acesso em: 30 ago. 2016. 8 Sem pagamento de terceirizados, UERJ sofre com o acúmulo de lixo. Disponível em: http:// g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/04/sem-pagamento-de-terceirizados-uerj-sofrecom-acumulo-de-lixo.html. Acesso em: 30 ago. 2016. 9 GRANZOTTO, Tânia M. A implementação de ações neoliberais nas Universidades Públicas. Disponível em: http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/ view/8634830/2749. Acesso em: 30 ago. 2016.. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 68 João Pedro de Lima Campos até que houve a deflagração da greve dos terceirizados em maio, afetando diretamente toda comunidade acadêmica, cujo cotidiano foi arrastado para o efeito da mobilização diante da falta dos serviços de alimentação, segurança e manutenção predial. Neste contexto, a precarização da educação superior através de cortes orçamentários já era sentida em todos os setores na universidade, e à medida que elementos simples, porém básicos para a vida cotidiana no campus desapareciam, ficava clara a urgência de mobilização: copos e guardanapos foram cortados do restaurante universitário, ao invés de suco, apenas água; nada de azeite ou farinha de mandioca na mesa; faltou papel higiênico e sabão nos banheiros; elevadores foram desligados; paralisou-se obras de infra-estrutura e delegou-se para um futuro incerto a ampliação da insípida moradia que possui apenas trezentas vagas em um universo de mais de cinquenta mil alunos10. Em um dos momentos mais críticos durante a greve, a UFF teve o fornecimento de energia elétrica suspenso por falta de pagamento à fornecedora. Foi necessária a intervenção da Justiça Federal para normalizar a situação através de uma ação judicial que obrigava a empresa Ampla S.A. – responsável pela energia elétrica em Niterói – a religar a luz na universidade, sob o argumento de que se tratava de um serviço fundamental11; a Federal Fluminense é, afinal, uma das maiores universidades federais em número de alunos. Esse episódio marcou um dos grandes momentos de mobilização, expondo que a paralisação era inevitável em um contexto em que, mesmo sem aulas, e, portanto, com economia de gastos, a universidade não conseguia manter-se em funcionamento. A própria reitoria reconheceu, através de nota oficial, o equilibrismo orçamentário que realizava e responsabilizava a política de ajustes do governo federal como responsável Federais enfrentam crise por alojamento. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/ rio-de-janeiro/2015-05-24/federais-enfrentam-crise-por-alojamento.html. Acesso em: 30 ago. 2016. 11 Após suspender fornecimento de energia, Justiça Federal proíbe corte de luz na UFF. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/apos-suspender-fornecimento-de-energiajustica-federal-proibe-corte-de-luz-na-uff-17286522. Acesso em: 30 ago. 2016. 10 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 A greve das universidades federais e os desafios... 69 pela situação de crescente caos na qual a UFF se encontrava12. A deterioração da universidade federal iniciada pelo contingenciamento de verbas de 2015, e que continua em curso, envolveu todas as categorias. Trabalhadores sem salários, alunos sem bolsa e com acesso restrito aos serviços fundamentais do campus, professores sobrecarregados com o aumento da relação aluno/professor e sem a perspectiva de ampliação do corpo docente. Nesse cenário, apenas dois meses após o início do ano letivo, a UFF estava completamente paralisada. O DESMONTE DO REUNI E A PRECARIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO Estive nas assembleias de cada um dos três setores quando foi votada a greve. Minha surpresa foi grande ao assistir o corpo docente votar massivamente pela construção dessa mobilização; situação que nunca havia presenciado durante meus anos de graduação na Unicamp, onde, de modo geral, os professores se mostram bastantes contrários à greve. Tal fenômeno se explica, em parte, pelo fato de que nas universidades federais existe, atualmente, um número expressivo de professores recém contratados, jovens, que ainda buscam estabilidade profissional e crescimento na carreira acadêmica e se mostram dispostos a defender e lutar em defesa da categoria. Esses docentes ingressaram nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) durante o processo de expansão do ensino universitário chamado de REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Trata-se de uma política educacional iniciada ainda no segundo mandato do governo Lula, no ano de 2007, que alterou intensamente o aspecto das universidades federais. Em linhas gerais, o REUNI significou uma rápida expansão no número de vagas nas IFES, tendo em vista a inclusão de setores historicamente excluídos do ensino superior, como as populações PPI Nota da Universidade Federal Fluminense sobre o corte de luz. Disponível em: http://www. uff.br/?q=nota-da-universidade-federal-fluminense-sobre-o-corte-de-luz. Acesso em: 30 ago. 2016. 12 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 70 João Pedro de Lima Campos (pretos, pardos e indígenas)13 e a população mais pobre, sem a contrapartida da exclusão de setores que tradicionalmente ingressam nessas instituições. Com o aumento no número de alunos, veio a demanda pela ampliação das políticas de permanência estudantil, de assistência social e psicológica aos estudantes, que em nenhum momento foi atendida; desde sua origem, o contraponto da expansão foi a ameaça de precarização. Não obstante as fragilidades do projeto, o REUNI cumpriu papel importante ao enfatizar o caráter social das universidades federais e contribuir para a ampliação do número de programas de pós-graduação e incentivar a produção científica no país. Com o anúncio de cortes a partir de 2015, esse projeto estava – e continua – ameaçado. O pano de fundo da greve na UFF foi, portanto, uma resposta aos indícios de deterioração do REUNI, que foi percebido e expressado de forma distinta pelas três categorias da universidade. A pauta mais urgente para os alunos de graduação dizia respeito a políticas de permanência estudantil e bolsas de pesquisa, pois, se por um lado, a população negra e pobre havia conseguido ingressar no ensino superior durante os anos do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), por outro, sua continuidade nos estudos não estava garantida, pois a contradição entre ampliação de vagas e corte de verbas resulta em evasão. Já em 2014, o percentual de alunos que abandonaram o curso de graduação na UFF era de 17,4%; muito superior aos 11% da UFSCAR ou aos 8,2% da UFU. Ainda assim, a Federal Fluminense apresenta uma taxa de conclusão superior às das outras três federais do Rio de Janeiro14, o que aponta quão problemática está a situação nesse estado. A greve de 2015 conduzida pelas três categorias não dizia respeito apenas à defesa de salários, condições de trabalho e estudo, ela estava intrinsecamente ligada ao desmonte de um projeto político em vigência há REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Diretrizes Gerais. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/diretrizesreuni.pdf. Acesso em: 30 ago. 2016. 14 Série histórica evasão e conclusão nas IFES. Disponível em: http://www.uff.br/sites/ default/files/serie_historica_evasao_e_conclusao.pdf. Acesso em: 30 ago. 2016. 13 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 A greve das universidades federais e os desafios... 71 quase uma década. Por essa razão, as atuais demandas da universidade não podiam ser respondidas sem passar pela discussão do caráter da instituição e do futuro do REUNI, que se ligava não apenas a UFF em particular, mas a todas as federais – pois a crise que enfrentamos na Federal Fluminense é apenas um braço – talvez um dos mais expostos – de uma crise conjuntural no sistema federal de ensino superior. A reação contundente dos alunos de graduação veio em 26 de maio daquele ano, quando, dois dias antes do início da greve dos trabalhadores, os estudantes reunidos em assembleia votaram pela ocupação do prédio da reitoria contra os cortes e atrasos nas bolsas, por ampliação da moradia, permanência estudantil e em solidariedade às demais categorias15. Enquanto durou a ocupação da reitoria, que também abriga uma sala de cinema, um teatro e uma galeria de arte, nós estudantes tivemos intenso contato com os funcionários do prédio, ocasião em que percebemos nossos objetivos comuns e nossos conflitos e discordâncias sobre perspectivas para a universidade; pois, ainda que as três categorias em greve tivessem o mesmo interesse em preservar a qualidade do ensino e afirmar o caráter público da instituição, surgiram divergências sobre como esse fim seria alcançado, questões sobre método de luta política que se expressavam sobretudo quando o debate dizia respeito ao futuro incerto do REUNI. Junto de novos alunos, a expansão da universidade significou a contratação de novos funcionários, trabalhadores que ascenderam ao serviço público estável através das políticas do governo federal para a educação. À medida que os alunos de graduação expunham em assembleia a fragilidade do REUNI e a necessidade de se criticar a política educacional do PT, os funcionários defendiam as conquistas que o processo de expansão representou. Vinha à tona diferenças políticas entre as três categorias, entre servidores recém contratados e aqueles com vínculos antigos com a UFF e entre esses e uma juventude recém chegada à universidade, com anseios de permanência e mais ampliação. Alunos da UFF ocupam reitoria após anúncio de greve nesta quinta. Disponível em: http:// g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/05/alunos-da-uff-ocupam-reitoria-apos-anunciode-greve-nesta-quinta.html. Acesso em: 30 ago. 2016. 15 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 72 João Pedro de Lima Campos OS DESAFIOS DA MOBILIZAÇÃO NA PÓS-GRADUAÇÃO Apesar das divergências entre professores, trabalhadores e estudantes acerca da crítica ao REUNI, a greve atravessou o primeiro semestre e quase chegou ao fim do ano. Apenas a pesquisa continuou na UFF. Não obstante o contexto excepcional em que nos encontrávamos, nós estudantes de pós-graduação não paramos nossas atividades. No decorrer de minha primeira greve estudantil como aluno de pós-graduação, vivi todos os limites e barreiras que encontramos para nos mobilizar. Fosse pela falta de representatividade e articulação da Associação Nacional dos Estudantes de Pós-Graduação (ANPG), pela pressão dos prazos exigidos pelas agências de fomento ou pela indisposição dos professores em alterar o cronograma de aulas, o fato era que a pós-graduação na UFF se mostrou como um setor bastante alienado do contexto político que o cercava. Duas semanas após o início da greve nós alunos de Sociologia nos reunimos com professores e coordenadores do programa para debater a possibilidade de tirarmos um posicionamento conjunto enquanto curso, e as alternativas de mobilização que possuíamos. Nesse momento, nenhum docente opôs resistência à ideia de aderirmos à greve; um ou outro até se mostrou simpático à proposta. No entanto, apesar do respeito à nossa tentativa de organização, nenhum argumento era mais forte que a palavra prazo, continuamente proferida pelos docentes e pesquisadores dos vários programas pós-graduação. De modo algum nos era vetada a paralisação, ou a alternativa de entrar em greve, não apenas em solidariedade com as outras categorias, mas em defesa de nossos próprios interesses. A postura dos nossos professores não foi declaradamente de oposição ao processo político que atravessávamos; o tom, porém, era de alerta: mesmo em greve, os prazos permaneciam inalterados. Nossa mobilização precisava, então, encontrar meios de agir sem prejudicar o andamento de nossas pesquisas. Isolados enquanto curso, tomamos de empréstimo os exemplos de outros programas de pósgraduação, que redigiram cartas públicas em defesa da greve e tomaram Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 A greve das universidades federais e os desafios... 73 parte no movimento ao tirar alguns dias de paralisação como indicativo de greve. Não fomos, porém, além disso. Longe de ser um problema individual de alunos específicos, ou que diga respeito apenas a um curso mais ou menos mobilizado, o que enfrentamos em 2015 na pós-graduação de Sociologia da UFF perpassa a realidade de pesquisadores em todo país. Somos regidos pelas mesmas regras seja no Amapá, Rio de Janeiro ou Mato Grosso do Sul. As diferentes agências de fomento possuem normas semelhantes, são igualmente inflexíveis na ampliação de prazos e exercem pressão sobre os professores para que esses – como gerentes de produção – mantenham a pesquisa de seus alunos em dia. Para nós, estudantes de pós-graduação, não era o corte o carrasco mais direto, mas a ameaça de perdermos nossas bolsas ou termos nosso estudo inviabilizado devido aos prazos. Durante quatro meses frequentei o campus vazio e senti as implicações da greve. Durante quatro meses encontrei fechados o restaurante universitário, as salas de informáticas, as áreas de lazer e, também, o que é mais flagrante, a biblioteca. A questão que permanece é como é possível desenvolver uma pesquisa sem acesso aos livros, ao ambiente de estudo e ao serviço de informática? Como manter uma rotina saudável na universidade sem o convívio com os demais estudantes mobilizados? Por trás dos prazos das agências de fomento existe a realidade da precarização da pós-graduação que coloca os alunos em um verdadeiro malabarismo acadêmico quando a greve estoura. Sob a palavra prazo está oculta a luta cotidiana de estudantes que, mesmo que queiram, dificilmente podem aderir integralmente a um movimento político em curso na universidade. O prazo, elevado a semideus da academia e aliado ao produtivismo, se torna fator de precarização das pesquisas; o prazo, em um contexto de greve, é símbolo exposto da contradição entre a produção científica e as condições em que ela é realizada. Diante dos prazos, nós, estudantes de Sociologia, optamos por uma paralisação de um dia – apenas um dia! – e por redigir um texto em apoio ao movimento dos trabalhadores, estudantes e professores. Isolados em um grupo de quinze alunos, continuamos nosso estudo de Sociologia, Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 74 João Pedro de Lima Campos ironicamente desligado do ambiente que nos cercava. Foi bastante artificial frequentar uma sala de aula em um prédio onde não havia mais ninguém, exceto os funcionários responsáveis por abrir e fechar o edifício e manter a mínima limpeza. Desses recebemos olhares descontentes; não lhes tiro a razão. Ao longo do período da greve discutimos bastante em nossa turma o que fazer; e não foi difícil chegar a conclusão de que nos faltava articulação com outros programas de pós-graduação de nossa universidade e de outras, pois sempre que uma greve se inicia enfrentamos o mesmo problema de desmobilização. Logo ali na cidade do Rio de Janeiro três federais passavam pela mesma situação e os alunos de pós-graduação compartilhavam conosco os mesmos problemas; e ainda que os terceirizados tenham dado exemplo de união interinstitucional ao realizarem atos conjuntos na capital, nós pós-graduandos nunca nos comunicamos, sobretudo porque delegamos ações e decisões a ANPG, órgão pouco presente no cotidiano dos alunos e que durante o processo de greve tentou influenciar no processo político, sem ser capaz de representar nossos reais interesses. Nesse cenário em que assistimos a greve desfilar perante nosso curso de mestrado e atravessar completamente nossa vida acadêmica, perguntamo-nos insistentemente qual seria a maneira correta de responder aos desafios colocados a mobilização na pós-graduação a partir da experiência na UFF? Se a pós-graduação possui uma dinâmica própria – e é certo que possui – orientada por cronogramas e prazos, torna-se requisito básico para nossa greve discutir e negociar tais prazos. Nenhum programa sozinho tem força o bastante para pressionar as agências de fomento, bem como um único curso de graduação paralisado não incomoda a reitoria. A conclusão nada inédita a que se chega é a da necessidade de uma organização que efetivamente defenda os interesses dos pós-graduandos, e possibilite que o aluno mobilizado não seja prejudicado por sua posição política. Continuamos em nossa rotina extraordinária até outubro de 2015, quando a greve chegou ao fim. Nós pós-graduandos a atravessamos e, apesar de muito sentirmos seu efeito no cotidiano, tivemos de continuar em aula. A reitoria conseguiu fechar seu ano orçamentário – à custa de Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 A greve das universidades federais e os desafios... 75 muita precarização do restaurante universitário e da estrutura dos prédios – e em março de 2016 o ano letivo anterior foi encerrado. Ao contexto dos cortes federais somou-se a falência do estado do Rio de Janeiro que também afeta a UFF, mesmo que indiretamente, dando continuidade a uma crise que, superado seu momento mais agudo, se mantém como um estado permanente em nossas vidas acadêmicas e cotidianas. A realidade de cortes ainda permanece, a demanda por assistência estudantil cresce e a pós-graduação em Sociologia, a despeito do que passou em 2015, continua desmobilizada. É claro que esse não é um problema local, mas se estende por toda a UFF, passa pelas outras universidades federais do Rio de Janeiro e alcança os outros estados. O aprendizado central dessa greve foi que nós, estudantes de pós-graduação, dificilmente nos enxergamos enquanto uma categoria na universidade, premidos que estamos entre a formação, o ensino e pesquisa – e a nossa dificuldade de mobilização se deve muito a essa percepção errônea de que nossos interesses e formas de luta são os mesmos dos graduandos ou dos docentes. Conduzimos nossas pesquisas individualmente, estamos submetidos à pressão dos prazos e para cumprilos nos mantemos isolados em bibliotecas – quando elas estão abertas – e conforme nos afastamos da graduação, nos tornamos mais distantes da articulação política estudantil. É certo que as mesmas questões que apresentei neste breve relato estiveram presentes durante a greve de 2016 na Unicamp, que acompanhei a distância e me levaram a redigir este texto. A resistência dos pesquisadores à greve e a desconfiança e o medo de perder os prazos ecoa nos alunos daqui como nos de lá. Por isso, é importante enfatizar que nós, estudantes de pós-graduação, somos uma categoria com interesses próprios e formas particulares de se organizar para a greve, embora dificilmente percebemos com clareza a unidade que compomos. A própria estrutura de nossos cursos de mestrado e doutorado nos isola uns dos outros e à medida que nos aprofundamos em nossas pesquisas facilmente nos alienamos da política que se desenrola em nosso ambiente. Até que consigamos pressionar coletivamente, enquanto uma categoria, as agências CAPES, FAPESP, FAPEMIG, CNPQ, FAPERJ, Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 76 João Pedro de Lima Campos etc., continuaremos presos à lógica produtivista de entrega de artigos, teses e dissertações no prazo, sem levar em conta a real situação que a universidade atravessa. O lado sinistro de nossa desarticulação se reflete na falta de resposta a nossas demandas: ampliação do número de bolsas, contratação de docentes que implica em aumento de linhas de pesquisa, acesso a material de alta qualidade ou mesmo a possibilidade de negociação de ampliação de prazos quando necessário. Por fim, após meu primeiro ano de mestrado e diante de toda a vida acadêmica por percorrer, percebo que aos pós-graduandos falta o reconhecimento político-institucional enquanto uma categoria, que nos tiraria do limbo que surge entre os interesses da graduação e as demandas da docência e pesquisa. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 65-76, fev./dez. 2016 LA MERCANTILIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN SUPERIOR Y LA IRRUPCIÓN DEL MOVIMIENTO ESTUDIANTIL EN CHILE (2006 / 2011): IMPACTOS Y DESAFÍOS Mía Dragnic García1 Raúl Ortiz-Contreras2 RESUMEN: El objetivo de este texto es caracterizar mínimamente las dinámicas de mercantilización de la educación chilena, desde el período de la dictadura militar hasta nuestros días, a la luz de las expresiones más recientes del movimiento estudiantil, que en dos oleadas sucesivas de organizaciones y protestas, 2006 y 2011, lograron reivindicar la necesidad de repensar la educación como un derecho universal y gratuito, generando, de este modo, un cuestionamiento de amplio espectro al tipo de sociedad neoliberal concebida desde el período autoritario (1973-1989), pero también blindada y perfeccionada desde los gobiernos democráticos posteriores. Esta reflexión y exposición de coyunturas es efectuada en primer lugar buscando identificar y mapear algunos eventos históricos relevantes, pero al mismo tiempo, nos permitimos una exploración reflexiva en torno a dos dimensiones, la de género y la étnica, que nos parecen aun mal comprendidas e/o invisibilidades en la representación política y social de este movimiento. PALABRAS CLAVE: Mercantilización de la educación; Movimiento estudiantil chileno; Género; Etnia. Socióloga, Universidad Central de Venezuela. Licenciada en Cine Documental, Universidad Academia de Humanismo Cristiano. Magíster en Estudios de Género y Cultura en América Latina, y Doctoranda en Estudios Latinoamericanos, Universidad de Chile. 2 Antropólogo, Universidad Austral de Chile. Magíster en Antropología Social, y Doctorando en Antropología Social, Universidade Estadual de Campinas. 1 78 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras “Hay dos panes. Usted se come dos. Yo ninguno. Consumo promedio: un pan por persona” Nicanor Parra INTRODUCCIÓN: CHILE NEOLIBERAL En 1969 Chile suscribió el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, adoptado por la Asamblea General de la Organización de las Naciones Unidas3. Solamente veinte años después, en mayo de 1989, éste fue promulgado como Ley, hacia el final del período dictatorial de Augusto Pinochet4; sin embargo, jamás tuvo efectos tangibles y/o reconocibles dentro del experimento neoliberal que había sido engendrado en el país durante las décadas anteriores. Este pacto, en su Artículo 13, reconoce abiertamente el derecho de toda persona a la educación, debiendo ésta orientarse hacia el desarrollo de la personalidad humana, asumiendo los principios de dignidad, tolerancia, comprensión, amistad (entre las naciones y todos los grupos “raciales”) y libertad como valores gregarios de una sociedad plenamente educada. Asimismo, su implementación hace referencia explícita a la universalidad y gratuidad que debe tener el acceso a la educación primaria; mientras que la educación secundaria y superior deben ser generalizadas, avanzando hacia una accesibilidad también universal, implantando además la gratuidad como principio estructural. Claramente este pacto converge hacia una definición de la educación pública como un derecho universal y gratuito, responsabilizando al aparato del Estado como garante y catalizador de la estructura educacional. Este pacto fue adoptado el 19 de diciembre de 1966, tres años antes de la suscripción de Chile. Ver: http://www.ohchr.org/SP/ProfessionalInterest/Pages/CESCR.aspx. 4 Ver “Promulga el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, adoptado por la Asamblea General de la Organización de las Naciones Unidas el 19 de diciembre de 1966, suscrito por Chile el 16 de septiembre de 1969”. Ver: http://www.leychile. cl/Navegar?idNorma=12382. 3 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 79 Contradictoriamente, el proceso de mercantilización y privatización de la totalidad de los derechos fundamentales en Chile – educación, salud, previsión social, transporte, entre otros – amparándose en el ejercicio de la soberanía y poniendo en tela de juicio la jerarquía supralegal y supraconstitucional de los Tratados de Derechos Humanos adscritos por el país, se ha transformado en la tónica de generación de políticas sociales desde el régimen dictatorial, entre 1973 y 1989, superponiéndose e incluso sofisticándose durante los sucesivos gobiernos de la Concertación de Partidos por la Democracia (1990-2008), de la Coalición por el Cambio (2009-2013) y actualmente de la Nueva Mayoría. En cuarenta años de consolidación del modelo neoliberal, los chilenos internalizamos culturalmente el valor del mercado por sobre los derechos humanos y colectivos, haciéndonos parte de un sistema jerarquizado, competitivo, meritocrático y profundamente desigual. Esta estructura de gobierno y de Estado se ha consagrado en la Constitución de 1981, aún vigente, cuya permanencia ha sido corolario de un pacto político de transición desde el régimen autoritario de Pinochet hacia los gobiernos democráticos anteriormente mencionados. Aun cuando el impacto simbólico, social e histórico de haber superado un régimen militar tan nefasto en la historia de Chile es extremamente significativo, es necesario indicar que hubo una evidente continuidad en la proyección de una sociedad neoliberal, modelo que adquirió, por lo tanto, nuevos bríos en manos de los sucesivos gobiernos socialdemócratas y de la centro-derecha. Se forjó de esta manera un imaginario de bienestar social que ha descansado constantemente en los índices macroeconómicos de crecimiento, cuyas cifras han puesto a Chile en un escenario de excepcionalidad en el contexto regional. El crecimiento económico sostenido en el tiempo, la inclusión de Chile en el OCDE, las cifras alentadoras del PIB nominal per cápita, entre otros indicadores, han logrado dejar en un segundo plano la desigualdad estructural que se ha generado y mantenido sostenidamente durante los últimos años5, Si bien Chile tiene un PIB per cápita de US$23.563 en 2015, bastante superior, por ejemplo, al de Brasil en el mismo período (US$15.690) (ver: http://www.pulso.cl/noticia/economia/ economia/2015/10/7-71794-9-pib-per-capita-de-chile-ppp-llega-a-us23563-en-2015-pero5 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 80 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras al mismo tiempo en que las directrices de los diversos gobiernos han logrado marginalizar el debate sobre la recuperación de acceso a los derechos universales, criminalizando, cooptando e invisibilizando la protesta social que han exigido en toda época, y con diversas estrategias, una existencia digna en un país autoimaginado como rico. Podríamos decir entonces que la visión de éxito macroeconómico y tecnocrático ha sido inversamente proporcional al desarrollo de una estructura política que garantice la dignidad y los derechos sociales. Por ese motivo, Chile también posee otras excepcionalidades, estructurales y puntuales, que son de índole más bien calamitosas: es uno de los pocos países latinoamericanos, por ejemplo, que no ha reconocido constitucionalmente a sus pueblos originarios. Tampoco ha consagrado el derecho pleno de las mujeres sobre su propio cuerpo, empantanándose constantemente la aprobación de la ley sobre el aborto terapéutico6. Es un país donde predomina la obligatoriedad de optar por un sistema de pensiones privado, no ofreciendo equivalencias en el sistema público. En el cual la educación universitaria, incluso la estatal, ha sido financiada primordialmente por un sistema de aranceles pagados directamente por la población estudiantil y por sus familias, produciendo varias generaciones de profesionales endeudados desde los inicios de sus carreras, ampliando las dinámicas de desigualdad entre las clases medias y bajas en contraposición a las clases más acomodadas. a-2020-se-aleja-de.shtml), cuando dimensionamos los índices de desigualdad, la situación deja de ser auspiciosa. En 2015, la OCDE presentó el “Estudios económicos de la OCDE Chile 2015”, en el cual se relata lo siguiente: “A pesar del fuerte crecimiento económico, Chile sigue siendo una sociedad altamente desigual en cuestión de ingreso, riqueza y educación. La desigualdad va pasando de una generación a otra, reduciendo las posibilidades de ascender en la escala social” (ver: https://www.oecd.org/eco/surveys/Chile-2015-vision-general.pdf). De hecho, Chile junto a México y Turquía posee los índices más importantes de desigualdad del OCDE. “Dentro del estudio, se señala que el crecimiento económico en Chile debe ser más inclusivo, hoy el 10% más rico gana 26,5 más que el 10% más pobre superando en más de un 100% el promedio de los países en la organización internacional” (ver: http://www. elmostrador.cl/noticias/opinion/2016/01/09/desigualdad-en-chile-el-10-mas-rico-gana-26veces-mas-que-el-10-mas-pobre/). 6 Actualmente se discute en el senado la aprobación de una ley de aborto únicamente por tres causales: inviabilidad fetal, riesgo vital de la madre y por violación. Una ley que reactualiza la negativa de autonomía para las mujeres sobre su cuerpo, reservando la decisión a un médico o un tribunal. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 81 Sin duda, lo anterior ha generado un campo de profunda ambivalencia. Pequeños atisbos de reformismo, como la reforma constitucional de 1989, que terminan descansando sobre una estructura constitucional inamovible, ha sido el paraguas conceptual utilizado por los diversos programas políticos que se han sucedido en los gobiernos democráticos desde la década de 1990. Ante este escenario, quizás más que ningún otro actor social, ha sido el movimiento estudiantil secundario y universitario el que ha logrado posicionar una voz relevante, generalizada y crítica ante esta enorme estructura neoliberal. Este breve ensayo pretende mapear los principales hitos, trayectorias y consecuencias del movimiento desde la llamada “Revolución Pingüina”7, en 2006, comprendiendo sus desprendimientos posteriores, hasta la segunda oleada de movilizaciones, en 2011. Señalaremos los significativos aportes que estas fuerzas sociales han impregnado en el actual escenario político; pero también nos interesa reflexionar de qué manera la sociedad plena ha internalizado los debates, proyectos y características que han sido propias del movimiento. Sin embargo, como antesala a lo planteado, se hace necesario primero comprender como se estructuró la educación chilena en el contexto neoliberal. NEOLIBERALISMO EN LA EDUCACIÓN CHILENA Hay dimensiones históricas importantes para comprender el asentamiento del sistema neoliberal en Chile y su directa afección sobre el sistema educacional. Uno de estos antecedentes lo encontramos en el contexto de la Alianza para el Progreso (ALPRO), asociado al papel desempeñado por Estados Unidos como primera fuerza económica global de posguerra y en el correlato de militarización que acompañó diversas de las transformaciones del Estado y la política en América Latina8. La misión La adjetivación “pingüina” dice relación al protagonismo que tuvieron en este proceso los estudiantes secundarios. Es una expresión coloquial referida al uso de uniformes escolares que es condición obligatoria en la mayoría de los establecimientos escolares en Chile, especialmente en las escuelas públicas y municipales. 8 La economía de EEUU se constituyó en la primera fuerza económica global de la posguerra, 7 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 82 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras económica Klein-Sacks, en la cual participó directamente el Departamento de Estado de los EEUU, fue responsable por la reestructuración de la Escuela de Economía de la Pontificia Universidad Católica de Chile, en directa relación, además, con el Centro de Estudios Latinoamericanos de la Universidad de Chicago. Esto prepara el terreno para la suscripción del acuerdo que establecen la Universidad Católica de Chile y la Universidad de Chicago, en 1955, que se convierte en un momento central para comprender la experiencia de privatización de la educación y la aniquilación de la educación pública. En el convenio ambas universidades, con activa participación de la Fundación Ford, pactan la formación de estudiantes de Economía de nacionalidad chilena en EEUU. La Universidad Católica inaugura, de este modo, una reforma universitaria opuesta a la desarrollada hasta ese entonces por el Rector Fernando Castillo Velasco. Esto gana relevancia ya que Castillo Velasco fue el primer Rector laico y electo de esta institución, durante un proceso de reforma democrática universitaria, ejerciendo su cargo entre 1967 y 19739. El convenio establecido fue el el control sobre la bomba atómica y la consolidación de un modelo económico imperial, sentaron las bases para la reestructuración de su política exterior. La Conferencia de Caracas en 1954, la última conferencia del sistema interamericano, es un hito significativo que forma parte del inicio de un período de militarización neoliberal en América Latina. En esta conferencia se expresó con claridad la influencia de Estados Unidos en la recién creada Organización de Estados Americanos (OEA), cuando el secretario del estado norteamericano, John Foster Dulles, presentó una suerte de declaración de guerra contra el comunismo en la región. Este hito significó un retroceso importante en los objetivos establecidos por la Novena Conferencia Internacional Americana, en la cual se reconocía el derecho de los Estados para el establecimiento de medidas que eviten la utilización de inversiones extranjeras como mecanismo de intervención en la política nacional, para perjudicar la seguridad o los intereses fundamentales de los países que las reciben. En esta fase la Doctrina de Seguridad Nacional se concentra en la instalación de diversas dictaduras militares y en la articulación de la organización represiva entre ellas; en Sudamérica por medio del Plan Cóndor y en Centroamérica a través de la Operación Charlie. Estos regímenes, durante los setenta, iniciaron procesos de apertura económica dirigidos por el Banco Mundial (BM) y por el Fondo Monetario Internacional (FMI). 9 Entre varios aportes, este Rector promovió una impronta democrática para esta institución, llevando a cabo reformas que permitieron la participación de la comunidad universitaria en asuntos administrativos que hasta ese entonces estaban reservados únicamente a autoridades eclesiásticas. En 1973, con el Golpe de Estado, la Junta Militar designa nuevos rectores en todas las universidades, nombrando al Vicealmirante Jorge Swett Madge para la Pontificia Universidad Católica. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 83 responsable del surgimiento de los llamados “Chicago Boys”, economistas que diseñaron el plan económico implementado durante el Régimen Militar, inspirados en los paradigmas y teorías de Milton Friedman, Friedrich von Hayek y Arnold Harberger, entre otros. Se inicia así un radical proceso de liberalización económica, que abandona el proyecto de sustitución de importaciones de los gobiernos anteriores, y se establece la primacía de la política monetarista. Esto tuvo consecuencias inmediatas. Se precarizó en forma creciente el trabajo, desregularizando el mercado, reduciendo el gasto público, privatizando los servicios sociales y las industrias estatales. En el plano educativo este proyecto liberal se materializó cuando la Junta Militar decide promulgar en 1981 la Ley General de Universidades (LGE), la cual tuvo dos directrices centrales: en primer lugar, permitió la creación de Universidades, Institutos Profesionales y Centros de Formación Técnica privados sin dependencia estatal. En segundo lugar, se desarticularon las dos universidades estatales que tenían presencia a nivel nacional, la Universidad de Chile y la Universidad Técnica del Estado (UTE). En la Universidad de Chile se designaron siete militares para ejercer como rectores durante este período10, siendo reducida drásticamente a la ciudad de Santiago. Igualmente, se eliminó la Universidad Técnica del Estado (UTE) al convertirla en la Universidad de Santiago (USACH), transformando las sedes regionales de ambas en otras universidades o institutos autónomos. Al fragmentar las universidades estatales con alcance nacional se destruyó un modelo de educación pública-nacional y, de paso, se precarizó sustancialmente el oficio docente. Ante el desfinanciamiento de la educación por parte del Estado, las universidades estatales y privadas comienzan a depender directamente de un sistema de financiamiento mixto, compuesto por el Aporte Fiscal Directo, el Aporte Fiscal Indirecto y los aranceles universitarios. Los dos primeros fueron Entre 1983 y 1987 siendo Rector el General del Ejército Roberto Soto Mackenney, quien pese a su cercanía con el régimen autoritario propició que los decanos fueran electos democráticamente. Este gesto hizo que finalmente fuera destituido y, en su lugar, se designase al civil José Luis Federici. En 1987, luego de que Federici destituyera a los decanos en cuestión, la Asociación de Académicos y la Federación de Estudiantes convocan a un paro indefinido en repudio a la nueva rectoría, constituyéndose éste en una de las más expresivas defensas de la universidad pública en esos años. 10 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 84 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras estructuras presupuestarias que rápidamente decrecieron11. Hoy día hemos llegado a una estructura en la que más del 60% del financiamiento de las universidades públicas y tradicionales depende de los aranceles y matrículas12. El costo económico de acceso a la educación recae en gran medida sobre las familias. Además, como consecuencia de una sociedad de clases profundamente desigual, la Educación Técnica Superior se convierte en la opción privilegiada de la población más pobre. Se fue consolidando de esta manera, la particular ecuación de que en Chile existan universidades públicas (o con espíritu público) que reciben un porcentaje muy marginal de aporte estatal, debiendo operar en un sistema de mercado para financiarse. Lo que en otros países se comprende como la diferencia entre un sistema público y otro privado de Educación Superior, en Chile pasó a ser caracterizado en una relación entre Universidades Tradicionales (con espíritu público) y Universidades Privadas o Particulares. Sin embargo, algunas universidades particulares-tradicionales, que son parte del Consejo de Rectores de las Universidades Chilenas (CRUCH13), igualmente reciben un porcentaje de aporte estatal. La década de 1980 significó también la municipalización de la Educación Pública Básica y Secundaria, generando una creciente pauperización del sistema educacional más universal. Sin duda, con esto, se fue estimulando un gran negocio en el ámbito de la educación, auspiciado y financiado en gran parte por el Estado. El sistema de ‘sostenedor con fines de lucro’ da inicio al proceso de mercantilización de la educación. La expansión de la Educación Privada es el fin de la Educación Pública Ver informe de CIPER Chile: “Recursos públicos para educación superior: La histórica diferencia de las universidades estatales”, en el siguiente link: http://ciperchile.cl/2014/11/07/ recursos-publicos-para-educacion-superior-la-historica-diferencia-de-las-universidadesestatales/. 12 Actualmente Chile se ubica en la cuarta posición entre los países del OCDE que menos aporte estatal realiza al sistema público de educación superior (un 37.5%), superado solamente por Corea, Japón y Estados Unidos. Fuente: Education at a Glance, en 2016: OECD Indicators, citado en: “Reforma a la Educación Superior: Financiamiento Actual y Proyecciones, en http://www.dipres.gob.cl/572/articles-154341_doc_pdf.pdf. 13 El Consejo de Rectores de las Universidades Chilenas (CRUCH) es un organismo colegiado que reúne a veinticinco universidades públicas y privadas, conocidas como “Universidades Tradicionales”. 11 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 85 y las nominaciones “estatal” o “tradicional” quedan sujetas a un orden simbólico cada vez más insostenible. Ya en 1989 se promulgó la Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza (LOCE), que sirvió como un mecanismo “modernizador” del sistema educacional, la cual, sin embargo, no innovó en lo más mínimo en relación a los sistemas de financiamiento. En el año 2005 el entonces Presidente de la República, Ricardo Lagos Escobar, que auspiciaba ser el más progresista de los gobiernos desde el retorno a la democracia, celebró una breve reforma a la Constitución de Augusto Pinochet. A pesar de la rimbombante primavera anunciada en sus discursos, este evento no significó un replanteamiento del modo en que se consagran los derechos sociales. Su reforma no tocó las estructuras consolidadas del mercado administrando los derechos sociales, y las preocupaciones ciudadanas más extendidas – la definición clara de la existencia de un Estado laico, el reconocimiento de los pueblos indígenas, la responsabilidad estatal ante los derechos sexuales y reproductivos y el fin del lucro en la educación – fueron claudicadas. De esta manera, es lógico entender el creciente estado de discordia e insatisfacción que se fue generando durante la primera década del presente siglo, ya que la Carta Magna que en la actualidad rige al país consolida un sistema que ha privatizado el acceso a satisfacer parte importante de las necesidades básicas del pueblo chileno. Hoy, a veintiséis años del inicio de la democracia, esta Constitución se ha ratificado tras el ejercicio de seis gobiernos democráticos, algo que nos invita a reflexionar sobre el tipo de representatividad política que prevalece en Chile. La destrucción de la Educación Pública ha ido de la mano con un proceso de transformación política y económica, convirtiendo al Estado en una estructura rentista que ha subsidiado y financiado al empresariado criollo – incluyendo a quienes se dedican al rubro de la educación – y fortaleciendo a un mercado que ha sido capaz de disputar el poder a las instituciones democráticas. En conclusión, en este período Chile se adscribe al libre mercado como un “hecho social total”. Comienza una progresiva precarización y desregulación del mercado del trabajo, teniendo como consecuencia un escenario laboral soportado por una desigualdad en la distribución de la Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 86 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras riqueza y cimentado en la competencia, la flexibilización y tercerización. Las vías de segregación que el modelo instauró en el ámbito educativo se manifiestan en la ‘libre elección’ que se otorga a los grupos familiares con más dinero, que pueden optar a escuelas privadas de mejor calidad para garantizar el acceso a las instituciones de educación superior. Por otro lado, la descentralización de la administración del nivel primario y secundario de educación, traspasó la responsabilidad que asumía el Ministerio de Educación (MINEDUC), a los municipios, quienes comenzaron a implementar, ya desde la década de 1980, un modelo de financiamiento del Estado organizado por el subsidio a la demanda. Desde hace más de tres décadas la educación primaria y secundaria de carácter “público” no logra competir con los instrumentos pedagógicos de evaluación estandarizados – inclusive los que permiten el ingreso a los sistemas universitarios, como la actual Prueba de Selección Universitaria (PSU) – siendo relegados en un porcentaje dramático de ingreso al sistema universitario tradicional14. MOVIMIENTO ESTUDIANTIL: 2006 / 2011 El movimiento estudiantil de 2011 tuvo una participación muy amplia y diversa que logró convocar a diferenciados sectores sociales y articular un intenso período de activismo generalizado. Estuvo integrado por funcionarios/as, profesores/as y estudiantes de universidades y liceos, que desplegaron e instalaron nuevas temáticas entre las cuales el feminismo tuvo un lugar central. Sin embargo, son muchas las interrogantes que todavía están por responderse, y una inquietud transversal en esta reflexión quiere ser aquella que cuestione la consolidación de una orgánica autónoma y plural que esté siendo capaz de interpelar el modelo económico y político que destruyó a la Educación Pública en Chile. El movimiento secundario que emergió en el año 2006, organizado en una asamblea permanente con representación nacional expresada El 25% de los estudiantes en las universidades tradicionales provienen de la educación pública-municipalizada. En universidades de gran prestigio académico, como la Pontificia Universidad Católica, esta cifra disminuye notoriamente, llegando a un 11,10% para el año 2015. 14 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 87 en el protagonismo alcanzado por la ACES (Asamblea Coordinadora Estudiantes Secundarios)15, junto a la Coordinadora de Estudiantes Secundarios (CONES) – las dos organizaciones de estudiantes secundarios más importantes del período – es clave para comprender las dimensiones y consecuencias que adquiriría el movimiento estudiantil en Chile. Es la misma generación que cinco años más tarde (2011) desde la Educación Superior guiará con intensidad el debate ante la necesidad de reconstruir la educación en el país. El movimiento “pingüino” por primera vez de manera significativa interpeló la estructura del modelo económico heredado del Régimen Militar y consolidado por los gobiernos democráticos posteriores. Este movimiento ganó tal dimensión, que el 30 de mayo del mismo año el estudiantado secundario logró convocar la protesta más masiva en la historia de país, uniéndose a ésta las universidades y los principales gremios en un gran Paro Nacional. Ese mismo día, representantes de todas las zonas del país movilizadas y de las escuelas ocupadas (“en toma”), se reunieron en la Biblioteca Nacional (BN) con el Ministro de Educación, Martín Zilic, buscando discutir las demandas estructurales establecidas como condición para levantar las acciones de protesta. Algunas de las medidas que exigía el movimiento conocido como “la Revolución Pingüina” en una primera etapa, al igual que el origen de todos los movimientos estudiantiles en la región, fueron demandas coyunturales16, como por ejemplo el acceso a un pase escolar gratuito y unitario, la gratuidad en la rendición de la Prueba de Selección Universitaria (PSU), el aumento de las becas alimenticias y recursos financieros para mejorar la infraestructura de las escuelas movilizadas, entre otras. En un segundo momento, los planteamientos se orientaron hacia la exigencia de cambios estructurales y políticos como derogación La Asamblea Coordinadora de Estudiantes Secundarios es una orgánica autónoma al Estado que reúne a través de asambleas abiertas al estudiantado secundario de la ciudad de Santiago, fue creada en octubre del año 2000. 16 En abril del año 2006 el gobierno anunció que el costo de la Prueba de Selección Universitaria (PSU) tendría un alza en su precio, que para ese entonces superaba los 35 dólares. Otro elemento que detonó el estallido del movimiento estudiantil fueron las medidas tomadas por la implementación de un nuevo sistema de locomoción pública, conocido como Transantiago, que limitaba el uso del pase escolar a dos veces por día en jornada de clases. 15 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 88 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras de la Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza (LOCE)17 y del decreto 524 que regulaba los Centros de Estudiantes y el fin de la municipalización de la enseñanza. El estudiantado secundario fue el primero en hablar de estatización de la educación y no solamente de la desmunicipalización – que era una de las demandas históricas de los estudiantes movilizados antes del 2006 –, pues desde la perspectiva de sus principales vocerías se hacía necesario una reforma desde la raíz. Las movilizaciones durante este año sufrieron un altísimo nivel de represión por parte de Carabineros de Chile, lo que provocó el retiro de los representantes estudiantiles de las mesas de diálogo establecidas con el gobierno. El impacto social y mediático, nacional e internacional, provocado por la violencia policial hacia estudiantes muy jóvenes, entre 12 y 17 años, llevó a la presidenta Michelle Bachelet, a tomar la decisión de remover de su cargo al Coronel Osvaldo Jara Soto, Prefecto de las Fuerzas Especiales de Carabineros. Los estudiantes exigieron una respuesta del gobierno a su petitorio, poniendo como fecha de pronunciación el día 2 de junio de 2006, pero siguieron movilizados. La presidenta respondió a través de una cadena nacional televisada, indicando que aumentaría en medio millón las becas alimenticias, sin hacer mención alguna a las exigencias estructurales. En consecuencia, la Asamblea Coordinadora Estudiantes Secundarios (ACES) votó por el rechazo a la propuesta del gobierno. Los medios de comunicación intentaron criminalizar las acciones de protesta como las tomas y marchas, que fueron relevantes medios de expresión del descontento y significativos espacios de politización. Repetidamente se mal-informaba sobre quiebres al interior de la organización, lo cual, sin embargo, no disminuyó las acciones y movilizaciones sino hasta el mes de julio. Ante la presión mediática y las amenazas de pérdida del año escolar, decidieron deponer las tomas y hacer una retirada temporal y unitaria. Las acciones se retomaron entre agosto y septiembre pero no se obtuvo La Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza (LOCE), fue una ley dictada por la Junta Militar de gobierno y promulgada por Pinochet pocos días antes del fin de la dictadura. Era una ley que se adaptada a la Constitución y en su Título 3, Artículo 19, Numeral 10 y 11 determina que la educación es responsabilidad de la familia y el Estado únicamente cumple un rol subvencionador. Así el Estado renuncia orgánicamente a su función de garante de la educación. 17 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 89 un acuerdo y el movimiento se retiró nuevamente del diálogo con el gobierno. En ese momento, la revuelta estudiantil se fragilizó tanto por la presión de diversos sectores políticos-partidarios que intentaban cooptar a los principales voceros y voceras, como también por el desgaste que traen las movilizaciones sostenidas. Sin embargo, la revolución pingüina dejó una huella contundente, y el año 2009 terminó siendo derogada la LOCE y en su lugar se promulgó la Ley General de Educación (LGE). En marzo de 2010 la derecha empresarial vuelve al poder en Chile por medio de la presidencia de Sebastián Piñera, dando continuidad y acentuando aun más el modelo de desigualdad que obligaba a la mayoría de los/as estudiantes al endeudamiento con la banca privada para acceder a la Educación Superior. El equipo de gobierno se conformó mayoritariamente por empresarios de los principales grupos económicos del país, en su mayoría Ingenieros Comerciales y profesionales graduados en la ya referida Pontificia Universidad Católica, y gran parte, con estudios de posgrado en la Universidad de Harvard. En materia educativa el gobierno anuncia una reforma que amenaza con profundizar aun más la privatización del modelo educativo. El estudiantado, desde una plataforma que esta vez incorpora en el movimiento a los estudiantes de las instituciones educativas privadas mediante un escaño de representación en la Confederación de Estudiantes de Chile (CONFECH)18, convoca a una serie de protestas para manifestar el rechazo ante la reforma promovida por el nuevo gobierno. El 12 de mayo de 2011 veintiséis mil estudiantes salieron a la calle. Fue la primera manifestación masiva que hizo visible las grandes posibilidades de esta nueva fase del movimiento. El 21 de mayo, aprovechando una de la más importantes fechas cívicas del país19, el estudiantado decide manifestarse La Confederación de Estudiantes de Chile (CONFECH) es una organización que congrega a las diversas Federaciones universitarias del país. Fue creada durante la dictadura militar, en 1984, en la ciudad de Valparaíso y es la continuación de la Unión de Federaciones Universitarias de Chile (1960). 19 Desde el año 1926 el gobierno de Chile utiliza esta fecha, donde se conmemora el Combate Naval de Iquique en el contexto de la Guerra del Pacífico (1879), para presentar ante el Congreso Pleno su cuenta anual, por medio de un discurso presidencial que pretende dar cuenta del estado administrativo y político del país. 18 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 90 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras masivamente en las calles ante la presentación de la cuenta pública del gobierno. Esto marca un punto de inflexión, ya que desde ese momento se radicaliza el movimiento y comienza la ocupación de gran parte de las sedes universitarias en todo el país. El 30 de mayo la CONFECH se reunió con el Ministro de Educación y posteriormente decidieron mantener las movilizaciones. El 1 de junio del mismo año se realizó una marcha desde la Universidad de Santiago (USACH) hasta el Ministerio de Educación (MINEDUC), convocando cerca de veinte mil personas, con la intención de manifestar el rechazo hacia el Ministro de la cartera, Joaquín Lavín, propietario de una universidad privada y miembro supernumerario del Opus Dei. La magnitud de las protestas logran el objetivo, y el polémico ministro, fue removido de su puesto. Una semana después, el 7 de junio, múltiples universidades, públicas y privadas, se sumaron a un Paro Nacional Indefinido, junto a académicos/as y funcionarios/as. El día 9 del mismo mes se suman veintiséis escuelas secundarias. El 29 de junio el MINEDUC, como estrategia para minar las ocupaciones, tomó la decisión de adelantar las vacaciones de invierno en las escuelas movilizadas; y al día siguiente, 30 de junio, se realizó la Marcha Social por la Educación que convocó cerca de doscientas mil personas. Las manifestaciones se convirtieron en espacios creativos y lúdicos, en un formato bastante disímil al de movimientos políticos anteriores, acciones que convocan al goce y obtienen una amplia y diversa participación, convocando a familias y componiendo un particular escenario de expresiones culturales aliadas a la protesta política. Esto marca un quiebre con el orden simbólico de la protesta social chilena articulada durante la dictadura en la década de los ochenta y le da forma a una nueva estética de la protesta social a nivel nacional. En este contexto se convocan diversas actividades, una de las más llamativas fue denominada “1.800 horas de corrida por la educación”, entre el 14 de junio y el 27 de agosto se hicieron postas de runing alrededor de Santiago y de La Moneda, con carteles y consignas a favor de la educación gratuita. También se realizaron caminatas desde las Regiones del país hacia la capital, marchas familiares multitudinarias y actividades muy masivas como el “Thriller”, el “Genkidama”, el “Gagazo”, los “súper héroes y heroínas por la educación”. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 91 Entre algunas de estas acciones emblemáticas se encuentra el “Domingo Familiar por la Educación” que reunió a un millón de personas el día 21 de agosto y la masiva “Marcha de los paraguas”, realizada durante un lluvioso día. La huelga de hambre llevada a cabo por estudiantes secundarios del Liceo A-31 de Buin durante 37 días y la huelga de hambre realizada en el Liceo Darío Salas durante 50 días, fueron también hitos importantes del movimiento. Piñera y su primer Ministro de Educación, Joaquín Lavín, llevaron a cabo un plan que, sin considerar al estudiantado, creó un Fondo para la Educación (FE), aumentando la cantidad de becas y disminuyendo intereses para la deuda de los créditos fiscales. Nada se establecía allí para los estudiantes secundarios ni para el profesorado. Tampoco se había tomado en cuenta la Educación Básica, profundizando, en definitiva, el sistema de créditos y endeudamiento. El mismo gobierno promovió el “G.A.N.E” (Gran Acuerdo Nacional por la Educación), sin embargo, el 15 de julio de 2011 se realizó una marcha en rechazo al plan propuesto, saliendo 150 mil personas a la calle. El 18 de julio hubo un cambio de gabinete y asume Felipe Bulnes como nuevo Ministro de Educación. A esa altura la opinión pública se expresa mayoritariamente a favor de las movilizaciones y las demandas que los estudiantes habían instalado. Las consignas de “no más lucro en la educación” y “gratuidad”, estaban asentadas como el principio aglutinador de la protesta social. El 20 de julio se realizó un “Claustro Triestamental Plenario” en el que convergieron todas las demandas realizadas en las diversas universidades, redactándose un petitorio que posteriormente fue presentado al gobierno. El día 3 de agosto el Ministro del Interior, Rodrigo Hinzpeter, solicitó una reunión con la CONFECH para pedirles que depusieran las movilizaciones. Al mismo tiempo, amenazó que no serían autorizadas las marchas y que, de ocurrir, las reprimirían. El día siguiente, no obstante, se realizó una amplia jornada de protestas y manifestaciones a lo largo de todo el país. Lamentablemente, la fuerte represión policial se hizo sentir. Impactó de tal manera a la opinión pública que la ciudadanía protestó espontáneamente con un “cacerolazo” esa misma noche contra la represión estatal. Dos días después el movimiento rechazó públicamente a través de Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 92 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras los medios de comunicación la propuesta entregada por el gobierno. El día 25 de agosto, durante las protestas en la comuna de Macul, en Santiago, fue asesinado Manuel Gutiérrez, estudiante de 14 años. Según el relato de testigos y familiares murió por un balazo de Carabineros. La institución negó su responsabilidad en una primera instancia20, sin embargo, el 12 de mayo del año 2014, los Tribunales Militares condenaron a tres años de libertad vigilada al ex sargento Miguel Millacura como responsable de haber disparado y asesinado al estudiante con una ametralladora. Esta primera sentencia, por la magnitud de su injusticia, fue revertida por una de 400 días de pena remitida por cuasi delito de homicidio por la Corte Marcial21. El mismo día del asesinato, la ciudadanía se movilizó en una multitudinaria marcha exigiendo justicia. Así como en el 2006, el movimiento estudiantil comenzó a demostrar señales profundas de desgaste. El 5 de octubre se inició una mesa de diálogo teniendo como foco central de discusión la gratuidad universitaria. La ACES, que tenía desde el principio ideas de una transformación más inmediata y radical, decidió no continuar en la mesa. Posteriormente, también acabaron restándose la CONFECH y la CONES. El 20 de octubre los estudiantes se tomaron Congreso Nacional como muestra de esta nueva ruptura con el gobierno. El movimiento del 2011 no logró cambios inmediatos, pero si agenció un camino hacia una idea de “gratuidad” en la educación que hasta el día de hoy se debate como propuesta central del segundo mandato de Michelle Bachelet – una gratuidad que comenzó a implementarse este año de manera muy gradual, y que posiblemente no responderá a los requerimientos iniciales del movimiento. Asimismo, proyectó la carrera política formal de algunos de los ex líderes del movimiento estudiantil, que actualmente ejercen como diputados y diputadas de la República: Ver:http://www.lanacion.cl/carabineros-niega-haber-dado-muerte-a-menor-en-macul/ noticias/2011-08-26/103235.html. 21 En un popular programa de TV, en marzo 2011, el Ministro del Interior, Rodrigo Hinzpeter, afirmó que “asesinar a un policía es más grave que asesinar a un ciudadano común y corriente”. Ver: http://www.elmostrador.cl/noticias/pais/2011/03/24/hinzpeter-asesinar-a-un-policiaes-mas-grave-que-asesinar-a-un-ciudadano-comun/. 20 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 93 Camila Vallejos (Partido Comunista), Giorgio Jackson (Revolución Democrática), Karol Cariola (Partido Comunista) y Gabriel Boric (Movimiento Autonomista). Cabe evaluar en el futuro, cuando terminen sus mandatos, si las dinámicas partidarias a las cuales se adscribieron fueron caminos adecuados para dar continuidad, o no, a sus trayectorias como representantes del mundo estudiantil. A MODO DE CONCLUSIÓN: DESAFÍOS PENDIENTES Boaventura de Sousa (2011) reflexiona que un nuevo movimiento social logra interpelar los modos de regulación capitalista, y a su vez, las vías de emancipación socialista establecidas desde el marxismo. Desde esa vereda cabe preguntarnos: ¿ha logrado el Movimiento Estudiantil chileno intervenir los modos de regulación del capitalismo en el país? Es una pregunta que quizás no podremos responder aquí, pues los desprendimientos posibles de este importante fenómeno de la ciudadanía, organizada a partir de los estudiantes, no ha terminado de decantar. Sin embargo, esta inquietud no debe abandonarnos a la hora de aportar al debate en esta materia. Qué duda cabe que a lo largo de estos años los estudiantes secundarios y universitarios movilizados han logrado articular un capital simbólico muy relevante para las actuales luchas sociales presentes hoy en el país y en la región. En este sentido, la protesta social no solamente se ha resignificado, también se ha vuelto masiva y convocante de diversos sectores sociales. Y aunque se configura como un atisbo algo contingencial para pensar la transformación social, en algunos casos ha sido el motor de arranque para la generación de diálogos e instancias de organización que han logrado mantenerse a través de estos años. Sin embargo, todavía no se ha establecido un gran frente común que reúna la heterogeneidad, las diferencias y contradicciones de todo colectivo, lo cual lo visualizamos como un punto crítico a ser consignado. Creemos que sin la dinamización del movimiento, la tarea de irrumpir contra una estructura neoliberal tan bien hilvanada se torna quimérica, ya sea en el ámbito educativo, como en todos los otros espacios que convocan hacia una exigencia por el respeto a los derechos sociales. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 94 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras Aquí cabe mencionar, por lo tanto, una breve reflexión sobre dos dimensiones socioculturales que han sido mal comprendidas e/o invisibilizadas en esta coyuntura de plausibles transformaciones: la de género y la étnica. Sin duda, este movimiento estudiantil ha contribuido en forma importante a mirar desde otra perspectiva ciertos valores de género que históricamente se han manifestado en la historia de las revueltas sociales en la región. La participación de mujeres en las vocerías y dirigencias ha destacado de forma relevante desde la “revolución pingüina” hasta el presente. Podríamos decir, incluso, que muy probablemente estemos en presencia de un grado representación inédito del protagonismo femenino en la historia de los movimientos sociales en Chile y estudiantiles en la región. Si bien históricamente las mujeres siempre han sido centrales en la participación estudiantil, su presencia se ha visto fragilizada en los espacios con mayor visibilidad y poder político. Esto es un gran avance. Sin embargo, también esta experiencia nos hace encender una alerta. Que el ejercicio político estudiantil sea un territorio que se feminice, no indica necesariamente la incorporación de una mirada feminista hacia el movimiento estudiantil, ni menos hacia la sociedad como un todo. Si bien el movimiento ha incorporado reivindicaciones en materia de género – como la demanda de una educación no sexista y ha procurado en casi todas sus instancias tener una lucha paritaria en la participación de sus vías de representación, esto no necesariamente ha trasuntado en una mirada que logre desarticular, por ejemplo, las estructuras patriarcales ya sea en la proyección de una sociedad que vea en las mujeres una valoración igualitaria en el ejercicio efectivo de la política (en el plano de las dirigentes estudiantiles mujeres, por ejemplo), o bien, que cuestione efectivamente las desigualdades en los roles de género que se encuentran fuertemente impregnadas en las estructuras universitarias y académicas en general. Confiamos sin embargo en el fortalecimiento creativo de aquellas experiencias y discusiones feministas que emanaron de – y en – estas movilizaciones, para la obtención de nuevas orgánicas políticas que logren intervenir el pensamiento y la acción política. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 La mercantilización de la educación... 95 Un segundo punto a consignar se refiere al tipo de heterogeneidad que ha proyectado el movimiento estudiantil relativo al debate interétnico. De una forma un tanto anacrónica y encandilada, las organizaciones políticas del estudiantado en ningún momento lograron consagrar entre sus demandas centrales y articuladoras la exigencia de que el Estado se reconozca como un estado pluricultural y plurinacional. Parece ser que el vanguardismo multicultural de países como Ecuador o Bolivia ha quedado muy alejado de la realidad chilena, incluso para sus pensadores más progresistas, toda vez que en las propuestas de transformación desde una sociedad neoliberal, individualista y tecnócrata hacia una más plural y solidaria, hemos dejado de escuchar a los pueblos que, impregnados por una historia de marginación histórica, han luchado consecuentemente por prevalecer desde su distintividad cultural, promoviendo así la plausibilidad de otros modelos de sociedad. Si bien en 2011 la Federación Mapuche de Estudiantes tuvo participación efectiva en las asambleas y aportó valiosamente a diversificar las demandas, éstas no lograron diseminarse como un interés estructural del movimiento22. Desde nuestra perspectiva, este es uno de los grandes puntos de fuga. No considerar la ruptura con un tipo de educación pública monocultural es extremadamente limitante a la hora de hacer efectiva cualquier tipo proyección curricular en los nuevos estándares esperados por el movimiento estudiantil. Este ámbito, desconsiderado por la sociedad chilena en general, sin duda se verá profundizado por la creciente cosmopolitización vivida en los últimos años como resultado de las dinámicas migratorias. Estos límites que percibimos al interior del propio movimiento son una ramificación de la misma experiencia de elitización de la Educación Superior, de ese distanciamiento tan drástico que las universidades tienen con la realidad social y con el contexto sociocultural y político de Chile y América Latina. La pretendida educación pública y gratuita no puede darse el mínimo espacio para fomentar un tipo de formación que siga operando bajo Cabe destacar aquí la participación de Natividad Llanquileo quien en su calidad de vocera de los comuneros mapuche en huelga de hambre, criminalizados por luchar por la recuperación de sus territorios, argumentó a favor del movimiento estudiantil, indicando las cercanías sensibles con las proyecciones del movimiento mapuche. 22 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 77-98, fev./dez. 2016 96 Mía Dragnic García e Raúl Ortiz-Contreras prácticas racializadas, intolerantes y excluyentes. El “fin al lucro” logró ser el lema aglomerante instalado por los estudiantes el estudiantado y difundido con gran acuerdo y aprobación hacia el resto de la sociedad. Su concreción como política pública quizás sea el comienzo de una interpelación al modelo económico y político que pueda canalizar otras transformaciones igualmente importantes tendientes hacia la adquisición plena de los derechos sociales. Sin embargo, lograr la gratuidad en la educación no es necesariamente una condición para la proliferación de un sentido público de la misma. La desigualdad de clase y las dificultades de acceso a las universidades tradicionales de mayor prestigio para las poblaciones menos acomodadas, sigue siendo un gran escollo para la comprensión del sistema educativo como un vehículo integrador en y para la sociedad. El camino es más largo, complejo y diversificado; pero seguirá requiriendo del movimiento estudiantil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO, C. PIB per cápita de Chile (PPP) llega a US$23.563 en 2015, pero a 2020 se aleja de desarrollados. Pulso – Pasión por los negocios. Santiago. p. 4D, 07 oct. 2015. DE SOUSA SANTOS, Boaventura. 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Elaborada por mestres em formação durante o período da greve, a resenha é elaborada como um diálogo-debate e redigida colaborativamente em um estilo ensaístico, e reflete em sua forma a elaboração de um espaço onde as normas acadêmicas de produção do conhecimento científico puderam ser colocadas em perspectiva. Esperamos, com o texto que segue, provocar reflexões nos/as leitores/as atinentes aos próprios valores e convicções que tem governado nossas concepções acerca do humano e dos mundos que queremos. PALAVRAS-CHAVE: greve, teatro, liberdade, humano, universidade, rinocerontes, crítica cultural. “Cotas sim, cortes não. Contra o golpe e pela educação. Por moradia, ampliação e transparência”. Esse é o mote que levou grande parte dos/ as alunos/as, funcionários/as e professores/as da Universidade Estadual de Campinas a entrarem em greve no ano de 2016. As insatisfações são Mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS-IFCH da UNICAMP. E-mail: eros.sester@ gmail.com 2 Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS-IFCH da UNICAMP. E-mail: saraantunes13@gmail.com 1 100 Eros Sester e Sara Vieira Antunes inúmeras e não são de agora. Mas, diante do cenário político e econômico do país dos últimos três anos, essas insatisfações ganharam novas e graves proporções. O aparente projeto político de desmonte da educação pública de qualidade levou secundaristas a ocuparem escolas por todo o estado de São Paulo, ecoando e trazendo à superfície problemas estruturais em todo o país no que diz respeito ao repasse de verba às escolas, salários dos professores/as, merendas, condições materiais e recursos básicos para a sala de aula. A universidade pública, como espaço de produção de conhecimento acadêmico, tem sido vitimada pela crise política e econômica, sobretudo nas áreas em que o retorno financeiro é modesto e não imediato. Para além disso, a dificuldade de acesso de segmentos desfavorecidos nestas universidades alerta a necessidade de problematizar esse sistema de seleção e buscar condições não apenas para a sua inserção, mas para a sua manutenção durante o período de estudo. O descompasso entre a qualidade de formação oferecida pelo ensino público fundamental e o grau de exigência para a entrada nas universidades públicas demonstra serem estes espaços privilegiados para aqueles/as que possuem condições de pagar por um ensino privado e cursinhos preparatórios. O próprio formato que possibilita a entrada de pessoas na universidade coloca restrições estruturais que promovem uma clara seleção de classe, bem como não disponibiliza condições materiais necessárias para a manutenção dessas pessoas na universidade. Dessa forma, o debate sobre cotas na universidade e pela permanência desses/as alunos/as tornou-se um dos motes centrais da greve do ano passado. Discussões sobre cotas sociais e raciais, pela ampliação e reforma da moradia estudantil e pela transparência nos gastos da universidade estavam alinhadas como temas centrais que balizaram a greve estudantil, todos intimamente ligados. Ao reivindicar transparência no que diz respeito aos gastos da universidade abre-se precedentes para discutir medidas concretas para possibilitar não apenas o acesso, mas a manutenção de alunos/as que historicamente estiveram apartados desses espaços. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 Sobre a greve, liberdade e rinocerontes 101 Foi dentro deste cenário de discussões que os/as aluno/as de pósgraduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) aderiram à greve, somando-se aos/às funcionários/as e também professores/ as. A disciplina de Gênero e Sexualidade ministrada pelas professoras Isadora Lins França e Carolina Branco, depois de um encontro onde foram discutidos os encaminhamentos no contexto da greve, converteuse em um espaço de encontro para discutir questões mais amplas sobre o contexto político do país e sobre as demandas da greve. Optamos por fazer encontros abertos quinzenais, dentro da programação da greve, focando em questões concernentes aos temas de gênero e sexualidade dentro dessa conjuntura. Esse expediente permitiu com que o grupo se fortalecesse em termos de intimidade e proximidade, favorecendo um ambiente acolhedor para a construção coletiva de um novo projeto a partir da disciplina, amparado por trocas, relatos e reflexões contínuas. Sem saber exatamente o rumo que tomaríamos, iniciamos com tempestades de ideias e incômodos que inquietavam a todos/as, semanalmente estarrecidos pelos acontecimentos políticos, sobretudo no período de forte campanha pró-impeachment e com a entrada do governo Temer. Nesse turbilhão de ideias, decidimos por produzir textos e vídeos que pudessem ser facilmente veiculados nas mídias sociais, de forma a difundir e “viralizar” as reflexões produzidas coletivamente. Entre esses encontros fui assistir a uma peça de teatro em São Paulo com alguns/umas amigos/as desse grupo. A peça, chamada “Canto para Rinocerontes e Homens”, apesar de ser inspirada na peça “O Rinoceronte” de Eugène Ionesco, que tratava de questões relacionadas à alienação nas sociedades modernas (cujo mais temido epíteto seria o totalitarismo nazista), encontrava (não surpreendentemente) enorme ressonância com muitas das questões e problemáticas vividas no contexto político atual do país, que nos inquietavam3. Bastante envolvida e entusiasmada com a peça, senti o impulso de compartilhar e transmitir aos/às colegas do grupo Recomendamos fortemente a audiência presencial. Contudo, há uma filmagem do espetáculo disponibilizada desde o fim do ano retrasado na rede. Cf. https://vimeo.com/149689924. 3 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 102 Eros Sester e Sara Vieira Antunes formado a partir da disciplina o que havia experienciado com a mesma. No encontro subsequente, debatíamos a necessidade de escrever mais livremente sobre as questões relativas à greve e ao cenário político que vivíamos, sem engessarmos tanto nossos dedos em amarras acadêmicas. Voluntariei-me a escrever algo a respeito da peça que havia assistido, ainda bastante receosa com a possibilidade de falar sobre algo fora da moldura segura e previsível das convenções acadêmicas. A experiência de escrita foi libertadora. Sem preocupar-me com referências, demasiados cuidados históricos e com o receio de colocações pessoais e de engajamento político, respirei. Pela primeira vez em tempos me senti apropriada, engajada, entusiasmada em de fato colocar o que penso, sinto e pulso diante de cóleras há tempos reprimidas. Usei esses sentimentos de raiva, indignação, inconformidade e despejei-os no texto. Misturei minhas percepções sobre a peça com latências pessoais que se encontravam e embaralhavam-se, resultando em um texto bastante passional. No encontro com o grupo, no dia seguinte, conversamos bastante e decidimos por compartilhar os textos que havíamos produzido. Li em voz alta a todos/as e senti mais uma vez o alívio e oxigenação de ter condições e incentivo para aquele tipo de escrita. Animados com as manifestações compartilhadas, decidimos, portanto, um próximo encontro onde iríamos filmar as falas de cada um a respeito do golpe contra o governo Dilma, fora algumas produções paralelas sobre questões adjacentes. Ao invés de levar adiante aquele texto, uma leitura bastante pessoal e particular da peça, ainda que respaldada em muitas das questões políticas discutidas, decidi unir esforços junto a um grande amigo e colega de turma, Eros, para compartilharmos conjuntamente as impressões sobre os efeitos da greve e também da peça nas nossas escritas e reflexões. Como toda obra de arte, tivemos diferentes leituras da mesma peça, informada por nossas subjetividades, históricos pessoais, inquietações particulares. Contudo, vislumbrávamos um problema comum que a ambos alarmava: a notória semelhança de representações da peça em relação a fenômenos decorrentes de governos ditatoriais e o contexto político brasileiro atual. A leitura das condições sociais e políticas de embrutecimento e retrocessos Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 103 Sobre a greve, liberdade e rinocerontes em relação a direitos sociais fundamentais fazia-nos ver sementes brotando de mais uma possível sociedade formada por rinocerontes. Ao refletir sobre o atual contexto político, o que víamos? Perda de inúmeros direitos arduamente conquistados por minorias sociais; precarização ainda mais pungente da educação pública do país; índices exorbitantes de encarceramento; fortalecimentos de bancadas evangélicas e reacionárias nas cadeiras dos altos cargos da cúpula do Estado. Para além disso, a evidente e escandalosa manipulação das grandes mídias para não apenas criar um inimigo público – “a corrupção” – e travesti-la de camisas vermelhas com uma grande estrela no meio, como, mais uma vez, forjar a ideia de uma “união patriótica” pelas cores verde e amarela em favor de um recorte social bem específico – branco, classe média/alta e heterossexual. Essa mescla de indignação e temor diante do cenário que se nos apresenta emergiu diante dos nossos olhos por meio da performance singular de cada atriz e ator durante a peça “Canto para Rinocerontes e Homens”. Motivados e comovidos por ela, trazemos aqui algumas reflexões, partindo das nossas diferentes – ainda que complementares – percepções acerca das possíveis representações do que poderia ser entendido como tornar-se rinoceronte. Passo a palavra, na próxima seção, para Eros. “RINOCERONTES DE NÓS MESMOS/AS”, EROS Senti que devia levar a maior quantidade de afins para compartilhar da inquietude que o espetáculo havia suscitado em mim. Insisti tanto, tanto, que até Sara, que mora em Campinas, acabou vindo para São Paulo só para assistir à peça. Pouco tempo depois ela me apresentou um texto que havia produzido sobre a mesma. Iniciou-se aí um debate sobre que leituras eram possíveis e rentáveis a partir da experiência. Como nossa querela se flagrasse frutífera, Sara me convidou para, no curso das atividades propostas no âmbito da greve, compor junto este texto em que ora fazemos uma resenha livre, traçando também uma linha entre as questões que nos mobilizaram e as evocadas no expediente da greve. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 104 Eros Sester e Sara Vieira Antunes Optamos, aqui, por costurar nossas leituras na forma de um debate onde nossas vozes, não se fundindo completamente, agregassem em uma aposta pelo diálogo. Como resposta à significativa demanda do público, o espaço cênico Galpão do Folias articulou a extensão da temporada da peça “Canto para Rinocerontes e Homens” para mais um fim de semana, início de junho de 2016. Encenada por uma turma recém-egressa da Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo, o Teatro do Osso, dirigido por Rogério Tarifa, notabilizou-se na cena paulistana por uma adaptação de um clássico da dramaturgia do século XX chamado “O Rinoceronte”, de Eugène Ionesco. Alinhada à estética modelar do teatro do absurdo, a peça, que tematiza o processo de alienação de massas em sociedades modernas, faz, na leitura do Teatro do Osso, alegoria à convulsão social que resultou na hegemonização do pensamento nazista alemão durante o III Reich. Bérenger é o sobrevivente de uma epidemia que terminou por transformar todas as pessoas em rinocerontes, e a peça narra como se dá esse processo. A leitura que culminou na montagem de “Canto para Rinocerontes e Homens” trabalha com a sugestão de que existe um substrato comum entre a alegoria original e a evocada pela montagem em si. Nesse sentido, o processo colaborativo foi ao mesmo tempo preciso e ferino ao desvelar uma série de chagas sociais deflagradas pelo recrudescimento de certas frentes ideológicas e coletivos organizados no rastro dos motins de 2013. Assim, o argumento que reúne tanto a perplexidade frente ao sonho pangermanista quanto o nosso conhecido crescente descrédito em relação aos direitos humanos e à pluralidade de visões de mundo, é a construção de um inimigo público, chancelada por uma retórica moralmente informada por princípios que considero fascistas. Contudo, se a construção desse inimigo público outrora resultava em efeitos de bipolarização (cujo exemplo gritante é a tragédia nazista), ela se torna muito mais delicada e complexa na conjuntura atual. Um jovem negro, proveniente de um bairro de periferia, comete um pequeno furto no centro da cidade, onde agride uma mulher. Capturado pela polícia militar, ele pode ter sido morto pela mesma. Um jovem rinoceronte, Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 Sobre a greve, liberdade e rinocerontes 105 solto pela cidade, comete um furto, chifra uma mulher. Enjaulado, é assassinado por outros rinocerontes. Quem, afinal de contas, o matou? Ele mesmo? A polícia? A mulher? É essa a perplexidade que se nos acerca: a generalização do devir-rinoceronte. Para além da espetacularização das relações sociais e do esvaziamento das massas, banalizamos aquilo que é o caldo turvo do caos urbano: a brutalização. De quem é o corpo que se desmonta e remonta? A quem pertence? À magazine ou a mim? O que é esse animal chamado sucesso? Essa dor de cabeça que dói, dói, dói pra caralho, é vertigem do trabalho ou um chifre que irrompe sem pedir permissão? (Senão a vertiginosa escala de trabalho dos/as professores/as de escolas públicas, e as grades disciplinares e suas jaulas). E esse sangue vertido, é o corpo esquartejado da travesti, ou o desejo refreado de ser quem não se pode ser? Estocada ou hemorragia? Self-made man, apelo obcecado ao autoconhecimento, discursos intolerantes, esquizofrenia, miséria, prostituição, homo-lesbo-transbi-fobia, sucateamento do ensino, loucura, ocupações e reintegrações, escolas insurgentes e bombas de gás lacrimogêneo, racismo, luta pela sobrevivência, extinção, padrões de beleza, sexismo, crimes de ódio, tecnologias de assujeitamento, espetáculo, enxaqueca, perseguição, censura, polícia militar, classismo, operariado e desigualdade social… Sem nos darmos conta, envoltos pelo espetáculo e pelo caos urbano, acabamos nos tornando rinocerontes de nós mesmos/as. Vista de cima, a cidade é, como na peça, uma arena onde é possível identificar a evolução da epidemia, isto é, o recrudescimento dos discursos intolerantes, e a batalha diária da massa esmagada de rinocerontes urbanos. Por ironia, a extinção dos rinocerontes brancos, cujos algozes são os homens, serve de contrapelo à narrativa. Como um remanescente espécime nativo, Bérenger, por razões a interpretar, olha ao redor e enxerga com perplexidade e resignação o que restou de um mundo onde, antes de rinocerontes, os humanos eram mais humanos. O custo pelo não-contágio, enfim, é a solidão: a lucidez em um mundo onde ela definitivamente não é um valor. Um mundo que pleiteia, aliás, a volta das formas totalitárias de poder, que clama pela produção de antagonismos e reivindica o assujeitamento Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 106 Eros Sester e Sara Vieira Antunes e a purificação social, criando pânicos morais e forjando párias a partir de crises letais que ele mesmo criou, só pode estar padecendo de uma patologia crônica. A missão aí então é parar tudo isso, antes que seja tarde, e só restem ruínas e bestas à deriva. Sara e eu pudemos atestar, ao assistir a peça, aquilo que consideramos ser um valor central dentro da produção artística que admiramos e defendemos: a capacidade de mobilizar para além do trivial. A arte-paraalém-da-savana-social. Damos prosseguimento ao debate, agora com as contribuições trazidas por ela, a partir de sua leitura da peça. “A BRUTALIZAÇÃO RINOCERONTES”, SARA DO ‘OUTRO’: FABRICANDO A minha leitura da peça esteve invariavelmente informada pelo trabalho de campo que tenho realizado há cerca de um dois anos e meio em penitenciárias femininas. O contato com o contexto prisional trouxe à tona realidades antes consideradas mera ficção, pois desconsiderava haver ainda hoje, tão próximo (e ao mesmo tempo tão distante) condições tão absolutamente desumanas e brutais. A proteção vivida pelo meu contexto de criação e formação como mulher branca de classe média me apartava de realidades que via com estranhamento em uma distância segura através das cores e formas desenhadas na televisão. Mas já sentia um incômodo. Incômodo esse que não sabia definir, nem encontrar sua origem, mas permeava meus interesses e buscas pessoais. Com a entrada na universidade o incômodo cresceu, passou a ganhar sentidos e crítica. Começou com o reconhecimento do lugar privilegiado de fala e percepção do qual partia. Ainda assim, entendia que isso não poderia me paralisar. Então, seria no papel e na militância que poderia encontrar vazão e sentido a essas sensações que me atravessavam e me impeliam a fazer algo a respeito. Na peça, apesar de entender o contexto mais amplo de um corpo social embrutecido que transformava todos em rinocerontes, via também a fabricação acusativa que identificava somente no “outro” a transformação, outorgando a si mesmo o lugar de pessoa, de cidadã/o, civilizada/o. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 Sobre a greve, liberdade e rinocerontes 107 O bruto, o animalizado, o abjeto estaria sempre distante, como fonte de medo e recusa de uma imagem possivelmente espelhada. Esse bruto, esse rinoceronte, quando toma as ruas, incomoda, assusta, causa confusão e violência. Uma calamidade! É perigoso, deve ser detido, as autoridades devem se atentar! Para isso, “cidadãos de bem” se revoltam, tomam as ruas, reivindicam “o seu direito” de não serem incomodados por esses seres vis. Batem panela, vestem verde e amarelo, saem de suas casas confortáveis para tomar as ruas – antes nunca ocupadas – para livrá-las de vez desses animais imundos que estão querendo acabar com a paz “de todos”. Detentores da força moral lutam raivosos contra todos aqueles que defendem a subsistência ultrajante desses rinocerontes. Estes devem permanecer enjaulados. Nas suas jaulas, nas suas celas, nas suas gaiolas, podem ser vistos de longe, sem incomodar. Podem até transitar de uma cadeia a outra de bonde, em camburões fechados onde mal se pode respirar, quanto menos serem vistos. Podem ficar nos barracos das favelas lá longe, nas periferias da cidade aonde nem o metrô chega, onde o ônibus leva horas para chegar. Lá, lá longe, eles não incomodam. Não incomodam sentados e quietos nas salas de aula desestruturadas e abandonas do estado, fechadas por grades e muros altos. Grades, celas, jaulas, gaiolas. Comportados e disciplinados, vão “no máximo” agredir alguns professores, abandonar a escola no ensino médio para trabalhar, para traficar, para roubar. Mas lá longe, naquelas quebradas que ninguém sabe o nome. O problema é quando saem das jaulas. Longe dos zoológicos são amedrontadores. Tomam as ruas, invadem, dormem nas calçadas, roubam, furtam, assaltam, vivem importunando “cidadãos de bem” que só querem sair dos seus trabalhos e ir para casa. Matam “pais de família”, “inocentes” por dinheiro, por ganância. O que querem eles? Roupas de marca, ostentação? São realmente muito fúteis. Para que tudo isso? Com dois carros na garagem, trocados a cada dois anos, roupas compradas no shopping, escolas particulares, médicos particulares e formação superior, morrem de medo desses seres fúteis e tão apegados ao dinheiro. São bandidos. Ladrões. Escória da sociedade. Tem que sofrer na prisão! Devem pagar pelos seus atos, devolver “para a sociedade” o que Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 108 Eros Sester e Sara Vieira Antunes dela tiraram. Na realidade, “bandido bom é bandido morto”. A prisão, nesse sentido, cumpre bem o seu papel. Máquina de tortura e assassina dá continuidade ao trabalho bem sucedido da polícia militar contra seu maior alvo e inimigo: aqueles mesmos pretos e pobres que eram escravizados e brutalizados alguns séculos atrás. Esses rinocerontes… Ah, esses rinocerontes! Têm de entender o seu lugar! O medo se confunde com o ódio e com a vontade de destruir aqueles que ameaçam a ordem moral estabelecida: “Homens de bem” que querem preservar a “tradicional família brasileira”, “núcleo fundacional da ordem e da disciplina de um país”. Questionar essa ordem torna-se uma ameaça concreta e assertiva na destruição dessa base fundacional e na previsão em curto prazo de absoluto caos social. “Ideologia de gênero”, direitos e proteção à população LGBT, legalização do aborto, delegacias da mulher, meros caprichos de uma minoria que quer destruir a família tradicional brasileira! Aberrantes, promíscuos, lascivos, imorais, não são recomendados à sociedade. Rinocerontes, não são dignos de compaixão. Precisam ser eliminados do coração da sociedade. Essas “vidas precárias”, como coloca Judith Butler (2006), não são dignas de luto. São vidas esquecíveis, vidas que não merecem ou não precisam ser lembradas. Aparecem (quando aparecem) como números (em contínuo crescimento), nos dados da Organização Mundial da Saúde e em pequenos excertos de jornais. Não ganham as matérias de destaque, não aparecem no Jornal Nacional, pois isso tomaria tempo, tempo demais, haveria demasiadas mortes para se falar. Como diria Agamben, essas “vidas nuas” (2004) são vidas de corpos matáveis, e justamente por serem matáveis, não importam, não pesam, não precisam ser enlutadas. Nas palavras de Butler, ‘‘essas populações são “perdíveis”, ou podem ser sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas. São consideradas como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias. (...) Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 109 Sobre a greve, liberdade e rinocerontes A perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos “vivos” (BUTLER, 2015:53)’’ Para os “vivos” é necessária proteção e cuidado de suas valiosas e preciosas vidas. Na desordem e baderna do cenário político atual, não existe mais “a mão de ferro” necessária para guiar e trazer disciplina, ordem e segurança a essas vidas. Estão todos corrompidos. A saída seria o (ainda maior!!) enrijecimento das forças militares para trazer lei e ordem a força, goela abaixo. Que volte a ditadura militar, que seja feita a “revolução militar”, por Deus, pela família, pelo meu cachorro, minha avó, minha vizinha, meus amigos do futebol, pelo meu periquito José... Como fora muito bem citado durante a peça, Hannah Arendt já dizia que “o espaço público é o espaço que preserva a ação do esquecimento”. A peça “Canto para Rinocerontes e Homens” chama a atenção para algo realmente alarmante: estamos gradualmente ignorando a história, aquilo que veio antes de nós e o que nos tornou o que somos hoje. O espaço público, as vozes de representantes públicos da população (elegida democraticamente por ela), estão (só podem estar!) perdendo a memória. Cegos (como rinocerontes), surdos e esquecidos, as pessoas têm perdido o espaço público como lócus primordial para o diálogo, para ver, ouvir, ser visto e ouvido por outros. Por não ocupar os mesmos espaços, não se veem, não se escutam, não praticam a simples alteridade e empatia inerente ao (re)conhecimento mútuo de iguais. O “outro”, esse fantasma distante e assustador que não conheço, que só conheço de longe, que tenho um ou outro “exemplar” na família, um parente distante, um colega de turma, aqueles dois amigos do trabalho ou do futebol. Aqueles poucos do meu convívio que, quando sou acusado de preconceito, posso logo revidar e dizer com orgulho: “tenho um amigo assim”. Durante a peça, fizeram exibições de trechos de vídeos com falas de alguns pensadores. Em uma delas, José Saramago se questiona se nos tornamos todos nós, por fim, cegos. “Cegos da razão, cegos da sensibilidade, de tudo aquilo que nos faz ser razoavelmente funcionais no sentido da doação humana. Mostramo-nos, em realidade, seres Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 110 Eros Sester e Sara Vieira Antunes egoístas, seres violentos. E o espetáculo que o mundo nos oferece mostra exatamente isso: um mundo de desigualdades, de sofrimento, sem justificação”. O escritor sugere que apenas hoje, na era audiovisual, estamos realmente vivendo na caverna de Platão. Olhamos para fora (por meio de uma tela de computador, televisão ou celular) e vemos a sombra do mundo, e acreditamos que isso é a realidade. Essas imagens, de alguma maneira, substituem a realidade. Tornam-se a própria realidade. “Estamos infelizmente a repetir a situação das pessoas que estão atadas, aprisionadas na caverna de Platão, olhando em frente, vendo sombras e acreditando que essas sombras são a realidade”. “TUDO O QUE O DIABO ESQUECEU NO INFERNO É O COMUNISMO”, SARA E EROS Em uma reportagem audiovisual veiculada no fim do ano retrasado durante uma manifestação pró-impeachment, algumas pessoas apareciam sendo entrevistadas. Em uma das falas, que consideramos emblemática, o “comunismo”, bem como a pluralidade de pensamentos ditos de esquerda que aparecem reduzidas a esse guarda-chuva enigmático, era definido como “tudo o que o diabo esqueceu no inferno”4: uma leitura sintomática de um tempo em que antagonismos se condensam, e o fazer político em todos os seus meandros e poréns se vê atordoado pelo acirramento de disputas entre agendas. O espetáculo “Canto para Rinocerontes e Homens” toca porque escancara um conjunto desses pontos de estrangulamento da política e das convenções de humanidade/ bestialidade, evocando o perigo do espetáculo, a construção epidêmica e expiatória de um “outro” e a perplexidade de uma realidade onde, tão supostamente humanos, subitamente nos descobrimos rinocerontes. Apesar de termos delineado nossas leituras em diferentes seções, este texto foi escrito de forma colaborativa, e não se presta à construção de uma crítica da peça propriamente dita, mas parte das nossas experiências “Cunha é só boi de piranha. Quem manda é o Lula”, tv Carta (da Carta Capital), publicado no YouTube em 20 de outubro de 2015. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=VLrqZC3H3DQ. 4 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 111 Sobre a greve, liberdade e rinocerontes como espectador e espectadora para a elaboração de um conjunto de reflexões que buscamos partilhar. O contexto da greve, como espaço de discussão, reflexão e produção compartilhada de ferramentas de luta em papel, caneta e câmera, mostrou-se fundamental (em condições ímpares) para a produção deste texto. A oportunidade de criar e promover uma escrita crítica, ao mesmo tempo pessoal e passional, normalmente está restrita a blogs e conversas informais, espaços de troca livre de pensamentos. O grupo de trabalho formado a partir da disciplina de gênero e sexualidade forjou um lugar de acolhimento, dando condições para exercermos nossa liberdade para falar, trocar, produzir e escrever. Inclusive, sobre rinocerontes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violência. Buenos Aires: Paidós, 2006. ________. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 99-112, fev./dez. 2016 A (IN)CONSTÂNCIA DO PROVISÓRIO: 20 DIAS DE GOVERNO INTERINO NA MÍDIA Elizabete Pellegrini Garcia1 (Equipe de pesquisa MOvE)2 Lídia Torres3 Lorena Aragão, Maiane Fortes Ribeiro e Marina Sousa4 Maiara Dourado5 Nashieli Rangel Loera6 RESUMO: No dia 12 de maio de 2016, o Brasil acordou com a ressaca da iminência da concretização do afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, a partir da abertura de um processo de impeachment, que em poucos dias se materializou como um golpe de Estado parlamentar-judicial em processo. O presidente interino Michel Temer deu início, Mestranda em Ciência Política pelo PPGCP-Unicamp. E-mail: lizpelgar@gmail.com O grupo de pesquisa MOvE (movimentos, ocupações e Estado) está sediado no Centro de Estudos Rurais (CERES) da Unicamp. Teve início em maio de 2010, como parte do Projeto de Pesquisa Jovem Pesquisador “As Formas de Acampamento”, financiado pela FAPESP. O grupo mantém reuniões semanais de discussão, nas quais são debatidos textos, projetos, resultados de trabalho de campo sobre a temática de acampamentos sem terra, indígenas, mobilizações ou outras formas de produção de demandas sociais coletivas e de direitos e benefícios ao Estado. O grupo é formado por discentes da graduação em Ciências Sociais, pós-graduandos (mestrandos e doutorandos) da Unicamp e pesquisadores colaboradores de outras universidades, sob a coordenação da Profa. Dra. Nashieli Rangel Loera. 3 Graduanda em Ciências Sociais pela Unicamp. E-mail: lidia.mrtorres@gmail.com 4 Mestrandas em Antropologia Social pelo PPGAS-Unicamp. E-mail: aragao.lorena@gmail. com, maianefortesr@gmail.com, marina.antrorr@gmail.com 5 Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS-Unicamp. E-mail: dourado.maiara@gmail. com 6 Professora do Departamento de Antropologia da Unicamp e diretora adjunta do Centro de Estudos Rurais (CERES) da Unicamp. E-mail: nloera@unicamp.br 1 2 114 Elizabete Pellegrini Garcia at el. logo na primeira semana do seu mandato, ao desmonte das políticas sociais conquistadas principalmente desde a Constituição de 1988, ao longo de quase 30 anos do curto período democrático brasileiro. Na intenção de contribuir com a agenda de pesquisa acerca das consequências do golpe em curso no país, este artigo apresenta algumas análises iniciais de um levantamento de notícias publicadas na mídia online no mês de maio de 2016, a respeito das primeiras medidas do governo, então, interino de Michel Temer. Em especial, buscamos analisar como diferentes veículos de comunicação virtual divulgaram as primeiras ações deste governo. PALAVRAS-CHAVE: Impeachment; Governo Interino; Mídia; Notícias; Retrocessos sociais. INTRODUÇÃO No dia 12 de maio de 2016, o Brasil acordou com a ressaca da iminência da concretização do afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, a partir da abertura de um processo de impeachment, que em poucos dias se materializou como um golpe de Estado parlamentar-judicial em processo. O presidente interino Michel Temer deu início, logo na primeira semana do seu mandato “provisório”, ao desmonte das políticas sociais conquistadas principalmente desde a Constituição de 1988, ao longo de quase 30 anos do curto período democrático brasileiro. Dentre as perdas estão os retrocessos em matéria de recursos para programas sociais tais como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida - Entidades; sem contar o corte de recursos destinados à educação, ao desenvolvimento das populações do campo e da agricultura familiar e a produção de alimentos, e a sinalização da privatização dos serviços de saúde, da educação e de matérias primas e recursos naturais em todo o território nacional, tais como territórios e espaços de vida de populações indígenas, camponesas e outras populações vulneráveis, colocando desta maneira em xeque a possibilidade de vida plena e reprodução social e material de milhões de brasileiros e brasileiras. Por outro lado, desde o primeiro dia do mandato interino temos assistido com perplexidade também as demissões em massa de profissionais, técnicos especializados, assessores e delegados nos Estados, Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 115 como consequência do desmonte do Ministério da Cultura (MinC), do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, da Juventude e Direitos Humanos, dentre outros. Desta maneira, o que inicialmente desenhava-se antes do dia 12 de maio como um projeto provisório, a partir deste dia ganhou substância, consistência e, principalmente, constância. Vale mencionar que este último termo adquire força neste contexto, uma vez que, como tentaremos mostrar a partir de nosso esboço de análise em relação às notícias veiculadas nas diversas mídias, não teve um só dia em que Michel Temer e seu governo interino não nos lembrasse que sua inconstância tem efeitos que estão longe de serem provisórios, efêmeros, transitórios, e sim constantes: “uma qualidade daquele que não falta a uma tarefa, dever, repetição de uma ação, frequência, permanência, persistência”7. Neste contexto, a mídia nacional e internacional, tanto no processo de impeachment como nos seus desdobramentos, tem tido papel central seja como formadora de opinião, seja em alguns casos como incentivadora da reviravolta política e do atual contexto de desmonte do Estado social. Preocupadas e consternadas com a afronta ao projeto democrático no Brasil e com estas perdas sociais em tão curto tempo, milhares de pessoas saíram às ruas, ou realizaram as mais variadas manifestações para protestar e externar seu desacordo. Neste cenário, assistimos aos mais criativos e variados protestos, como foram os dos músicos e artistas em diversas capitais do país e inclusive mundo afora, tal como o protesto silencioso da equipe do filme Aquarius8 em Cannes que fez tremendo barulho ao denunciar o golpe de Estado, colocando o Brasil nas principais manchetes de diversos jornais no estrangeiro; ou a marcha das mulheres que através de cirandas levantaram a bandeira contra a “cultura do estupro”. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 812. Aquarius. Direção: Kleber Mendonça Filho. Produção: Emilie Lesclaux, Said Ben Said, Michel Merkt.: CinemaScópio, SBS Productions, VideoFilmes, Globo Filmes. Brasil, França, 2016. (147 min.). 7 8 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 116 Elizabete Pellegrini Garcia at el. A equipe de pesquisa MOvE, atenta a estes processos, decidiu realizar como proposta de atividade permanente, no contexto da greve de 2016 dos docentes, funcionários e estudantes da Unicamp, um levantamento de notícias publicadas na mídia sobre os diversos acontecimentos acima relatados: perda de direitos e conquistas sociais, mudanças e políticas de governo e protestos sociais a partir do primeiro dia do governo interino de Michel Temer. Nosso objetivo neste texto é bastante modesto, pois se limita a esboçar algumas linhas de raciocínio bastante gerais das informações que circulam, e descrever os resultados deste levantamento referente ao mês de maio de 2016. As informações foram levantadas nos seguintes jornais e sites de notícias que consideramos representativos e de fácil acesso para a população brasileira: a) Grande mídia internacional: The New York Times, The Economist, BBC, Le Monde e El País; b) Grande mídia nacional: Folha de São Paulo e O Globo; c) Mídia oficial: Diário Oficial da União, Agência Senado e Superior Tribunal Federal; d) Mídia alternativa: Mídia Ninja e Brasil de Fato. Inicialmente, foram definidas quais mídias seriam monitoradas dentro do levantamento. O primeiro ponto que consideramos foi que as fontes deveriam ser online, de maneira que a coleta pudesse ser feita rapidamente. Os dados sobre as notícias têm sido registrados em uma planilha que reúne os seguintes dados acerca de cada notícia: data de coleta, data de publicação da notícia, título da notícia, nome da fonte, endereço eletrônico, descrição da notícia e sua classificação por tema. Buscamos filtrar os dados desde o momento da coleta, por meio da elaboração de categorias amplas que facilitam identificar os temas e os principais tópicos contidos em cada notícia: a) Protestos: nesta categoria, estão as notícias que abordam manifestações de rua, ocupações, manifestações virtuais, cartas, manifestações e demais protestos, a favor ou contra o governo interino ou quaisquer atos a ele relacionados; b) Medidas de governo: nesta categoria, encontram-se as notícias que abordam alterações de ministérios, secretarias, cargos ou Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 117 funções; criminalização de protestos ou de movimentos sociais; medidas orçamentárias relacionadas a cortes, novos gastos, impostos, metas econômicas ou ajustes fiscais; nomeações de pessoas investigadas ou condenadas por quaisquer crimes; parcerias público-privado, concessões, privatizações e Plano Nacional de Desestatização; reforma trabalhista; reforma previdenciária; ausência de representatividade e diversidade; revisão de políticas sociais nas áreas da educação, habitação e moradia, indígenas e populações tradicionais, transferência de renda e saúde; c) Análise de conjuntura: entram nesta categoria as notícias que visam explicar de maneira mais geral o panorama político, econômico ou social do atual contexto brasileiro e das ações do governo interino. A partir desta categorização inicial, a equipe de pesquisa MOvE pretende construir um banco de dados9 com notícias publicadas pelas mídias pesquisadas durante os 180 dias do governo interino de Michel Temer. Contudo, para o presente artigo, analisamos apenas as notícias publicadas durante os primeiros 20 dias do governo interino, ou seja, de 12 a 31 de maio de 2016. Coletamos um total de 549 notícias relativas a este período, sendo que 155 notícias foram categorizadas como “Protestos”, 284 como “Medidas de governo” e 110 como “Análise de conjuntura”. Elaboramos abaixo um gráfico com porcentagens sobre as notícias por categoria. Apesar de partilharem o interesse comum pelo enfoque das Ciências Sociais, as participantes do MOvE possuem formação diversa (Administração, Antropologia, Direito, Ciência Política e Jornalismo) e temáticas de pesquisa variadas, o que trouxe vantagens no trabalho de construção de um banco de dados. 9 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 118 Elizabete Pellegrini Garcia at el. Outros grupos e coletivos já divulgaram algumas iniciativas semelhantes sobre perda de direitos e retrocessos nas políticas sociais que se concretizaram desde a posse do presidente interino Michel Temer.10 O levantamento da equipe de pesquisa MOvE busca, portanto, contribuir com esta agenda de pesquisa acerca das consequências do golpe em curso no país, especialmente no que se refere à forma em que a mídia tem divulgado as ações do governo interino. Alguns exemplos neste sentido: Alerta social. Qual direito você perdeu hoje? Disponível em: http://alertasocial.com.br; INTINI, João Marcelo. 40 dias de TEMERidades no Rural Brasileiro. Disponível em: http://www.mst.org.br/2016/07/04/40-dias-de-temeridadesno-rural-brasileiro.html; MobilizaIE – Estudantes em greve do Instituto de Economia da Unicamp. As consequências sociais e econômicas do Sr. Temer. Disponível em: https://drive. google.com/file/d/0B_PfUBl3I_yeYW56SF9WN2JxTDQ/view; Monitor do debate político no meio digital. Disponível em: https://www.facebook.com/monitordodebatepolitico. Todos as páginas eletrônicas foram acessadas em 12 jul. 2016. 10 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 119 20 DIAS DE TEMER NA IMPRENSA INTERNACIONAL A periodicidade das notícias em jornais e mídia estrangeira acerca de um determinado país e o foco dado às informações é delimitado na maioria das vezes por conjunturas que se materializam em eventos e situações específicas: conflito armado, ocupantes de cadeiras importantes na ONU, países que sediam eventos mundiais, acordos econômicos e políticos. Neste cenário, o Brasil ocupa uma posição de destaque por ser líder econômico na América Latina e integrar o bloco econômico que, juntamente com Rússia, Índia, China e África do Sul, compõe o denominado BRICS. Entretanto, nos últimos meses o que vem chamando a atenção da mídia internacional é a crise política que toma conta do país. Com a votação pelo afastamento de Dilma Rousseff da presidência do Brasil e a instalação do governo interino presidido por Michel Temer, no mês de maio de 2016, medidas de governo, protestos e análises econômicas e sociais foram os principais temas nas manchetes de jornais internacionais, seja dentro de sessões de “política” ou “mundo”, ou, no caso de jornais como El País e Le Monde, em colunas especiais dedicadas especificamente ao Brasil. Não podemos esquecer que, conforme relatou recentemente Maurício Savarese11 do Associated Press, os olhos de jornalistas estrangeiros e da mídia internacional estão no Brasil principalmente porque o país será a sede do maior evento esportivo do mundo, os Jogos Olímpicos. Portanto, o caráter da periodicidade neste tipo de mídia relaciona-se com acontecimentos que extrapolam acontecimentos e as repercussões locais. O mote de diversas notícias publicadas na imprensa internacional é a construção de um panorama que seja capaz de explicar satisfatoriamente o processo jurídico-político de afastamento de um presidente numa democracia tão recente como a brasileira. No total, contabilizamos 43 notícias, somente no mês de maio, em cinco fontes internacionais: El País, Le Monde, BBC, The Economist e The New York Times. Informação fornecida em palestra durante o evento “A mídia e a crise política no Brasil”, atividade de greve organizada pela Associação de Docentes da Unicamp - Adunicamp, em Campinas, em 9 de junho de 2016. 11 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 120 Elizabete Pellegrini Garcia at el. No dia 11 de maio, dia em que se votava o afastamento de Rousseff, um artigo publicado no El País sob o título “El fantasma de 1964” comparava o que haveria de comum entre o impeachment de Rousseff e processos políticos acontecidos em outros países, como o caso Watergate de Nixon, nos Estados Unidos, em 1974. Para surpresa do leitor estrangeiro (mas não de muitos brasileiros e brasileiras), a situação mais próxima anunciada no texto de David Alandete é a do próprio Brasil, durante o golpe de 1964. Es descorazonador y negativo para la imagen de Brasil ver cómo una ola de indignación callejera ha dado legitimidad a una iniciativa puramente política. Es, hablando llanamente, una operación liderada por legisladores mucho más sospechosos de corrupción que Rousseff. Un dato: más de la mitad de parlamentarios de Brasil tiene problemas con la justicia, con acusaciones de delitos como secuestro, agresión o robo. Todo esto, aderezado de una verdadera crueldad. No hay palabra que describa mejor el voto que Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 121 el congresista conservador Jair Bolsonaro depositó hace un mes a favor de la recusación de Rousseff. Se lo dedicó al coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsable durante la dictadura de incontables actos de tortura, entre ellos la de la propia presidenta. Su hijo y también congresista, Eduardo Bolsonaro, votó en homenaje a “los militares del 64.12 El País foi o jornal que mais gastou tinta falando das medidas econômicas e mudanças políticas adotadas pelo governo interino de Michel Temer. Em outro artigo publicado em 13 de maio, assinado pelo jornalista Antonio Jiménez Barca, se enfatiza que o governo interino não demorou nem um dia para advertir os brasileiros da implementação de “duras medidas” que implicariam em ajuste fiscal, impostos, menos gastos públicos e o emagrecimento do Estado.13 Outras notícias de destaque no El País, claramente uma mídia de posição mais progressista, foram as mudanças realizadas por Temer nos Ministérios, avaliadas como uma desconexão com a realidade da sociedade brasileira e como uma afronta aos direitos das mulheres e o combate à corrupção. Le Monde, menos crítico do que El País em relação ao processo de impeachment e às mudanças de rumo na economia brasileira, dedicou várias das suas matérias à análise dos impactos de curto prazo, das medidas tomadas para tranquilizar o mercado, da manutenção de programas sociais e do recuo social e civilizacional, com destaque para uma análise mais minuciosa feita em um formato especial do jornal chamado de “Compte rendues”. Tanto El País como Le Monde deram grande destaque aos protestos e manifestações contra as medidas tomadas pelo governo interino. Mais da metade do total de notícias tiveram como foco formas em que a população brasileira mostrou seu descontentamento: o dia-a-dia de ocupações de ALANDETE, David. El fantasma de 1964. Disponível em: http://internacional.elpais.com/ internacional/2016/05/11/actualidad/1462993497_235422.html. Acesso em 10 jun. 2016. 13 BARCA, Antonio Jiménez. El Gobierno de Temer anuncia duras medidas de recorte de gasto público. Disponível em: http://internacional.elpais.com/internacional/2016/05/13/ actualidad/1463163737_636961.html?rel=mas. Acesso em: 10 jun. 2016. 12 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 122 Elizabete Pellegrini Garcia at el. escolas no Rio de Janeiro, o panelaço durante a primeira aparição pública de Michel Temer em rede nacional de TV, os protestos de artistas e músicos com o desmonte do Ministério da Cultura e - o que mais fez barulho - o protesto silencioso realizado em Cannes pela equipe de atores e diretor do filme brasileiro Aquarius. Le Monde foi o único jornal nas fontes por nós levantadas a dar destaque na sua coluna internacional, em notícia publicada em 27 de maio14, ao protesto realizado em redes sociais por milhares de mulheres contra a reportagem tendenciosa e conservadora “Bela, recatada e do lar”, da revista Veja, acerca da primeira dama “provisória” Marcela Temer. No concernente aos jornais de língua inglesa, as notícias de destaque têm como foco principal a análise da conjuntura política e seus impactos no plano econômico, notícias nas quais a retomada da história recente do país se torna fundamental para entender o processo político atual. Para isso, analisa-se o contexto histórico do partido que, eleito democraticamente, liderou a maior nação latino americana por 13 anos. O fato do recente regime democrático (1985- dias atuais) após um longo período de ditadura militar estar sofrendo o segundo processo de impeachment é também considerado nesta conjuntura. A BBC traça em suas notícias de maio uma retrospectiva da atuação política de Temer em governos anteriores e a participação do seu partido (PMDB) no Executivo15. Diferente das mídias nacionais, as redações dos veículos de informação internacionais costumam retratar panoramas gerais, menos detalhados, utilizando-se de vocabulário e personagens que sejam palatáveis ao repertório dos leitores de língua estrangeira (língua inglesa, francesa e espanhola, por exemplo), buscando alcançar os habitantes de diversos países. A título de exemplo, uma reportagem direcionada ao leitor brasileiro não precisaria da trajetória detalhada de certos políticos que se GATINOIS, Claire. Au Brésil : Marcela, la femme du président Michel Temer, fait le buzz. Disponível em: http://www.lemonde.fr/international/article/2016/05/27/ au-bresil-marcela-la-femme-du-president-michel-temer-fait-le-buzz_4927491_3210. html#prjbMzMMblr8dOzA.99. Acesso em 10 de junho de 2016. 15 GALLAS, Daniel. Michel Temer: the man who now lead Brazil. Disponível em: http://www. bbc.com/news/world-latin-america-36070366. Acesso em 14 de junho de 2016. 14 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 123 destacam no cenário nacional, pois estes leitores têm acesso diferenciado a estas informações. Em contrapartida, em uma notícia16 do The New York Times que comparava o Congresso brasileiro a um circo na votação do processo de afastamento da presidenta Dilma na Câmara, o jornal precisou traduzir o nome do deputado federal Tiririca (PR/SP) como Grumpy (que significa “facilmente irritável”, em português) e explicar que ele participou de vários programas humorísticos na televisão aberta brasileira. É desta maneira que, na mídia estrangeira, presidentes, ministros, análises de conjuntura e o cenário econômico brasileiro ganham destaque. No campo das análises de conjuntura, uma mesma notícia trata de diversos aspectos no espaço de um mesmo texto, dando ênfase para análises gerais, quadros explicativos que tratam do processo jurídico de um impeachment no Brasil, gráficos com dados da economia, slides de fotos e vídeo-reportagens. O governo interino tem sido considerado uma promessa no que diz respeito às medidas orçamentárias que buscam minimizar os danos da crise econômica. As matérias publicadas principalmente no The Economist e BBC apresentam um tom de otimismo em relação às medidas tomadas pelo governo interino e apostam para melhorias no cenário econômico. O jornal The Economist, em especial, aponta Michel Temer como um homem de muitas qualidades, capaz de uma gestão competente e equilibrada, diferentemente de Dilma Rousseff. Entretanto, tanto BBC, como New York Times e The Economist, indicam que os cortes realizados no intuito de diminuir os gastos públicos virão dos investimentos feitos na área da saúde, educação, políticas de distribuição de renda, previdência e habitação. Ainda no campo de análises e medidas do governo interino, a BBC destaca as escolhas do corpo ministerial, composto por 23 homens brancos, chamando a atenção para uma escolha que não reflete a diversidade da população brasileira e exclui as mulheres17. O baixo número JACOBS, Andrew. Brazil’s Graft-prone Congress: a circus that even has a clown. Disponível em: http://www.nytimes.com/2016/05/15/world/americas/brazils-most-entertaining-showmay-be-congress.html?rref=collection%2Ftimestopic%2FBrazil . Acesso em 14 de junho de 2016. 17 SALEK, Silvia. How Rousseff has highlighted Brazil’s sexism problem. Disponível em: 16 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 124 Elizabete Pellegrini Garcia at el. de mulheres na política brasileira e os ataques midiáticos que a presidenta afastada sofreu ao ser retratada como uma mulher histérica em capas de revista também foram retratados. A campanha “Tchau, querida” levantada contra a presidenta e utilizada em faixas no dia da votação na Câmara dos Deputados é mencionada pela mídia internacional como exemplo que revela o problema da representatividade feminina na política. The Economist costuma se opor ao governo Dilma em suas publicações e aposta em Michel Temer como a grande esperança de recuperação da crise econômica, ao passo que questiona a legitimidade do processo do impeachment e critica os argumentos dos deputados federais ao justificarem seus votos. Já o The New York Times destaca o envolvimento de dois terços dos deputados federais em casos de corrupção, faz críticas à gestão de Dilma Rousseff, aponta Eduardo Cunha como o criminoso envolvido com corrupção como força propulsora do processo de impeachment e questiona se há, de fato, crime de responsabilidade fiscal da presidenta, além de explicitar o processo como golpe parlamentar. Por fim, a BBC, em matéria18 que tratava do vazamento do áudio de Romero Jucá, mostra a reação da imprensa brasileira e aponta falas que apontam o impeachment como tentativa de barrar as investigações da Lava Jato, mostra as reações das pessoas em redes sociais com as postagens de “Fora Temer” e destaca o drama político brasileiro. Por fim, de maneira geral, através do levantamento realizado, foi possível observar a maneira que a mídia internacional vem questionando as bases jurídicas do processo de impeachment e a integridade moral dos parlamentares que o vêm conduzindo, indicando como ameaças à democracia brasileira. TEMER NA FOLHA A Folha de São Paulo apresenta-se como um dos principais veículos jornalísticos do país. O fluxo e o volume de informações produzidos, http://www.bbc.com/news/world-latin-america-36303001 . Acesso em 14 de junho de 2016. 18 GALLAS, Daniel. Brazilian press reacts to latest leaked tape scandal. Disponível em: http:// www.bbc.com/news/world-latin-america-36370799 . Acesso em 14 de junho de 2016. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 125 diariamente – um número que varia de 300 a 400 matérias por dia, dentre colunas, notícias, reportagens e artigos de opinião disponibilizados em seu site - demonstram uma importante marca produtiva e sinalizam considerável alcance nacional, o que nos permite chamar atenção para sua atuação na produção de narrativas sobre eventos e processos políticos representativos no país. Nesse sentido, a partir da análise da cobertura realizada pelo jornal Folha de São Paulo sobre o atual momento político econômico nacional, nos propomos descrever e refletir sobre a produção de notícias nas primeiras semanas do governo provisório de Michel Temer. Destaca-se que, nesse período, alguns episódios e temas específicos se tornaram recorrentes e foram, insistentemente, enfatizados pelo veículo. Como exemplo, temos a superação de uma crise financeira; o vazamento de áudios que revelaram o envolvimento de ministros de seu governo em ações que sugeririam um “pacto” para deter as investigações da Operação Lava Jato; protestos contra o fechamento do Ministério da Cultura (MInC) e ocupações em órgãos e instituições ligadas à pasta, como Funarte, museus, entre outros; e ainda a política externa brasileira. No levantamento de notícias realizado pela equipe de pesquisa do MOvE foram coletadas 339 matérias do jornal Folha de São Paulo. Destas, 208 foram identificadas com temas referentes às medidas do governo interino, as quais apresentavam, sobretudo, uma forte preocupação com os planos econômicos de Temer. O gráfico a seguir indica o total de notícias da Folha de São Paulo de acordo com as categorias de classificação que utilizamos. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 126 Elizabete Pellegrini Garcia at el. Já nos primeiros dias de governo, foram noticiadas medidas consideradas polêmicas por movimentos sociais organizados e pela opinião pública, como a proposta de reforma previdenciária, na qual se prevê a alteração da idade mínima para aposentadoria e o aumento de tempo de contribuição, e a intenção de cortes de despesas públicas, que sinaliza futuros encaminhamentos no Congresso, como uma possível desvinculação constitucional de gastos públicos com educação e saúde. Entre os dias 20 e 21, a Folha intensifica a divulgação do anúncio do novo cálculo de déficit primário, ampliado de 96,7 bilhões de reais previsto pelo governo Dilma para 170,5 bilhões apresentado pela equipe de Temer. Tal anúncio antecedeu um outro, subsequente, ocorrido no dia 23, no qual o governo divulgou medidas econômicas para o aumento da arrecadação e redução de despesas e cortes de gastos, a fim de reduzir o “rombo” de 170,5 bilhões dos cofres públicos. Ainda no dia 23, o jornal divulgou o encaminhamento da proposta do governo Temer de meta fiscal para o Congresso Nacional. Coincidentemente, no mesmo dia, a Folha revelou gravações de diálogos entre Romero Jucá, então Ministro do Planejamento de Temer, e Sérgio Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 127 Machado, ex-presidente da Transpetro, “pactuando” estratégias para travar as investigações da Operação Lava Jato. Das 28 notícias levantadas no dia 23 de maio, metade fazia referência ao vazamento do áudio, que veio a caracterizar a primeira crise do governo interino que levou à renúncia de Romero Jucá como Ministro do Planejamento. A meta fiscal, citada pela Folha em um volume considerável de notícias, foi aprovada dia 25 de maio – dois dias depois de divulgado o diálogo entre Jucá e Machado – e foi classificada pelo jornal como a “primeira vitória” de Temer. Em meio a “primeira crise” do governo interino, sua “primeira vitória”. Vale ressaltar, também, a repercussão nacional aos fechamentos e fusões de alguns ministérios. Além disto, a mobilização de artistas e produtores culturais em uma série de protestos e ocupações contra o fim do MinC pautaram intensamente a cobertura jornalística da Folha. Foram levantadas 78 notícias sobre protestos no jornal Folha de São Paulo, que faziam referência às ocupações em órgãos ou entidades ligadas ao MinC. Tal repercussão e pressão popular levou a reabertura do Ministério também enfocada pelo jornal. Quanto à política externa do país, o foco de notícias da Folha qualifica positivamente a nomeação de José Serra para o Ministério das Relações Exteriores, enfatizando o novo enfoque da política externa ao sinalizar interesses de estreitamento de laços com Europa e Estados Unidos e afastamento dos países da América Latina, com exceção da Argentina, presidida pelo liberal Maurício Macri. Em uma breve análise sobre as notícias publicizadas pela Folha de São Paulo torna-se perceptível uma perspectiva de harmonização e superação da crise, que foca em questões relacionadas ao governo interino e em medidas políticas institucionalizadas pela equipe de Temer, sobretudo no que se refere ao âmbito econômico. Tal enfoque pode ser compreendido como reflexo da política editorial do jornal, que evidencia, no contraste do espaço reduzido disponibilizado às notícias referentes aos protestos e mobilizações populares que tendem a reagir contra as políticas instauradas pelo governo de Temer ou que se posicionam positivamente ao governo de Dilma Rousseff - em relação ao grande espaço reservado às políticas de Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 128 Elizabete Pellegrini Garcia at el. superação de crise desenvolvidas pelo governo. As narrativas produzidas pelo jornal sinalizam para superação de uma crise e apontam, de forma positiva, para uma temporalidade específica: um futuro, que se configura como parte de uma espécie de uma narrativa de salvação. Por outro lado, as mídias alternativas - a qual discutiremos com maior atenção no próximo tópico - vem na contramão, numa tentativa de expor e evidenciar as fragilidades e (in) consistências de um governo provisório que media um processo de mudança no país, que vem sinalizar retrocessos - por meio dos dados até agora coletados nesta pesquisa - no que diz respeito a perdas de direitos sociais, conquistados historicamente, por lutas de povos, comunidades e movimentos sociais do Brasil. DE NINJAS E FATOS NO GOVERNO TEMER: MÍDIA ALTERNATIVA A mídia alternativa tem desenvolvido um papel importante como divulgadora de notícias, ao apostar em análises que dão protagonismo aqueles que dificilmente possuem centralidade na grande mídia, e na lógica colaborativa, em que diferentes pessoas podem produzir notícias. Muitas vezes compartilhando o conteúdo em tempo real na internet, as matérias parecem ser uma via para quem busca ter sua própria interpretação dos fatos. No Brasil de Fato, dentre o que classificamos por protestos, medidas de governo e análise de conjuntura, foram veiculadas cerca de 72 notícias. A maioria delas noticiando os protestos contra o governo interino e discorrendo em tom crítico sobre as medidas de governo adotadas pelo presidente interino. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 129 Entre os dias 23 a 25 de maio houve uma grande circulação de notícias sobre a nova meta fiscal e as possíveis perdas de investimentos sociais que ela traria, além da repercussão do vazamento do áudio de Romero Jucá em que ele afirma que uma “mudança” no governo federal resultaria em um pacto para “estancar a sangria” desencadeada pela Lava Jato. Foram noticiados não só artigos que associavam os áudios à confirmação de que o impeachment se trataria de um golpe em curso no país, mas também notícias de outras fontes que se manifestaram em relação ao golpe após o vazamento do áudio, tanto na mídia nacional quanto na internacional, como foi o caso do jornalista norte-americano Glenn Greenwald que publicou em seu site uma matéria em que dizia que “as transcrições estão cheias de declarações fortemente incriminadoras sobre os reais objetivos do impeachment e quem está por trás dele”19. A Mídia Ninja tem como principal fonte de divulgação de notícias o Facebook, porém, para o levantamento de notícias relativas ao mês de GREENWALD, Glenn. Mídia terá que começar a dizer que é um golpe. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/05/24/glenn-greenwald-midia-tera-que-comecar-adizer-que-e-um-golpe/. Acesso em: 17 jun. 2016. 19 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 130 Elizabete Pellegrini Garcia at el. maio, foram analisadas apenas as notícias veiculadas em seu site oficial. Mesmo que o Facebook seja o veículo principal de circulação de notícias, já que a aposta da mídia é ser uma plataforma colaborativa de informação em movimento, a imensa maioria das matérias do site também noticiavam atividades de protesto, como apresentações artísticas que aconteceram dentro de algumas ocupações, e os protestos que aconteceram em diversas partes do país, não só em grandes centros urbanos ou capitais, mas também em diversas cidades, periferias e até mesmo as manifestações que aconteceram nas redes sociais, como os “vomitaços” feitos por internautas em páginas do PSDB e PMDB. No site da Mídia Ninja, os dias de maior publicação e circulação de notícias foram os dias 22 e 23 de maio. Porém, ao contrário do Brasil de Fato, as notícias que receberam destaque foram as manifestações em torno da casa de Michel Temer, localizada em um bairro nobre da cidade de São Paulo, e a consecutiva repressão da Polícia Militar aos atos. Outro destaque foram as manifestações “Fora Temer” nos diversos shows da Virada Cultural paulistana. Encontramos notícias nas quais apenas o título era diferente nas duas mídias analisadas, sendo todo o resto da matéria idêntica. Isso chama atenção para o fato de que a produção das notícias nesses veículos de informação, conforme explicou Rafael Vilela, jornalista da Mídia Ninja20, se faz de maneira colaborativa, isto é, jornalistas de diversas regiões do Brasil tem liberdade para enviarem suas matérias a mais de um jornal, além de criarem matérias em parcerias21. As matérias se utilizam de uma linguagem informal com expressões corriqueiras. Assim, a compreensão do conteúdo parece ser mais acessível à população e a públicos variados. Além disso, as matérias não costumam ser tão extensas. Em alguns casos, aparece apenas o título, uma descrição breve e logo abaixo vídeos de Informação fornecida em palestra durante o evento “A mídia e a crise política no Brasil”, atividade de greve organizada pela Associação de Docentes da Unicamp - Adunicamp, em Campinas, em 9 de junho de 2016. 21 Vide exemplo: SAMPAIO, Cristiane. Militantes “abraçam” prédio do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário. Disponível em Mídia Ninja (https://ninja.oximity.com/ article/Militantes-abra%C3%A7am-pr%C3%A9dio-do-1) e no Brasil de Fato (https:// www.brasildefato.com.br/2016/05/13/militantes-abracam-predio-do-extinto-ministerio-dodesenvolvimento-agrario/). Ambas as páginas foram acessadas em 17 jun. 2016. 20 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 131 manifestações ou de pessoas de renome analisando a conjuntura atual. É perceptível a posição política em relação às pautas que foram divulgadas: a palavra “golpe” foi usada na maioria das notícias, bem como “governo golpista” e “retrocesso político” ao se referirem à conjuntura política atual. De maneira geral, ambas as mídias se colocaram criticamente em relação às ações do governo interino e noticiaram repercussões negativas em relação ao mesmo. Ambas deram destaque aos protestos, sejam eles de rua, ocupações ou manifestos de grupos que dificilmente conseguiriam destaque na mídia convencional, como comunidades quilombolas, indígenas e LGBTTs. As análises de conjuntura deixaram explícitas uma preocupação a respeito das perdas de direitos sociais dessas comunidades e de outros grupos que fazem parte da parcela da população mais marginalizada. A exoneração do ex-presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que tinha mandato até maio de 2020, também foi uma pauta bastante noticiada e criticada por essas mídias, que entendem que essa medida prejudicará a democratização da mídia de maneira geral pois segue a linha de ação do governo interino de perdas de direitos sociais e autonomia para que qualquer cidadão possa se tornar um “cidadão multimídia”. NA MEDIDA CERTA? DE PARLAMENTARES, SENADORES E OUTRAS TEMERIDADES Vários questionamentos se somam quando partimos da coleta e da categorização dos assuntos surgidos nas notícias desses vinte dias de governo interino. Dos questionamentos mais significantes, nos perguntamos, primeiramente, qual o papel da mídia institucional (nesse caso, a Agência Senado, que é a seção de notícias do Senado Federal) na formação e informação dos cidadãos? Seria esse veículo midiático uma fonte transparente de informação, sem vieses partidários? Já sobre o conteúdo das notícias, tomando como base o noticiamento de Medidas Provisórias (MP), Propostas de Emenda à Constituição (PEC) e Projetos de Leis (PL), dentre outras intervenções à Constituição de 1988, nos perguntamos a respeito dos principais caminhos seguidos pelo governo Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 132 Elizabete Pellegrini Garcia at el. interino de Michel Temer, sobre o que os partidos de situação e os de oposição no Senado têm para nos esclarecer sobre esse momento tão sombrio da política brasileira. Foram coletadas 39 notícias entre os dias 12 e 31 de maio. Dessas, enquadramos as notícias dentro de duas categorias classificatórias: medidas de governo e análise de conjuntura.22 O início do governo interino de Michel Temer é marcado por notícias que versam, primordialmente, sobre o crescimento da economia, sejam por meio de uma “facilitação” ou “desburocratização” nos diferentes setores da máquina pública, tal como as concessões públicas federais, conforme abordado na notícia “Temer cria por medida provisória programa para destravar concessões”23. Por meio da MP nº 727/2016, o presidente interino criou o Programa de Parcerias e Investimento (PPI), um instrumento que visa tornar mais ágeis as concessões públicas federais, com o objetivo de eliminar os “entraves burocráticos e excesso de interferências do Estado que atrapalham as concessões”. Em conjunto com a MP nº 727/2016, Michel Temer lançou a MP nº 726/2016, que foi amplamente noticiada, pois tratou da remodelação da Presidência da República e dos ministérios. Estas Medidas Provisórias foram as duas primeiras medidas do governo interino. Elas possuem caráter de lei, possuindo vigência por até 60 dias e podendo ser prorrogadas por mais 60 dias. Da mesma forma encontrada nas MPs citadas, nos deparamos com o mesmo artifício de diminuir a atuação do Estado nos usos e manejos do Como citado na parte metodológica deste texto, foram pensados três tipos de categorias de notícias: “medidas de governo”, “análise de conjuntura” e “protestos”. No entanto, como o site de notícias do Senado Federal é uma mídia oficial, não localizamos notícias que discorressem sobre protestos. Desta maneira, especificamente para esta mídia, classificamos como “medidas de governo” as notícias que englobam os planos de ação votados dentro do Senado, e como “análise de conjuntura” aquelas que tratam de apreciações dos senadores sobre a política nacional ou sobre algum assunto específico. Assim, foram coletadas 31 notícias que se enquadram na categoria “medidas de governo” e 8 em “análise de conjuntura”. 23 AGÊNCIA SENADO. Temer cria por medida provisória programa para destravar concessões. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/13/ temer-cria-por-medida-provisoria-programa-para-destravar-concessoes. Acesso em: 26 jun. 2016. 22 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 133 território brasileiro, neste caso específico, nos trâmites de licenciamento ambiental. A proposta da PEC nº 65/2012, atualmente em votação no Senado dentro da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, não somente elimina alguns estágios do processo de licenciamento ambiental, como também relega aos estágios restantes a atuação mista entre entes público e privado, diminuindo a atuação e poder de decisão das instituições governamentais. Partindo das análises iniciais, podemos perceber que as primeiras ações do governo Temer foram voltadas para o incremento da economia nacional, por vias de uma menor atuação do Estado brasileiro no que concerne à facilitação, por via legal, dos processos de entrada de capital privado na economia do país. Podemos inferir, na verdade, que essa entrada de capital privado reverbera não somente no investimento de capital financeiro na economia brasileira, mas nos indica que essa abertura a outros investidores pode trazer uma série de remodelações na forma de fazer política (e porque não dizer na própria Constituição) que beneficiam estas corporações, uma vez que, quando se investe, se pede o retorno desse investimento. Em um segundo momento, as notícias coletadas na Agência Senado tratam de alguns temas que aqui merecem destaque. Um desses temas diz respeito à instabilidade interna entre os partidos políticos de situação e oposição dentro do próprio Senado, como exemplificam as seguintes manchetes: “Jorge Viana diz que ministério montado por Temer é ‘o que há de pior’”24, “Telmário Mota anuncia ‘oposição crítica’ ao governo Temer”25, e “José Medeiros elogia equipe econômica de Temer e volta a descartar tese de golpe”26. Nelas, há um claro teor antagônico entre AGÊNCIA SENADO. Jorge Viana diz que o ministério montado por Temer é “o que há de pior”. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/16/jorgeviana-diz-que-o-ministerio-montado-por-temer-e-o-que-ha-de-pior. Acesso em: 26 jun. 2016. 25 AGÊNCIA SENADO. Telmário Mota anuncia ‘oposição crítica’ ao governo Temer. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/16/telmario-motaanuncia-oposicao-critica-ao-governo-temer. Acesso em: 26 jun. 2016. 26 AGÊNCIA SENADO. José Medeiros elogia equipe econômica de Temer e volta a descartar tese de golpe. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/27/ jose-medeiros-elogia-equipe-economica-de-temer-e-volta-a-descartar-tese-de-golpe.Acesso 24 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 134 Elizabete Pellegrini Garcia at el. a opinião dos senadores, o que ilustra a instabilidade e a incerteza das alianças firmadas antes do afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Desta forma, o que se mostra perceptível, ao analisar as notícias, é a produção de uma polaridade instrumentalizada entre aqueles que foram a favor do impeachment e aqueles que foram contra. Certamente, não estamos dizendo que essa polarização nunca existiu, mas percebemos que ela está mais nítida e evidente nos discursos dos senadores. Um bom exemplo para indicar essa polarização pode ser percebido nos seguintes trechos proferidos pelos parlamentares José Medeiros (PSD-MT)26 e Jorge Viana (PT-AC)24: Neste momento o Brasil precisar ir para frente, nem para a direita, nem para a esquerda. O governo está trabalhando para o país ter um novo horizonte, uma nova saída. Torço pela equipe econômica porque isso é ajudar o Brasil. (José Medeiros, PSD-MT) Se estão tirando a presidente Dilma por conta das alianças que foram feitas, dos erros que foram cometidos, eu não sei. Certamente, o remédio não é esse. Hoje, vejo empoderado nesse governo interino o fisiologismo, o que há de pior na política brasileira. O que há de pior. Este país não aguenta um governo como esse que o senhor Michel Temer montou. Não aguenta. (Jorge Viana, PT-AC). Outro tema que surge tangencia a situação fiscal e previdenciária. A notícia “Plenário deve analisar PEC que trata da desvinculação de receitas”27, que trata da desvinculação obrigatória, de até 25% da arrecadação de tributos da União, dos Estados e dos Municípios, com saúde e educação, também teve efeitos diferenciados entre os parlamentares. Caso essa emenda seja aprovada, os rendimentos dos impostos recolhidos pela União, Estados e Municípios poderão ser administrados livremente pelos em: 26 jun. 2016. 27 AGÊNCIA SENADO. Plenário deve analisar PEC que trata da desvinculação de receitas. Disponível em :http://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2016/05/plenario-deveanalisar-pec-que-trata-da-desvinculacao-de-receitas. Acesso em 05 de julho de 2016. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 135 gestores, sem a obrigatoriedade de investimento de até 25% na educação e saúde. Atualmente, esses rendimentos são repassados automaticamente. No que concerne à situação fiscal, foi bastante debatido no Senado a proposta de meta fiscal 2016 com um déficit de R$170,5 bilhões, o que significa, segundo a matéria28, que o Brasil terá o terceiro ano sem reservas para o pagamento dos juros da dívida. O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff voltou ao debate29 após o vazamento do áudio de Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, levando alguns senadores a questionarem a validade do processo de impeachment, tanto pela constatação da ausência de “pedaladas fiscais”, como pela revelação de que a Operação Lava Jato seria contida após afastamento da presidenta Dilma, demonstrando o caráter seletivo e oportunista desta operação. De todas as notícias acima descritas e brevemente analisadas, as de maior número (levando em consideração uma única temática) foram aquelas veiculadas no dia 31 de maio, que possuem como porta voz o presidente do Senado, Renan Calheiros. Nessas notícias, com as manchetes “Renan Calheiros defende liberdade de expressão e independência entre Poderes”30 e “Renan defende liberdade de expressão”31 o presidente do Senado reitera, em seu discurso, o compromisso com a liberdade de expressão e a independência dos três poderes. Segundo esta análise, AGÊNCIA SENADO. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/ materias/2016/05/27/sancionada-a-nova-meta-fiscal-de-2016-com-deficit-de-r-170-5bilhoes. Acesso em 05 de julho de 2016. 29 AGÊNCIA SENADO. Senado deveria suspender Comissão do Impeachment, avalia Vanessa Grazziotin. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/30/ senado-deveria-suspender-comissao-do-impeachment-avalia-vanessa-grazziotin. Acesso em 09 de julho de 2016; AGÊNCIA SENADO. Lindbergh Farias crê que gravações implicam PSDB em “complô para o impeachment”. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/ materias/2016/05/30/lindbergh-farias-cre-que-gravacoes-implicam-psdb-em-complo-parao-impeachment. Acesso em 11 de julho de 2016. 30 AGÊNCIA SENADO. Disponível em : http://www12.senado.leg.br/noticias/ videos/2016/05/renan-calheiros-defende-liberdade-de-expressao-e-independencia-entrepoderes. Acesso em 11 de julho de 2016. 31 AGÊNCIA SENADO. Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/ materias/2016/05/31/renan-defende-liberdade-de-expressao. Acesso em 11 de julho de 2016. 28 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 136 Elizabete Pellegrini Garcia at el. o Presidente se mostra interessado em mostrar que, mesmo havendo assuntos e setores divergentes dentro da câmara, sua posição é de permitir a discussão destas posições, uma vez que os parlamentares têm os plenos direitos de exercer suas opiniões, ressaltando que o que deve prevalecer é a opinião da maioria do Senado. Da breve análise realizada por nós, foi possível percebermos que há, tanto na Agência Senado, como nas outras mídias abordadas nesse texto, a conformação de uma ideia de segmentos antagônicos no cenário político atual. Tais segmentos antagônicos, são polarizados, noções duais, que fazem jogo e analogia como se fizessem parte ou do “bem” ou do “mal”. Temos conhecimento que a política é tão performática como um jogo, com lances de interesses e estratégias, porém essas jogadas têm se mostrado cada vez mais arriscadas e perigosas, uma vez que estão colocando em questão a própria base da democracia brasileira. E é nessa arena de lances arriscados que o atual governo de Michel Temer atua, nos fazendo crer, cada vez mais, na in-constância de seu governo provisório. MÍDIA OFICIAL: DIÁRIO DE UM GOVERNO INTERINO Com o intuito de mapear as ações que representam perdas de direitos conquistados nas últimas três décadas do curto e frágil período de redemocratização brasileira, buscamos no Diário Oficial da União (DOU) como estes retrocessos em políticas públicas se efetivam através de Decretos, MPs e Portarias expedidos no governo interino de Michel Temer. Optamos por inserir o DOU entre nossas fontes de busca, por tratar-se de um veículo de divulgação e validação, junto ao interesse público, dos atos administrativos e da legislação expedida em âmbito estatal, cujo acesso é universalizado pela Imprensa Nacional em edição impressa e eletrônica32. IMPRENSA NACIONAL. Diário Oficial da União completa 152 anos. Disponível em: http://portal.imprensanacional.gov.br/noticias/diario-oficial-da-uniao-152-anos-hoje. Acesso em 17 jun. 2016. 32 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 137 Elencaremos, na tabela a seguir, um conjunto de atos do Executivo Federal, no período estipulado como recorte temporal para a nossa pesquisa, entre 12 e 31 de maio de 2016, que evidenciam e põem em prática a agenda e o direcionamento político do governo interino, previstos no documento “Uma Ponte para o Futuro”, tais como a contenção de gastos públicos; a flexibilização da economia e o enxugamento do Estado, através de concessões, privatizações e parcerias público-privado; a revisão de programas e da previdência social; e o rearranjo da política externa, voltada a investidores transnacionais e ao alinhamento com os Estados Unidos e a Europa. Esta agenda dificilmente passaria pelo crivo das urnas por seu caráter impopular, mas se efetiva nas primeiras ações do governo interino. EDIÇÃO DO DOU 12/05/2016 (Edição extra) 17/05/2016 23/05/2016 (Edição extra) 27/05/2016 30/05/2016 ATOS DO EXECUTIVO FEDERAL MEDIDA PROVISÓRIA Nº 726, DE 12 DE MAIO DE 2016. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 726, DE 12 DE MAIO DE 2016. DECRETO DE 16 DE MAIO DE 2016 EXONERAÇÃO DO DIRETOR-PRESIDENTE DA EBC, RICARDO PEREIRA DE MELO. PORTARIAS Nº 185 E 186, DE 13 DE MAIO DE 2016 - MINISTÉRIO DAS CIDADES MEDIDA PROVISÓRIA Nº 728, DE 23 DE MAIO DE 2016. LEI FEDERAL Nº 13.291, DE 25 DE MAIO DE 2016. DECRETO Nº 8.780, DE 27 DE MAIO DE 2016 Fonte: Diário Oficial da União, Brasília, DF, maio. 2016. Em sua primeira medida provisória, a MP nº 726, de 12 de maio de 2016, oficializada em edição extra do DOU, Temer levou a cabo a sua reforma ministerial. A partir da fusão e da extinção de pastas, o número de Ministérios passou de trinta e dois para vinte e cinco33. Com esta MP, o Ministério da Cultura foi fundido à pasta da Educação, comandada por A Medida Provisória sugere também a criação de uma PEC que reveja o status constitucional de Ministério atribuído à Advocacia-Geral da União (AGU) e ao Banco Central (BC). 33 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 138 Elizabete Pellegrini Garcia at el. Mendonça Filho (DEM/PE). Pela primeira vez desde o fim da ditadura civil-militar, o país ficaria sem uma pasta exclusiva para a Cultura. Após uma série de protestos, mobilizações e ocupações de prédios públicos por parte da classe artística e movimentos sociais, em várias regiões do país, bem como de uma cobertura crítica por parte da imprensa nacional e internacional, o presidente interino retrocedeu de sua decisão, revogando a extinção do MinC a partir da medida provisória nº 728, de 23 de maio de 2016. Em nome de uma economia de gastos, apontada por diversos analistas como meramente simbólica, uma pasta central à garantia de visibilidade de minorias e à promoção de direitos, o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos foram extintos, sendo subordinados à estrutura do Ministério da Justiça e Cidadania, pasta chefiada pelo controverso ex-Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre Moraes (PSDB/SP). Ainda com este temerário rearranjo ministerial, a Previdência Social foi desvinculada do Ministério do Trabalho, tornando-se uma secretaria incorporada à Fazenda. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) fundiu-se às Comunicações, decisão alarmante para a comunidade científica, uma vez que esta alteração diz respeito diretamente aos rumos da ciência e do desenvolvimento tecnológico no país. No que tangencia as políticas voltadas às populações camponesas e tradicionais, em 12 de maio houve a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), fundido no Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Dias depois, a partir do Decreto nº 8.780, de 27 de maio de 2016, os órgãos diretamente responsáveis por políticas de reforma agrária (a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, a Secretaria de Reordenamento Agrário, a Secretaria da Agricultura Familiar, a Secretaria de Desenvolvimento Territorial, a Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA) passaram a ser submetidos à estrutura ministerial da Casa Civil da Presidência da República. Por meio da MP nº 726/2016, Temer autorizou a criação do Ministério de Estado da Transparência, Fiscalização e Controle, incorporando Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 139 a estrutura da Controladoria Geral da União (CGU). Manifestações contrárias a esta mudança apontam para o retrocesso representado pela perda de autonomia e independência do órgão, responsável por fiscalizar e combater a corrupção dos agentes públicos, ao vinculá-lo à estrutura ministerial da Presidência da República. Ainda em seu primeiro dia na presidência interina, Temer também editou a MP nº 727, de 12 de maio de 2016, cujo texto versa sobre a criação do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), firmando, em linhas gerais, o compromisso do Estado em promover parcerias com a iniciativa privada para a execução de serviços públicos de infraestrutura e demais medidas voltadas à desestatização. Na edição de 17 de maio, o DOU publicou as Portarias nº 185 e 186 de 13 de maio de 2016, relativas ao Ministério das Cidades. De acordo com estas medidas, o ministro interino Bruno Araújo (PSDB/ PE) revoga as duas portarias editadas pela presidente afastada Dilma Rousseff que ampliavam recursos para o Programa Minha Casa Minha, suspendendo a construção de 11.250 unidades habitacionais voltadas a famílias com renda igual ou inferior a R$ 1.800, além de alterar as regras para a participação na modalidade Minha Casa Minha Vida - Entidades. Estas medidas geraram reação dos movimentos sociais e frente de lutas por moradia. Entre as manifestações, destaca-se o ato e montagem de acampamento pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a Frente Popular Brasil Sem Medo na frente da casa do presidente interino, no dia 22 de maio, em São Paulo. Em decreto de 16 de maio de 2016, publicado na edição do DOU do dia seguinte, Temer exonera o recém-nomeado jornalista Ricardo Pereira de Melo do cargo de presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), descumprindo a legislação que prevê o mandato de 4 anos para o cargo. Ao nomear para a função Laerte Rimoli, jornalista ligado a Eduardo Cunha e Aécio Neves, Temer corrobora com o desmonte da TV pública, bem como para a censura de opiniões e posicionamentos de oposição ao seu governo. Dias depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Tofolli, concedeu decisão liminar suspendendo a exoneração. Na edição de 27 de maio é publicada a Lei Federal nº 13.291, de 25 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 140 Elizabete Pellegrini Garcia at el. de maio de 2016, que versa sobre as diretrizes elaboradas pela a equipe econômica do governo interino para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2016, impondo tetos de despesas federais, o que sinaliza arrochos em áreas cruciais como a saúde, educação e previdência social. NOTAS FINAIS Em seu primeiro discurso34 como Presidente da República, durante a cerimônia de posse dos novos ministros de Estado, Michel Temer referiuse ao novo governo como “de salvação nacional”, incitando a população a “não falar em crise”, mas falar em ‘trabalho’. Remetendo à “imagem de um País pacífico”, Michel Temer usou termos como harmonia, pacificação, diálogo, colaboração, consenso, moderação e soluções negociadas. No dia seguinte à posse dos ministros (no segundo dia do governo provisório), um dos principais veículos de comunicação do país, a Folha de São Paulo, publicou uma entrevista35 curta com o ministro Geddel Vieira Lima, titular da Secretaria de Governo, órgão responsável pelo auxílio na coordenação política e social com parlamentares e entidades da sociedade civil organizada. As declarações de Lima seguem a mesma linha do discurso de Temer: remetem à importância do diálogo, especificamente com movimentos sociais que estariam nas ruas protestando contra o governo interino. Sobre estes movimentos, Lima afirma: “[o] Brasil não pode continuar dividido, conflagrado, na situação como está”. Num primeiro momento, a ideia de um governo que dialogue com a sociedade e busque a pacificação não parece tão ruim. O que nos perguntamos, com base nas tantas notícias consultadas no nosso levantamento, é o que haveria, afinal, por trás do discurso de harmonia e consenso proferido por representantes políticos que tomaram o Executivo O discurso na íntegra pode ser consultado na seguinte página eletrônica: http://www2. planalto.gov.br/presidente-em-exercicio/discursos/discursos-do-presidente-em-exercicio/ discurso-do-presidente-da-republica-michel-temer-durante-cerimonia-de-posse-dos-novosministros-de-estado-palacio-do-planalto. 35 VERPA, Danilo. “Não somos bichos-papões”, diz Geddel. Disponível em: http://www1. folha.uol.com.br/poder/2016/05/1770907-nao-somos-bichos-papoes-diz-geddel.shtml. Acesso em 8 jul. 2016. 34 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 A (in)constância do provisório:... 141 à força, por meio de um golpe parlamentar-judicial36. Nossa reflexão remete à utilização do modelo legal de harmonia como uma técnica de pacificação. Segundo a antropóloga norte-americana Laura Nader37, as oscilações entre o modelo de harmonia e o modelo de conflito foram descritas por vários autores como instrumento para acalmar ou incitar conflitos de classe e descontentamentos sociais. Estudando o contexto da institucionalização de soluções alternativas de conflitos pelo Judiciário norte-americano, Nader observou um esforço estatal para pôr fim aos movimentos da década de 60 que lutavam por direitos civis e para O termo “golpe parlamentar-judicial” parte da ideia de golpe de estado de Álvaro Bianchi: “O golpe de estado não é um golpe no Estado ou contra o Estado. Seu protagonista se encontra no interior do próprio Estado (...) O fim é a mudança institucional, uma alteração radical na distribuição de poder entre as instituições políticas, podendo ou não haver a troca dos governantes. Sinteticamente, golpe de estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político”. Adotamos esta linha de raciocínio, após refletirmos sobre alguns fatos contidos nas notícias coletadas em nosso levantamento. Afinal, como acreditar na idoneidade de instituições que afastam uma presidenta eleita pelo povo com o argumento de que ela teria cometido um crime (a famigerada “pedalada fiscal”), quando o próprio Estado não reconhece tal conduta como crime*? Como acreditar na disposição de parlamentares e juristas em colaborar com a sociedade civil pelo “bem comum” de superação de uma “crise”, enquanto senadores e ministros do Superior Tribunal Federal protagonizam uma conspiração contra colegas que os investigam, tal como evidenciam os áudios vazados após o afastamento da presidente Dilma**? Como acreditar que o impeachment fez parte de um jogo político usual, quando os maiores responsáveis por ele são os mais interessados no afastamento de Dilma e na culpabilização de poucos pelos escândalos de corrupção***? (*AMORA, Dimmi. Pedalada não é crime, decide procurador do Ministério Público. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/07/1791699-pedaladanao-e-crime-decide-procurador-do-ministerio-publico.shtml; **VALENTE, Rubens. Em diálogos gravados, Jucá fala em pacto para deter avanço da Lava Jato. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774018-em-dialogos-gravados-juca-fala-em-pactopara-deter-avanco-da-lava-jato.shtml; ***PITOMBO, João Pedro. Ministros do governo Temer são alvo de investigações além da Lava Jato. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ poder/2016/05/1772725-ministros-do-governo-temer-sao-alvo-de-investigacoes-alem-dalava-jato.shtml - acessadas em 17 jun.16.) BIANCHI, Álvaro. O que é um golpe de estado? Disponível em: http://blogjunho.com.br/o-que-e-um-golpe-de-estado/. Acesso em 8 jul. 2016. 37 NADER, Laura. Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rcbs26_02.htm. Acesso em 8 jul. 2016. 36 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 142 Elizabete Pellegrini Garcia at el. esfriar os protestos contra a guerra do Vietnã. As resoluções alternativas de disputas (tais como a conciliação e a mediação) foram associadas à paz, cooperação, consenso, enquanto a luta por direitos mediante disputa judicial era associada ao confronto, insensibilidade, destruição da confiança. Era uma mudança menos preocupada com a justiça e as causas básicas dos conflitos e muito voltada para a harmonia e o consenso. Assim, observadores dos Estados Unidos perceberam que, em comparação com a intensa atividade política dos anos 60, os americanos estavam contidos e apáticos nas três décadas subsequentes à implementação massiva das resoluções alternativas de conflitos. A antropóloga destaca que o processo pelo qual ideologias, que são força de mudança, seriam moldadas através do discurso, estende-se além das leis, para incluir diversos elos sociais. Seria algo semelhante a uma “colonização mental”, na qual a harmonia seria coerciva, forçada, e concorreria para silenciar os povos que falam e agem de forma irada. A conclusão de Nader é de que é altamente provável que a “ideologia da harmonia” faça parte do sistema de controle hegemônico que teria se espalhado no mundo com a colonização europeia e a evangelização cristã. Desta maneira, ao mesmo tempo que o discurso de Temer na posse dos ministros trazia o contexto da harmonia, também trazia a necessidade de “conjugação de esforços” em prol do futuro. Estaríamos presenciando um processo de hegemonização, de harmonização coerciva, que buscaria calar as reivindicações de direitos, já declaradamente ameaçados pelas medidas iniciais do governo interino? O contexto estudado por Nader é bastante diferente do contexto político, econômico e social no qual o Brasil está inserido. Contudo, a semelhança do discurso da harmonia nos faz pensar se não haveria uma intenção de silenciamento das ruas que se movimentam em prol e contra a perda de direitos conquistados desde a Constituição de 1988. Afinal, um diagnóstico da crise econômica brasileira, conforme já havia sido apresentada pela maior base aliada do governo em 2015 no documento “Uma Ponte para o Futuro”, é de que a Constituição de 1988 não cabe no orçamento federal.38 38 MobilizaIE – Estudantes em greve do Instituto de Economia da Unicamp. As consequências Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 143 A (in)constância do provisório:... 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Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 113-148, fev./dez. 2016 “A BELA E A FERA” – AS MULHERES E A POLÍTICA NO DISCURSO MIDIÁTICO Giulia Mendes Gambassi1 Thaís Tiemi da Silva Yamasaki2 RESUMO: Neste trabalho iremos analisar duas reportagens feitas no ano de 2016, acerca de Dilma Rousseff e Marcela Temer, para observar quais performances do gênero feminino aparecem na mídia em um contexto (que interpretamos como) de golpe políticomidiático e quais são as produções de sentido que emergem desses textos em relação às mulheres neles citadas. Ressaltamos que este artigo foi produzido em contexto de greve de estudantes, funcionários e docentes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que durou de maio a julho de 2016, sendo resultado de discussões feitas no GT: Gênero e Sexualidade, formado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) no primeiro semestre do mesmo ano, coordenado pela Profa. Dra. Isadora Lins França e pela Dra. Carolina Branco Castro Ferreira. PALAVRAS-CHAVE: estudos de gênero; discurso midiático; análise do discurso; Dilma Rousseff; Marcela Temer. INTRODUÇÃO Considerando que gênero, de acordo com Judith Butler, é um gesto performativo que produz significados e que, de acordo com Joan Scott, é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças Mestranda em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos de Linguagem na Unicamp. E-mail: giugambassi@gmail.com 2 Mestranda em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos de Linguagem na Unicamp. E-mail: thais.tiemi.yamasaki@gmail.com 1 150 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki percebidas entre os sexos, sendo uma forma primária de dar significado às relações de poder, pretendemos analisar duas reportagens publicadas no primeiro semestre de 2016, que têm como enfoque Dilma Rousseff, Presidenta da República, e Marcela Temer, Primeira-dama em exercício quando da escrita deste artigo. Ambas foram produzidas a partir de um contexto de golpe3 político-midiático, ocorrido em abril de 2016 e, partindo de uma perspectiva da Análise do Discurso, neste trabalho buscaremos observar quais performances do gênero feminino se dão nesses textos e que possíveis significados são produzidos neles, considerando como o feminino é percebido pelos autores dos textos e como essa percepção dá significado às relações de poder. Lançamos mão da representação de bela e de fera, tal qual do conto francês “A Bela e a Fera” originalmente escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot em 1740, para classificar nossos resultados de análise, levando em conta que esse conto apresenta versões diversas por se adaptar a diferentes momentos sociais, como o que, aqui, estamos inseridos. Longe de buscar um paralelo entre príncipe e princesa e deixando de lado o romantismo, focamo-nos nos estereótipos (ou nas performances) lançados entre os personagens: enquanto vemos que Marcela Temer é, literalmente, retratada como bela, mas também como recatada e do lar, Dilma Rousseff é mostrada como monstro, fera, louca. O antagonismo apresentado tanto no conto quanto nas reportagens que analisamos não é ingênuo ou ocaso do destino, mas desenhado para compor uma história, um ato, uma performance que, no caso deste trabalho, se refere ao gênero feminino. Ainda julgamos importante colocar que entendemos o conceito de acontecimento, assim como consideramos o contexto de um golpe políticomidiático: como um evento que produz discursos. Isso é, adotamos a concepção de acontecimento discursivo como “constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos), Interpretamos como “golpe” o processo que levou à admissibilidade do impeachment da Presidenta da República, Dilma Rousseff, em seu segundo mandato (2015-2018), no qual não foi provado nenhum crime de responsabilidade que, conforme previsto na Constituição Brasileira, justificaria o impedimento de um mandato presidencial. 3 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 151 em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um (...), uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral” (FOUCAULT, 1995, p. 30). Atualmente, observamos a explosão de vários acontecimentos que mostram o quanto as mulheres (além das pessoas indígenas, negras, LGBT, entre outros grupos) estão sendo não apenas colocadas em segundo plano, como também ameaçadas no que concerne aos seus direitos. Entre as várias medidas que Michel Temer aplicou, o Presidente em exercício iniciou seu “mandato” anunciando apenas ministros homens em seu “governo”. Ademais, por meio da mídia, assim como nos conteúdos produzidos por ela, observamos um discurso que maneja determinadas convenções sobre feminilidades e masculinidades em um contexto de relações de poder, sendo que nele podemos verificar assimetrias em relação aos lugares destinados às mulheres e aos homens. Dilma foi o grande alvo desse tipo de discurso, não só nos recortes que aqui trazemos, mas durante todo o seu governo, assim como Marcela, que tampouco escapou desse cenário. A partir do panorama apresentado e considerando que a mídia tem grande papel, tanto no golpe – cenário deste trabalho – quanto em relação à produção de identidades, é de extrema importância que analisemos e problematizemos o que é dito e não dito nos meios de comunicação, pois as palavras nunca são neutras, tudo que é dito e silenciado é de extrema importância, mas raramente nos damos conta disso. O objetivo deste trabalho, então, é analisar possíveis efeitos de sentido que duas reportagens evocam naqueles que as leem, no que diz respeito às representações de mulher que são construídas nos e pelos dizeres do discurso midiático. Os textos foram selecionados considerando o contexto no qual se inserem e a forma como variam em sentido, de acordo com as ideologias que os constituem. Ou seja, visamos analisar determinados aspectos presentes no corpus, buscando encontrar marcas de como o gênero4 feminino é performado, bem como das relações de poder e de opinião que o cingem, através do léxico utilizado nas Entendemos que as performances de gênero, neste trabalho, estão ligadas a posições-sujeito, sendo o sujeito visto enquanto inserido em um contexto histórico-social e o rastreamento de suas marcas no corpus essencial para compreender as produções de sentidos. 4 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 152 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki matérias. Buscaremos compreender a produção de sentidos por meio da materialidade da linguagem, no caso, das revistas online e a analisaremos não apenas sob o viés linguístico, mas entendendo que o discurso também é engendrado e constituído nas e pelas práticas sociais, relações de poder que são como jogos, pois envolvem estratégias e um ou mais objetivos a serem conquistados (FOUCAULT, 2003, p. 9). A BELA – MULHER ENQUANTO BELA, RECATADA E DO LAR Para iniciar a análise, partiremos da polêmica reportagem, escrita por Juliana Linhares para a site da revista Veja, publicada em abril de 2016, que causou revolta, principalmente devido ao título: “Bela, recatada e ‘do lar’”5,6. Nesse texto, Marcela Temer, casada com o Presidente em exercício, Michel Temer, é retratada como uma mulher que preza muito pela discrição, pela família e pelo cultivo de sua beleza. Em adição, apesar da reportagem ser sobre ela, são colhidos depoimentos de familiares e profissionais de estética, apagando sua voz e colocando-a num lugar de subserviência e não protagonismo quando de seus desejos e hábitos. Houve grande mobilização nas redes sociais em geral (Facebook, Instagram, Tumblr e Twitter), tanto refutando quanto endossando o artigo, e a maior parte das respostas que se manifestava contrária ao estereótipo atrelado à Marcela se deu por meio de fotos de mulheres7 que mostravam não se limitarem a uma imagem de “bela, recatada e ‘do lar’”, revelando, pelo contrário, que poderiam ser do jeito que quiserem. Mesmo não tendo sido entrevistada, mas alvo de um relato, Marcela Temer foi exposta de forma negativa e recebeu muitas críticas pelo que a reportagem mostra ser seu comportamento, tornando-se alvo de piadas e de rechaço também nas redes sociais. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/bela-recatada-e-do-lar. Acesso jun 2016. 6 Por se tratar de uma publicação online, não há indicação de número de página a ser referenciado em cada recorte. 7 Exemplos disponíveis em: http://belarecatadaedolar.tumblr.com/. Acesso ago 2016. 5 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 153 Como objeto de análise, consideramos que a publicação no site da revista Veja não deveria ser criticada por trazer como foco as atividades domésticas de Marcela, assim como seus gostos e prioridades, pois há muitas mulheres que optam por trabalhar em suas casas e, nem por isso, são menos relevantes socialmente, mas pela forma panfletária em que esses aspectos foram trazidos à tona. É interessante observar que essa reportagem foi escrita por uma mulher que, além de não se encaixar no padrão “do lar”, por exercer uma atividade profissional que não é doméstica, em detrimento do que foi colocado como exemplo a ser seguido, reforça os parâmetros que endossam certas convenções estereotipadas e normatizadoras do feminino e do que é ser mulher. Frisamos, entretanto, que não consideramos que necessariamente os argumentos apresentados correspondem ao que Linhares toma como norte para si, mas revela uma posição-sujeito que foi produzida considerando o acontecimento em que estava inserida: era benéfico construir uma imagem positiva do, então, Vice-Presidente da República, Michel Temer, com quem Marcela é casada, já que no dia seguinte da publicação da reportagem, o processo de Impeachment seria aprovado na Câmara dos Deputados8, aproximando-o de assumir o cargo presidencial como Presidente interino. Como comentamos anteriormente e veremos no recorte a seguir, a repórter não “dá voz” em nenhum momento à Marcela, mesmo a reportagem sendo sobre ela, buscando, em dizeres de outros, quaisquer representações de sua personalidade e de seus desejos pessoais. Além disso, a autora a coloca em um lugar de subserviência, que faria qualquer um descrer da existência de uma possível sororidade9. Mesmo sendo colocada como exemplo a ser seguido, Marcela Temer foi deslegitimada como profissional e retratada como uma pessoa passiva, que segue os interesses de seu marido e de sua família, de forma “recatada”. A seguir, trazemos cinco recortes da reportagem publicada no site da revista Veja para analisar como o dizer sobre uma mulher como a Marcela Temer é construído. Disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/a-linha-do-tempo-doimpeachment-de-dilma-ate-agor a. Acesso ago 2016. 9 Relação de união, de afeição ou de amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs. Disponível em: http://www.priberam.pt/DLPO/sororidade. Acesso em ago 2016. 8 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 154 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki Recorte 1 A quase primeira-dama, 43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice10. Nesse recorte, podemos observar que Marcela é, antes de qualquer atributo, caracterizada pelo fato de ser muito mais jovem que seu marido, ou seja, o primeiro juízo de valor feito sobre ela parte de uma figura masculina. Ela ser casada com alguém do sexo masculino é o fato que a introduz. Em seguida, a reportagem mostra, como sendo muito relevante, que a moça prefere vestidos na altura dos joelhos e não curtos, o que poderia ser entendido como recato por parte de Marcela. Tal imagem beira o vitorianismo11, por representar uma mulher que preza “a moral e os bons costumes”, acompanhada do “clássico” sonho materno que toda mulher tem ou deveria ter, seguindo a lógica apresentada na reportagem. Para refletir sobre essa imagem atribuída à Marcela Temer, retomamos o que Maria Rita Kehl, psicanalista, afirma em seu aclamado livro Deslocamentos do Feminino (1998, p. 58): [...] a feminilidade aparece aqui como o conjunto de atributos próprios a todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora; partindo daí, atribui-se às mulheres um pendor definido para ocupar um único lugar social – a família e o espaço doméstico – a partir do qual se traça um único destino para todas: a maternidade. O que aparece, então, é Marcela sendo caracterizada por seu lugar como esposa de Michel Temer, tendo-o como referente para qualquer menção a ela, ou seja, por sua juventude em relação a ele, pelo tipo de Grifo nosso. A era vitoriana (meados do século XIX) foi uma época em que o ocultamento da nudez feminina compunha o padrão estético, e a divisão social de gênero era sobremaneira determinada (ROCHA, 2014, p. 219). 10 11 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 155 roupa que veste, respeitando o marido, assim como pelo sonho de ser mãe, tendo ele como pai de sua prole. Outras informações poderiam ter sido ditas sobre ela, assim como seus desejos para além das obrigações sociais, mas os atributos apresentados foram escolhidos e não por acaso. É interessante, também, observar o uso da palavra “quase” antes de primeira-dama, visto que a reportagem foi veiculada antes do controverso processo de impeachment ser aprovado pela Câmara dos Deputados, levando, a posteriori, ao afastamento da Presidenta Dilma Rousseff. O recorte temporal de publicação no site da revista Veja já é, por si só, um acontecimento, nos termos de Foucault, por preceder, em um dia, o desdobramento do golpe. Se nos arriscarmos a fazer uma crítica mais incisiva, é como se essa reportagem fosse mais um passo dado no golpe político-midiático que tomou forma em maio de 2016. Recorte 2 Michelzinho, de 7 anos, cabelo tigelinha e uma bela janela no lugar que abrigará seus incisivos centrais, é o único filho do casal (Temer tem outros quatro de relacionamentos anteriores). No fim do ano passado, Marcela pensou que esperava o segundo filho, mas foi um alarme falso. “No final, eles acharam que não teria sido mesmo um bom momento para ela engravidar, dada a confusão no país”, conta tia Nina, irmã da mãe de Marcela. Ela se refez do sobressalto, mas não se resignou – ainda quer ter uma menininha.12 Reforçando o papel de Marcela, além de esposa de Michel, como mãe, o dizer da “tia Nina”, assim como a reportagem com um todo, não coloca a Primeira-dama em exercício como sujeito da frase ou como detentora de poder decidir o que ocorre em seu próprio corpo. Tomando como pressuposto que expressões de gênero são socialmente construídas na e pela linguagem, notamos que se tentam produzir determinadas vivências e identidades femininas diretamente relacionadas à estética e a um padrão 12 Grifo nosso. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 156 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki de beleza nesse recorte. No caso que aqui trazemos, a imagem feminina deve refletir um corpo controlado, sexualizado, fértil e jovem, reforçando, ainda um padrão cisgênero13 de “feminilidade”, em que a mulher deve ter uma genitália biologicamente feminina e reprodutora, cabelos longos, maquiagem aplicada em seu rosto, usando salto e vestidos para se encaixar em padrões tidos pela sociedade como femininos. Além de cercear o comportamento de mulheres cis que podem não se identificar com esse padrão, a reportagem acaba por invisibilizar a existência de mulheres trans e travestis, preservando a normatividade em seus dizeres. Entretanto, é premente dizer que (...) não há uma única feminilidade ou masculinidade com que as mulheres e os homens individuais possam se identificar em seus contextos sociais, mas sim uma variedade de feminilidades e masculinidades possíveis fornecidas pelos discursos concorrentes e contraditórios que existem, e que produzem e são reproduzidos por práticas e instituições sociais. No entanto, a sexualidade está intimamente ligada ao poder, de tal modo que o próprio poder e a própria força são sexualizados, isto é, estão inscritos na diferença de gênero e na hierarquia de gênero (MOORE, 2000, p. 35). Quando se referem à Marcela como alguém que é bela e usa vestidos em determinado comprimento, não só se evidencia uma tentativa de controlar o feminino, mas como uma mulher só vai ser considerada como tal se se comportar e apresentar de determinada maneira, deslegitimando as diversas expressões do feminino. Todavia, retomamos Moore e enfatizamos que não existe um único modelo ou padrão de feminilidade, mas uma variedade fornecida por discursos concorrentes e contraditórios. Além disso, é tangível o modo como o poder está inscrito na diferença de gênero, quando Marcela é colocada como mulher de Michel, tendo ele como ponto de referência (ex.: “43 anos mais jovem” – R1), endossando, ainda a hierarquia de gênero também trazida à tona por Moore. Em estudos de gênero, cisgênero é um termo usado para se referir a pessoas cuja identificação de gênero é a mesma que a designa biologicamente em seu nascimento. 13 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 157 A questão da reprodução nesse recorte mostra, ainda, como é relevante, nessa reportagem, a visão da mulher como geradora e cuidadora de sua prole. Ademais, na reportagem a decisão da gravidez aparece como dependente de outros fatores que não somente a vontade de Marcela, como podemos ver em: “eles acharam que não teria sido mesmo um bom momento para ela engravidar, dada a confusão no país”. Ao atrelar a “nãogravidez” de Marcela com a “confusão no país”, produz-se um efeito de sentido de que a crise é muito mais grave do que se imagina e, mais uma vez, colocando as vontades e os desejos de Marcela como inexistentes ou em segundo plano. Recorte 3 Bacharel em direito sem nunca ter exercido a profissão, Marcela comporta em seu curriculum vitae um curto período de trabalho como recepcionista e dois concursos de miss no interior de São Paulo (representando Campinas e Paulínia, esta sua cidade natal). Em ambos, ficou em segundo lugar. Marcela é uma viceprimeira-dama do lar. Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele).14 Esse recorte, à primeira vista, poderia destoar da expectativa social de mulher, mãe, dona de casa apresentada até então, ao ser colocada em pauta a vida profissional, fora do lar, de Marcela. Entretanto, a primeira informação apontada na reportagem é a de que ela estudou Direito “sem nunca ter exercido a profissão”. O uso da preposição “sem”, aliada ao advérbio “nunca”, provoca o efeito de sentido de que seu diploma não seria válido ou que a profissão não deveria ser exaltada, já que Marcela não chegou a exercê-la. 14 Grifos nossos. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 158 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki Em seguida, salienta-se que o período de trabalho, fora do lar, de Marcela foi “curto”, o que não chegaria a atrapalhar a imagem de “primeira-dama do lar”, pois ela não abandonou seu posto doméstico por muito tempo. Aqui, observamos novamente a construção da associação entre mulher e domesticidade, reforçando um conservadorismo e um recato dignos, novamente, da era vitoriana. Mais adiante, o enunciado indica que Marcela vive “apenas” para cuidar do filho e da casa, ainda que cuide “um pouco” dela mesma, reforçando uma preocupação padronizada do feminino com a estética e suas normas, pois os parênteses utilizados no excerto, “(nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele)”, reforçam a natureza desse cuidado. Recorte 4 Por algum tempo, frequentou o salão de beleza do cabeleireiro Marco Antonio de Biaggi, famoso pela clientela estrelada. Pedia luzes bem fininhas e era “educadíssima”, lembra o cabeleireiro. “Assim como faz a Athina Onassis quando vem ao meu salão, ela deixava os seguranças do lado de fora”, informa Biaggi. Na opinião do cabeleireiro, Marcela “tem tudo para se tornar a nossa Grace Kelly”. Para isso, falta só “deixar o cabelo preso”. Em todos esses anos de atuação política do marido, ela apareceu em público pouquíssimas vezes. “Marcela sempre chamou atenção pela beleza, mas sempre foi recatada”, diz sua irmã mais nova, Fernanda Tedeschi. “Ela gosta de vestidos até os joelhos e cores claras”, conta a estilista Martha Medeiros. Marcela é o braço digital do vice. Está constantemente de olho nas redes sociais e mantém o marido informado sobre a temperatura ambiente15. Dando sequência à construção da imagem de Marcela como “bela” e preocupada com estética, foram inseridas falas de seu cabeleireiro e de uma estilista, havendo uma ânsia por controlar a imagem da Primeira15 Grifos nossos. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 159 dama em exercício e por torná-la um ícone. Porém, apesar de ser bela e de ter tudo para ser uma grande “imagem”, é reforçado que Marcela prefere não chamar muita atenção, apesar de em nenhum momento isso ter sido perguntado diretamente a ela. Duas figuras são mencionadas e usadas como comparativo à Marcela: Athina Onassis e Grace Kelly. Athina Onassis é uma hipista francesa, radicada em São Paulo, neta e descendente de Aristóteles Onassis, lendário armador grego e um dos maiores magnatas da história, sendo a única herdeira de uma fortuna de milhões de dólares. É interessante notar que essa referência poderia trazer um efeito de sentido de classe e elegância para Marcela, se os leitores do texto souberem quem é Athina, reforçando mais uma vez um estereótipo conservador. A menção à Grace Kelly, por sua vez, também não foi feita despretensiosamente, pois a atriz americana encerrou sua carreira ao se casar com o príncipe de Mônaco e, apesar de ainda ser lembrada por suas atuações, é considerada, principalmente, um ícone de moda e beleza e referida como princesa de Mônaco – titulação que a atrela a seu marido –, mais uma vez trazendo a questão da imagem como algo principal para uma mulher ser “notável”. No parágrafo seguinte, Marcela é colocada enquanto braço digital de Michel Temer. Da forma que o fato é apresentado na reportagem, parece que a mulher é parte do homem e não uma pessoa, como se fosse uma prótese ou uma continuação de Temer. Além disso, ela não apenas cuida da casa e da família, mas também administra e se mantém informada sobre o que acontece nas redes sociais, sendo o centro de sua vida e de suas atenções, o marido. A objetificação de Marcela, no entanto, não é feita só como prótese ou “braço digital”, na reportagem publicada no site da revista Veja, a Primeira-dama em exercício tem o papel de manter o marido informado sobre a temperatura do ambiente online, sendo não só um braço, mas também um termômetro. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 160 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki Recorte 5 Sacudida, loiríssima e de olhos azuis, Norma Tedeschi acompanhou a filha adolescente em seu primeiro encontro com Temer. Amigos do vice contam que, ao fim de um dia extenuante de trabalho, é comum vêlo tomar um vinho, fumar um charuto e “mergulhar num outro mundo” – o que ocorre, por exemplo, quando telefona para Marcela ou assiste a vídeos de Michelzinho, que ela manda pelo celular. Para falar da mãe de Marcela, são utilizados, novamente, adjetivos relativos à sua aparência (adequada aos padrões de beleza), sendo ainda mencionada por conta do primeiro encontro de Marcela, então adolescente, com Temer. Observamos que a todo momento a Primeiradama em exercício é colocada como subserviente, dependente de alguém, nunca autônoma, se quer para dizer de si em uma reportagem sobre ela. Além disso, uma relação intergeracional levantaria suspeitas e reprovação, caso se tratasse de uma mulher mais velha com um rapaz mais novo, ou se fosse um relacionamento homoafetivo com essa diferença de idade. Mesmo considerando que não deveria haver comentários ou reprovações em casos como esse, não podemos deixar de notar que aqui, além da visão estereotipada de uma mulher padrão, o gênero é usado politicamente, sendo “uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86), ou seja, se o feminino não estivesse em posição inferior ao masculino, haveria comentários, estranhamentos e chacotas desse relacionamento. Por fim, é desenhada uma imagem “bonita” acerca de Temer como patriarca trabalhador e responsável que, após o labor, toma vinho e fuma charuto, mas “mergulha num outro mundo” quando entra em contato com a esposa que, pelo que parece, nada tem a ver com o trabalho (sendo que foi dito que Marcela se mantém atualizada nas redes sociais e tem sua vida toda condicionada por conta do trabalho do marido). Além disso, a reportagem, que pretendia ser sobre a moça, orbita, a cada linha, em um universo com Temer como ponto central e acaba dando valor ao homem em questão, mesmo falando de sua esposa. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 161 Nessa reportagem, então, podemos observar um exemplo do quanto existem modelos aceitos e recomendados amplamente pela sociedade, que tentam padronizar as mulheres, privilegiando determinada estética, assim como beneficiando um comportamento que poderia ser considerado como submisso, estabelecendo um papel doméstico à Marcela. A reportagem, em seu conteúdo, parece ditar como as mulheres devem ser circunscritas ao espaço da domesticidade, tendo a Primeira-dama em exercício como modelo a ser seguido. Ressaltamos novamente que, apesar da matéria ser sobre Marcela, ela não foi entrevistada. Quando se fala de seu passado, de seus desejos e preocupações atuais ou de seu futuro, não há falas dela, mas apenas a de familiares (a tia, a irmã e a mãe) e de profissionais da beleza (cabeleireiro e estilista), tendo espaço até para os “amigos do vice”. É o discurso do outro que constituí uma representação sobre Marcela e isso poderia funcionar como um recurso da reportagem, para fugir a uma possível culpabilização da moça. Mesmo sendo uma mulher branca, dentro dos padrões cisgênero e de uma classe social alta, sua voz é silenciada brutalmente, afinal, [o] gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia e na organização política, que, pelo menos em nossa sociedade, operam atualmente de maneira amplamente independente do parentesco (SCOTT, 1995, p. 87). A performance do feminino, então, nessa reportagem e cerceada por normas regulatórias, que se apresentam no texto, mas que também são reforçados tanto pelo parentesco (tia, irmã, mãe) quanto por fatores econômicos e políticos, como aponta Scott. Na introdução de seu livro Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo, Judith Butler coloca que normas regulatórias teriam a finalidade de assegurar o funcionamento da hegemonia heterossexual, na formação daquilo que pode ser legitimamente considerado como um corpo viável. Logo, qual corpo seria mais viável, qual corpo importaria ou pesaria mais do que o da Primeira-dama em exercício bela, recatada e do lar na sociedade contemporânea? Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 162 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki A FERA – A MULHER ENQUANTO LOUCA O site da revista IstoÉ publicou uma reportagem extensa sobre a Presidenta Dilma Rousseff, escrita por Sérgio Pardellas e Débora Bergamasco, intitulada “Uma presidente fora de si”16,17, publicada em abril de 2016. Nela, a Presidenta é taxada como louca e a revista traz com caráter de denúncia “o descontrole da presidente”. Nota-se, já de início, o desrespeito para com a vontade de Dilma de ser chamada de Presidenta nessa reportagem, apesar da palavra ser dicionarizada desde 1872. A associação entre a mulher e a loucura não vem de hoje, já que desde a época vitoriana muitas mulheres são classificadas como histéricas18. Entretanto, essa colocação da mulher como louca não ficou no passado. Ainda nos dias de hoje observamos inúmeros casos de gaslighting19, sendo que o descontrole, a desestabilidade emocional e os surtos são sempre associados ao feminino. Exemplos desse “fenômeno” podem ser observados nos dez recortes que trazemos a seguir. Recorte 1 Bastidores do Planalto nos últimos dias mostram que a iminência do afastamento fez com que Dilma perdesse o equilíbrio e as condições emocionais para conduzir o país.20 16 Disponível em http://istoe.com.br/450027_UMA+PRESIDENTE+FORA+DE+SI/. Acesso em jun 2016. 17 Por se tratar de uma publicação online, não há indicação de número de página a ser referenciado em cada recorte. 18 A palavra “histeria” vem do grego e significa “útero”. 19 Gastlighting é considerado “uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade”, disponível em: http://lugardemulher.com.br/precisamos-falar-sobre-gaslighting/. 20 Grifo nosso. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 163 Logo no início da reportagem é colocada a “iminência” do afastamento do posto presidencial, como motivo pelo qual Dilma teria “perdido o equilíbrio” e as “condições emocionais” para conduzir o país. Essas primeiras colocações se contradizem no restante da reportagem, pois, ao longo do texto, é posto que a Presidenta sempre fora “descontrolada” e “agressiva”, logo, não poderia ter perdido algo que, de acordo com a publicação, nunca teve. A falta de sustentação de argumentos, como a que acabamos de apresentar, é recorrente, visto que as premissas elencadas se baseiam em relatos de fontes não especificadas ou simplesmente em opiniões. Começamos por questionar o que seria “perder o equilíbrio”? Seria ele possível ou igual para todos? Quais seriam as condições emocionais adequadas para conduzir um país? O texto não apresenta esses parâmetros nem se preocupa em embasá-los, pois são construídos a partir da ideia de que Dilma está “fora de si”, o que ganha força pela crença cultural de que mulheres são loucas e/ou estão de TPM. Tal colocação poderia ter como propósito afirmar que a Presidenta está mentalmente incapacitada de exercer a função para a qual foi legitimamente eleita, podendo ser um subterfúgio para apoiar o impedimento de sua função. A proposta da reportagem, como veremos adiante, é fazer uma análise psicológica da presidenta, o que poderia ser considerado tendencioso, visto que autores do texto não têm conhecimento na área ou contato suficiente com a pessoa em questão para fazê-la. Ressaltamos, como fizemos na análise da reportagem veiculada no site da revista Veja, que não consideramos que necessariamente os argumentos apresentados pelos autores desse texto correspondem a uma versão fidedigna de suas opiniões, mas eles revelam uma posição-sujeito que foi produzida considerando o acontecimento em que estava inserida: era necessário ressaltar a falta de competência (emocional e/ou profissional) para justificar ou tornar mais palatável o processo de impedimento da Presidenta. Ademais, esse processo de apuração sanatório-mental não foi feito com nenhum Presidente que apresentasse as mesmas e até mais intensas “explosões”, como o Deputado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 164 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki dos Deputados e seus ataques de ira21, sendo que ele talvez tenha mostrado tanto ou mais “desequilíbrio” emocional que Dilma Rousseff em épocas concomitantes. Recorte 2 Os últimos dias no Planalto têm sido marcados por momentos de extrema tensão e absoluta desordem com uma presidente da República dominada por sucessivas explosões nervosas, quando, além de destempero, exibe total desconexão com a realidade do País. Não bastassem as crises moral, política e econômica, Dilma Rousseff perdeu também as condições emocionais para conduzir o governo. Assessores palacianos, mesmo os já acostumados com a descompostura presidencial, andam aturdidos com o seu comportamento às vésperas da votação do impeachment pelo Congresso. Segundo relatos, a mandatária está irascível, fora de si e mais agressiva do que nunca. Lembra o Lula dos grampos em seus impropérios. Na última semana, a presidente mandou eliminar jornais e revistas do seu gabinete. Agora, contentase com o clipping resumido por um de seus subordinados. Mesmo assim, dispara palavrões aos borbotões a cada nova e frequente má notícia recebida. Por isso, os mais próximos da presidente têm evitado tecer comentários sobre a evolução do processo de impeachment. Nem com Lula as conversas têm sido amenas. Num de seus acessos recentes, Dilma reclamou dos que classificou de “traidores” e prometeu “vingança”. Numa conversa com um assessor, na semana passada, a presidente investiu pesado contra o juiz Sérgio Moro, da Lava Jato. “Quem esse menino pensa que é? Um dia ele ainda vai pagar pelo que vem fazendo”, disse. Há duas semanas, ao receber a informação da chamada “delação definitiva” em negociação por executivos da Odebrecht, Dilma teria, segundo o testemunho de um integrante do primeiro escalão do Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/temer-tenta-evitar-ira-de-cunha-pede-aopresidente-da-camara-que-reduza-ataques-ao-governo-17280142. Acesso ago 2016. 21 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 165 governo, avariado um móvel de seu gabinete, depois de emitir uma série de xingamentos. Para tentar aplacar as crises, cada vez mais recorrentes, a presidente tem sido medicada com dois remédios ministrados a ela desde a eclosão do seu processo de afastamento: rivotril e olanzapina, este último usado para esquizofrenia, mas com efeito calmante. A medicação nem sempre apresenta eficácia, como é possível notar22. O primeiro trecho a ser analisado diz “os últimos dias no Planalto têm sido marcados por momentos de extrema tensão e absoluta desordem com uma presidente da República dominada por sucessivas explosões nervosas, quando, além de destempero, exibe total desconexão com a realidade do País”, provocando um efeito de sentido de que essa tensão e essa desordem teriam causa específica, estando atrelados à Presidenta, colocando o peso dessas palavras, já de início, vinculado aos supostos “problemas emocionais” de Dilma. Quando Rousseff é citada como “uma presidente da República dominada por sucessivas explosões nervosas” que “além de destempero, exibe total desconexão com a realidade do País”, podemos ver o estereótipo de mulher histérica que tem “explosões nervosas” tomando corpo, afastando a Presidenta da seriedade esperada por alguém que ocupa seu cargo. Entretanto, novamente, os autores caem em contradição: ora, se Dilma está desequilibrada por conta da “iminência” do afastamento, como poderia estar desconectada da realidade do país se esse afastamento está totalmente ligado a ela? A pouca preocupação em apresentar argumentos bem estruturados e muito interesse em fazer um grande espetáculo, se fazem presentes novamente na reportagem, marcando mais uma posição-sujeito nesse grande acontecimento que é o golpe político-midiático de 2016. Adiante, a Presidenta é colocada como a única responsável pela crise moral, política e econômica do Brasil, sem referência às outras esferas do poder que tornaram possível a instauração da citada e aclamada crise. Ao citar uma crise “moral”, a reportagem nos convida a revisitar 22 Grifos nossos. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 166 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki alguns momentos da empreitada de Dilma como Presidenta, pois, desde as eleições até o processo de impeachment, um questionamento comportamental e moral vem sendo feito, logo, nesse ponto, a dupla autoral dessa extensa incoerência documental, peca pela repetição de argumentos já cansados de serem esticados e explorados por outros conteudistas. Esse questionamento comportamental e moral abrange: (i) sua imagem, pelo fato da Presidenta não se encaixar no padrão social e estético esperado; (ii) sua sexualidade, pois, por ser separada e não aparentar ter um parceiro, já se deduz que Dilma é homossexual, logo, ela estaria escondendo isso de todos, considerando que tal “abominável” comportamento fugiria mais ainda das normas regulatórias heterocêntricas; (iii) sua família, considerando seu divórcio e os possíveis e nefastos motivos para tal, como sua pretensa homossexualidade; (iv) sua competência, afinal, uma mulher com sua experiência política, tendo sido Secretária da Fazenda, Diretora-geral da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Presidente da FEE (Fundação de Economia e Estatística), Secretária de Minas, Energia e Comunicações do governo Collares e do governo Dutra no Rio Grande do Sul e Ministra de Minas e Energia, não era digna de confiança para exercer um cargo executivo; (v) seu papel como mulher, já que ela foge dos padrões esperados e aceitos na sociedade tanto de comportamento quanto de carreira e de estética; e (vi) sua idoneidade, mesmo que não haja nenhuma prova ou citação da Presidenta em casos de corrupção, afinal, se uma mulher como ela chegou à presidência, deve ter feito isso de maneira ilegal. Mesmo que essa crise moral, citada na reportagem, se remetesse somente à corrupção, o argumento apresentado teria sido construído sobre falsas acusações e informações batidas, desgastadas e repetidas anos a fio. A reportagem segue com nova menção a uma pretensa “descompostura” de Dilma, agora sendo atribuído o adjetivo “presidencial”. Por mais que busquemos apreender o efeito de sentido possivelmente pretendido, deparamo-nos com alguns questionamentos: o que seria uma descompostura presidencial? Uma descompostura relativa à presidência? Se assim for, então o problema não está atrelado à pessoa de Dilma, mas ao cargo de presidente ou até ao próprio sistema presidencialista. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 167 A reportagem volta a apresentar sinais de contradição e o inconsciente dos autores parece emergir na materialidade linguística numa possível e perigosa crítica ao sistema presidencialista como um todo. Referindo-se, em seguida, ao Presidente Lula, a publicação feita no site da revista IstoÉ apela para a comparação de supostas atitudes de Dilma com Lula durante a famigerada conversa telefônica grampeada23. A associação, como é de se esperar, não foi feita por acaso, visto que Lula está sendo alvo de investigações acerca de corrupção e que há uma tentativa incansável de vincular a figura da Presidenta aos processos de desvio e roubo de dinheiro público, como mencionamos anteriormente. Até mesmo a medicação que a presidenta usa é alvo de análise e crítica, como vemos em “rivotril e olanzapina, este último usado para esquizofrenia”. Além de ser curioso o fato de saberem quais medicamentos a presidenta usa e considerarem seu uso relevante para a reportagem, é notável que a mídia busque se prestar a um papel patologizante, tão criticado ultimamente. É apresentada, com tom desrespeitoso, uma crítica à saúde mental de qualquer pessoa que utilize esses medicamentos. Rivotril, por exemplo, é um dos medicamentos mais utilizados no Brasil, com tiragem de 23 milhões de caixas em 201524. Se realmente os usuários desse medicamento estiverem “fora de si”, os autores do texto estariam impiedosa e corajosamente desafiando “loucos” de grande escalão a tirarem satisfações no QG da IstoÉ. Como a matéria é repetitiva, nos atentemos ao léxico e às construções verbais utilizadas para caracterizar a “presidente fora de si”, no recorte a seguir: Recorte 3 (...) fora de si e mais agressiva do que nunca; dispara palavrões aos borbotões a cada nova e frequente má notícia recebida; num de seus acessos recentes; reclamou dos que classificou Em março de 2016, houve o vazamento de uma conversa grampeada entre o Presidente Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/ noticia/2016/03/grampos-indicam-que-lula-atuava-para-fim-de-vazamentos-na-lava-jato. html. 24 Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/saude/rivotril-a-droga-da-pazquimica-3659.html. Acesso jul 2016. 23 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 168 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki de “traidores” e prometeu ‘vingança’; a presidente investiu pesado contra o juiz Sérgio Moro, da Lava Jato; depois de emitir uma série de xingamentos; não demonstra paciência nem mesmo para esperar o avião presidencial etc. Observamos que as acusações em geral atestam que a Presidenta está agressiva, falando palavrões, tendo acessos, xingando e sem paciência para esperar um avião. Para tornar a crítica ainda mais “consistente”, incluem que Dilma “investiu pesado” contra o tão aclamado juiz Sérgio Moro, argumento que vem reforçar um desmonte da figura da Presidenta, já que Moro é visto como um herói por grande parcela da população. Vemos, nesse trecho, mais um estereótipo feminino, que coloca que a mulher jamais pode xingar, não ter paciência e falar palavrões, o que seria normal para um homem, mas inaceitável nas normas regulatórias do que é ser mulher. Ademais, a impressão passada é a de que Dilma é a única presidente que já se encaixou no que se considera “fora de si”, que fala palavrões, xinga e não tem paciência para esperar aviões. Seria interessante que esse, ou outro veículo midiático, fizesse uma análise tão esmiuçada das sessões da Câmara dos Deputados, por exemplo, nas quais vemos deputados agindo de forma infantil e “histérica”, cantando, defendendo os militares ou a memória de torturadores, chamando colegas para “colocar a mão para cima” caso votassem a favor do impedimento, até mesmo convocando suas famílias25 e Deus, apesar do Estado ser supostamente laico, no momento de votar contra ou a favor do processo de impeachment de Dilma. Além disso, na maioria dos votos favoráveis ao impedimento da Presidenta não se falou da matéria em questão, que era o crime de responsabilidade. Os votos foram justificados quase com um “porque eu quis” ou “porque sim”. Caso uma análise desses votos fosse feita, acreditamos que esse acontecimento daria oportunidade para posições-sujeito interessantes se mostrarem no discurso midiático. 25 Considerando a tradicional família heteronormativa brasileira. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 169 Recorte 4 O modelo consagrado pela renomada psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross descreve cinco estágios pelo qual as pessoas atravessam ao lidar com a perda ou a proximidade dela. São eles a negação, a raiva, a negociação, a depressão e a aceitação. Por ora, Dilma oscila entre os dois primeiros estágios. Além dos surtos de raiva, a presidente, segundo relatos de seus auxiliares, apresenta uma espécie de negação da realidade.26 Nesse recorte, podemos ver que os jornalistas buscam, finalmente, dar uma pequena sustentação às suas críticas (embasadas em comentários não citados de terceiros), utilizando o modelo da psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross que diz respeito aos cinco estágios do luto27. A tentativa da revista de encaixar as atitudes de Dilma nesses estágios, como se eles realmente fossem como o descrito na reportagem, algo banal e generalizante, converge no ensaio de psicologizar a presidenta e seus “sintomas”. Tal, buscando, mais uma vez, passar a imagem de Dilma como alguém que não teria mais capacidades de governar o país, sendo o impedimento (ou uma internação psiquiátrica) a única forma de salvar o Brasil. Recorte 5 Aos integrantes do núcleo político, Dilma deixa transparecer que não lhe importa mais a opinião pública. Seu objetivo é seguir no posto a todo e qualquer custo e, se lograr êxito, punir aqueles que considera hoje seus mais ferozes inimigos. Nesse trecho, há uma tentativa de criar uma imagem de vilã para Dilma, aliada à figura de louca, construída no decorrer da reportagem, mostrando-a como uma general ou figura de oficial do exército que, em Grifos nossos. Disponível em: http://psychologicalkingdom.blogspot.com.br/2011/06/as-cinco-fases-doluto.html. Acesso ago 2016. 26 27 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 170 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki situação de guerra, puniria seus inimigos. Todavia, seguindo o texto, eles tomam a imagem de um general como modelo perfeito de governante, causando desentendimento ou dúvida nessa controversa mudança de posicionamento perante uma postura mais agressiva: Recorte 6 É bem verdade que Dilma nunca se caracterizou por ser uma pessoa lhana no trato com os subordinados. Mas não precisa ser psicanalista para perceber que, nas últimas semanas, a presidente desmantelou-se emocionalmente. Um governante, ou mesmo um líder, é colocado à prova exatamente nas crises. E, hoje, ela não é nem uma coisa nem outra. A autoridade se esvai quando seu exercício exige exacerbar no tom, com gritos, berros e ofensas. Helmuth von Moltke, chefe do EstadoMaior do Exército prussiano, depois de aposentado, concedeu uma entrevista que deveria servir de exemplo para governantes que se pretendam grandes líderes. Perguntado como se sentia como um general invicto e o mais bemsucedido militar da segunda metade do século XIX, Moltke respondeu de pronto: “Não se pode dizer que sou o mais bem-sucedido. Só se pode dizer isso de um grande general, quando ele foi testado na derrota e na retirada. Aí se mostram os grandes generais, os grandes líderes e os grandes estadistas”. Na retirada, Dilma sucumbiu ao teste a que Moltke se refere. Os surtos, os seguidos destemperos e a negação da realidade revelam uma presidente completamente fora do eixo e incapaz de gerir o País.28 Devido ao fato de terem se passado somente 31 anos do fim da ditadura, pode ter havido certa confusão no momento de tecer paralelos entre o governo de Dilma e o do Estado-Maior do exército prussiano. O leitor da reportagem poderia ainda ficar confuso ao ver a figura de um homem general como um bom parâmetro para um governante 28 Grifos nossos. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 171 bem-sucedido em uma democracia, sabendo que, muito recentemente, estávamos sofrendo o terror e os abusos de uma ditadura militar, mas esse tipo de deslize é recorrente nessa reportagem. Por se tratar, então, de uma crítica à figura de Dilma como mulher sã, tornando seu suposto autoritarismo mais um reflexo de sua loucura, podemos notar os efeitos negativos dos discursos que ditam um padrão feminino a ser seguido, os quais estão tão introjetados em nossa cultura e que cegam os mais ferozes críticos de supostas injustiças e despautérios, fazendo-os reproduzi-los. Nesse mesmo recorte, é colocado que “não precisa ser psicanalista para perceber que (...) a presidente desmantelou-se emocionalmente”, entretanto, como vimos no recorte 4, eles mesmos aportaram suas colocações na teoria de uma psiquiatra em uma tentativa de legitimá-las. Além do fato de psiquiatria e psicanálise serem bem distintas, o único momento em que se embasaram, ainda que de maneira insuficiente, em uma teoria, pode ser desconsiderado, já que, em seguida, eles colocam que não são especialistas em saúde mental. Apesar de esse ser um convite para o leitor endossar esse “diagnóstico”, é de se estranhar que toda essa conversa sobre loucura tenha sido feita sem nenhum aparato teórico. Em seguida, a “análise” da revista toma um caráter histórico. Buscam indícios da “loucura” de Dilma em períodos anteriores ao difícil momento de crise, como podemos ver a seguir. Recorte 7 Publicamente, a presidente tenta disfarçar seu estado de ânimo atual. Mas nem sempre é possível deixar transparecer serenidade quando, por dentro, os nervos estão à flor da pele. Seus últimos discursos refletem a tensão reinante nos corredores do Palácio do Planalto. Na quarta-feira 30, Dilma converteu o evento de entrega de moradias da terceira fase do Minha Casa Minha Vida em um palanque contra o impeachment. Na cerimônia, estiveram presentes integrantes de movimentos sociais, como o MST. Os representantes, – muitos deles chamados de última hora já que nenhum governador se dignou a ir e, dos 300 prefeitos convocados, só oito compareceram – , foram acomodados Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 172 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki em lugares destinados a convidados, onde entoaram gritos de guerra pró-governo mesmo antes de o evento começar. Os presentes chamaram o juiz Sérgio Moro, o vice Michel Temer e a OAB de “golpistas” e bradaram o já tradicional “não vai ter golpe”. Detalhe: o coro foi puxado pela militante travestida de presidente da República.29 Ao levantarem o passado de Dilma, que gera muitas controvérsias por ter sido forte militante no período da ditadura militar, tentam alvejar seu caráter. Além do comentário transfóbico30, colocando que a presidenta é uma “militante travestida de presidente da República”, causando um efeito de sentido negativo ao que se travestir significa, essa afirmação coloca que Dilma Rousseff não é uma presidenta (apesar de ter sido legitimamente eleita), mas uma militante que ocupa falsamente esse lugar. Recorte 8 Durante a campanha eleitoral, a presidente Dilma Rousseff pagou para seus marqueteiros desenvolverem e disseminarem o nocivo “discurso do medo”. Espalhou o pavor entre os brasileiros mais carentes dizendo que, se seus concorrentes Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (na época no PSB) ganhassem a eleição, os programas sociais estariam em risco. Funcionou. Hoje, cara a cara com o impeachment, ela coloca sua tropa de choque novamente para atemorizar a população.31 Para deixar a imagem de malvada louca ainda mais consistente, a revista recorre ao “discurso do medo”. E que discurso seria esse? Vladimir Safatle, filósofo brasileiro, coloca em seu livro O circuito dos afetos, entre diversos outros conceitos, o de que a sociedade é gestada a partir de Grifos nossos. Consideramos, neste artigo, como transfóbica, qualquer atitude, dizer ou manifestação negativa em relação às pessoas travestis, transexuais e transgêneros, o que está se tentando fazer ao colocar que Dilma está travestida de presidente. 31 Grifo nosso. 29 30 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 173 sentimentos de medo e de esperança em que um não existe sem o outro. Independentemente de posicionamento ou hierarquia política, o medo e a esperança aparecem em nossos dizeres e em nossas ações. Em todo o terror midiático construído sobre uma temida esquerda comunista que parece estar umbilicalmente ligada ao PT, no recorte acima é trazido que os marqueteiros de Dilma, como integrantes de um BOPE humanitário, teriam inculcado nas propagandas partidárias que programas sociais estariam em risco caso a oposição ganhasse as eleições. Por mais que saibamos que esse tipo de colocação pode fazer com que as pessoas votem por medo de perder benefícios, os jornalistas colocam esse artifício somente como ligado ao PT e não a uma gestão social que mantém o mundo, não só o Brasil, tal como é. Recorte 9 Não bastasse a repetição da retórica cretina da campanha eleitoral, a presidente disse nos últimos dias que o que está se vendo o País é um verdadeiro “nazismo”, sem lembrar que o discurso do “nós contra eles” foi gestado e cultivado por sua equipe. A Presidenta fez diversas colocações infelizes durante todo esse processo, mas isolar uma menção feita ao nazismo para defender um ponto de vista, é desconsiderar o contexto em que isso foi dito, ponderando o fato de que ataques específicos à Dilma estavam sendo feitos por ela ser mulher, pois em nenhum momento foram feitas colocações contra suas habilidades reais e não mentais para governar um país. Tais ataques reafirmavam um conceito de nação como algo a ser colocado acima da individualidade da Presidenta e de possíveis falhas e fragilidades que, como ser humano, ela apresentou. Considerando esse cenário, acreditamos que foi um comentário desnecessário por parte da Presidenta, mas não sem razão, em uma tentativa de mostrar o que tem sido feito na mídia como um todo e também nessa reportagem: os supostos interesses da nação, de acordo com a reportagem, devem ser colocados acima da individualidade de Dilma, questionando sua moral, seu comportamento, os remédios que Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 174 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki toma e sua saúde mental, como um governo autocrático, por exemplo, da maioria da Câmara dos Deputados, da direita extrema e da mídia, que buscasse se sobrepor de modo fascista à democracia, afinal, não importa se seu afastamento é constitucional ou não, mas, sim, que existe um bem maior a ser protegido e reconquistado, independentemente de como isso vá ser feito. No fim da reportagem, ainda é apresentada uma analogia da presidente Dilma como a rainha Maria I, que podemos verificar no recorte a seguir: Recorte 10 As diabruras de “Maria, a Louca” Não é exclusividade de nosso tempo e nem de nossas cercanias que, na iminência de perder o poder, governantes ajam de maneira ensandecida e passem a negar a realidade. No século 18, o renomado psiquiatra britânico Francis Willis se especializou no acompanhamento de imperadores e mandatários que perderam o controle mental em momentos de crise política e chegou a desenvolver um método terapêutico composto por “remédios evacuantes” para tratar desses casos. Sua fórmula, no entanto, pouco resultado obteve com a paciente Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança, que a história registra como “Maria I, a Louca”. Foi a primeira mulher a sentarse no trono de Portugal e, por decorrência geopolítica, a primeira rainha do Brasil. O psiquiatra observou que os sintomas de sandice e de negação da realidade manifestados por Maria I se agravaram na medida em que ela era colocada sob forte pressão.32 É dito que Maria I “foi a primeira mulher a sentar-se no trono de Portugal e, por decorrência geopolítica, a primeira rainha do Brasil”, logo, essa comparação não foi aleatória, visto que Dilma foi a primeira mulher a ocupar a presidência do Brasil. É colocado em evidência que as primeiras mulheres a assumirem cargos comumente atribuídos a homens foram loucas, histéricas. Além disso, foi colocado que mulheres não aguentam 32 Grifo nosso. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 175 pressão desse tipo de cargo e de suas responsabilidades, reforçando mais um traço do estereótipo de mulher e sua loucura/histeria. Vemos, então, mais uma vez, o preconceito de gênero disfarçado de crítica política. Esse desfecho endossa o que apontamos durante a análise dessa reportagem: que não foi feita nenhuma crítica a Dilma enquanto presidenta, mas, sim, a Dilma enquanto mulher. Isso, pois, não foram questionadas suas decisões feitas como presidenta, mas seu comportamento demasiadamente histérico ou, como pudemos notar, demasiadamente feminino33. Retomamos, então, Scott, quando diz que [o] gênero foi utilizado literalmente ou analogicamente pela teoria política, para justificar ou criticar o reinado de monarcas ou para expressar relações entre governantes e governados. Pode-se esperar que tenha existido debate entre os contemporâneos sobre os reinos de Elizabeth I da Inglaterra ou Catherine de Médices na França em relação à capacidade das mulheres na direção política; mas, numa época em que parentesco e realeza eram intrinsecamente ligados, as discussões sobre os reis machos colocavam igualmente em jogo representações da masculinidade e da feminilidade (1995, p. 89-90). A alta política, ela mesma, já é um conceito de gênero porque estabelece a importância decisiva de seu poder público, assim como suas razões de ser e a realidade da existência da sua autoridade superior, precisamente graças à exclusão das mulheres do seu funcionamento. O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição masculino/ feminino, ao mesmo tempo fundamentando seu sentido. Para reivindicar o poder político, a referência tem que parecer segura e fixa fora de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Dessa forma, a oposição binária e o processo social das relações de gênero, tornam-se parte do sentido do poder. Colocar em questão ou mudar um aspecto desse sistema o ameaçaria por inteiro. 33 Pelo que é considerado feminino nessa reportagem. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 176 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS IMAGENS DA BELA E DA FERA Neste artigo apresentamos uma breve análise que convida os estudiosos da área a aprofundarem algumas discussões e diálogos acerca dos discursos sobre mulheres na mídia, seja de “belas, recatadas de ‘do lar’” ou de loucas e histéricas. Observamos nas matérias analisadas que a mulher é atacada por várias frentes em diversos ângulos. Marcela Temer, quando enquadrada no padrão ideal de mulher, e Dilma Rousseff, colocada enquanto histérica, mostra como os dizeres sobre o gênero feminino são construídos na sociedade, principalmente pela mídia. Pelo que vimos, cabe à mulher o governo dos espaços privados (mais especificamente, do lar) e aos homens a governabilidade pública, já que, enquanto Temer fuma charutos e toma vinho depois de exaustivos dias de trabalho, Dilma perde o controle de si (quem dirá do país) e é medicada para esquizofrenia. O fato de as duas reportagens terem autoria ou coautoria de mulheres também não pode passar em branco, pois, por mais que haja editoriais e vertentes específicas tanto na IstoÉ como na Veja, ver que as críticas mais duras são trazidas por mulheres atacando outras mulheres, mostra o quanto discursividades que ditam um padrão feminino e que buscam cercear o comportamento, as ações, a carreira e os dizeres das mulheres, sobrepõem-se à individualidade daqueles que os reproduzem. Entretanto, é válido considerar que talvez colocar mulheres como autoras ou coautoras possa ser um subterfúgio para que a reportagem não seja taxada como machista. Não buscamos, aqui, denunciar os autores dos textos em específico, mas lembrar que “posicionar-se implica em responsabilidade por nossas práticas capacitadoras” (HARAWAY, 1995, p. 27), ou seja, por mais que sejam somente posições-sujeito criadas a partir de determinado conceito, há uma responsabilidade sobre o que é dito e reproduzido em seus dizeres que, aqui, consideraremos saberes localizados em determinado acontecimento. Esses [s]aberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 177 escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade de conhecimento ‘objetivo’” (HARAWAY, 1995, p. 36) As colocações feitas em ambas reportagens acabam por legitimar uma realidade que as mulheres envolvidas não vivem, pois ambas exercem profissões na esfera pública e desconsideram toda a agenda normatizadora que busca regular o que é ser mulher, o que é feminino. Os saberes localizados que reproduzem são atores e agentes de um objetivo que busca cercear e limitar as mulheres a um lugar específico. Mulheres em posição de poder geram críticas geralmente relacionadas à tirania e à loucura, tanto no governo quanto em cargos executivos. Desde a visão da mulher como “bela, recatada e ‘do lar’” a novas gerações de Marias Is, é mostrado como ainda prevalece a distância do gênero feminino de uma posição de domínio nas esferas de poder. Conquistamos espaços e direitos, mas ainda precisamos sujeitar nossos corpos ao Estado ou a maridos e provar nossa sanidade, diariamente. No contexto do golpe político-midiático, perceptível nas reportagens analisadas, foi feito um cerceamento feminino de maneira mais contundente, buscando deslegitimar posições e engessar identidades. Em Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo, Judith Butler coloca que, por vezes, discursos adquirem autoridade de produzirem o que nomeiam, por citarem convenções de autoridade, ou seja, essas reportagens que aqui analisamos, só tiveram espaço, repercussão e voz, por estarem reproduzindo convenções de autoridade que atravessam não só discursos midiáticos, mas dizeres sobre o feminino como um todo. Esses esquemas regulatórios, coloca a autora, não são estruturas intemporais, assim como as reportagens apresentadas não podem ser desprendidas de seu contexto de produção, mas são critérios historicamente revisáveis de inteligibilidade que produzem e submetem corpos que pesam, logo, fazem parte de uma continuidade histórica na qual estamos inseridos, e que reproduz a ideia de que existem corpos que importam mais do que outros, ou que pesam mais do que outros, por estarem submetidos e terem sido produzidos por determinada lógica. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 178 Giulia Mendes Gambassi e Thaís Tiemi da Silva Yamasaki Então, dados os resultados de análise, [a]gora não é mais possível analisar discursos sobre gênero, onde quer que ocorram sem reconhecer as maneiras pelas quais estão implicados em processos mais amplos de mudança econômica e política muito além do controle das comunidades locais. A experiência pessoal do gênero e das relações de gênero está ligada ao poder e às relações políticas em diversos níveis. Uma consequência disso é que fantasias de poder são fantasias de identidade (MOORE, 2000, p. 35). Isso, pois as imagens construídas, bela para Marcela e fera para Dilma, estão ligadas a uma situação política de disputa de poder que extrapola a individualidade dos autores, criando posiçõessujeito que legitimam ideias fantasiosas de ambas as figuras, sendo fantasias de poder, mas também fantasias de suas identidades. Enquanto paira sobre Marcela a figura da mulher perfeita, que obedece a padrões estéticos e comportamentais independentemente de seus desejos e de sua individualidade, cola-se em Dilma um espectro de loucura, de descumprimento de regras e de convenções que a colocam em uma categoria de “submulher” ou até de “sub-humana”. Como explicamos na introdução deste artigo, o uso de uma analogia com o conto “A Bela e a Fera” não foi em vão. No decorrer das análises tentamos ressaltar que, enquanto Marcela era, literalmente, tida como bela, Dilma foi colocada no lugar de fera. Entretanto, além disso, no fim do conto, a Bela e Fera encontram um ponto comum, assim como Dilma e Marcela. Para a Bela e a Fera, o amor era o que os unia, já para Dilma e Marcela, os sentidos do que é feminino na sociedade atual as normatiza e as faz serem categorizadas ignorando subjetividades ou qualquer item que as classifique como humanas, mas as colocam como peças de um jogo de poder, submetidas às suas regras, representando imagens específicas. Não buscamos, aqui, desfazer um feitiço para que a Bela e a Fera fiquem juntas, tal qual o conto, mas mostrar que a normatização do feminino é atroz e precisa ser discutida urgentemente. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 “A Bela e a Fera”- As mulheres e a política... 179 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 151-172. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: Cadernos Pagu, n. 5, 1995, pp.7-42. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de Janeiro: Imago, 1998. MOORE, Henrietta. Fantasias de Poder e fantasias de identidade: Gênero, raça e violência. Cadernos Pagu (14), 2000. MOORE, Henrietta. Understanding sex and gender. In: INGOLD, Tim. (org.) Companion Encyclopedia of Anthropology, Londres: Routledge, 1997. pp. 813-830. (tradução didática) ROCHA, Tiago H. Rodrigues. O que a histeria pós-moderna tem a denunciar? In: AMBRA, Pedro Eduardo Silva; SILVA JR. Nelson da (Orgs.). Histeria e Gênero. São Paulo: nVersos, 2014. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. São Paulo, Cosac Naify, 2015. SCOTT, Joan. Gênero como categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, jul/dez 1995, pp. 71-99. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 149-180, fev./dez. 2016 AS MULHERES NO CAMPO POLÍTICO: GRAMÁTICAS DISCURSIVAS EM TORNO DE GÊNERO NO CONTEXTO DO IMPEACHMENT Lauren Zeytounlian1 Lorena R. P. Caminhas2 Marcela Vasco3 Natália Negretti4 Vanessa Ponte5 RESUMO: Neste ensaio investigamos os discursos midiáticos acerca de gênero difundidos em três distintos momentos da política contemporânea brasileira: a eleição e posse da presidenta Dilma Rousseff; o processo de impeachment instaurado em dezembro de 2015 e finalizado em agosto de 2016; e o estabelecimento do governo interino de Michel Temer. A análise foi realizada a partir de matérias jornalísticas veiculadas em jornais, revistas e portais online do país no período dos acontecimentos (predominantemente textos da primeira metade de 2016). Complementarmente, analisamos os comentários de internautas relacionados às reportagens. O material estudado revelou que os principais enunciados expressavam uma retomada do espaço doméstico como lugar da mulher e enfatizavam uma incapacidade das mulheres para assumir cargos de relevo na vida pública, constituindo-se como argumentos mobilizados para legitimar o impedimento de Dilma. PALAVRAS-CHAVE: Impeachment. Discursos Midiáticos. Gênero. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: laurenzeytounlian@gmail.com 2 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: lorenarubiapereira@gmail.com 3 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: marcelavasco.doc@gmail.com 4 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: nanegretti@gmail.com 5 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: nessaponte@gmail.com 1 182 Lauren Zeytounlian et al. INTRODUÇÃO Em maio de 2016, nós, estudantes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), seguidas6 posteriormente por funcionárias e professoras da instituição, deliberamos em assembleia pela realização de uma greve geral pautada pelo mote “Cotas, sim! Cortes, não. Contra o golpe, pela educação, permanência e ampliação”. Com a paralisação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), nossa disciplina eletiva Teoria de Gênero I: Gênero e Sexualidade do curso de Doutorado em Ciências Sociais foi interrompida. Durante a greve continuamos nos reunindo no mesmo horário destinado às aulas com o intuito de debatermos a atual conjuntura política do país e nos posicionarmos como pesquisadoras da área de gênero e sexualidade. O texto que apresentamos a seguir é fruto desses encontros e das reflexões motivadas por eles. Com a difícil tarefa de escrever a dez mãos, oferecemos um ensaio crítico ao invés de uma análise acabada resultante de uma densa pesquisa de campo. Ressaltamos que o processo de impedimento da presidenta eleita Dilma Rousseff ainda está em curso no momento em que finalizamos este texto, de modo que nossa reflexão ocorre no calor dos acontecimentos. Nestas páginas convidamos à leitora a acompanhar conosco um pequeno percurso da recente história do país e a refletir sobre a conjuntura em que o impeachment está se desenvolvendo, principalmente no que diz respeito às questões de gênero. Realizamos uma análise de algumas narrativas que povoaram as matérias publicadas sobre o afastamento da presidenta Dilma Rousseff e a formação do governo interino de Michel Temer, divulgadas em veículos de comunicação nacionais. A seleção das notícias visa elucidar a complexidade do contexto, principalmente quando se trata de compreender os diversos sentidos em torno de temas como gênero. O cenário político instaurado e as falas que nele circulam dialogam com outras formações discursivas em nossa sociedade, revelando a dificuldade de dissociar os diversos significados que estão em jogo na conjuntura atual. Nesse Decidimos por universalizar o gênero feminino neste texto. Tal escolha problematiza a universalização do masculino, tomada como a forma habitual da escrita. 6 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 183 momento, o que presenciamos é uma ebulição de narrativas diversas em torno da mulher, que estão imiscuídas no campo político. As reportagens elencadas relatam episódios desse processo político, histórico e social, trazendo à tona a complexidade e diversidade de tais representações. Elencamos oito matérias que abordaram a posse da presidenta eleita, o seu afastamento e a formação do governo interino de Temer, publicadas em sua maioria pelo portal de notícias G1 e também pelos portais das revistas Exame e Istoé e pelo jornal Folha de São Paulo. O foco do trabalho é a análise das matérias e dos temas abordados, bem como os comentários publicados na internet por leitores e leitoras. As principais questões que nortearam a investigação foram: quais os principais discursos de gênero predominam no contexto do impeachment? Que tipos de gramáticas morais7 eles sustentam? Quais são as principais terminologias utilizadas nas reportagens e nos comentários? O que essas terminologias informam sobre gênero? Ao levantarmos tais questões, propomos um debate acerca das representações de gênero presentes no material analisado e discutimos como elas se revelam e ressoam na nossa sociedade. ENFOQUES TEÓRICOS Para a elaboração deste ensaio acionamos o conceito de “campo político” de Pierre Bourdieu (1989)8, compreendido como um espaço no qual predominam lutas simbólicas que informam e conformam os sujeitos nele inseridos. Como um espaço social, o A expressão “gramáticas morais” refere-se ao conjunto de pressuposto acionados a respeito das condutas/ discursos que podem ser performadas/proferidos na esfera pública que estão de acordo com as normatividades vigentes em determinados períodos históricos e formações sociais. No presente texto, trata-se de compreender quais enunciados são considerados possíveis de serem proferidos (não são imorais, isto é, respeitam as regras tácitas que determinam as normas morais) a respeito de gênero no contexto do impeachment. 8 O campo político “é o espaço em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, em que os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de consumidores, devem escolher com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção” (BOURDIEU, 1989, p.164). 7 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 184 Lauren Zeytounlian et al. campo político está em constante diálogo com outras instâncias da sociedade, e também com os veículos de comunicação que produzem e divulgam representações e interpretações sobre as realidades contemporâneas. As redes sociais, principalmente os canais que estão diretamente atrelados às corporações midiáticas, também adentram no campo do político, exercendo um tipo de retroalimentação (respostas ao que circula nos meios), mas que se instaura em uma temporalidade distinta. No que concerne ao contexto brasileiro, muitos portais de notícias possuem sites e blogs, bem como páginas em redes sociais como o Twitter e o Facebook, elementos que ampliam o acesso aos conteúdos publicados. Tais canais de comunicação possibilitam a participação das leitoras nos conteúdos que os media produzem através de comentários. Outro componente que figura nesse ensaio e que se apresenta como um desafio teórico no campo de estudos de gênero são as transformações nas esferas públicas e privadas, na medida em que ambas passam a compor o espaço da política. Como adverte Adriana Piscitelli (2002), a conhecida expressão “o pessoal é político” foi estabelecida para mapear o poder e as desigualdades no interior das relações íntimas e reforçar que o “político é essencialmente definido como poder” (PISCITELLI, 2002, p. 6). Tal compreensão dos diálogos entre o político e o público/privado colabora para entendimento de como questões que seriam consideradas particulares aparecem no terreno das disputas sociais públicas, principalmente as que estão em torno de gênero. No presente trabalho os dispositivos midiáticos são compreendidos como instâncias de formação e sustentação de discursos morais que fundamentam quem pode (e quem não pode) se pronunciar, baseando-se na legitimidade dos sujeitos e também naquilo que pode ser pronunciado, instituindo a inteligibilidade de determinadas falas. Destarte, tais dispositivos configuram espaços morais através dos quais textos e imagens circulam, produzindo representações sobre os indivíduos e os contextos que abordam. Neste exercício de reflexão, partimos do pressuposto de que os comentários realizados no contexto dos textos midiáticos expõem possibilidades discursivas abertas dentro da conjuntura atual, apontando Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 185 para os contornos morais que perpassam o momento político. A inserção de determinados discursos e imagens na esfera pública (e também na midiática) depende de um reconhecimento prévio desses discursos e imagens como proferimentos possíveis, isto é, como expressões que possuem legitimidade e inteligibilidade dentro de determinados contextos. É imprescindível que os sujeitos que sustentem tais falas e representações pictóricas sejam considerados interlocutores legítimos, indivíduos que contam dentro da distribuição sensível dos arranjos sociais (RANCIÈRE, 2007), que possuem falas audíveis e inteligíveis (que não se configuram como mero ruído). O princípio que sustenta a legitimidade dessas pessoas é a partilha de uma humanidade comum (BUTLER, 2010), fomentada pela consideração da dependência mútua para a formação do self. Sendo assim, aqueles que são considerados seres humanos participam de um mundo compartilhado, no qual inscrevem suas enunciações; os outros estão à mercê da vulnerabilidade, na medida em que não são seres que importam (BUTLER, 2002), se constituindo como existências inabitáveis. Na base dessas discussões estão inscritas normas morais que coordenam a vida social e delimitam as restrições a determinados tipos de sujeitos, discursos e imagens. Ademais, conforme salienta Michel Foucault (2007), para compreendermos como a normatização dos corpos se estabelece na sociedade ocidental, é preciso considerar o poder como disperso e fragmentado: o “micropoder”. Dessa forma, analisando os dispositivos pelos quais esses “micropoderes” se manifestam, discorreremos sobre as matérias e os comentários elencados desde a posse de Dilma até o início do governo interino de Temer, buscando desvelar as ideias expostas sobre gênero, percebendo seus sentidos e significados, bem como o modo como ressoam socialmente. A POSSE DA PRESIDENTA DILMA Os comentários mais recorrentes nas mídias sociais após a posse da primeira presidenta da história do Brasil não estavam ligados às metas do seu plano de governo nem ao seu discurso, mas sim à vestimenta Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 186 Lauren Zeytounlian et al. escolhida para o ritual. O conjunto de saia e blusa rendadas, de cor neutra, encomendado à designer gaúcha Juliana Pereira, especialista em vestidos de noivas, ganhou destaque na mídia. As matérias discorriam sobre a vestimenta de Dilma, esmiuçando seus mínimos detalhes de cor, comprimento, tecido, corte, e também sobre o corpo da presidenta recémeleita: sua silhueta, seu porte e a adequação do figurino à sua idade foram minuciosamente julgados. No dia seguinte à posse do segundo mandato de Dilma, a revista Exame publicou em seu site uma matéria intitulada Os melhores tuítes sobre o vestido de Dilma na posse9. Nela, a jornalista Mariana Fonseca, autora da matéria, ressalta que “Após uma dieta severa, Dilma apresentou uma silhueta cinco quilos mais magra durante sua posse, segundo a revista Veja. A meta é perder mais sete quilos. Mesmo assim, o vestido teria evidenciado a silhueta em ‘A’10 da presidente”. Alguns dos tuítes11 destacados pela matéria comparam pejorativamente o vestido de Dilma a “capas de botijões de gás”: o “Modelito da posse de DILMA q12 discretamente homenageou a Petrobras”, ou ainda “Alguém pegou o paninho de cobrir o botijão de gás e vestiu na Dilma”13. Com relação ao porte da presidenta, seguem os mesmos julgamentos pejorativos. “Eu fico impressionada com a deselegância – do vestir, do andar, do jeito de ser”, afirmou uma internauta, enquanto outro ironiza: “Dilma estava elegantíssima vestindo estilo retrô ‘crochê abajur da tia’, causando inveja a cronistas sociais da economia. LINDA, LINDA!”. Disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/roupa-de-dilma-rousseff-naposse-chama-a-atencao-no-twitter. 10 O comentário busca fazer uma analogia entre o formato da letra “A” e o corpo de Dilma, composto por ombros estreitos e alargamento na parte inferior. Tal tipo de analogia entre corpos e formas geométricas (“corpo de triângulo invertido”), corpos e frutas (“corpo em formato de pera”) é muito comum no jornalismo de moda. 11 Textos postados por internautas na rede social Twitter. 12 Esta é uma abreviação comum para “que”. Optamos por manter a forma linguística adotada nos comentários. 13 Trechos extraídos de comentários na internet. 9 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 187 Segundo os comentários acima – destacados pelo texto da revista Exame como sendo os “melhores” –, a aparência e performance de Dilma estão ligadas a um corpo que não atende aos padrões de beleza femininos estabelecidos pela sociedade, um corpo necessariamente jovem, branco, magro, “elegante”. Na matéria da Exame, embora a autora não expresse claramente ao longo do texto sua opinião sobre o vestido, é possível indicar seu posicionamento ao considerarmos o título da matéria e os comentários elencados para julgá-lo. A matéria Look de Dilma na posse divide estilistas famosos14, publicada pelo jornal Folha de São Paulo, busca dar espaço aos críticos e também aos defensores da vestimenta escolhida pela presidenta. Um dos estilistas entrevistados pela matéria foi o pernambucano Walério Araújo, que foi bastante categórico: “as medidas maiores [da presidenta] não permitem cores muito claras, pois mostram todas as imperfeições do corpo”. Já os especialistas que elogiaram o vestido, por outro lado, criticaram o porte da presidenta, como o paulista Reinaldo Lourenço, ao afirmar que Dilma “acertou ao mostrar ‘uma fragilidade e feminilidade que não tem’”. No entanto, sob a suposta imparcialidade do jornal, que tentou reunir elogios e críticas, o assunto da vestimenta de Dilma continuou rendendo mais discussão do que jamais ocorreu com qualquer outro presidente que tenha assumido o país. Ronaldo Fraga é o único na matéria a apontar tal incoerência: “Ela tem 67 anos e ocupa um cargo decisivo para o Brasil. Não dá pra entrar na ‘pequenez’ de falar de moda”. Chamar atenção para a centralidade que a aparência física assume na posse da primeira presidenta do país é fundamental para entendermos a disseminação de discursos que visam estabelecer o lugar das mulheres, bem como disciplinar e normalizar a forma como elas lidam com seus corpos. As críticas severas sobre sua imagem são realizadas em referência ao modelo de beleza proposto socialmente. Discursos difundidos por instituições de saúde, moda e comunicação encontram seu respaldo também em comentários de internautas – muitas vezes anônimos. Tais discursos têm por ensejo reforçar a ideia de que é imprescindível estar Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1570468-look-de-dilmana-posse-divide-estilistas-famosos.shtml. 14 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 188 Lauren Zeytounlian et al. constantemente vigilante aos mínimos detalhes da sua aparência física, tendo um autocontrole minucioso acerca das ações referentes a cada parte do corpo. Esses discursos reforçam também o argumento de que o indivíduo deve tomar conta de si. Tais cobranças sociais são ainda maiores no que se refere ao corpo e à aparência física das mulheres. O AFASTAMENTO DE DILMA ROUSSEFF Em 12 de maio de 2016, pouco mais de um ano após a eleição de Dilma, o plenário do Senado Federal aprovou a abertura do processo de impeachment contra a presidenta, sob a acusação de ter promovido crime de “pedaladas fiscais” em seu governo. Durante o processo, a revista Istoé publicou a reportagem Uma presidente fora de si15, na qual é apontado um suposto desequilíbrio emocional, ou, como ressalta a matéria, estar “fora de si” em virtude do processo de impedimento. A edição da revista trouxe em sua capa uma foto de Dilma aparentemente aos berros, o que desencadeou uma série de respostas por parte de outros veículos da imprensa, como foi o caso da revista Carta Capital16, que destacou como as mulheres têm sido deslegitimadas no cenário político nacional. Segundo a matéria da Istoé, Dilma estaria emocionalmente incapaz de governar o país: “Não bastassem as crises moral, política e econômica, Dilma Rousseff perdeu também as condições emocionais para conduzir o governo”, afirma a matéria. A presidenta é ainda comparada à Maria I, que no século XVIII tornou-se a primeira mulher a ocupar o trono de Portugal e primeira rainha do Brasil, tendo sido afastada do governo por estar fora de si e por “negar” a realidade. Como destaca a matéria da revista: O psiquiatra [Francis Willis] observou que os sintomas de sandice e de negação da realidade manifestados por Maria I se agravaram na medida em que ela era colocada sob forte pressão. “Maria I, a Louca”, por exemplo, dizia Disponível em: http://istoe.com.br/450027_UMA+PRESIDENTE+FORA+DE+SI/. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/quando-a-misoginiapauta-as-criticas-ao-governo-dilma. 15 16 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 189 ver o “corpo” de seu “pai ardendo feito carvão”, quando adversários políticos da Casa de Bragança tentavam alijála do poder. Nesses momentos, seus atos de governo denotavam desatino, como relatou doutor Willis: “proibir a produção de vinho do Porto na cidade do Porto”. Diante desse quadro, era preciso que ocorresse o seu “impedimento na Coroa”. Quanto mais pressão, mais a sua consciência se obnubilava, até que finalmente foi “impedida de qualquer ato na Corte”. Duas figuras políticas consideradas desequilibradas e incapazes de governar e, não por acaso, duas mulheres. A comparação entre Dilma e Maria I “a louca” deixa claro as representações de gênero que povoam as páginas da mídia. A primeira rainha do Brasil e a primeira presidenta eleita são apresentadas como destituídas de capacidade emocional de gestão. Os desdobramentos do processo de impeachment podem ser ainda esmiuçados na manchete intitulada Processo de impeachment é aberto, e Dilma é afastada por até 180 dias17, do portal G1. Na matéria são descritos os trâmites envolvidos no afastamento da presidenta pelo senado e os passos subsequentes para prosseguimento do processo. O texto é iniciado com uma descrição dos principais acontecimentos durante a votação e apresenta a quantidade de votos contrários e favoráveis, juntamente às legendas de filiação dos senadores. Em seguida, são expostos trechos de entrevistas realizadas com senadores que participaram da votação e da decisão de afastamento: uma disputa entre, de um lado, argumentos que embasam a acusação de crime de “pedaladas fiscais” como motivo de abertura do processo e, de outro, denúncias de um suposto golpe de Estado, fundamentado por interesses privados dos políticos envolvidos. Já a matéria Imprensa internacional destaca afastamento de Dilma Rousseff18, também do G1, compila as principais manchetes de veículos de Disponível em: http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/ noticia/2016/05/processo-de-impeachment-e-aberto-e-dilma-e-afastada-por-ate-180-dias. html. 18 Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/05/imprensa-internacionaldestaca-afastamento-de-dilma-rousseff.html. 17 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 190 Lauren Zeytounlian et al. comunicação internacionais que acompanharam a abertura do processo de impeachment. Em destaque, está o fato de que Dilma Rousseff é a primeira mulher eleita presidenta no Brasil e de seu afastamento se configurar como um choque para a recente democracia brasileira. Outros dois temas aparecem citados na matéria: a impopularidade de Dilma e do Partido dos Trabalhadores (PT), fator que desencadeou uma revolta popular em relação à corrupção e à política econômica implementada, bem como as possíveis articulações de Michel Temer para conseguir alcançar o poder. Na seção de comentários dessas duas matérias, percebe-se que os enunciados travaram uma disputa entre os indivíduos favoráveis e os contrários à abertura do processo de impeachment. Nesse contexto, as postagens feitas eram comentadas exaustivamente na tentativa de desqualificar o argumento contrário, conforme é possível notar nos excertos abaixo: TIRSO DUARTE: Ela vai, mas ELA VOLTA! Vamos incendiar o país nos próximos meses. Não haverá um dia de paz para os golpistas! Haverá greves, ocupações, travamentos depredações. As universidades federais irão parar! O Senado será obrigado a trazer ela de volta, senão nós vamos invadir o Congresso Nacional! EDUARDO: Vai pro banheiro Tirso MARIO: Tirso Duarte VAI TRABALHAR VADIA MARCOS: Tirso, dá uma cagadinha pra criar mais espaço no seu cérebro! LUANA MARA: Bandido faz isso mesmo!! PT incentiva a violência e desacato!! Bando de marginais, não vamos deixar!! (TRECHOS extraídos de comentários da internet). Nos comentários, não há indícios de tentativas de discussão baseada em argumentação; pelo contrário, aparecem agressões e opiniões sustentadas como verdades absolutas, proferidas, na maioria das vezes, em oposição às argumentações contrárias: os indivíduos que apoiam o impedimento apresentam-no como a melhor saída para a crise Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 191 política e econômica do Brasil, apontando diversas motivações para a admissibilidade do processo; os contrários ao afastamento da presidenta eleita caracterizam o impeachment como “golpe”, buscando demonstrar as brechas que possibilitam sua defesa. Um recurso muito comum utilizado pelos internautas é desqualificar aqueles que possuem posições divergentes, como podemos observar a seguir: GLAUCO RODRIGUES: Esse Maurício é um idiota. Deve ser um que se beneficiou com os benefícios do governo e agora se acha rico, com isso se acha com autoridade para criticar algumas regiões e classes sociais do Brasil. Infelizmente no Brasil política social será sempre combatida pelas elites que não aceitam a ascensão dos mais pobres, com medo de ter que pagar um salário digno pra babá, pro jardineiro, porteiro, etc. FATO. JOÃO ANTUNES: quem colocou eles lá foram vcs apoiando um processo viciado de impiachment...suas antas... LUCAS ROLIM: Até que em fim o PT e os PETISTAS voltaram para onde jamais deveriam ter saído: o papel de oposição barulhenta e histérica ANDRÉ: “e poeirenta, para não dizer.. suja WILSON CURI: Demônios devem viver nas trevas. Demônios são vermelhos, mentirosos, agressivos, terroristas, parasitas (TRECHOS extraídos de comentários da internet). Nessa primeira análise dos comentários, além da utilização de enunciados de oposição para rebater opiniões contrárias, aliada às estratégias retóricas para desqualificar as possíveis interlocutoras (situando-os como burras, incompetentes, ignorantes, alienadas, massa de manobra política), notou-se outra questão fundamental sobre os discursos que circularam sobre o impeachment: o menosprezo às figuras políticas as quais se opõem os comentadores das matérias. Na maioria dos comentários, Dilma Rousseff era o principal alvo de xingamentos e frases depreciativas, muitas das quais enfatizavam o fato de sua incompetência ter relação com ser mulher. Além disso, há xingamentos e palavrões acionados para se referir Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 192 Lauren Zeytounlian et al. à Dilma como “vadia”, “maldita”, “capeta”, “anta”, “burra”. A configuração exposta acima revela os caminhos para a fundamentação de discursos polarizados. Compreende-se que a utilização de tais estratégias discursivas serve para eliminar a legitimidade do sujeito de quem se fala ou com quem se dialoga, revelando sua incapacidade e inabilidade de compartilhar o mundo comum - porque são ignorantes, burras, nordestinas, pretas, pobres, coxinhas, petistas. Se tais pessoas não são reconhecidas como iguais, então elas podem ser atacadas a partir de todo tipo de enunciado degradador. Ao criar essa separação radical entre o eu e o outro, rompe-se com o princípio de dependência mútua (BUTLER, 2006), tornando possível sujeitar o outro à humilhação, à violência e à desconsideração social. O GOVERNO TEMER Após o afastamento de Dilma, Michel Temer assume como presidente interino e escolhe apenas homens para a composição dos ministérios de seu governo. Para analisarmos algumas narrativas em torno do início de sua gestão, verificamos um infográfico do G1 sobre a formação do governo interino intitulado Um mês do governo Temer19, uma espécie de dossiê publicado pelo portal com as principais notícias divulgadas durante seu primeiro mês de governo. Dessa série de 30 matérias vinculadas ao infográfico, enfocaremos mais precisamente em duas: Michel Temer tem dia de articulações políticas em Brasília20, uma matéria do Jornal Nacional disponibilizada pelo portal do G1, e Temer Recebe 20 deputadas após crítica sobre ministério masculino21. A primeira matéria aborda a configuração do novo governo: anuncia os ministérios que serão mantidos, elenca os prováveis ministros, aponta os ministérios que serão extintos e apresenta os partidos que constituem a Disponível em: http://especiais.g1.globo.com/politica/2016/um-mes-de-governo-temer/. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/05/michel-temer-temdia-de-articulacoes-politicas-em-brasilia.html. 21 Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/05/temer-recebe-bancadafeminina-da-camara-apos-criticas-sobre-ministerio.html. 19 20 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 193 base de apoio de Temer – partidos que, de acordo com o G1, apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff. A segunda aponta a tentativa de Michel Temer de contemplar mulheres no alto escalão de sua gestão, sobretudo após sofrer críticas acerca de sua equipe ministerial masculina e branca. Nessas matérias, os discursos que incitavam o ódio estavam mais presentes. As tentativas de ferir e ofender ganharam centralidade. Os comentários que mais chamaram atenção foram: “sangue vermelho é o que vai sair da buceta da sua mãe depois de eu arrobar ela, viado”, “Já perdeu otário, vai se fuder vc a sua mãe deve tá no inferno por ter parido vc”, “Demônios devem viver nas trevas. Demônios são vermelhos, mentirosos, agressivos, terroristas, parasitas” e “Mortadela bom é mortadela morto” (TRECHOS extraídos de comentários da internet). Nesses comentários existe uma junção entre política e religião, por isso vale ressaltar apontamentos em outros meios de informação em que essa confluência foi retomada no processo de impeachment. O Jornal El País, ao abordar a votação na câmara dos Deputados, intitulou a matéria como Deus derruba a presidenta do Brasil e discorreu sobre as palavras mais utilizadas pela maioria dos deputados: Deus e Família foram constantes22. Na matéria que se refere ao primeiro dia do governo Temer, apareceram várias postagens de comemoração, afirmando que o povo tinha conseguido limpar o país da corrupção e que, finalmente, havia um gestor competente e com boa formação: “Finalmente!!!! Que dia lindo!! nemmm Temer é feio, linda é a Marcela” e “Amigo, já conseguimos o que queríamos. Obrigado por sua participação nos protestos, mas agora, ponha-se no seu lugar. Vai trabalhar e poupe-nos dos seus comentários sem cultura. Vá conversar com seus amigos pedreiros”. Muitos eram os comentários que exaltavam também a figura do presidente interino: “Desde o final do mandato do FHC, o Brasil não tinha o presidente, hoje o país voltou a ter um presidente, Graças a Deus” ou “Pelo menos Temer tem formação, estudou bastante, é um cara inteligente e acredito que dará conta do recado! Pelo menos não estamos nas mãos de uma orelhuda Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/18/politica/1460935957_433496. html. 22 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 194 Lauren Zeytounlian et al. marionete de 9 dedos e que mal sabe falar” (TRECHOS extraídos de comentários da internet). Nos comentários destacados é possível perceber a necessidade de desqualificar o governo do Partido dos Trabalhadores, a presidenta Dilma Rousseff e suas eleitoras. Também apareceram comentários que ressaltam características atreladas ao feminino, as quais exaltam, por exemplo, a beleza de Marcela Temer, esposa de Michel Temer, em oposição à “feiura” de Dilma, ou ainda argumentos que caracterizam a presidenta como histérica e incompetente por ser mulher ou como marionete de Lula, enfatizando sua incapacidade de decisão e liderança. Na matéria que trata da tentativa do governo interino em incluir mulheres no alto escalão dos cargos públicos, os discursos que reforçam uma posição doméstica da mulher na sociedade, enfatizando sua incapacidade para posições de governança, são bastante difundidos, trazendo imagens da mulher como dona de casa, como interesseira e histérica, bem como incapaz de tomar decisões em cargos importantes: “Mulher no comando não dá certo. A Argentina é prova disso, o Brasil é prova disso; a Alemanha, não, pq Merkel é bem assessorada e o que é melhor... Ela houve o que eles dizem”, “Mulher só sabe ‘eleger’ qual o galã mais charmoso da novela das oito...”, “CRIEM O ‘MINISTÉRIO DA CHIMBICA’ E COLOQUEM LÁ ESSA MULHERADA TONTA!” (TRECHOS extraídos de comentários da internet). Outra postagem que demonstra claramente o conteúdo da discussão na sessão de comentários das matérias elencadas neste texto é a que segue abaixo: LÚCIO ALBUQUERQUE: Não tenho nada contra ter mulher ou negros nos ministérios, mas foi assim que nasceu a zebra. Numa reunião de palpiteiro e mexeriqueiros querendo aparecer e enfeitar o cavalo, criaram a zebra que ficou bonitinha toda enfeitada com listras lembrando os negros e homenageando a mulher, mas sem qualquer eficiência produtiva (TRECHOS extraídos de comentários da internet). Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 195 Outra temática bastante presente nos comentários é a analogia entre incompetência, a reserva de cotas e a falta mulheres e pessoas negras na equipe ministerial de Temer: “Era só o que faltava nesse país....cotas nos ministérios.....” ou “Chama aquela peladona da escola de samba”. A posição do governo interino de tentar incluir mulheres em seu governo foi um dos principais pontos de crítica a Temer. Os internautas ressaltavam que o presidente interino estava apenas no início de sua gestão, mas já começava a se submeter às demandas de mulheres e pessoas negras - pessoas outras que não homens brancos cristãos heterossexuais escolarizados, consideradas incapazes de atingir a liderança por sua falta de competência: “Se começar a se preocupar com essa besteira de politicamente correto não vai pra lugar nenhum. Tem de colocar pessoas competentes e não ficar se preocupando com falatório bobo de preconceito para conseguir fazer o país andar”, “Independentemente de cor, sexo, credo e . . . o que precisamos é de pessoas com capacidade para assumir os cargos vitais para que o Brasil volte a crescer. Essa ideia de divisão de raça e culturas é coisa do PT” (TRECHOS extraídos de comentários da internet). Dessa forma, a meritocracia aparece como critério central para definição daqueles que deveriam compor o governo interino (excluindo mulheres e pessoas negras com base nessa lógica). Nesse contexto, é importante evidenciarmos as diferenças nas representações de Dilma e Marcela Temer23. Diferenças encontradas não só no cenário político, mas também no próprio curso da vida, de maneira hierárquica e etária. Dilma tem posicionamento político e entrou para a história como primeira presidenta do Brasil. Além das críticas políticas e econômicas feitas ao seu governo desde o primeiro mandato, ela tem recebido também inúmeros julgamentos ao seu corpo e modo de vestir. Como uma mulher com mais de sessenta anos e divorciada, Dilma também foi avaliada pela sua idade, sendo caracterizada inúmeras vezes como “tia”. Marcela ocupa outro lugar no cenário político: esposa de político. Com 33 anos de idade, sua juventude é vangloriada por parte da mídia. No dia 18 de abril de 2016 a Revista Veja publicou um texto, assinado pela jornalista Juliana Linhares, com o seguinte título “Marcela Temer: bela, recatada e do lar”. O texto repercutiu nas redes sociais, causando reações diversas. É a esse texto, sobretudo, que fazemos referência. 23 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 196 Lauren Zeytounlian et al. Enquanto Dilma é caracteriza como histérica e estressada, Marcela é vista como uma moça tranquila e boa esposa. Quanto à sexualidade, Dilma é estimulada a “transar mais” para combater o stress, enquanto Marcela é descrita como “bela, recatada e do lar”. Na diferença de representação dessas duas mulheres, podemos perceber claramente qual é o papel exaltado como feminino. Embora Dilma tenha ocupado o cargo mais importante do país, Marcela é quem ganha as graças da mídia, justamente por colocar-se apenas em seu lugar: o lar. OS DISCURSOS DO IMPEACHMENT Sabemos que analisar situações em torno de um contexto político e de gênero requer cuidado em torno das relações entre política, mídia e opinião. No contexto do impeachment da presidenta, os espaços midiáticos articularam discursos que reiteram as normas regulatórias do contexto social e propagam uma linguagem excludente. Discursos cujo intuito é enquadrar, classificar, distinguir, delimitar, examinar, nomear, definir corpos e maneiras para lidar com eles. O presente ensaio teve como objetivo abordar, sinteticamente, os diversos discursos que foram produzidos no contexto de transição do governo de Dilma Rousseff para o governo interino de Michel Temer, buscando compreender como eles eram produzidos e quais eram seus conteúdos. Há o intuito, também, de se criar um registro sobre o que estamos vivendo neste momento, mesmo que a partir de impressões. Nas matérias analisadas, percebemos a retomada de aspectos íntimos da vida da presidenta eleita Dilma Rousseff, tais como seu peso e suas metas para perdê-lo, suas roupas e porte. Tais aspectos passam a ser mais importantes do que a posição política de Dilma, a primeira mulher a ocupar a presidência no Brasil. Além disso, a análise demonstra qual seria o lugar das mulheres na sociedade: o espaço doméstico e os cuidados com o lar. Mais importante que destacar a competência política e formação intelectual de Dilma foi enfatizar, conforme a lógica dos padrões estéticos vigentes, sua falta de beleza, seu peso excessivo, sua falta de carisma e feminilidade. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 197 Notamos também duas estratégias centrais que foram acionadas nos comentários da internet: a) a oposição como tática retórica para demonstrar a impertinência do comentário que se pretende refutar e b) o acionamento de enunciados que menosprezavam aqueles que sustentassem opiniões contrárias à da pessoa que comenta. Esses recursos certamente ajudaram a promover uma separação radical entre sujeitos posicionados de lados opostos, permitindo que discursos preconceituosos e de ódio fossem proferidos. Diante da instabilidade política do país, agravou-se um cenário de enunciações desrespeitosas para com mulheres, pessoas negras, pobres e nordestinas, em especial defensores do Partido dos Trabalhadores ou de Dilma Rousseff. Nas sucintas análises realizadas acima, mostramos como os discursos produzidos no contexto de matérias publicadas por veículos de comunicação de grande difusão apontaram para uma tentativa de desvalorização de determinados sujeitos, principalmente mulheres, a partir da retomada de discursos conservadores24. Em relação à presidenta eleita Dilma Rousseff, percebeu-se que a maior parte dos enunciados buscou demonstrar como ela era incapaz de exercer seu cargo político, principalmente por causa de sua condição de mulher. Ser mulher esteve atrelado à histeria, ao descontrole e à domesticidade. Os sujeitos que possuem tais características foram considerados inaptos para ascenderem às esferas de poder tanto pelas matérias quanto pelos comentários. Outro ponto de destaque da investigação realizada é a proliferação de pronunciamentos que expressam ódio em relação à raça e classe: muitos dos posts mostravam como negras e pobres estavam erradas em suas escolhas eleitorais, porque supostamente apoiavam o governo de Dilma e do Partido dos Trabalhadores, e como eles não possuíam legitimidade para se posicionar, na medida em que não tinham capacidade intelectual/ moral para fazê-lo. Trata-se da retomada de valores que vigoraram em tempos passados, que se contrapõem às mudanças nos sistemas de valores, crenças e costumes. No caso do presente texto, esses discursos recobram, sobretudo, a afirmação da posição doméstica da mulher. 24 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 198 Lauren Zeytounlian et al. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, P. O Poder simbólico. 16ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del sexo. 1ª ed. Buenos Aires: Paidós, 2002. __________. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. 1ª ed. Buenos Aires: Paidós, 2006. __________. Marcos de guerra: las vidas lloradas. 1º ed. Buenos Aires: Paidós, 2010. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 18ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007. PISCITELLI, A. Recriando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, L. A prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos. Campinas: IFCH/ Unicamp, 2002, p. 7-42. RANCIÈRE, J. Ten thesis on politics. Theory & Event, Maryland, v.5, p.116, 2001. REFERÊNCIAS DE JORNAIS, REVISTAS E PORTAIS ONLINE CartaCapital, Quando a misoginia pauta as críticas ao governo Dilma. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/quando-amisoginia-pauta-as-criticas-ao-governo-dilma>. Acesso em junho de 2016. Exame, Os melhores tuítes sobre o vestido de Dilma na posse. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/roupa-de-dilmarousseff-na-posse-chama-a-atencao-no-twitter>. Acesso em junho de 2016. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 181-200, fev./dez. 2016 As mulheres no campo político:... 199 Folha de S. Paulo, Look de Dilma na posse divide estilistas famosos. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1570468look-de-dilma-na-posse-divide-estilistas-famosos.shtml>. Acesso em junho de 2016. Istoé, Uma presidente fora de si. Disponível em: <http://istoe.com. br/450027_UMA+PRESIDENTE+FORA+DE+SI/>. Acesso em junho de 2016. G1, Processo de impeachment é aberto, e Dilma é afastada por até 180 dias. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachmentde-dilma/noticia/2016/05/processo-de-impeachment-e-aberto-edilma-e-afastada-por-ate-180-dias.html>. Acesso em junho de 2016. G1, Imprensa internacional destaca afastamento de Dilma Rousseff. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/05/imprensainternacional-destaca-afastamento-de-dilma-rousseff.html>. Acesso em junho de 2016. G1, Um mês do governo Temer. 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Participando cotidianamente do debate político marcado por forte estigmatizações sociais, por vezes, tratávamos e tratamos o outro como um rival. Neste ambiente polarizado, muitas vezes, a estratégia dos sujeitos foi de ridicularizar, excluir e/ou negar o outro. Nesse sentido, este artigo é um esforço em compreender este período de atropelamentos políticos que estamos vivenciando e sentindo no cotidiano quando dentro da família temos que conviver com um “grande contrário” em tempos de crise; em revelar um conflito latente com aqueles que amamos e que esse cenário de crise não poupou. Partimos de experiências e dos relatos cotidianos para entender essas tensões políticas com tonalidades autoritárias que se acomodaram no ambiente familiar quando hostilidade e amor, enfim, se confundiram. Destacamos, ainda, as assimetrias de gênero no seio e no conflito familiar em que os estereótipos emergem do conflito político, para pensar como a negação do outro, ao mesmo tempo em que pode representar o salvamento de si, não o faz sem causar sofrimento no deslocamento e na suspensão de status na cédula familiar. PALAVRAS-CHAVE: Conflito; Estigma, massas; Redes de poder; Performatividade. Mestra em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS/UFSCar). E-mail: jusechinato@gmail.com 2 Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS/UFSCar) e doutorando em Sociologia no Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Campinas (PPGS/UNICAMP). E-mail: rodrigofsega@gmail.com 1 202 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega INTRODUÇÃO Sentados no banquinho do centro da cidade, conversando com uma senhora sobre o processo de impeachment da Presidenta da República Federativa do Brasil, reeleita em 2014, Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), e as novas direções do governo interino do vicepresidente Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), o panfleteiro de repente interrompe: “Desculpa, eu ouvi a conversa e preciso perguntar: foi golpe ou não foi?”. Daí em diante, nós3 colocamos em pauta até o Programa Bolsa Família4 e o papo continuou sem que ele deixasse de entregar os panfletos a quem passasse. O interesse pela política chegou atropelando um senhor que conversava sobre o clima com o atendente de caixa do mercado. Ao perguntar, despretensiosamente, se achava que o clima estava feio – pois temia que chovesse e ainda queria comprar uns maços de cigarro antes de voltar para casa –, o caixa respondeu que o clima estava pesado no Brasil. O senhor, confuso, sorriu desconcertado. Esse interesse atropelado chegou à padaria, às escolas, às universidades, aos jornais, aos pontos de ônibus – e dentro deles também. Chegou e ficou entre os panfleteiros do centro à classe médica. E chegou às nossas famílias. Em um país onde se julga que religião, futebol e política não se discutem, veio a pergunta: “Não era isso que havíamos, longinquamente, desejado?”. Este artigo, embora compelido pelos dois autores, é fruto dos debates realizados no contexto da greve dos alunos, docentes e funcionários da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Grupo de Trabalho “Gênero e Sexualidade na atual conjuntura”, da UNICAMP. É resultado e consequência daquilo que foi ouvido, informado, dito, discutido, e silenciado na relação entre os seus autores e os muitos outras e outros. As personagens e os enredos das histórias contadas aqui foram embaralhadas e optamos por usar o termo “nós” para preservar a identificação das pessoas envolvidas. 4 Proposto em 2003 pelo Governo Federal, e previsto pela Lei Federal nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, o Programa Bolsa Família é um programa social de transferência de renda baseado em complemento de renda, acesso a direitos e articulação com outras ações e programas do estado (BRASIL, 2015). 3 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 203 A polêmica invadiu nossas casas. A grande contradição assentou-se sobre nossas famílias e nosso cotidiano. No jantar, no café da manhã e na hora da novela. O grande contrário entrou elegante pela porta da frente e brincou conosco no casamento do nosso tio: “Soube que tem alguém aqui nessa mesa que vai votar naquele partido... Espero que não ganhe e que ela volte no pau de arara de onde veio”. Choque: nós, nossos pais, nossos irmãos, primos e tios. Já o amigo do tio saiu leve com a tal brincadeira. A única defesa que conseguimos foi de nosso irmão. Contudo, sabíamos que no próximo domingo ele iria votar no outro candidato. Ao final do dia seguinte, na sala da nossa casa, foi anunciado que este tinha ficado em segundo lugar nas eleições federais. Agora raivoso, nosso irmão se incomodou profundamente com nossa satisfação. Se, por um lado, chegou ao ponto em que era inevitável o choque entre os grandes contrários e nós fomos, em algum momento, orientados a negar esses embates políticos mais diretos, orientados a debater pedagogicamente ou esculachá-lo, hoje nós que somos atropelados por eles. Opiniões avessas, propostas políticas contrárias e ideologias antagônicas passaram a ser defendidas com maior impetuosidade. Os contrários já existiam, mas agora nossas convicções ficaram mais equidistantes. Vivenciamos o tempo dos grandes contrários, em que ver o outro no horizonte está mais difícil, embora almoçando na mesma mesa aos domingos. Este artigo representa um esforço em compreender este período de atropelamentos políticos que estamos vivenciando e sentindo no cotidiano familiar. Focamos na família – na nossa e em muitas outras – por perceber a dificuldade de convivência que vem paulatinamente se assentando com aqueles que desenvolvemos relações familiares. O que se segue vem das experiências e dos relatos das estratégias cotidianas para lidar com as tensões políticas somadas aos autoritarismos que se acomodaram no ambiente familiar. Vem do desconcerto de não sabermos o que fazer com o afeto que temos uns pelos outros quando inventamos uma desculpa para não irmos ao aniversário do avô, por conta daquela tia que nos incomoda com suas ideias sobre política nacional. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 204 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega Já não conseguimos disfarçar a falta de coragem de sentar à mesa para o jantar, ou a cara de desconforto ao encontrar o cunhado que, não mais que de repente, brada normas morais e análises políticas. Hostilidade e amor, enfim, se confundiam. Como essas sensações afetam nossas vidas? Quais estratégias são lançadas para evitar ou enfrentar o grande contrário? Como compreender esse momento social de pluralidades rígidas e estigmatizadas dentro da própria família? Como as diferenças de gênero e hierarquizações familiares deslocam posições de poder e de legitimidade entre aqueles que convivemos? Como continuar amando aquele que em determinados contextos nos defende e se preocupa conosco, mas em outros é ofensivo, raivoso e nos humilha? Como continuar amando aquele cuja nossa felicidade o incomoda? Esse ensaio, portanto, trata do cotidiano das famílias que viveram e ainda vivem esse momento político no Brasil e que convivem com os grandes contrários dentro das suas – e nossas – redes familiares. Mais do que explorar saídas, o que se segue é uma reflexão sobre aqueles que não têm como alternativa ignorar ou fugir do embate. A QUE ‘NÓS’ EU PERTENÇO? Uma Presidenta, eleita legitimamente, afastada. Um vice-presidente que rompe coligações aliadas e se junta aos partidos declarados ideologicamente opostos. Um processo de impeachment pleiteado pela grande mídia, acusada, por sua vez, pela oposição e pelas mídias independentes de ser o verniz de um Golpe de Estado. Grupos conservadores marchando em ensolarados domingos, clamando por justiça e com cartazes reivindicando “a volta da ditadura militar”. A palavra “crise” sendo pronunciada ora aos sussurros, ora aos berros, estampando capas de revistas de ampla circulação nacional e mencionada em títulos de blogs classificados como comunistas. O aprendizado e a reiteração na vida social das categorias do “petralha” e do “coxinha”, cuja apropriação por grupos sociais que se reconhecem em posições não apenas diferentes, mas manifestamente Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 205 incompatíveis, se dá por meio da consolidação de cores, símbolos e signos identitários (vermelho versus verde e amarelo; estrela versus tucano; mortadela versus caviar; impeachment versus golpe etc.). Vivenciamos a ressignificação das inteligibilidades da vida social, a reatualização das redes de poder – desde o âmbito nacional até as relações mais íntimas – e o rearranjo de estigmas. Segundo Goffman (2004), os estigmas, tratados como “defeito”, tentam, por meio de marcações físicas ou simbólicas, desqualificar moralmente o estigmatizado. Ao estigmatizar, estabelecem-se distinções entre o eu e o outro. Por meio de fragmentos de discursos, os estigmas formam um conjunto de significados que operam através de preconcepções. Os estigmas geram expectativas normativas sobre a identidade social daquele ao qual nos relacionamos, operando, assim, como uma organização cognitiva de como o outro é visto e daquilo que é esperado dele. Nesse trânsito (des)ordenado, a tendência de organização de uma massa que adere a um tipo de discurso com tonalidades totalitaristas5 nos assusta pela estigmatização compulsória e galopante, que não poupa nossas relações e nossos afetos mais genuínos. É nesse sentido que Hannah Arendt nos parece uma boa interlocutora para pensar a família – e a nós mesmos – que temos vividos, cotidianamente, esse novo momento político. Os escritos de Arendt foram confeccionados no catastrófico período do entre guerras, da estigmatização e da exclusão de determinados grupos sociais. Embora compreendamos que o período brasileiro não se configura, até o atual momento, em um sistema político no qual o Estado não reconhece qualquer limite à sua autoridade, é notável a organização Tal como Arendt (2013, p. 342), utilizamos a palavra “totalitarismo” com cautela. Compreendemos que existem ainda diferenças cruciais entre o atual período político brasileiro e o período totalitarista o qual Arendt experienciou, tanto no grande cenário, como nas entrelinhas do contexto, tais como a aliança temporária entre a elite e a “ralé” (grupos excluído socialmente, moralmente e fisicamente, com os prisioneiros, as prostitutas, os criminosos, etc.) (ibidem, p. 376-82), a exclusão máxima da vida através dos campos de extermínio (ibidem, p. 28) e o total altruísmo de seus adeptos (ibidem, p. 357), o que nos faz ter um cuidado maior ao articular o termo. 5 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 206 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega de uma massa de pessoas clamando por uma maior regulação moralista do Estado e pelo Estado na vida social. As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto (ARENDT, 2013, p. 361). As manifestações das massas nas ruas é algo que vem se tornando cada vez mais familiar. Adquirem nuances de movimentos totalitários quando esses sujeitos desenvolveram certo gosto por uma organização política arbitrária, em que a negação do outro é o modo mais acessível para se justificar. Ao passo que as normas e as regulações que reivindicam comportam e comprometem a liberdade de expressão de outros grupos ou pessoas, ou evocam, ainda que silenciosamente, a estigmatização e a exclusão do próximo, [...] há situações em que, com certeza, todos devemos assumir a responsabilidade por nós mesmos. Entretanto, à luz dessa formulação, despontam para mim algumas questões críticas: sou responsável apenas por mim mesmo? Existem outros por quem sou responsável? [...] Sou responsável por todos os outros ou só por alguns? [...] é possível ao menos pensar em mim sem esse mundo de outros? Na verdade, pode ser que, através do processo de assumir responsabilidade, o ‘eu’ se revele, pelo menos parcialmente, um nós? [...] Mas Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 207 então quem estaria no ‘nós’ que pareço ser ou do qual pareço fazer parte? [...] a que ‘nós’ eu pertenço? [...] quais enquadramentos implícitos da condição de ser reconhecido estão em jogo quando ‘reconheço’ alguém como ‘parecido’ comigo? Que ordem política implícita produz e regula as semelhanças nesses casos? (BUTLER, 2015, p. 60). Pensando os contextos de guerras e de conflitos como Hannah Arendt, Judith Butler escreve “Quadros de Guerra” (2015) em resposta às guerras contemporâneas. Separadas por momentos históricos distintos, as autoras se preocupam em compreender esses períodos de exceção por meio de como as violências – muitas vezes não apenas simbólicas – permeiam os vínculos sociais na modernidade. Trazemos ao texto o “nós” para pensá-lo em conjunto com essas autoras. A noção de sujeito produzida nos períodos de guerra nos faz pensar em nossas famílias, cujas conturbadas relações tem a potencialidade de intensificar a violência simbólica e física no período que experimentamos. Se antes, indiferentes; agora, nacionalistas. Antes, partidários; hoje, revisionistas. Antes, apartidários; hoje, autoritários. Exemplos como esses fazem-nos considerar o momento atual brasileiro como um período de exceção, pois entendemos que estamos passando por uma latente revisão e reorganização da vida social, em que os velhos contratos sociais foram postos em riscos, deixando, no entanto, os pilares da casa em pé. Transtornos políticos de massa que coloquem as ordens antigas em caos e engendrem novas, podem revisar os termos (e, portanto, a organização) do gênero na sua procura de novas formas de legitimação. Mas eles podem não fazê-lo; [...]. A emergência de novos tipos de símbolos culturais pode tornar possível a reinterpretação ou mesmo a reescritura da história Edipiana, mas ela pode servir para atualizar este drama terrível em termos ainda mais eloquentes. São os processos políticos que vão determinar o resultado de quem vencerá – político no sentido de que vários atores e Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 208 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega várias significações se enfrentam para conseguir o controle. A natureza desse processo, dos atores e das ações, só pode ser determinada especificamente se situada no espaço e no tempo (SCOTT, 1989, p. 15). Atualmente, um dos elementos centrais para compreender como os estigmas se disseminam pelas massas é a associação frequente e impiedosa entre as elites brasileiras e a grande mídia, que expõem, maquiavelicamente, as contradições da vida social, antagonizando o mal, o errado, o corrupto e o outro, o bom, o certo e o honesto. Como observa Arendt (2013, p. 530), “O famoso extremismo dos movimentos totalitários, longe de se relacionar com o verdadeiro radicalismo, consiste, na verdade, em ‘pensar o pior’, nesse processo dedutivo que sempre leva às piores conclusões possíveis”. As contradições, agora, e mais do antes para aqueles que ainda não haviam vivido tal conflito político, estão expostas à luz do dia, entre sons e imagens construídas com muita destreza e veiculadas nos jornais nacionais, nos programas de rádio, disseminadas por grupos de Whatsapp e na boca de personalidades famosas e carismáticas, como também nas prosas do dia-a-dia com nossos pais, irmãos, primos e parceiros. Antes que a política totalitária conscientemente atacasse e destruísse a própria estrutura da civilização europeia, a explosão de 1914 e suas graves consequências de instabilidade haviam destruído a fachada do sistema político — o bastante para deixar à mostra o seu esqueleto. Ficou visível o sofrimento de um número cada vez maior de grupos de pessoas às quais, subitamente, já não se aplicavam as regras do mundo que as rodeava. Era precisamente a aparente estabilidade do mundo exterior que levava cada grupo expulso de suas fronteiras, antes protetoras, a parecer uma infeliz exceção a uma regra sadia e normal, e que, ao mesmo tempo, inspirava igual cinismo tanto às vítimas quanto aos observadores de um destino aparentemente injusto e anormal. Para ambos, esse cinismo parecia Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 209 sabedoria em relação às coisas do mundo, mas na verdade todos estavam mais perplexos e, portanto, mais ignorantes do que nunca (ARENDT, 2013, p. 300). A regularidade das manifestações do próximo nos assusta, pois nos indagamos se seus adeptos, ao produzir e reproduzir os estigmas e a negação do outro, ainda tem o potencial de reconhecer o outro enquanto humano. Sobre os estigmatizadores, Goffman (2004, p. 8) aponta que, “isolado por sua alienação, protegido por crenças de identidade próprias, ele sente que é um ser humano completamente normal e que nós é que não somos suficientemente humanos”. O mais humano, aquele que nunca pode ter o estigma para si, ou, pelo menos, aquele que sabe viver com seu estigma dentro dos padrões esperados, não se crê potencialmente estigmatizado, e assim se crê fonte de humanidade e de normalidade. É neste modelo que se baseia a “verdade”, o que é “normal” e digno de reconhecimento. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1979, p. 12). O que Foucault (1979) chama de regimes de verdade são os mecanismos e as instâncias que produzem verdades e se relacionam com este momento político em que vivemos, dando prestígio a comportamentos específicos. São redes de controle, e por isso de poder, imbricadas em instituições governamentais e também cotidianas que reatualizam discursos categóricos e que regulam distinções. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 210 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega As fronteiras protetoras desse regime de verdades, ao serem desnudadas para as massas por meio dos discursos e de bandeiras midiáticas de grande circulação nacional, produz não um reconhecimento da nossa humanidade frágil e solitária, mas um terror e um medo que ronda nossa época e que habita determinados grupos sociais. Com base nos discursos de amplo alcance popular e nas próprias crenças, que pelo contexto de efervescência política agora se requerem públicas e sólidas, nosso cotidiano familiar foi alagado por um dia-a-dia não poupado de polêmicas que nenhum jornal ou rede social deixou apagar. Está fora de moda não discutir política, está fora de questão não ter posição. Quando nos damos conta, o nicho familiar, ao invés de abrigar sementes de uma mesma consciência e simbolizar um lugar de resistência ou respeitar os contraditórios pontos de vista, emerge como um latente campo de guerra, agregando agora grandes contrários. Os debates que antes se mostravam até certo ponto tranquilos, parecem se transformar em conflitos carregados de ódio, que outrora desconfiava dos estigmatizados e dos desconhecidos, mas agora não poupa nós, nossos pais e irmãos. Nas crenças que não abrem mais espaços para questionamentos, também não há mais espaço para o outro, que é excluído, negado e hostilizado. As tonalidades totalitaristas, que se fazem férteis e se constroem nos movimentos de massa do Brasil atual, são pensadas aqui a partir dessa lente. O “raciocínio frio como o gelo”, tal como diz Arendt (2013, p. 530), é mais do que uma violência gratuita contra o outro no centro da célula familiar. É, antes, um salvamento de si, é o medo de perder um “eu” construído fora da possibilidade das contradições humanas. Os nós só existem quando há algum tipo de cisão e o grande contrário só existe quando também somos contrários de outros. A dúvida que nos restou, agora, é como conviver nesse espaço sem abandonar a nós e nem ao outro, sem excluir violentamente aqueles que vamos continuar amando. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 211 O problema não é apenas como incluir mais pessoas nas normas existentes, mas sim considerar como as normas existentes atribuem reconhecimento da forma diferenciada. Que novas normas são possíveis e como são forjadas? O que poderia ser feito para produzir um conjunto de condições mais igualitário da condição de ser reconhecido? Em outras palavras, o que poderia ser feito para mudar os próprios termos da condição de ser reconhecido a fim de produzir resultados mais radicalmente democráticos? (BUTLER, 2015, p. 20). GÊNERO IMPORTA, FAMÍLIA IMPORTA Nosso irmão zombou aquele dia da nossa cara e não parou mais. Acusou-nos de corruptas. “O país está no buraco e você defende ladrão? Você quer sua família perca tudo o que conseguiu trabalhando duro?”. Pelas perguntas que não requerem respostas, mas sim obediência, as palavras nos faltam algumas horas. Dentro do conflito familiar nesse contexto político brasileiro, diante de tantos debates e diálogos que nós ouvimos e falamos, percebemos algo peculiar nos momentos de tensão compartilhados: mulheres que, sendo elas historicamente a expressão do contrário, foram tratadas nas relações familiares como desviantes, hostilizadas por teias de poderes patriarcais que exercem sobre nós insistentes provocações intelectuais, causando dor e isolamento familiar. Essas tensões familiares e assimetrias de gênero que vivemos não é exclusiva de nosso tempo, desse período de exceção e da revisão dos significantes sociais. Contudo, a maneira impositiva como aparecem, associadas à “crise” econômica, a evocação moral dos senadores em nome da família e de Deus para destituir uma Presidenta6, essencializa uma ideia No dia 17 de abril de 2016, em que houve a votação na Câmara dos Deputados pela instauração do pedido de impeachment, aceito pelo então presidente da casa, Eduardo Cunha, dos 513 deputados (dos quais, cabe dizer, apenas 45 são mulheres), 367 votaram a favor da instauração do processo. Dentre as justificativas dos favoráveis, Deus foi citado 58 vezes, família 110 vezes e 78 parlamentares dedicaram os votos aos seus filhos, contando ainda, entre outras bizarrices, com uma dedicação ao general militar que ordenava e que torturou Dilma 6 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 212 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega de mulher e de feminino bastante perigosa para “nós”. Estes processos políticos ressignificam, nestes lares da crise, as experiências generificadas que foram cultivadas em nossas relações familiares, percebidas, muitas vezes, ora legitimando a violência doméstica, ora tentando regular e reduzir uma feminilidade boa ou ruim dependendo de quem nós votamos nas últimas eleições. Entretanto, se os processos políticos ditam como as significações de gênero mudam, as ressignificações de gênero também determinam os processos políticos. Joan Scott (1989) nos ajuda a realizar esse movimento analítico entre período de exceção e de revisão de símbolos culturais a partir do conceito de gênero, categoria que utiliza como referência para analisar o poder político. O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição masculino/feminino e fundamenta ao mesmo tempo seu sentido. Para reivindicar o poder político, a referência tem que parecer segura e fixa fora de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Desta forma, a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se, os dois, parte do sentido do poder, ele mesmo. Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro (SCOTT, 1989, p. 15). Reivindicar o poder político é reivindicar um lugar para as masculinidades e feminilidades na sociedade. Não é casualidade que Deus (ordem divina) e a família heterossexual, casada, monogâmica, com filhos e higienizada de suas contradições (ordem natural), são fortemente evocadas pelos deputados que aprovaram, no congresso, a instauração do processo de impeachment, mas também pela grande mídia, por bon vivants em Rousseff na época de sua prisão durante a Ditadura Militar no Brasil. Fonte: <http://g1.globo. com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/04/deus-filhos-veja-ostermos-mais-citados-na-votacao-do-impeachment.html>, acessado em 02/08/2016. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 213 eventos beneficentes, por nossas mães, pais, irmãs, irmãos, avós, avôs, tios, sobrinhas e parentes distantes. Em momentos de instabilidades sociais e de perda de referenciais políticos, acreditar em essencialismos binários, também de gênero, parece fazer sentido para as massas insatisfeitas e amedrontadas. O grande contrário também é uma rede de relações situacionais que está sendo combatido ou defendido por meio da naturalização de classificações e de estigmas políticos (“comunista” e o “coxinha”, “cidadão de bem” e o “baderneiro” etc.) e de modelos identitários de gênero (“o corrupto” e “a vagabunda”, “tchau querida” e “o patriota” etc.), tanto no ambiente público quanto dentro das nossas famílias. Entretanto, não compreendemos gênero como a essência do ser, mas enquanto ato discursivo performativo, enquanto prática, comportamento aprendido pela vivência cotidiana, como “prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que nomeia” (BUTLER, 2001, p. 18). A ênfase da performatividade do gênero recai sobre esse aspecto: pensá-lo enquanto discursos que tem a capacidade de produzir aquilo que anuncia. Não mais em “ser” feminino ou masculino, mas em “tornar-se” femininos ou masculinos específicos. A força da performatividade reside justamente em conseguir naturalizar classificações, modelos ou comportamentos, uma vez que ao ser repetidamente citada essa norma, produz um apagamento dos dispositivos que a produzem. Aqui, compreendemos que selecionar um modelo de feminilidade, de masculinidade e de família como legítimo é também hierarquizar os modelos praticados no social. É dessa seleção e dessa classificação contextual e moralmente mais rígida, mais polarizada, com tonalidades menos variadas e contrastes mais intensificados, que observamos a família e a construção de assimetrias de gênero estigmatizadas. Os estigmas se deslocaram e não sabemos muito bem, ainda, para onde foram e para onde nos levaram. Somos impelidos a revisitar aquilo que estava naturalizado e que crescemos naturalizando nas relações entre nossos familiares. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 214 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega Amamos o outro e, por isso, a rigidez por meio da qual os estigmas recaem sobre todos nós, nos leva a repensar os limites das negociações entre as diferentes gerações, entre a feminilidade e a masculinidade, entre as autoridades e as liberdades que performamos na mesa de domingo, cheia de pratos com macarronada e de posicionamentos diversos. Compreendemos a performatividade do gênero como um ideal regulador (FOUCAULT, 1993), que gesta desejos e comportamentos que ao mesmo tempo são construídos e constroem a própria noção do que é um brasileiro e uma brasileira “boa” e “normal”. Não apenas nos informa as práticas sociais, mas articula discursos morais, gesta representações e corporalidades privilegiadas, naturalizando e favorecendo categorizações generificadas e, por consequência, gerindo e legitimando um modelo de família. Ao negociar a legitimidade e a legalidade da nossa subjetividade perante nossa família, não necessariamente corremos o risco de perder nosso vínculo com eles, mas de perder a nossa humanidade já confessada por eles. Se não negociarmos, corremos o risco de perde-la para nós mesmos. Então, nos questionamos, o que fazemos com o nosso amor, principalmente com aquelas pessoas que temos uma história singular pelos laços familiares? Para onde deslocamos nossos afetos se não podemos mais reiterar identicamente a mesma performatividade sem que ela seja violentada e que não violentemos a performatividade do outro? Pensar nessas redes em que, atualmente, o conflito político é latente, é lidar com o “grande contrário”, com as contradições que se tornaram mais rígidas e que estamos experienciando no convívio com nossos parentes. Ora estamos curiosos para entender o outro, ora estamos estigmatizando e, assim, recebendo de volta um outro estigma para nós. As expectativas geradas sobre como o outro é visto e o que é esperado dele, neste contexto de conflito familiar, geram uma instabilidade emocional. Esses estigmas sobre nossa identidade pessoal e social estão sendo reatualizados, renegociados e reorganizados. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 215 [...] no final das contas, é a capacidade de sobrevivência do eu que está em questão. Porque o eu? Afinal, se minha capacidade de sobrevivência depende da relação com o outro – com um “você” ou com um conjunto de “vocês” sem os quais não posso existir –, então minha experiência não é apenas minha e pode ser encontrada fora de mim, nesse conjunto de relações que precedem e exercem as fronteiras de quem sou. [...] Assim, a fronteira é uma função de relação, uma gestão da diferença, uma negociação na qual estou ligado a você na medida da minha separação. Se procuro preservar sua vida, não é apenas porque procuro preservar a minha própria, mas também porque quem “eu” sou não é nada sem a sua vida, e a própria vida deve ser repensada como esse conjunto de relações – complexas, apaixonadas, antagônicas e necessárias – com os outros (BUTLER, 2015, p. 72-3). Buscamos, então, o reconhecimento do eu, primeiramente, naquilo que nos é mais familiar, naquela socialização mais primária e basilar, naquelas pessoas com as quais crescemos juntos e hoje fazem parte de nós. No entanto, neste momento de exceção, o conflito familiar mostrou potencializar-se devido às contradições expostas rigidamente no meio social, disseminadas em larga escala entre as massas pela grande mídia e pelas redes sociais da internet. Talvez seja nos momentos de estar entre os nossos que buscamos não apenas o conforto do outro, mas também a nós mesmo, o encontro com o nosso próprio eu. Estas buscas, quando fogem à ordem da rotina familiar, ou seja, nos períodos de exceção, trilham caminhos que, pouco explorados, podem sabotar as próprias relações que as sustentam. A crise de âmbito nacional – quer ela exista ou não – é praticada no cotidiano como real pelas massas e é também uma crise da identidade social e de reconhecimento de si pelo outro. É uma crise das configurações de gênero, das relações diferenciadas entre irmãs, entre irmãos e entre irmãs e irmãos. Entre pais e mães, e entre pais e filhas, mães e filhas, avós e netos, sobrinhos e enteadas. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 216 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega Ao perceber que aquele familiar mais familiar que temos afeto não corresponde às nossas expectativas, não nos reconhece e nos coloca hostilmente do outro lado do front, sentimos que a solidão que pode devastar o ser humano aparece como um profundo frio na barriga. Se o que torna a solidão insuportável é a perda do próprio eu (ARENDT, 2013, p. 529), então o grande contrário carrega esse medo da perda de si, antes mesmo da perda do outro. Quando o grande contrário é confirmado no clima familiar, em nossas explicações e em nossas justificativas para as tias que nos incomodam e as quais também incomodamos, ele tem o potencial assolador de, por meio do estranhamento do outro que lhe era familiar, não reconhecer a si mesmo, gerando reações abruptas e violentas. Neste contexto, consideramos que as experiências das mulheres, em particular, têm sido ocultadas pelo uso genérico e homogêneo das unidades de análise como família cuja tendência é de se igualar a categoria mulher, enquanto a categoria homem é separada e lhe é concedida um status individualizado (THORNE, 1982). Quando pesquisamos a família pela perspectiva dos estudos de gênero, percebemos ela não apenas como um ponto de partida para a solidariedade de gênero, em que as mulheres têm centralidade e voz nos processos decisórios cotidianos (VALE DE ALMEIDA, 1995), mas também como um lócus de opressão feminina (GABACCIA, 1992, p. XIV). Pensar a família é uma tentativa de compreender aonde existem e resistem os estereótipos aprendidos e reiterados nas massas. É uma tentativa de compreender como as assimetrias e as performatividades de gênero importam ao analisar a sociedade brasileira, sobretudo quando discutimos as relações de poder e de autoridade no seio familiar (MOROKVASIC; EREL; SHINOZAKI, 2003). “A FAMÍLIA” Um parente distante tomou a liberdade de escrever em uma postagem no nosso Facebook: “Eu também já fui como você, na minha Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 217 época votei no fulano várias vezes, mas não percebia o quanto ele era corrupto”. No aniversário do vô, apesar da nossa falta de coragem de estar lá ser evidente, sentou ao nosso lado aquela tia que nos incomoda, com todo seu peso emocional e olhos intrigados. Disfarçamos pedindo mais um pedaço de carne, que soou mais como um pedido de socorro. Sentimos todos nos olhando enquanto éramos esmagados pelo clima pesado que pairou sobre nós. Temos um afeto por eles (em diferentes graus, obviamente): crescemos juntos, nos pediram ajuda, nos apoiamos em momentos diferentes da vida e também já fomos apoiados, mas o estranhamento deles, neste momento conturbado de incertezas e de rigidezes, envernizava seus corpos, impedindo-os de sentir nosso terror àquela situação. A tia, enfim, como que em tom professoral, fez a pergunta: “Mas você acredita mesmo que esse partido corrupto seja bonzinho?”. Todos ao redor, cheirando a fumaça e a cerveja, se movimentaram lentamente. Uns pararam de mastigar, disfarçando o indisfarçável. Outros, abaixaram um pouco o tom da voz. Nós, pegos de surpresa pela facilidade com que a tia nos disparou as palavras – como se fôssemos crianças –, só conseguimos pedir para que esperasse um minuto, pois iríamos pegar o pão para comer junto com a carne malpassada, sangrando, salgada e ardente, recém-saída do fogo da churrasqueira, mas entregue a nós por um primo risonho. Nos sentíamos acuados ou ultrajados, mas conseguimos ganhar um tempo estratégico para organizar nossas ideias e fazer com que elas soassem as menos violentas possíveis. “A Família”, com suas letras maiúsculas e entre aspas, segundo Thorne (1982), é uma construção ideológica que distorce a função de criar e de educar para uma coletividade de pessoas específicas (presumivelmente relações nucleares), associadas aos espaços específicos (domicilio) e aos vínculos afetivos particulares (amor). Na linguagem contemporânea, “A Família” frequentemente implica, além dessas definições, uma divisão sexual do trabalho característico: um marido que sustenta a família, autônomo e voltado para uma esfera econômica separada do lar; e uma esposa e mãe, cuja existência é muitas Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 218 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega vezes sinônimo da própria família. Hirata e Kergoat (2007) corroboram Thorne (1982) e argumentam que a própria divisão sexual do trabalho é um reflexo das desigualdades de gênero sociabilizadas em contextos específicos. Em resumo, a família nuclear moderna tem sido citada em larga escala como “A Família” e elevada como o mais desejado e legitimado modelo familiar. Esse modelo está implícito e explicito no nosso cotidiano, das políticas públicas às convenções sociais. Esse é o modelo legitimado de família, que molda nossas experiências e subjetividades, um modelo aceito e reproduzido socialmente. Segundo Souza (2002), todos desenvolvemos performatividades que garantem nossa aceitação social dentro desse núcleo familiar, no qual fomos sociabilizados, seja apoiando, confrontando ou ignorando os membros dessa nossa rede. Entretanto, o momento político mudou. Inúmeras vezes já foi afirmado que as guerras promoveram mudanças nas relações entre homens e mulheres, isto é, que as guerras trouxeram mais oportunidades para elas de ganharem autonomia financeira, o que, conseqüentemente, levou à conquista de direitos políticos, reduzindo as hierarquias de gênero. Será verdade? É isto que a historiadora citada [Françoise Thébaud]7 focaliza e questiona. Considera que as mudanças ocorridas foram apenas provisórias, e que, após a guerra, presenciou-se um retorno aos antigos significados do gênero, com reforço na rigidez das afirmações da diferença. Ou seja: é como se, após a guerra (período considerado de exceção), homens e mulheres tivessem voltado aos seus “devidos lugares”; assim, todas aquelas que haviam sido convidadas a participar de diferentes funções costumeiramente atribuídas aos homens, teriam sido convidadas a retornar para suas antigas atividades, ligadas à casa e ao privado (PEDRO, 2005, p. 89). THÉBAUD, Françoise. A grande guerra. O triunfo da divisão sexual. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente (O século XX), v.5. Porto: Afrontamento; São Paulo: Ebradil,1995, p.68. 7 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 219 A guerra, neste artigo, foi evocada das mais diversas maneiras. Porém, a que queremos destacar é a negociação travada, muitas vezes violenta, entre aqueles que amamos. Quando dizemos que gênero importa é porque conseguimos perceber não apenas a relação entre as tonalidades totalitárias presentes nos movimentos de massa e nas relações familiares, mas chamamos à atenção para os estereótipos evocados nessa relação e em como a figura feminina, quando colocada do lado de lá do front, pode se tornar mais vulnerável em contextos domésticos, principalmente quando isolada politicamente. Não nos basta reconhecer o outro na sua biografia, precisamos também reconhecer as assimetrias de gênero que o moldam. Nossa aproximação teórica com Scott (1989), nos proporciona pensar como o momento político brasileiro leva a revisitar a categoria de gênero dentro do âmbito familiar. Só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado definitivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, elas contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas (SCOTT, 1989, p. 16). É urgente entender essas categorias como plurais, situacionais e relacionadas entre si. O período o qual estamos passando, ao adquirir essas tonalidades totalitárias, nos leva a perguntar não apenas qual é o modelo socialmente aceito de família, mas quais deslocamentos estão influenciando nas relações assimétricas de gênero. Propor medidas mais democráticas é aceitar a ambivalência que essas categorias de reconhecimento comportam. A crise identitária não indica necessariamente uma transição, mas uma realocação daquilo que nunca será localizado, sobretudo no seio familiar. Os estereótipos são percebidos como estruturas de poder e de conflito, podendo constranger ou ampliar as possibilidades da agência dos sujeitos generificados. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 220 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega Entretanto, o estigma construído dentro e por meio da família tem o poder talvez não de excluir o outro no sentido de anular ou desertar laços, mas de categorizar e de designar, mesmo que momentaneamente, um lugar para aquele membro. Transitar entre esses espaços e momentos, agora um tanto imprevisíveis, de ódio e de amor, embora no mesmo lugar e com o mesmo círculo de pessoas – que não desejamos nos afastar, tampouco queremos –, configura um doloroso desafio aqueles que tiveram seus status familiares suspensos pelos tempos de “golpe” e de “impeachment”, de “petralha” e de “coxinha”. Esse trânsito de suspensão de status não impede que o grande contrário possa retomar ao seu lugar quando tempos de reconciliação são lançados, embora sem ainda sabermos como ficarão, a longo prazo, essas cicatrizes de tempos de ódio. Nossa pretensão aqui não foi, em nenhum momento, afirmar os caminhos a serem tomados, mas levantar as possibilidades que esses conflitos familiares podem nos levar, revelando um espaço em que as tensões políticas e suas expressões de ódio em tempos de guerra (simbólicas ou não) não pouparam. Como amar quem nós estamos odiando? Como minimizar os estragos do nosso ódio àquela pessoa que temos afeto? A quem confiar nossas experiências? Embora ainda conflituoso, não temos estas respostas, haja vista que no meio de discussões tão inevitáveis e públicas, nos pareceu muito mais simples assumir uma postura política intransigente, esculhambar aquele que não conhecemos, que não nos orgulharmos, e rirmos daqueles que não vamos ter com que compartilhar as mesmas toalhas. O grande contrário é permeado pelas assimetrias de gênero e quando evocado dentro do núcleo familiar tem a potencialidade de não reconhecer o outro e nem a si próprio, provocando e, ocasionalmente, pondo em risco os laços familiares. Este artigo não buscou uma saída para o que é situacional e performado, mas reúne nossos esforços em repensar e pôr em evidência as práticas e as estratégias de sobrevivência no âmbito das relações familiares neste período de exceção e, consequentemente, de fortes tensões políticas. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 Relações familiares, gênero e o grande contrário:... 221 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo Companhia das Letras, 2013. BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, G. L. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 151-172. BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 13ª ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 1993. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GABACCIA, Donna. Seeking Common Ground: multidisciplinary studies of immigrant women in the United States. Westport, Connecticut/London: Praeger. 1992. GOFFMAN, Erving. ESTIGMA: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Trad. Mathias Lanbert. Versão digitalizada: 2004. HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007. MOROKVASIC, M.; EREL, U.; SHINOZAKI, K. (ed.) Crossing Borders and shifting boundaries. Vol I, Gender on the move. Opladen: Springer, 2003. PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, v. 24, n. 1, p. 77-98, 2005. SCOTT, Joan W. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. São Paulo: Columbia University Press, n 4, 1989. SOUZA, Érica R. de. Construindo “masculinidades femininas”: educação, corpo e violência na pré-adolescência. In: ALMEIDA, H.B., Costa, R. G., Ramirez, M.C. e Souza, E. (org.) Gênero em Matizes. Bragança Paulista: EDUSF, 2002. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 222 Juliana Spagnol Sechinato e Rodrigo Fessel Sega THORNE, Barrie. Feminist rethinking of the family: An overview. In: THORNE, Barrie; YALOM, Marilyn. Rethinking the family: Some feminist questions. New York: Longman, 1982, p. 1-24. VALE DE ALMEIDA, Miguel. Senhores de Si. Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade. Lisboa: Fim de Século. 1995. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 201-222, fev./dez. 2016 IDEOLOGIA DE GÊNERO? NOTAS PARA UM DEBATE DE POLÍTICAS E VIOLÊNCIAS INSTITUCIONAIS1 Alex Barreiro2 Flávio Santiago3 Nathanael Araújo4 Tiago L. C. Vaz Silva5 RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir a respeito do combate às políticas para a conquista da equidade de direitos e luta pelo fim da violência a grupos como a população LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros e Homens Trans) e as mulheres no campo da educação. A centralidade adquirida na conjuntura nacional destes temas vem sendo assinalada por parte de uma ala conservadora da sociedade que, nos últimos anos, tem elencado tais políticas como cartas em um jogo marcado Esse artigo é fruto dos debates realizados no Grupo de Trabalho “Gênero e Sexualidade na atual conjuntura”, formado no contexto da greve dos alunos, docentes e funcionários da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre os meses de maio e agosto de 2016. Agradecemos às professoras Dra. Isadora Lins França e Dra. Carolina Branco de Castro Ferreira pelo estímulo para que as ideias aqui presentes ganhassem corpo e pelas leituras minuciosas ao longo do processo. 2 Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor nos cursos de História e Pedagogia das Faculdades Integradas Maria Imaculada. E-mail: barreiroalex86@gmail.com 3 Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista FAPESP. E-mail: flavio.fravinho@gmail.com 4 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: araujo.nathanael@gmail.com 5 Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Bolsista FAPESPA. E-mail: tvazsilva@ gmail.com 1 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 224 Alex Barreiro et al. por discursos vazios e intuitos obscuros. A partir das contribuições teóricas das Ciências Sociais, da educação e dos estudos de gênero e sexualidade, exploramos documentos da área das políticas educacionais, a fim de apresentarmos aos leitores as bases legais que fundamentam, orientam e destacam a importância de propostas pedagógicas para a formação de alunos e docentes quanto às questões relativas ao gênero e à sexualidade humana. Nosso argumento central é o de que o combate a esses pressupostos, envoltos na ideia de propagação de uma “ideologia de gênero”, se dá pela supressão de condicionantes oficiais (leis que possibilitem recursos) e vigilância das práticas cotidianas (via currículo oculto). PALAVRAS-CHAVE: Educação; Gênero e sexualidades; Poder; Política; Moralidades. INTRODUÇÃO Em tempos de recessão econômica, a crise política instaurada no país adquiriu maior gravidade a partir do afastamento da presidenta eleita democraticamente Dilma Rousseff (PT), por meio da admissibilidade do processo de impeachment votado pelo Senado Federal, em 12 de maio de 2016. O mandato interino do vice-presidente, Michel Temer (PMDB), ao alterar o projeto de gestão do país legitimado pelas eleições, em pouco tempo vem acumulando uma série de problemas de gravidade impossíveis de serem mensurados. No plano do simbólico, a mudança chama atenção a olho nu ao percebermos a alteração do quadro governamental6 e nele observamos apenas a presença de homens de meia idade, todos brancos e pertencentes à parte mais abastada da sociedade. No âmbito comparativo, tal construção não ocorria desde o governo Geisel (1974-1979), na ditadura militar. Mais do que a ausência meramente formal de mulheres e negros à frente de Ministérios, esta configuração assusta, por não corresponder com o retrato do país, em que, de acordo com os dados mais recentes do censo demográfico de 2014, observa-se a composição da sociedade brasileira, formada por 51,6% de mulheres, 53,6% de negros e pardos e Para maiores detalhes acessar: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/politica/ noticia/2016/05/ministerio-da-cultura-e-outras-pastas-sao-extintas-em-reforma-ministerialde-temer-5800482.html Acesso em: 19 jul. 2016. 6 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 225 14,17% de jovens entre 20 e 29 anos de idade (IBGE, 2015)7. Em 2014, com o salário mínimo ajustado para R$ 724 reais8, notou-se ainda que 47,3% da população declarou receber até um salário mínimo e 37% de um a três salários (IBGE, 2015)9. Nesse esteio, a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos10 sinaliza para dimensões simbólicas, representando um corte na esfera da representatividade que histórica e duramente vinha sendo conquistada pelos movimentos sociais no país. O Ministério supracitado, ao passar a compor o Ministério de Justiça e Cidadania, aponta para a diminuição de sua agenda enquanto prioridade frente ao governo em exercício – externadas também pela ausência de figuras plurais no governo.11 A nebulosidade do atual contexto político brasileiro assinala para uma série de (des)caminhos que comprometem os poucos avanços conquistados em nossa curta experiência democrática. Para nós, pesquisadores e militantes das questões relacionadas a gênero e sexualidades, o cenário é demasiadamente preocupante. Dentro de um conjunto mais amplo de apreensões, o texto em pauta pretende discutir a construção de determinados discursos, nos quais noções de gênero e de sexualidade passaram a se constituir como alvo de uma moralidade política na investida de uma parcela da direita conservadora (em particular, Portanto: 48,45% da população brasileira é composta por homens, onde 45,4% se declararam brancos. 30,3% têm até 19 anos, 48,1% têm entre 30 e 69 anos e 6,1% possui 70 anos ou mais (IBGE, 2015). 8 Disponível em: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2013/12/valor-do-salariominimo-vai-para-r-724-em-2014. Acesso em: 19 jul. 2016. 9 Ademais, 11,4% alegaram receber de três a cinco salários mínimos e 4,4% não recebiam ou não declararam seus rendimentos (IBGE, 2014). 10 Para maiores informações acessar: http://www12.senado.leg.br/noticias/ materias/2016/05/16/primeira-medida-provisoria-de-temer-reduz-de-32-para-23-o-numerode-ministerios. Acesso em: 19 jul. 2016. 11 A extinção do Ministério da Cultura e sua recriação, após protestos e pressão da classe artística do país, dividiram as matérias dos principais jornais do país bem como os escândalos que acabaram por provocar a exoneração de três ministros que, de alguma forma, tiveram seus nomes associados ao escândalo de corrupção da “Operação Lava Jato”. 7 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 226 Alex Barreiro et al. atores sociais religiosos cristãos), ao instituírem uma verdadeira “cruzada moral” (BECKER, 2008) em favor da retirada dos conteúdos que fazem referência a gênero e à sexualidade no currículo escolar. IDEOLOGIA E PODER O movimento organizado que promove campanhas para retirada dos conteúdos de gênero da educação básica tem sua base política entre os religiosos cristãos. Ronaldo de Almeida (2017) propõe compreender o avanço conservador e a participação evangélica12 na atual conjuntura político-religiosa pela qual o país atravessa, por meio da composição de quatro linhas de força que cooperam entre si: econômica (meritocrática e empreendedora), moral (moralmente reguladora), securitária (repressiva e punitiva) e interacional (socialmente intolerante). Nesse debate acerca da relação entre conservadorismo e evangélicos, Almeida (2017) aponta que a moral religiosa tem sido um orientador significativo das questões relacionadas aos direitos reprodutivos e sexuais e à família, para a atuação de um conjunto de políticos na esfera legislativa (vereadores, deputados, senadores) denominados no cenário político como “Bancada Evangélica”13. Na disputa pela moralidade pública, em sua faceta mais conservadora, esses religiosos buscam não apenas garantir proteção à moralidade e aos valores próprios ao seu grupo. Mas, também, pretendem garantir que essa moralidade seja inscrita na ordem legal do país, sob o discurso da necessidade de contenção dos avanços do secularismo Vale ressaltar que, em seu estudo, Almeida não considera os evangélicos como sendo a causa e nem a resultante deste avanço conservador que assola o país, mas aborda a articulação deste grupo religioso ao processo social mais amplo: “Assim como nem todos os evangélicos são conservadores, a pauta conservadora vai além da pauta dos evangélicos conservadores. Dela participam também católicos, outras religiões e não religiosos” (ALMEIDA, 2017, s/p). 13 De acordo com Ronaldo de Almeida, a designação “Bancada Evangélica talvez seja a expressão mais acabada do sentido negativo que o termo ‘os evangélicos’ adquiriu nas últimas décadas, qual seja: um conjunto de deputados moralistas que ameaçam a laicidade do Estado brasileiro” (ALMEIDA, 2017, s/p). O autor ainda acrescenta que tal laicidade ameaçada pelos evangélicos é apenas presumida, uma vez que não houve condições para sua existência em um país onde o catolicismo e a igreja católica se beneficia de legitimidade e oficialidade naturalizadas por sua profundidade histórica, cultural e jurídica. 12 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 227 nos comportamentos e nos valores que afligem a sociedade brasileira (ALMEIDA, 2017). No que diz respeito à retirada dos conteúdos de gênero da educação básica, a polêmica se desenrola desde 2014, com a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) na Câmara dos Deputados, que alterou a redação aprovada em 2012, suprimindo do texto referente às desigualdades educacionais a “ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (2014, p.22), substituída genericamente por “ênfase na promoção da cidadania e erradicação de todas as formas de discriminação” (2014, p.12). A partir de então, a pauta seguiu para os municípios e o debate nas câmaras dos vereadores em todo o país tem sido marcado por preconceitos e homofobia no combate ao que se rotulou de “ideologia de gênero14”. O argumento mobilizado para a implementação de um conjunto de ações por esses religiosos conservadores seria a de uma “ameaça real”, representada sob o escopo de uma “ideologia de gênero”. Segundo o argumento destes, a “ideologia de gênero” é um perigo à integridade moral das crianças e dos adolescentes, visto que os conteúdos abordados no ensino em sala de aula e a distribuição de material didático com “ênfase na promoção da igualdade de gênero e de orientação sexual” (que fora suprimido do PNE) corromperiam supostamente o “caráter biológico” e as “estruturas postuladas historicamente sobre as relações entre homens e mulheres”. O que se observa nas sessões promovidas nas Câmaras de Vereadores por todo o país é a emergência daquilo que o sociólogo Stanley Cohen definiu como pânico moral, a saber, quando Uma condição, um episódio, uma pessoa ou um grupo de pessoas passa a ser definido como um perigo para valores e interesses societários; sua natureza é apresentada de uma forma estilizada e estereotipada pela mídia de massa; as As frases estão entre aspas porque correspondem a alguns das formas corriqueiras de argumento que encontramos atualmente. Para saber mais acesse: https://padrepauloricardo. org/blog/associacao-americana-de-pediatras-fulmina-ideologia-de-genero. Acesso em: 19 jul. 2016. 14 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 228 Alex Barreiro et al. barricadas morais são preenchidas por editores, bispos, políticos e outras pessoas de Direita; especialistas socialmente aceitos pronunciam seus diagnósticos e soluções; recorre-se a formas de enfrentamento ou desenvolvem-nas (COHEN, 2002, p.9)15. Desta forma, a crença na existência de uma “ideologia de gênero” é construída como uma espécie de “doutrinação”, que serviria para “confundir a cabeça de crianças e adolescentes”16 ao “acabar com os elementos usados para identificar os dois sexos” e “estimular a homossexualidade”; além de contribuir para “desestruturar a moral” das relações no âmbito familiar ao “desconstruir” a maternidade e “incentivar” a prática do aborto. Julian Rodrigues elucida bem este projeto: “Uma certa interpretação moral religiosa muito específica no que tange à compreensão das relações sociais de gênero é elevada ao modelo universal e que não pode ser conspurcado por ‘atos abomináveis’” (RODRIGUES, 2016, p.13). Aqui se faz necessário destacar que o entendimento de família contido nesses discursos está circunscrito apenas àquelas formadas pela união heterossexual. Uma característica marcante de pânicos morais se refere à presunção da existência de um dado “problema” que ameaça a ordem e os valores morais tradicionais ou parte deles, sem que haja de fato provas de sua existência ou severidade, estabelecendo um ambiente de ansiedade, insegurança e medo na sociedade. A veiculação em diferentes meios de comunicação tem papel importante no processo de caracterização do pânico moral entre a opinião pública, pois o sensacionalismo midiático tende a contribuir para “fabricar” a extensão da preocupação desproporcionalmente ao perigo real que o problema possa acarretar, gerando, consequentemente, reações coletivas também desproporcionais (COHEN, 2002). É neste cenário que surgem as figuras dos empreendedores morais (BECKER, 2008) no combate Tradução livre do original em inglês. As frases estão entre aspas porque correspondem a alguns das formas corriqueiras de argumento que encontramos atualmente. Para saber mais acesse: https://padrepauloricardo. org/blog/associacao-americana-de-pediatras-fulmina-ideologia-de-genero Último acesso em 19 de julho de 2016. 15 16 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 229 ao ensino e ao debate a respeito de gênero e sexualidade nas escolas. Esses empreendedores morais mobilizam o pânico sexual (RUBIN, 1998), uma variação do pânico moral, para gerar ansiedade nas famílias e na sociedade de modo geral em torno de questões relacionadas à sexualidade. Na epidemia de pânicos sexuais que se alastrou pelos EUA entre as décadas de 1970 e 1980, a antropóloga Gayle Rubin (1998) chamou atenção para o quão poderosos são os discursos que mobilizam a necessidade de “proteção das crianças”, consideradas mais “vulneráveis” às investidas de “pervertidos sexuais”. Naquele contexto, homossexuais e consumidores daquilo que foi rotulado por pornografia infantil17 foram alvos de duras perseguições realizadas pelos empreendedores morais e pelo Estado a partir de dispositivos normativos. Neste escrutínio, observou-se a proliferação de um verdadeiro pânico sexual, elemento geralmente mobilizado pelos empreendedores morais para veicular outras preocupações como, por exemplo, aquelas relacionadas à decadência moral ou a desorganização social (PISCITELLI, GREGORI & CARRARA, 2004). A construção de problemas sociais em causas políticas também tem ocorrido no Brasil com expressiva intensidade. Tendo como pontapé a Operação Carrossel, orquestrada pela Polícia Federal em fins de 2007, Laura Lowenkron (2013) analisou a construção da “pedofilia” como causa política e caso de polícia e a consequente produção do “pedófilo” como inimigo. Ao traçar uma etnografia da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia no Senado Federal e das investigações da Policia Federal em torno das redes de pornografia infantil na internet, a antropóloga desvelou o modo como se deu a instauração da CPI e a produção desse monstro contemporâneo – enclausurado entre discursos médicos patológicos e morais cristãos – como problema social levada ao cabo pelo senador Magno Malta, um dos líderes da bancada evangélica. Rubin aponta que as leis produzidas sobre a pornografia infantil no âmbito dos pânicos morais são mal concebidas e mal orientadas ao estabelecerem como obsceno qualquer representação de menores que apresente nudez ou que envolva atividade sexual, o que configurou significativo retrocesso de liberdades civis naquele país. Traçando um paralelo com os dias atuais, podemos perceber a semelhança com discursos que acionam pânicos sexuais no combate a pedofilia e a produção do “pedófilo” como o novo monstro contemporâneo (LOWENKRON, 2013). 17 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 230 Alex Barreiro et al. Nos discursos contra a “ideologia de gênero” nas escolas, ao que parece, o foco da moralidade está centrado na orientação sexual e de gênero das crianças e adolescentes. Ou melhor: na crença de que o ensino e o debate de gênero e sexualidade nas escolas visam doutrinar aos estudantes, como se professores e demais educadores fossem utilizar de sua condição de autoridade para (des)orientá-los no que eles devem “ser” e no que devem “fazer” em termos da sua sexualidade. O que está em jogo aqui, portanto, é a manutenção de um modelo hegemônico de sociedade construído a partir de noções da heterossexualidade compulsória18 (BUTLER, 2008) e de valores morais cristãos, nos quais o padrão de família, constituída exclusivamente por um homem, uma mulher e sua prole, está em pauta. JOGOS DE CONTROLE No dia 1º de junho de 2016, em sessão na Câmara de Vereadores da cidade de Campinas, em São Paulo, o vereador Campos Filho (DEM) referiu-se à “ideologia de gênero” como “... nefasta, é contra a família”. O material de divulgação política do vereador Jorge Schneider (PTB), intitulado Diga sim a Família. “Ideologia de gênero”: conheça e entenda o perigo que você e seus filhos estão correndo!19, demonstra as estratégias de regulação da educação e da sexualidade via poder legislativo. Ao reduzir, empobrecer e subverter anos de reflexões acadêmicas e científicas, a premissa mobilizada é a de se estar informando para poder defender a população das tentativas de transformação de “nossas escolas em laboratórios para a manipulação da personalidade de seus filhos”. 18 A expressão heterossexualidade compulsória é utilizada pela filósofa Judith Butler (2008) para se referir ao ordenamento social que visa produzir uma coerente correlação entre sexo, gênero e desejo heterossexual. 19 Só esse material já renderia uma discussão muito interessante sobre a questão. Para maiores informações, acessar o link do vereador citado https://www.facebook.com/ vereadorjorgeschneider/photos/pcb.937683952920300/937683786253650/?type=3&theater Acesso em: 19 jul. 2016. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 231 Para os autores Toni Reis e Edla Eggert (2017, p.20): Criou-se uma falácia apelidada de “ideologia de gênero”, que induziria à destruição da família “tradicional”, à legalização da pedofilia, ao fim da “ordem natural” e das relações entre os gêneros, e que nega a existência da discriminação e violência contra mulheres e pessoas LGBT comprovadas com dados oficiais e estudos científicos. Utilizou-se de desonestidade intelectual, formulando argumentos sem fundamentos científicos e replicando-os nas mídias sociais para serem engolidos e regurgitados pelos fiéis acríticos que os aceitam como verdades inquestionáveis. Utilizou-se também de uma espécie de terrorismo moral, atribuindo o status de demônio às pessoas favoráveis ao respeito à igualdade de gênero e diversidade sexual na educação, além de intimidar profissionais de educação com notificações extrajudiciais com ameaça de processo contra quem ousasse abordar esses assuntos na sala de aula. Criou-se um movimento para “apagar” o assunto gênero do currículo escolar. (REIS; EGGERT, 2017, p.20) O antropólogo Sérgio Carrara argumenta que o embate que cria e correlaciona “ideologia de gênero” e educação compõe mais um dos muitos conflitos instalados no que denomina como “processo de cidadanização de diferentes sujeitos sociais”, em que se nota a articulação de identidades, seja com a linguagem de gênero, seja com a da sexualidade ou orientação sexual (CARRARA, 2015). Neste embate, o autor nos auxilia na reflexão acerca do modo com que atores políticos religiosos cristãos fazem uso da política sexual por meio da agenda educacional para reagir contra o reconhecimento da importância de se discutir diversidade de gênero e orientação sexual nas escolas, desprezando-as enquanto um valor legítimo. Contudo, a emergência da reinvindicação de direitos sexuais, compreendida na perspectiva de agenciamento de novos direitos por novos sujeitos, ocorre em um cenário bastante complexo em que o próprio saber empregado para legitimar a importância de se criar e dar acesso a tais Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 232 Alex Barreiro et al. direitos tem sido utilizado estratégica e discursivamente para combatê-lo e desreconhecê-lo nas esferas legislativa e do direito, forjado com base naquilo que Foucault (2010) denomina de polivalência do discurso. O discurso político empregado por esse movimento conservador é assombrado pela própria “instabilidade” das categorias sexo e gênero, embora procurem mobilizá-las de modo a cultivar identificações a serviço de um objetivo político normativo, movendo tanto a política feminista quanto a política queer em prol da legitimação de uma norma regulatória pela qual a diferença sexual é materializada (BUTLER, 2001). Observa-se, da parte de políticos locais e nacionais, o maciço combate ao conhecimento produzido por especialistas por meio do arcabouço legal previsto na educação brasileira que garante as discussões a respeito das desigualdades de gênero, direitos humanos e sexuais, combatendo as diferentes formas de discriminações que atravessam os muros da escola. É válido sempre destacar que nos três primeiros artigos das Leis de Diretrizes e Bases (LDB) da educação brasileira20, tem-se que: Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Art. 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social. Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância (BRASIL, 2015:9, grifos nosso). Disponível em: http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes/ paginas-individuais-dos-livros/lei-de-diretrizes-e-bases-da-educacao-nacional Acesso em: 27 jan. 2016. 20 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 233 O documento afirma que o processo educativo abrange a formação dos indivíduos que se desenvolvam nos movimentos sociais e manifestações culturais, além de vincular-se também à prática social, e ressalta que o ensino exige condições de igualdade para o acesso e a permanência dos estudantes na escola, além da liberdade de aprendizagem, ensino, pesquisa e divulgação cultural, corroborando para o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Atualmente, a realidade da educação brasileira apresenta dados que contrariam as propostas colocadas pela LDB, sobretudo, com relação ao número de evasão de travestis, mulheres transexuais e homens transexuais a violência contra alunos e alunas gays, lésbicas e bissexuais, como apontam os pesquisadores Borges & Meyer (2008), Junqueira (2010) e Dinis (2011). Como aponta Facchini; Ferreira (2016), na contramão do fortalecimento de políticas públicas ligadas às mulheres e às demandas dos feminismos, bem como as evidências de que é fundamental o combate da violência de gênero por meio da construção de políticas educacionais, grupos conservadores têm adotados medidas no executivo e no legislativo e tem encorajado discursos e práticas que reforçam a violência de gênero. Desta forma, uma das finalidades requeridas pela lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica não está sendo assegurada, a formação para a cidadania e o respeito recíproco em que se assenta a vida social, como descritos nos artigos abaixo: Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores (BRASIL, 2015:17, grifos nosso). [...] Art. 32. IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social (BRASIL, 2015, p.23, grifos nossos). Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 234 Alex Barreiro et al. No âmbito de questões de gênero e sexualidade, a LDB postula tais temas como assuntos transversais, aptos a estarem distribuídos em todas as disciplinas escolares. Todavia, observa-se verdadeira ausência nos livros didáticos de tópicos a respeito de movimentos sociais identitários conduzidos pelas chamadas minorias sexuais que emergem no país a partir dos anos de 1970 (HEILBORN & SORJ, 1999). O sexo, e não tanto a sexualidade, aparece minimamente apenas nos livros da disciplina de biologia para tratar do tema da reprodução humana e da prevenção a DST/Aids em relações heterossexuais. Pensado como instrumento passível de oferecer subsídios, o material Escola sem Homofobia, popularmente conhecido por “kit gay”, foi proibido nas instituições de ensino em 2012, devido a negociatas políticas do então governo com parlamentares religiosos cristãos. Este, resultado de um projeto desenvolvido pela Pathfinder Brasil, Ecos e Reprolatina, em articulação com a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e financiado pelo Ministério da Educação (MEC), via emenda parlamentar, trazia como proposta recursos com fins a combater a prática da homofobia no ambiente escolar (2010). Ainda nesse caminho, para a efetivação de mudanças no cenário de violência contra as mulheres e a população LGBTT nas escolas do país, observou-se no Brasil algum empreendimento para modificar tal realidade. A promulgação de resoluções que possibilitassem aos docentes o exercício de atividades e propostas pedagógicas desde a infância tornou-se uma possibilidade, a partir da resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP) n. 01 de 15 de maio de 2016, que prevê que: Art. 5º O egresso do curso de Pedagogia deverá estar apto a: X - Demonstrar consciência da diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras21; Conforme a resolução emitida, os estudantes egressos nos cursos de Pedagogia deverão, ao término da formação, encontrarem-se aptos a 21 http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_06.pdf. Acesso em: 31 dez. 2015. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 235 respeitar as diferenças de natureza étnico-raciais, geracionais de gênero e sexuais, demonstrando, portanto, consciência acerca da diversidade existente no mundo. Esta formação, que deve estender-se aos demais profissionais da educação que atuam e exercem suas funções em diferentes campos do conhecimento e ciclos de ensino, é salutar. Contudo, ao não se ter afixado na grade curricular da formação de professores disciplinas de gênero e sexualidade, por exemplo, a formação de uma base de saberes a respeito do tema ainda se encontra pouco institucionalizada. Deste modo, aquilo que parece ser um caminho positivo abre para outra instância de disputas: a da vigilância das práticas cotidianas de educadores no espaço escolar. GUERRA OCULTA A vigilância cotidiana da prática docente tem aumentado de forma avassaladora. Isto porque as temáticas de gênero e sexualidade podem ser trabalhadas por meio do currículo oculto, uma vez que o currículo oficial tem se demonstrado incapaz de prever as necessidades locais de cada escola e programar um conteúdo a ser desenvolvido especificamente para a realidade de cada unidade educacional, o que reforça a importância do currículo oculto (SACRISTÁN, 1998). Conforme o educador Tomaz Tadeu da Silva, “o currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita para aprendizagens sociais relevantes”, de modo que “o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações” (SILVA, 1999, p.78). O currículo oculto, portanto, aparece como um importante espaço para que possamos no dia a dia da sala de aula e da experiência com o cotidiano escolar e dos estudantes, elucidar alternativas temáticas, educativas e valorativas que respondam aos conflitos e anseios presentes na comunidade e que inevitavelmente atravessam os muros da escola. Se, por um lado, a percepção acerca do currículo oculto nos permite vislumbrar a possibilidade de construções coletivas de trabalhos pedagógicos que tenham como temática as relações de gênero e sexualidade, bem como perceber que o processo de ensino e aprendizagem transborda Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 236 Alex Barreiro et al. as grades curriculares, por outro lado ela também nos coloca frente à questão de que estes temas não estão elencados dentro do conjunto de conteúdos valorizados para a “transmissão” nas instituições formais de ensino, ficando a cargo dos/as profissionais “sensíveis à temática” problematizá-la e instigar as discussões entre seus pares e com os/as estudantes. A construção de uma legislação que torna obrigatória a discussão a respeito das relações de gênero e sexualidade na educação básica garantiria a problematização da temática fornecendo um respaldo legal para que não fosse menosprezada ou tornada algo desnecessário dentro do processo de ensino e aprendizagem. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, publicada pelo Ministério da Educação em 201022, isto já aparece, constando que as instituições de educação infantil devem garantir que elas cumpram plenamente sua função sociopolítica e pedagógica: Construindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa (BRASIL, 2010, p. 17). As contribuições do trabalho pedagógico são de suma importância para que as crianças desenvolvam reflexões e posturas éticas com relação às demandas políticas propostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o que inclui necessariamente construir novas relações de sociabilidade e subjetividade a partir das perspectivas de gênero, consolidando as plataformas de acesso para a equidade e valorização das atividades e papéis sociais de gênero na cultura brasileira. Quando pensamos as relações de gênero no currículo da Educação Infantil, é fundamental destacarmos suas especificidades, principalmente no que tange à não existência de um currículo dividido em disciplinas. As Link para obter acesso: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 05 jan. 2016. 22 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 237 creches e pré-escolas não cabem dentro das grades do currículo, podendo ser concebidas como espaço de produção intempestiva de pedagogias que não “didatizam” a “experiênciação” do mundo, mas sim que criam processos abertos e dinâmicos de reinvenção das relações sociais. Mas se, de um lado, notam-se possibilidades de avanços, de outro lado tem-se o peso das perdas. Neste esteio, o debate a respeito da “ideologia de gênero” e educação na cidade de Campinas dá máxima lição. Ao analisar o imbróglio em terras campineiras, Zanoli & Mascarenhas Neto (2016) apontam para a especificidade local, em que o impedimento não adveio por meio de nova proposta de Plano Municipal de Educação, mas por proposta de emenda à Lei Orgânica do Município de 2015, o que sinaliza para as disputas de saber e de poder mobilizadas pelo conjunto de atores contrários ao reconhecimento da diferença como valor, e mesmo para a desqualificação do tema para um debate profundo, conduzido por estudiosos da questão23. Em uma escola de educação infantil da região metropolitana de Campinas, que atende a crianças de 0 a 5 anos, por sua vez, a coordenadora pedagógica comprou algumas bonecas sexuadas para as crianças brincarem24. “Elas vêm em família, é aquela família tradicional, pai, mãe, filho e avós”, enunciou. A proposta da coordenadora era desmontar as famílias e oferecer às meninas e aos meninos outros arranjos possíveis, deixando-os brincar e mesmo inventar outras relações. Mas a proposta não deu certo, uma vez que algumas professoras da instituição ficaram um pouco assustadas em oferecer para as crianças as bonecas com vagina e que, ainda por cima, simula a gravidez e o parto de um bebê que sai da boneca com a placenta! E os bonecos masculinos, por sua vez, atemorizavam por terem pênis. Muito se pensou e as bonecas quase nunca foram usadas. O não oferecimento das bonecas, em alguma medida, informa as dificuldades das educadoras em lidar com assuntos relacionados a gênero e sexualidade, bem como apontam uma não “formação inicial” com Para uma análise da votação do primeiro turno e de alguns aspectos do texto da emenda, ver Zanoli & Mascarenhas Neto (2016). 24 Esta cena faz parte do caderno de campo de Flávio Santiago que vem desenvolvendo o projeto de doutoramento intitulado: (Re) interpretações das intersecções entre o processo de racialização e relações de gênero em culturas de pares entre crianças pequenininhas de 0-3 anos em creche. 23 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 238 Alex Barreiro et al. relação a essa temática. Com base nesses percalços, o medo de mostrar os órgãos sexuais e, principalmente, mencionar a possibilidade de existência de outros arranjos familiares se tornou maior do que a coragem. Para as crianças ainda menores, de zero a três anos, a hipótese de trabalhar com as bonecas nunca foi cogitada. Como se algo de impuro pudesse contaminar a pureza destas. Diante deste quadro, as escolhas dos bonecos(as) que oferecemos às crianças, as histórias que contamos a elas, bem como as diferentes formas de se brincar que nós, adultos(as), legitimamos enquanto correta, correspondem a um projeto de infância que temos estruturado para que meninos e meninas vivenciem e apreendam as relações sociais. As docentes, ao não quererem oferecer as bonecas sexuadas para meninas e meninos brincarem, apresentam uma percepção acerca do que é infância, estando esta diretamente relacionada à ideia de que as crianças não têm contato com os órgãos sexuais, bem como devem ser prevenidas de uma suposta sexualização do corpo. Este tipo de concepção tende a reforçar na prática a criação de armadilhas identitárias ligando os corpos ao sistema sexo e gênero e, posteriormente, ao modelo de sexualidade heteronormativa. Como exercício reiterativo deste processo de aprendizagem, é comum ouvirmos frases como: “isto é coisa de menino, você deve brincar com esta boneca aqui”, “Nossa, como essa menina é agitada, parece até um moleque”, construindo os aspectos normativos referentes ao binarismo correspondente do que seriam o masculino e o feminino dentro da nossa sociedade. Este processo estabelece o que Butler (2008) categoriza como gêneros “inteligíveis”, os quais instituem e mantêm a relação de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, buscando estabelecer linhas causais expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual. O pânico moral construído no tocante às supostas “ideologias de gênero”, responsáveis por incitar as crianças a vivenciarem e construírem outras formas de relações, revela que a elas deve sempre estar disponível apenas uma norma e que deve ser seguida a rigor, principalmente no que tange à normatização dos desejos. Este modo de percepção cria imagens Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 239 distorcidas referentes a algumas ações pedagógicas desenvolvidas no interior das escolas, pré-escolas e creches, construindo a ideia de que ao se trabalhar com a desconstrução dos estereótipos de gênero, como no momento da construção das filas de entrada em salas de aula, durante as leituras realizadas com as crianças ou a revisão de materiais didáticos, haveria a incitação para que todas as crianças se tornassem lésbicas, gays, travestis ou transexuais. A impossibilidade de se cogitar o acesso de bonecos sexuados para crianças de zero a três anos brincarem, por sua vez, remonta ao pânico de corrupção do “caráter da inocência das crianças”; pois como salienta Preciado, Os defensores da infância e da família apelam à família política que eles mesmos constroem, e a uma criança que se considera de antemão heterossexual e submetida à norma de gênero. Uma criança que privam de qualquer forma de resistência, de qualquer possibilidade de usar seu corpo livre e coletivamente, usar seus órgãos e seus fluidos sexuais. Essa infância que eles afirmam proteger exige o terror, a opressão e a morte (PRECIADO, 2016, p. 96). Não cabe, neste meandro, perguntas como: e as crianças? O que acham de tudo isso? Não pensam? Será que elas concebem as relações de gênero da mesma forma que nós adultos/as percebemos? Inúmeras vezes as crianças brincam com objetos conceituados socialmente como de menino ou de menina, de modo a não reproduzir os significados que eles carregam socialmente. Uma panelinha pode se transformar em um disco voador e não representar em nada a sua utilização prática referente ao universo adulto. Neste esteio, são as atividades cotidianas dos adultos, sob o bojo do currículo oculto desenvolvido pelos/as docentes, as responsáveis por retransmitir parte dos modelos socioculturais vigentes, sendo sua desconstrução ou reflexão parte fundante da função dos/as professores/ as, cabendo a estes/as tensionar os processos de hierarquização das desigualdades sociais. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 240 Alex Barreiro et al. CONSIDERAÇÕES FINAIS DE UM DEBATE EM ABERTO O atual movimento conservador que tem crescido pelo país entende que temáticas relacionadas ao gênero e à sexualidade devem ficar restritas somente à educação no âmbito familiar, não sendo papel de outro agente (profissionais da educação formal, por exemplo) abordar tais questões em suas aulas. No que tange a este pensamento, considera-se ser impossível pensar a prática escolar sem uma educação emancipatória, que tenha como princípio a diversidade e a pluralidade de ideias. Para tanto, não discutir temas que envolvam gênero e sexualidade na principal e uma das mais longas instâncias de convívio entre pessoas diferentes, a escola, é impensável quando o objetivo comum é o de promoção de uma educação que vislumbre a possibilidade do exercício de uma cidadania mais plena. Ao refletir a respeito da aplicação da lei nº 10.639/2003, que versa acerca da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no ensino fundamental e médio, o antropólogo Kabengele Munanga aponta que o resgate da história e da cultura da população afro-brasileira não interessa somente aos estudantes negros, mas também aos de outras ascendências étnicas que tiveram sua estrutura psíquica afetada por terem sido criados em uma sociedade que reproduz de forma sistemática e duradoura preconceitos contra os afro-brasileiros (MUNANGA, 2003). A referência à questão racial nos parece muito oportuna, na medida em que as questões de gênero e sexualidade também dizem respeito a todos/as, independentemente de orientação sexual e identidade de gênero. Isto se deve ao fato de vivermos em uma sociedade com profundas desigualdades nesse domínio, na qual a heterossexualidade compulsória e os modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade oprimem e excluem aqueles/as que não se enquadram a tais padrões estabelecidos. Mais do que isso, refere-se a todos, na medida em que, em uma sociedade comandada por valores estéticos e performáticos, “ser” e “parecer” tornase face de uma mesma moeda. Ao fim e ao cabo, trata-se de relações de poder atravessadas pela construção de discursos úteis e públicos na tentativa de regular o sexo e a sexualidade (FOUCAULT, 2010). Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 Ideologia de gênero? 241 Contudo, diferentemente do âmbito de conquistas observadas a partir da lei nº 10.639/2003, que instaura formação e material sobre História e Cultura Afro-Brasileira para debate dentre outros, buscamos neste texto evidenciar as práticas de minar qualquer jurisprudência no âmbito das questões de gênero e sexualidade no campo do ensino. A ausência de maiores respaldos nos documentos educacionais e a perda do pouco conquistado, somada à vigilância dos profissionais dispostos a refletir abertamente a respeito da existência de diferenças na sociedade e a produção destas em desigualdades, só nos apontam para a dimensão alarmante com que abrimos este artigo. Se pensarmos em resistências, novos ventos apontam para feixes de esperança. É bem-vindo o livro recém-lançado Diferentes não desiguais: a questão de gênero na escola (2016). Publicado pelo selo Reviravolta, pertencente à Companhia das Letras, e escrito pelas(os) antropólogas(os) Beatriz Accioly Lins, Bernardo Fonseca Machado e Michele Escoura; a obra visa disponibilizar material acerca de gênero e sexualidade a docentes interessados. Em conversa com esta última, a também pesquisadora assinalou para a ideia de que o livro sirva como material propedêutico, pois: “Mesmo o professor mais bem intencionado não encontra material que o auxilie a tratar dos assuntos que envolvam orientação sexual e identidade de gênero”. Assim, mantemos a expectativa de que a emancipação do saber e a prática de um conhecimento verdadeiramente libertador possam servir como instrumentos teóricos e políticos para que possamos construir plataformas que tenham como horizonte a equidade das relações de gênero, ao combate às discriminações que estabelecem por meio da orientação sexual critérios de distinção da cidadania, nos possibilitando, como destacado pela socióloga Letícia Sabsay (2014), “des-heterossexualizar” o acesso aos direitos, possibilitando avançar na construção de uma democracia efetiva25. Segundo a pensadora, “há necessidade de se generizar a cidadania, porque quando ela não é generizada, tende a ser masculina. Também é preciso sexualizá-la, isto é, ‘des-heterossexualizála’ ou ‘des-heteronormativizá-la’. Creio que este é um campo político que não se pode abandonar” (SABSAY, 2015, p.39). 25 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 223-246, fev./dez. 2016 242 Alex Barreiro et al. 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INTRODUÇÃO Durante o mês de outubro, início da primavera de 2016, estudantes secundaristas ocuparam 850 escolas públicas no estado do Paraná em protesto contra a MP 746 que instituiu a reforma do ensino médio e a Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE. 3 Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE. Coordenador local do PIBID/CAPES. E-mail: osmirdom@ yahoo.com.br 1 2 248 Conrado Pereda Minucelli et al. PEC 245 que congelou por vinte anos os investimentos públicos em políticas sociais. Esse movimento surpreendeu a todos por sua magnitude e pela velocidade viral com que se propagou, contagiando até estudantes de escolas de pacatos distritos rurais. O estudo aqui apresentado é resultado de observações feitas diretamente em ocupações nas cidades de Cascavel e Toledo durante as quais foram efetuadas entrevistas, rodas de conversa e bate-papos com os estudantes mobilizados, complementadas por informações divulgadas pela grande imprensa e por diferentes canais na internet. Em algumas escolas foi possível acompanhar todo o processo, desde antes da tomada de decisão pela ocupação, a organização e o andamento das atividades ao longo do tempo em que escola esteve ocupada, até sua desocupação ao final. Assim foi possível perceber o sentimento de indignação que motivou aqueles jovens, com muito pouca experiência política, a protagonizarem um dos maiores movimentos da história do país e acompanhar a forma como a escola, um espaço público tradicionalmente identificado como hierárquico e repressor, foi reconfigurada por uma prática baseada em relações horizontais e transformada, ainda que por um breve momento, em espaço do exercício de liberdade por grupos e segmentos excluídos e/ou subordinados. Para compreender o movimento em sua totalidade, o mesmo não pode ser isolado do conjunto de fatos que marcam o cenário político brasileiro pós-2013 que inclui o movimento que culminou com a deposição da presidenta eleita Dilma Rousseff e o estabelecimento de um governo comprometido com uma pauta reconhecidamente neoliberal, a postura autoritária do governo do Paraná que recentemente submeteu professores e demais servidores do estado a uma repressão brutal em evento conhecido como o “massacre de 29 de abril”; assim como a ocupação dos espaços públicos por novos atores – ou por atores não tão novos, mas que assumiram novas formas de organização e manifestação4. Tudo isto ao lado de causas de natureza mais profunda, como a estrutura arcaica, repressiva e desmotivadora do sistema escolar público e a cultura hegemônica que nega ao jovem a sua autonomia e menospreza o valor Pensamos aqui principalmente no que sido designado como “onda conservadora” (DEMIER e HOEVELER, 2016). 4 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 249 da sua participação política; bem como as grandes transformações na organização do capitalismo que sob a orientação do projeto neoliberal, dissemina incertezas, sobretudo, para aqueles que estão prestes a entrar para o mercado de trabalho. Evidentemente que nas dimensões modesta desse trabalho não é possível abordar todas essas variáveis com um mínimo de profundidade. De modo que, abdicando de qualquer ambição explicativa totalizadora, nos contentamos aqui em efetuar a reconstituição de uma cronologia dos principais acontecimentos noticiados ao longo do mês de outubro de 2016 em uma primeira seção, para em seguida fazer uma breve descrição da organização interna das ocupações e finalizar com a apresentação de algumas reflexões sobre aspectos particularmente relevantes para a análise dos movimentos sociais no século XXI. CRONOLOGIA DOS ACONTECIMENTOS Em 02 de dezembro de 2015 o presidente da Câmara dos Deputados autorizou a abertura de processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. Concluído na Câmara o processo seguiu para o Senado Federal. Em 12 de maio de 2016 o senado aprovou a abertura do processo afastando provisoriamente a presidenta eleita até a sua conclusão. Naquele momento o então vice-presidente Michel Temer assumiu interinamente o cargo de presidente e não demorou em deixar clara sua intenção de aplicar rigorosamente o receituário neoliberal e promover um corte profundo nos gastos com políticas sociais. Apenas um mês depois, em 15 de junho de 2016, o interino apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC-241) estabelecendo como regra que por um período de vinte anos os gastos públicos terão crescimento limitado ao valor da inflação5. A apresentação da PEC-241 ainda durante a sua interinidade foi a forma encontrada pelo vice-presidente para demonstrar publicamente suas intenções e consolidar o apoio das forças que naquele momento trabalhavam para derrubar a presidenta eleita. Em 31 de agosto de 2016, na conclusão de um tumultuado processo que praticamente paralisou 5 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 250 Conrado Pereda Minucelli et al. o governo por dezoito longos meses, a presidenta Dilma Rousseff foi deposta pela Câmara dos Deputados e o interino Michel Temer assumiu definitivamente a presidência, comprometido com uma pauta neoliberal de reformas. Em 22 de setembro de 2016 o governo federal divulgou Medida Provisória reestruturando o Ensino Médio brasileiro (MP-746). A medida causou surpresa entre especialistas dentro e fora do Estado. Primeiro porque o ministro da educação havia assumido no dia 1º de setembro, e apenas vinte e dois dias depois, de forma intempestiva, o governo encaminha, por medida provisória, uma mudança de tamanha profundidade. Segundo, porque desde 2013 estava em debate no Congresso Nacional um projeto de lei com a finalidade de estabelecer novas diretrizes para o Ensino Médio. A tramitação daquele projeto e os debates nas comissões técnicas do Congresso vinham sendo acompanhados pela comunidade organizada em torno do Movimento Nacional pelo Ensino Médio (MNEM)6 e suas ações já haviam produzido um substitutivo ao PL 6840/13 aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados em dezembro de 2014. Terceiro, como não podia deixar de ser, pela forma como foi encaminhada, a reforma pretendida pelo governo apresentava inúmeros pontos que foram prontamente rechaçados pelo MNEM e especialistas da área. Entre os quais destacamse: a) o desmembramento do currículo em cinco partes ou “itinerários O Movimento Nacional pelo Ensino Médio foi criado por dez entidades do campo educacional – ANPED (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação), CEDES (Centro de Estudos Educação e Sociedade), FORUMDIR (Fórum Nacional de Diretores das Faculdades de Educação), ANFOPE (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação), Sociedade Brasileira de Física, Ação Educativa, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ANPAE (Associação Nacional de Política e Administração da Educação), CONIF (Conselho Nacional Das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional Científica e Tecnológica) e CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e foi criado no início de 2014 com vistas a intervir no sentido da não aprovação do Projeto de Lei no 6.840/20131. Para esse fim empreendeu um conjunto de ações junto ao Congresso Nacional e ao Ministério da Educação, além de criar uma petição pública. Destas ações resultou um Substitutivo por meio do qual, se não se logrou obter avanços, ao menos evitou-se o maior retrocesso. O Substitutivo ao PL 6.840/13 foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados em dezembro de 2014. 6 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 251 formativos”, sob o argumento de dar aos alunos a opção de escolher a formação para a qual se julgarem vocacionados. O movimento denunciou que na prática não serão os alunos, mas os sistemas oficiais que decidirão quais os itinerários poderão ser cursados, pois a MP não determina que todas as escolas ofereçam os cinco itinerários. b) A despeito de muitos esforços empreendidos pelos governos federal e estaduais nos últimos anos para melhorar a formação de professores, a MP estabelece que pessoas sem formação específica possam assumir disciplinas para as quais não foram preparadas com base em um suposto e indefinido “notório saber”. c) A MP-746 determina a ampliação da carga horária do nível médio, com a implantação do ensino em tempo integral, sem considerar que, em sua grande maioria, as escolas públicas brasileiras não possuem sequer espaço físico para a prática de atividades fora da sala de aula e o período integral não pode se reduzir ao confinamento de estudantes em sala por um dia inteiro. A MP também não explica o que acontece com o atual período noturno, deixando implícito o seu fim, e com ele a única oportunidade de estudo dos estudantes trabalhadores. d) O “itinerário” profissionalizante estabelecido pela MP-746 indica o caminho da privatização, por meio de “parcerias”, posto que as redes públicas estaduais não dispõem de estrutura física e de pessoal para esse tipo de atividade. e) Por fim, a retirada da obrigatoriedade das disciplinas de Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia representa a opção do governo por um tipo de saber tecnicista e acrítico, e a negação ao estudante do seu direito ao conhecimento integral. Na noite de 03 de outubro cerca de 30 estudantes ocuparam as instalações do Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba, em protesto contra a MP-746 e a PEC-241. O jornal paranaense Gazeta do Povo, um dos mais influentes do estado, dava a notícia sem grande destaque: “A ocupação foi definida, segundo os estudantes, sem a liderança de um movimento específico, após um debate realizado na última sexta-feira (30)”. No encontro, informava o jornal, se reuniram cerca de 400 estudantes de 27 das 30 escolas estaduais de São José dos Pinhais e a intenção anunciada era ampliar o movimento: “A ocupação não é só dos alunos do Arnaldo – dizia uma estudante Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 252 Conrado Pereda Minucelli et al. entrevistada – é importante lembrar que outros estudantes estão aqui ou virão para organizar novas ações”. O jornal não tinha como prever, mas estava registrando o início de um movimento que alcançaria cerca de 850 escolas no estado do Paraná7. Na mesma matéria a Gazeta do Povo informava ainda que a Secretaria de Estado da Educação (SEED) comunicou que representantes da secretaria estiveram com os estudantes para explicar que “a reforma será amplamente debatida com a comunidade escolar antes da implementação de qualquer mudança”. Note-se que, apesar de dizer que estiveram na escola, os representantes da SEED parecem não ter entendido a complexidade da situação. Os estudantes não queriam debater a “implementação” das mudanças; eles não concordavam com o teor da reforma imposta por medida provisória e queriam a sua revogação. O fato, entretanto, não indica apenas um ruído na comunicação. Na verdade, ele é expressão de uma conduta conhecida pelos adolescentes; é desta forma que as instituições se relacionam com jovens de uma maneira geral e é essa a relação que se estabelece no interior da escola. Os jovens quase nunca são ouvidos e, quando são, suas opiniões não são seriamente consideradas. Três dias depois daquela primeira notícia cerca de 30 escolas estavam ocupadas, entre elas Colégio Estadual do Paraná, a maior escola pública do Estado. O roteiro parecia ser sempre o mesmo: os alunos faziam assembleias nas escolas, debatiam a MP-746 e a PEC-241 e deliberavam pela ocupação. De passagem, ao entrevistar alguns alunos sobre o movimento, o jornal deixa perceber a importância da internet no processo de mobilização: uma estudante entrevistada fala que ao acordar na manhã da ocupação tinha “mais de 400 mensagens” no grupo de WhatsApp da sua turma8. No dia 06 de outubro os sindicatos dos docentes da Universidade Estadual do Oeste do Paraná e da Universidade Estadual de Ponta Grossa anunciam greve a partir de segunda-feira, dia 10. Naquele mesmo dia o http://www.gazetadopovo.com.br/conta/cadastre-se/?referrer=http://www.gazetadopovo. com.br/educacao/alunos-ocupam-escola-em-sjp-em-protesto-contra-reforma-do-ensinomedio-a1w3v5fr4edc1gpxcu9scixu8. 8 http://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/colegio-estadual-do-parana-eocupado-por-alunos-ja-sao-quase-40-escolas-fechadas/. 7 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 253 sindicato dos professores da rede estadual de ensino básico, APP-Sindicato, também anuncia que está convocando greve a partir do dia 15. Embora colocassem em suas pautas manifestações contra a MP-746 e a PEC 241, se juntando assim aos estudantes mobilizados, os sindicatos docentes estavam se mobilizando por questões salariais: o governo estadual havia anunciado que não cumpriria um acordo anterior que previa reposição de perdas salariais para o próximo mês de janeiro. Ainda que os jornais insistissem em informar que a Secretaria da Educação do Paraná (SEED) estava acompanhando de perto as ocupações, o governo do estado, em cada declaração, deixava transparecer que continuava não compreendendo o caráter do movimento dos estudantes. No dia 08 de outubro, o G1 – portal de notícias da Rede Globo – reproduziu uma declaração do governador do estado sob a manchete: “Beto Richa diz que alunos não sabem por que estão protestando no Paraná”: Sindicatos ligados à CUT e ao PT que querem a baderna no país usando, de forma criminosa, as nossas crianças nas escolas que estão nas ruas protestando não sabem nem o que. Numa perfeita doutrinação ideológica das escolas do Paraná e do Brasil. Aqui, talvez, com mais intensidade, pela agressividade dos sindicatos daqui.9 A tentativa do governo de ligar o movimento dos secundaristas ao sindical apenas reafirma um tipo de pensamento conservador que trata os estudantes como seres sem agência, incapazes de qualquer ação e que, portanto, se estão se manifestando, é porque estão sendo manipulados por alguém. Esse pensamento será seguidamente reafirmado em diferentes atos e declarações do governo. Não temos como dimensionar a ressonância do argumento junto à toda sociedade, mas entre os estudantes mobilizados ele causou muita indignação, e como tal, funcionou como combustível para os manifestantes. Em 09 de outubro, domingo, mais de 4 mil estudantes realizaram uma manifestação pelas ruas da capital do estado10. Naquele http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/estao-protestando-nao-sabem-nem-oque-diz-richa-ocupacao-de-escolas.html. 10 http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/estudantes-se-reunem-para-protestarcontra-reforma-do-ensino-medio.html. 9 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 254 Conrado Pereda Minucelli et al. momento já eram mais de 50 escolas ocupadas e o movimento que havia se iniciado na região metropolitana de Curitiba, estava presente em mais de 15 cidades, incluindo Toledo e Cascavel, no extremo oeste do estado, onde foram feitas as observações e entrevistas que fundamentam esse trabalho. Em 10 de outubro estudantes secundaristas compareceram a uma reunião do Comando de Greve da Unioeste no Campus de Toledo e informaram que o Colégio Estadual Novo Horizonte havia sido ocupado na véspera, que outras escolas no município de Toledo seriam ocupadas em breve e que eles gostariam de ter o apoio dos professores e estudantes da universidade. Uma rede de apoio foi ativada naquele momento e os secundaristas puderam contar com a presença de docentes da universidade em debates sob a MP-746 e a PEC-241, palestras, oficinas e aulas durante as ocupações. Naquele mesmo dia a imprensa divulgou um ofício do Ministério Público do Estado do Paraná onde afirma que: O direito à livre manifestação de pensamento, de associação e mesmo o protesto pacífico diante de posturas tidas como arbitrárias por parte das autoridades constituídas é inerente a todo cidadão, nada impedindo que seja exercitado por meio da ocupação de um espaço público que tem como missão institucional o preparo para o exercício da cidadania (art. 205, da Constituição Federal).11 No mesmo documento o Ministério Público orienta “os órgãos públicos que atuam na defesa dos direitos das crianças e adolescentes” a acompanharem as ocupações “num viés eminentemente preventivo”.12 Esse encaminhamento cumpriu uma importante função tranquilizadora, pois conteve parte da pressão que aqueles órgãos recebiam para atuar repressivamente e contribuiu para neutralizar o discurso governista, largamente difundido na imprensa e nas redes sociais, que tentava criminalizar as ocupações. http://www.educacao.mppr.mp.br/modules/noticias/article.php?storyid=100&tit=OficioCircular-no-569--2016-Ocupacao-das-escolas-por-alunos-adolescentes. 12 http://www.educacao.mppr.mp.br/modules/noticias/article.php?storyid=100&tit=OficioCircular-no-569--2016-Ocupacao-das-escolas-por-alunos-adolescentes. 11 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 255 Crescendo em progressão geométrica, em 11 de outubro o movimento secundarista contabilizava 210 escolas ocupadas. Nesta data, os estudantes das universidades estaduais, seguindo o mesmo modus operandi dos secundaristas, ocupam os campi da Unioeste de Toledo e Marechal Cândido Rondon. Nesse momento o governador do estado parece mudar sua opinião sobre o movimento e a capacidade de agência dos estudantes e, via facebook, convida o presidente da União Paranaense de Estudantes Secundaristas, UPES, para dialogar. Ao dirigir-se ao presidente da UPES, entretanto, o governador mostra que, apesar de ter mudado sua avaliação inicial, ainda não havia entendido a dinâmica e a organização do movimento. Ele procurava um interlocutor que falasse em nome de todas as ocupações, quando este não existia. O movimento era completamente descentralizado e cada escola possuía total autonomia de ação. Em coletiva de imprensa na tarde de quarta-feira, 12 de outubro, em Curitiba o presidente da UPES, Matheus Santos, explicou que o convite do governador não seria aceito prontamente e que todos os alunos das escolas ocupadas deveriam ser consultados. O dirigente estudantil demonstrou ter consciência de que o controle do movimento não passava pela UPES como o governo parecia acreditar. Não obstante, por ser dirigente de uma entidade estudantil tradicional, ele não deixaria de tentar uma ação organizadora e centralizadora que ampliasse a influência da sua entidade: “Queremos construir assembleias de maneira democrática. Tem muito estudante que nem conhece a Upes, é preciso que saibam do nosso trabalho.”13 A SEED, em mais um movimento visando conter as ocupações, determinou a organização de seminários em todos os seus Núcleos Regionais para debater a reforma do ensino médio no dia 13 de outubro. Os diretores de escolas, ocupadas ou não, receberam instruções para encaminhar para estes seminários representantes dos estudantes, pais de alunos, técnicos e professores. Na maioria dos Núcleos, entretanto, os seminários se tornaram verdadeiros atos de repúdio à MP-746. Os estudantes mobilizados compareceram em grande número aos seminários http://www.gazetadopovo.com.br/educacao/estudantes-decidirao-em-assembleias-seaceitam-dialogar-com-richa-1d3l7nlfhg095gji4r2928it0. 13 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 256 Conrado Pereda Minucelli et al. e reafirmaram a posição do movimento pela imediata revogação da Medida Provisória. Em 14 de outubro o governo sofreu uma derrota na arena jurídica. A Defensoria Pública do estado derrubou as liminares de reintegração de posse de escolas ocupadas no município de São José dos Pinhais. Naquela data as ocupações já somavam 420 em todo o estado e a derrota do governo funcionou como mais um estímulo para novas ocupações. Em 17 de outubro já eram mais de 600 escolas ocupadas e o movimento falava em chegar a mil – a rede pública paranaense possui 2148 unidades. Nesta data a Associação dos Conselhos Tutelares do Estado do Paraná (ACTEP) publicou uma nota reconhecendo o “direito dos adolescentes que estão participando do movimento” e recomendando ao sistema de Conselhos Tutelares que os conselheiros “previnam e combatam ações repressivas contra os manifestantes (...)14. As recomendações da ACTP foram importantes para neutralizar as pressões que os conselheiros tutelares estavam recebendo da parte do governo e de setores conservadores de modo geral para tomar medidas repressivas contra os estudantes mobilizados. O discurso conservador, repetido diuturnamente pela imprensa, exigia a intervenção dos conselhos tutelares alegando que crianças e adolescentes que ocupavam escolas estavam fora do alcance do controle paterno e, portanto, expostos ao tráfico de drogas e consumo de álcool nas escolas ocupadas. No dia 17 de outubro teve início, de fato, a anunciada greve dos professores da rede estadual de ensino básico. O movimento dos professores ofuscou um pouco as ocupações na grande mídia. Nos dias seguintes a imprensa se encarregou de fornecer balanços sobre a adesão à greve e o andamento das negociações com o governo. Não obstante o movimento continuava em ascensão e no dia 20 de outubro o número de ocupações ultrapassava a marca das 700 escolas. Em 19 de outubro o ministro da educação, Mendonça Filho, e a presidente do INEP, Maria Inês Fini, anunciaram que o Exame Nacional do Ensino Médio, ENEM, seria suspenso nas escolas ocupadas caso elas não fossem desocupadas até o dia 31 de outubro. A fala, recebida como 14 https://www.facebook.com/ACTEP.PR/posts/1285655121468037. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 257 arrogante e autoritária, foi a única resposta dada ao movimento pelo Ministério da Educação. A intenção clara do governo era jogar parte da comunidade contra as ocupações, uma vez que o ENEM é aguardado ansiosamente por um grande número de famílias de estudantes que jogam seu futuro naquelas provas15. Das 2148 escolas estaduais do Paraná, naquele momento pouco menos da metade estava ocupada e entre elas apenas 145 deveriam sediar as provas. Para os estudantes ficou patente que se houvesse um mínimo de boa vontade, as provas poderiam ser remanejadas para outros locais. Novamente a grande imprensa e a rede governista escolheram o presidente da UPES como interlocutor para saber a posição do movimento diante do fato provocado pelo ministério. O site Paraná Portal, hospedado no portal UOL do grupo Folha de São Paulo, divulgou declaração do presidente da UPES informando que “só quem sabe a possibilidade das escolas serem desocupadas ou não são a maioria dos alunos” e que deveria ser “realizada uma assembleia estadual para definir isso”.16 O jornal Gazeta do Povo publicou matéria de teor semelhante com título em letras garrafais: “Líderes das escolas ocupadas pedem que governo aguarde decisão da assembleia”.17 No mesmo dia 19 de outubro, a página #OcupaParaná na internet divulgou uma “Nota de esclarecimento sobre o Enem 2016”, cujo teor oscila entre falar em nome do movimento e reconhecer que as ocupações são autônomas: Nós do movimento Ocupa Paraná deixamos claro que já nos aproximamos de 800 escolas ocupadas e que não temos intenção alguma de prejudicar ninguém no ENEM, sabemos que os estudantes das 145 escolas não hesitariam em suspender temporariamente as ocupações para que a prova acontecesse (...). No entanto, não cabe a nós A nota do Enem é usada pela maioria das universidades públicas do país em seus processos seletivos, e também para o financiamento de universidades privadas pelos programas FIES e PROUNI. 16 http://paranaportal.uol.com.br/cidades/com-773-escolas-ocupadas-inep-vai-suspenderenem-no-parana/. 17 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/lideres-das-escolas-ocupadas-pedemque-governo-aguarde-decisao-da-assembleia-7ikumc9i7yd30qrkuzcivdeh. 15 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 258 Conrado Pereda Minucelli et al. decidir o que fazer nesse caso, essa será mais uma pauta da ASSEMBLEIA ESTADUAL que irá acontecer dia 26 (10 dias antes do prazo dado pelo MEC) e só essa assembleia decidirá quais rumos nossas ocupações tomarão18. As declarações do presidente da UPES à imprensa, bem como a nota publicada, explicitam um problema. Até aquele momento cada ocupação era absolutamente autônoma e não havia nenhuma instância deliberativa além das reuniões no interior de cada escola. Mas a assembleia de representantes proposta pelos dirigentes da UPES surgia como uma instância superior, com poder normativo sobre a totalidade das ocupações como se vê na afirmação de que “só essa assembleia decidirá quais rumos nossas ocupações tomarão”. O movimento que em suas origens era autônomo, desburocratizado e estruturado com base na participação direta dos estudantes mobilizados, se via assim, diante de uma estrutura de poder representativa e burocrática. O caráter burocrático e representativo da nova instância proposta ficou ainda mais evidente no processo de organização da assembleia. A página do facebook e o site #OcupaParaná divulgaram uma série de orientações na forma de perguntas e respostas onde se lia: A assembleia construirá a ponte entre todas as ocupações que hoje passam das 800, para definir os próximos passos da educação e também se os estudantes das ocupações têm interesse em dialogar sobre as demandas especificamente do Paraná com o governo do estado. A defensoria Pública do estado hoje se coloca a disposição e convoca os estudantes e o governo para mediar uma negociação quanto às pautas do estado19. Durante os seminários organizados pelos Núcleos Regionais de Educação os estudantes já haviam manifestado claramente que o objetivo das ocupações era protestar contra a MP-746 e a PEC-241 e que nenhum http://www.ocupaparana.com.br/2016/10/nota-de-esclarecimento-sobre-o-enem-2016. html. 19 http://www.ocupaparana.com.br/p/comunicacao.html. #ocupaparaná #assembleia. 18 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 259 diálogo com o governo seria possível enquanto aqueles instrumentos não fossem revogados. No interior das ocupações poucos compreenderam a proposição da UPES naquele momento de abrir negociação com o governo do estado. Na sequência, a página orientava os estudantes para que fosse realizada “uma assembleia em cada escola ocupada” onde deveria ser escolhido “o representante da ocupação que virá participar da Assembleia Estadual dos Estudantes”. Após isto, “um dos ocupantes” deveria fazer um cadastro no sistema do site (www.ocupaparana.com.br) por meio de um formulário eletrônico ativado exclusivamente por meio de uma conta no Google (gmail).20 Esses elementos levam a crer que a UPES estava buscando, por um lado, legitimar-se como interlocutora junto ao governo estadual obtendo autorização para falar em nome do movimento em futuras negociações e, por outro, buscava aumentar seu controle sobre o movimento criando uma instância superior, centralizada, com poder vinculante sobre o conjunto das ocupações. Naquela altura dos acontecimentos restava saber se o movimento se submeteria a tal instituição. Como reconhecimento da legitimidade do movimento, e com uma postura diferente daquela mostrada pelo Ministério da Educação, o Tribunal Regional Eleitoral comunicou no dia 21 de outubro que estava transferindo para locais alternativos a votação que deveria ocorrer em escolas ocupadas nas cidades de Curitiba, Ponta Grossa e Maringá, os três municípios do estado onde seriam realizados segundo turno nas eleições municipais de 2016. Poucos dias depois o movimento sofreria o primeiro grande abalo. Toda a imprensa noticiou com grande destaque a morte de um estudante no interior de uma escola ocupada. No dia 24 de outubro o estudante Lucas Mota, de 16 anos, foi morto em decorrência de uma briga dentro do Colégio Estadual Santa Felicidade em Curitiba. A escola começou a ser desocupada horas depois do corpo ter sido encontrado. Em entrevista coletiva na qual anunciou que a polícia havia apreendido um adolescente 20 http://www.ocupaparana.com.br/p/comunicacao.html. #ocupaparaná #assembleia. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 260 Conrado Pereda Minucelli et al. que confessou ter assassinado o colega após uma discussão no interior da escola. O secretário estadual de segurança pública reconheceu que o incidente foi um fato isolado e que, ao contrário do que a imprensa havia especulado, não tinha qualquer relação com o movimento das ocupações. Apesar disso, o secretário afirmou que se tratava de uma “tragédia presumida” por conta do grande número de denúncias de tráfico e consumo de drogas no interior das instituições ocupadas.21 O incidente deu novo fôlego para o discurso conservador e animou a ação de reacionários de várias espécies. Para o governador do estado, “A ocupação de escolas no Paraná ultrapassou os limites do bom senso e não encontra amparo na razão, pois o diálogo sobre a reforma do ensino médio está aberto, como bem sabem todos os envolvidos nessa questão”22. A senha estava dada. Grupos organizados passaram a ameaçar e a atacar ocupações. Relatos anteriores informavam que ações desse tipo vinham sendo empreendidas por pessoas identificadas como membros do MBL, Movimento Brasil Livre. Em 19 de outubro secundaristas que ocupavam o Colégio Estadual do Paraná, a maior escola pública do estado, denunciaram que viveram momentos de assédio e terror quando cinco homens, apresentando-se como integrantes do MBL, liderados por um candidato a vereador derrotado nas últimas eleições em Curitiba, tentaram invadir o Colégio. Vídeo divulgado dia 24 de outubro pelo movimento Advogados Pela Democracia mostra a ação de um grupo de pessoas arrombando os portões adentrando as dependências do Colégio Estadual Guido Arzo em Curitiba. Ações desse tipo proliferam por todo o estado e cenas como a registrada no vídeo se repetiriam em muitas escolas gerando um clima de terror23. No dia 26 de outubro aconteceu em Curitiba a aguardada assembleia estadual dos representantes das ocupações. A reunião contou com a presença de delegados de cerca de 600 das escolas ocupadas e foi https://educacao.uol.com.br/noticias/2016/10/24/amigo-matou-colega-a-facadas-emescola-diz-secretario-de-seguranca-do-pr.htm. 22 http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/adolescente-e-encontrado-mortodentro-de-colegio-estadual-ocupado.html. 23 http://www.esmaelmorais.com.br/2016/10/richa-organiza-milicias-fascistas-paradesocupar-900-escolas-no-parana/. 21 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 261 acompanhada por membros da Defensoria Pública e do Ministério Público do Paraná, mas a imprensa não pôde acompanhar e os participantes firmaram um acordo para que ninguém concedesse entrevista24. Ao final, foi divulgado na página #OcupaParaná um comunicado contendo uma lista um tanto confusa com as “principais pautas levantadas” pela assembleia, mas finalizado com uma informação de extrema relevância: Para finalizar informamos também que NÃO HÁ nenhuma orientação para desocupação de escolas, entendemos em assembleia que esta decisão cabe APENAS ao conjunto dos estudantes de cada escola e não é uma decisão coletiva. Sendo assim, os estudantes em cada escola podem decidir se vão ou não desocupar suas escolas. Na assembleia, no entanto ficou claro que não haverá desocupação sem a garantia do atendimento de nossas pautas25. O movimento reafirmava, assim, a autonomia das ocupações, negando a transferência do poder local para outra instância. A inexistência de alguém que falasse em nome de todo o movimento era um problema que se recolocava constantemente. A grande imprensa mostrou que tem dificuldades para se relacionar com um movimento descentralizado e não-hierárquico e em diversos momento indicava o presidente da UPES como “líder” ou “direção” das ocupações, como quem procura um novo Lindberg entre os “caras pintadas”26. Mas no dia 26 de outubro a imprensa encontraria outro “porta voz” dos secundaristas. A estudante Ana Júlia Ribeiro, aluna do Colégio Estadual Senador Alencar Manuel Guimarães, de apenas 16 anos, falou por dez minutos na tribuna da Assembleia Legislativa do estado. Ela foi convidada pelo deputado http://g1.globo.com/pr/parana/educacao/noticia/2016/10/estudantes-do-paranadiscutem-em-assembleia-rumos-das-ocupacoes.html. https://cbncuritiba.com/2016/10/26/estudantes-realizam-assembleia-sobre-ocupacao-dasescolas-no-parana/. 25 http://www.ocupaparana.com.br/search?updatedmax=20161103T14:57:0007:00&maxresults=1&reversepaginate=true (Destaque dos autores). 26 Lindberg Farias, hoje senador da república era presidente da UNE durante o movimento pelo impeachment do presidente Collor e foi apresentado nacionalmente pela imprensa como o “líder dos caras pintadas”. 24 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 262 Conrado Pereda Minucelli et al. oposicionista Tadeu Veneri (PT) para falar como resposta a um grupo de estudantes contrários às ocupações que haviam falado no dia anterior a convite da bancada governista. Em seu discurso a jovem secundarista defendeu a legitimidade das ocupações, criticou a MP-746, a PEC-241 e o projeto Escola Sem Partido, e rechaçou o discurso criminalizador fazendo um convite para que todos os deputados fossem conhecer as ocupações para compreender como o movimento acontecia de fato. O vídeo com o discurso emocionado da estudante viralizou na internet. Em pouco tempo, até então desconhecida, estudante estava na pauta dos principais jornais do país e de alguns veículos internacionais. A prestigiada revista Forbes publicou em seu site que ‘’Nas últimas 24 horas, o Brasil foi apresentado ao que muitos brasileiros acreditam que é a mais promissora voz ouvida em muitos anos’’27. O blog do jornalista Esmael de Moraes, ativista de oposição aos governos estadual e federal, anunciou em manchete no dia 28 de outubro que a “Estudante Ana Júlia, porta-voz das escolas ocupadas, denunciará à ONU milícias fascistas de Beto Richa no Paraná”, dando conta de que a rede política de oposição levaria a jovem ao Senado Federal e, depois, à Organização das Nações Unidas, fazendo um uso particular do movimento28. A reação governista não tardaria, e viria na forma de repressão jurídico-policial e pela ação de tropas auxiliares mobilizadas pelo governo. No dia 27 de outubro o Paraná Portal noticiou a reintegração de posse de 25 escolas da região de Curitiba: “A liminar foi concedida a pedido da Procuradoria Geral do Estado. Na decisão, a juíza Patrícia de Almeida Gomes, da 5ª Vara de Fazenda Pública, estabelece ainda uma multa no valor de R$ 10 mil por dia em caso de descumprimento”. No despacho a magistrada determinava também à polícia militar que tomasse “as providências necessárias para assegurar o cumprimento da decisão”29. http://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br/2016/10/27/forbes-discurso-da-estudante-anajulia-e-o-futuro-da-juventude-do-brasil/. 28 http://www.esmaelmorais.com.br/2016/10/estudante-ana-julia-porta-voz-das-escolasocupadas-denunciara-a-onu-milicias-fascistas-de-beto-richa-no-parana/ (Destaque dos autores). 29 http://paranaportal.uol.com.br/cidades/justica-determina-reintegracao-de-posse-de-25escolas-ocupadas-em-curitiba/. 27 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 263 No dia 28 de outubro membros da comunidade fizeram um cordão de isolamento em torno do Colégio Estadual Pedro de Macedo em Curitiba para conter a ação de agentes do MBL que tentavam forçar sua desocupação30. No dia 31 de outubro, após a justiça autorizar o governo a cortar os salários dos professores em greve, uma assembleia do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato) delibera pelo fim da greve dos professores. O movimento sofria mais um revés, desta vez, partindo do interior da sua rede de sustentação. Na assembleia dos professores, uma aluna do Colégio Estadual Arnaldo Jansen, a primeira escola ocupada no Paraná, chorou enquanto criticava o que avaliava como “traição” dos professores que votaram pela suspensão da greve31. No dia 03 de novembro, sintomaticamente no dia em que o movimento completou um mês, a polícia fazia cumprir a determinação judicial de reintegração de posse de 23 escolas32. Nesse mesmo dia o Blog do Esmael e o portal G1 noticiavam que a Procuradoria Geral do Estado havia requerido a extensão dos efeitos daquela liminar para todas as demais escolas no estado33. Na tarde da sexta-feira 04 de novembro a polícia militar entrou no Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen e retirou os estudantes que saíram pacificamente após terem permanecido no local por 32 dias34. Algumas poucas ocupações ainda resistiram por mais alguns dias. http://g1.globo.com/pr/parana/educacao/noticia/2016/10/justica-determina-reintegracaode-posse-de-dezenas-de-escolas-do-pr.html. 30 https://www.youtube.com/watch?v=wc2eMsPHu7c. 31 http://www.esmaelmorais.com.br/2016/10/estudante-vai-as-lagrimas-pela-traicao-deprofessores-que-suspenderam-greve-no-parana-assista/. 32 http://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/reintegracoes-de-1a-liminar-contraescolas-ocupadas-em-curitiba-sao-cumpridas/. 33 http://www.esmaelmorais.com.br/2016/11/beto-richa-quer-desocupar-a-forca-todas-asescolas-do-parana/. http://g1.globo.com/pr/parana/educacao/noticia/2016/11/estado-pede-reintegracao-deposse-de-44-escolas-ocupadas-em-curitiba.html. 34 http://pr.ricmais.com.br/educacao/noticias/pm-cumpre-reintegracao-de-posse-emprimeira-escola-ocupada-no-parana/. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 264 Conrado Pereda Minucelli et al. A ORGANIZAÇÃO DAS OCUPAÇÕES O roteiro das ocupações no Paraná estava dado desde a primeira, ocorrida no Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, e apresenta os seguintes passos: um debate sobre a MP-746 e a PEC-241, seguido pela organização de uma assembleia na escola, a ocupação das instalações com a tomada do controle sobre o acesso às instalações, organização e resistência. Por vezes esse roteiro não foi rigorosamente seguido, com alguma parte sendo suprimida ou alterada, porém, em seus traços centrais, ele descreve o processo com bastante propriedade. No capítulo inicial já se configura alguns dos primeiros, e decisivos, embates. Por um lado, os estudantes mobilizados enfrentam a oposição das direções das escolas. Por outro, a indiferença dos seus próprios colegas. As escolas tradicionais normalmente oferecem inúmeras razões para a indignação dos estudantes (Ver por exemplo, LIBANEO,1992 e SAVIANI, 1991) e no sistema de ensino do estado do Paraná a situação não é diferente. As escolas públicas paranaenses, em sua maioria, são instalações insuficientes e deterioradas, com um corpo de técnicos e docentes sobrecarregados, mal remunerados e desmotivados, e que fazem da imposição de uma disciplina rigorosa e constante o principal recurso para obter dos alunos o comportamento por eles esperado. Por isso a manutenção da disciplina é uma das mais importantes funções dos dirigentes escolares. Nessa escola rigorosamente disciplinada não existe espaço para a manifestação de saberes e valores diferentes, e até mesmo os elementos da vida sentimental, afetiva e sexual dos sujeitos são negados e reprimidos. Em uma escola assim, um debate proposto e organizado pelos estudantes, sobre assunto de seu interesse, não é algo que se realize tranquilamente; pelo contrário, ele tende a aparecer como uma grande ameaça à ordem estabelecida. Na iminência de uma reforma do sistema imposta por medida provisória, entretanto, algumas direções de escolas não apenas não tinham argumentos para impedir a organizações de debates sobre o tema, como, muitas vezes, elas mesmas estavam interessadas em conhecer em detalhes o teor da MP-746 e da PEC-241. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 265 De um modo geral, os secundaristas em processo de mobilização contam com a insatisfação generalizada que eles sabem existir entre seus colegas para angariar apoio. No cotidiano os estudantes não se submetem passivamente à rigidez disciplinar das escolas; eles desenvolvem táticas e estratégias de resistência, mobilizam recursos e criam alternativas35. Não obstante, a passagem daquelas formas de resistência encontradas no cotidiano da instituição para uma ação coletiva protesto representa uma grande transformação que, como toda ruptura no cotidiano, é cercada por incertezas e insegurança. No caso do #OcupaParaná, o peso de elementos prévios de organização ou experiência política nessa passagem foi incerto e irregular. Em algumas escolas observadas grêmios estudantis e representantes de sala foram importantes agentes de mobilização e em torno deles se formou o grupo embrionário que deu origem ao processo de ocupação. Em outras, a mobilização se deu à revelia daquelas instituições, com pequenos grupos de estudantes indignados se organizando por meio das redes sociais. De resto, a grande maioria dos jovens que protagonizaram as ocupações tinha muito pouca, ou nenhuma, experiência política anterior; nunca havia participado de qualquer movimento ou manifestações políticas e sequer tinha votado em alguma eleição. Ocupada uma escola todos os poderes instituídos eram suspensos e novas relações estabelecidas. A primeira medida adotada pelos ocupantes era constituir comissões autogeridas, responsáveis pela execução de atividades essenciais como segurança, ações pedagógicas e culturais, cozinha, limpeza, comunicação, mobilização etc. As tarefas práticas eram divididas, mas a unidade política preservada: todos os dias os estudantes se reuniam para analisar o desenrolar da conjuntura e deliberar coletivamente sobre os rumos e ações do movimento. Nesse ponto ficou evidente a influência das orientações disponíveis na internet sobre a organização das ocupações. Alguns dias após o início do movimento o site #OcupaParaná já exibia a página #Como Ocupar, contendo “10 Passos para Ocupar uma Escola”36. As orientações que constavam na página eram uma versão Sobre a resistência no cotidiano ver Michel de Certeau (1998) e sobre o cotidiano escolar Peter McLaren (1992). 36 http://www.ocupaparana.com.br/p/como-ocupar.html. 35 Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 266 Conrado Pereda Minucelli et al. resumida da cartilha “Como ocupar um colégio?” que circulou entre os secundaristas de São Paulo durante as ocupações de 2015, a qual por sua vez, consistia na tradução de uma publicação de estudantes da Argentina e do Chile (CAMPOS, MEDEIROS E RIBEIRO, 2016; pp. 338-345). Quem visitou uma escola no período da ocupação, ao chegar encontrou um grupo de alunos controlando o acesso, cuidando para que apenas membros da comunidade escolar entrassem e, quando autorizado, registrando nome, data, hora e motivo da entrada do visitante. No interior, ao lado de faixas e cartazes feitos à mão com palavras de ordem contra a reforma do Ensino Médio e em defesa da educação pública, o visitante podia ver cartazes com regras e normas de conduta alertando para a necessidade de manter a limpeza do local e proteger equipamentos e instalações da escola, e proibindo taxativamente o consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas no interior da escola. Essa proibição, mais que um caráter moral, cumpria uma função política de combate ao discurso criminalizador difundido pela mídia tradicional e repetido na internet que denunciava o consumo de drogas nas ocupações. É importante observar que o consumo de álcool e outras drogas, assim como o envolvimento de estudantes com o tráfico e até mesmo a morte de jovens são eventos que fazem parte do cotidiano da maioria das escolas brasileiras e constituem uma realidade cuja dinâmica foi muito pouco afetada pelo advento das ocupações. Tais eventos, entretanto, não recebem no dia a dia o destaque no noticiário que tiveram durante as ocupações. Durante os dias, as escolas ocupadas eram frequentadas por um grande número de estudantes que participavam das mais diversas atividades. As aulas de preparação para o ENEM, quando ocorriam, normalmente eram bastante concorridas, assim como oficinas sobre temas curriculares e extracurriculares. A prática de atividades lúdicas e esportivas também foi constante durante o período das ocupações que acompanhamos. Para divulgar a programação das atividades os estudantes recorriam, principalmente, às páginas do Facebook e também ao Twitter e ao WhatsApp. Não eram todos que pernoitavam nas escolas ocupadas. Na maior parte dos casos, apenas um pequeno grupo com cerca de 20 a 40 estudantes dormia no local, em colchonetes ou colchões de ar, espalhados Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 267 por salas transformadas em alojamentos feminino e masculino separados. Para a alimentação e a higiene pessoal também muitos voltavam para suas casas, mas as refeições coletivas, feitas com alimentos doados pela comunidade, eram constantes. Em alguns casos os estudantes usavam a infraestrutura da escola, em outros, foram improvisadas cozinhas com equipamentos próprios para acampamento, também emprestados pela comunidade. Algumas ocupações deliberaram por usar o estoque de alimentos da merenda escolar, entendendo que não havia qualquer desvio da finalidade dos mesmos, outras preferiram usar apenas alimentos recebidos em doação. Se um visitante qualquer procurasse o “líder” ou “porta-voz” da ocupação, não teria sucesso. Somente encontraria coletivos, equipes ou comissões, responsáveis pela execução de diferentes tarefas, entre elas, a comunicação com a comunidade interna e externa. Isto, entretanto, não impediu que durante o processo, aqui e ali, algumas pessoas se destacassem entre as demais, quase sempre por sua disposição e entrega ao movimento, e se tornasse uma espécie de referência para os colegas. Nesse ponto chamou a atenção nas escolas acompanhadas o grande número de meninas e de pessoas LGBTs que assumiram a frente dos trabalhos, atribuindo à escola um perfil diferente. A organização horizontal do movimento, ao abolir as hierarquias anteriormente instituídas, permitiu uma expressão maior de pessoas e segmentos, normalmente, subordinados e/ou excluídos e provocou uma ressignificação do espaço público (GOHN, 2014): a escola, palco das ocupações, foi transformada de instrumento de repressão e reprodução das desigualdades em um espaço de exercício da liberdade e da autonomia onde todas as individualidades são respeitadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em trabalho recente, Maria da Glória Gohn classifica os movimentos como clássicos, novos e novíssimos. Os clássicos são aqueles “que se organizavam de forma tradicional, no meio rural ou urbano, especialmente os de partidos políticos, sindicatos, movimentos rurais e organizações oficiais de estudantes, a exemplo da UNE” (GOHN, 2017, Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 268 Conrado Pereda Minucelli et al. p. 20). Suas estruturas são rígidas e “copiadas de partidos hierarquizados, com concepções e estruturas organizacionais centralizadas, focalizadas em líderes e lideranças” (IDEM, p.20). Para a autora, esses movimentos ainda que nos dias atuais utilizem intensamente a internet, as redes sociais e diferentes tipos de mídias como ferramentas de apoio, “pouco se reinventaram” e, em sua maioria, “ainda tem as mesmas estruturas e formas de agir do século XX”, e não alteraram o “modo centralizado de operar repertórios e se relacionar com suas bases” (IDEM, p. 20-1). Os novos movimentos sociais, por sua vez, surgiram nas últimas décadas do século XX e “se organizaram ao redor de questões de gênero, etnia, culturais, ambientalistas etc. (…) ou como movimentos populares de demandas sociais urbanas” (IDEM, p. 19). São movimentos que “tinham na identidade cultural seu eixo articulatório central” (Idem, p.19), “buscavam se firmar pela identidade que construíam – ser mulher, ser negro, ser jovem, ser índio, ser morador de periferia etc.”, e em contraste com os movimentos clássicos, se organizavam em estruturas menos rígidas e menos verticalizadas. Para Gohn, estes movimentos novos, “criados a partir do final da década de 1970”, ainda hoje “mantêm o perfil de movimentos de luta pela identidade cultural”, mas alteraram suas práticas cotidianas e as relações diretas, baseadas em reuniões e assembleias “deixaram de predominar”. Para a autora, estes movimentos “articularamse em redes, junto com ONGs, e passaram a atuar focalizando muito nos processos participativos institucionalizados, (...) e em programas e projetos de parceria criados pelas administrações públicas”. (IDEM, p. 21) Por fim, Gohn identifica a entrada de “novíssimos sujeitos em cena”, a partir de 2013. Estes “não são homogêneos” e “representam diferentes correntes e contracorrentes do mundo da política e da cultura” (GOHN, 2017, p. 21), não obstante, criados na era da internet, eles são “plurais, mais autônomos, mais horizontais porque nascem de redes de grupos ou coletivos” (IDEM, p. 24). Os coletivos, segue a autora, “são vistos como agrupamentos fluidos, fragmentados, horizontais, e muitos têm a autonomia e a horizontalidade como valores e princípios básicos” (IDEM, p. 23). E a própria rede atua como “organização-suporte”, agindo como “filtro que agrega ou separa correntes de contracorrentes”. Para Gohn, Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 269 “as redes sociais virtuais, digitais, são a forma básica de constituição e atuação da maioria dos coletivos” (IDEM, pp. 24-5). Também Hardt e Negri (2014, p. 120) sugerem que os movimentos neste início de século XXI, não apenas “utilizam tecnologias como a internet como ferramentas de organização, como também começam a adotar tais tecnologias como modelos para suas próprias estruturas organizacionais”. A ideia central aqui, em grande medida presente também em Castells (2013), é que a estrutura policêntrica da web imprime nos movimentos que se organizam a partir do ciberespaço, características como a horizontalidade e a irredutibilidade de seus nodos a um comando central unificado. Se admitirmos que esse início de século está testemunhando a manifestação de novíssimas formas de movimentos sociais como sugere Gohn (2017), a relação do movimento de ocupações paranaense com as entidades clássicas do movimento estudantil fornece uma boa chave para compreender e – por que não? – problematizar as transformações pelas quais passam os movimentos sociais nesse início de século XXI. O site #OcupaParaná e a página no Facebook organizados pela UPES se consolidaram como importantes referências, principalmente, para quem buscava informações sobre o movimento. No entanto, as relações que se estabeleceram entre aquela entidade e o conjunto das ocupações foram ambíguas e eivadas de contradições. Isso fica bastante evidente quando, como relatado acima, o presidente da UPES, embora reconhecendo a autonomia das ocupações que escapam ao controle da sua entidade, propõe a realização de uma assembleia estadual para decidir sobre os rumos do movimento, incluindo possíveis desocupações para a realização do ENEM. O dirigente secundarista parece não perceber que estava propondo a criação de uma instância superior com poderes normativos sobre um movimento, que até aquele momento era constituído por ocupações autônomas e independentes, geridas exclusivamente em nível local. Na prática, ele estava opondo duas concepções distintas de democracia. O caráter da assembleia então proposta é essencialmente representativo e centralizador: tratava-se da organização de uma reunião de “representantes” das ocupações que, uma vez instituída, deveria ter suas decisões acatadas por todo o conjunto do movimento. Nas palavras Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 270 Conrado Pereda Minucelli et al. do dirigente da UPES, “somente a assembleia” poderia tomar a decisão de desocupar uma escola para a realização do ENEM. Do outro lado, permanecia a experiência vivida no cotidiano das ocupações do exercício permanente de uma democracia direta, sem mediadores ou representantes. Ao fim, como se viu, os estudantes não estavam dispostos a abrir mão de sua autonomia em benefício de qualquer instância de poder superior, centralizada, e se manifestaram no sentido de que a desocupação de uma escola era uma decisão que somente caberia aos estudantes da própria escola. A UPES é uma instituição clássica, típica do século XX, que se apresenta como “a entidade máxima de representação de todos(as) os(as) estudantes de ensino fundamental, médio, técnico, pré-vestibular e ensino para jovens e adultos das redes pública e particular municipal, estadual e federal”37. Esse caráter de “entidade representativa” presente na autoidentificação da UPES não pode ser negligenciado. Lavalle, Houtzager e Castell (2006) chamam a atenção para o fato de que os problemas da representação política há tempos transbordam os limites do sistema eleitoral e partidário alcançando movimentos e associações da sociedade civil e embora estes últimos sejam frequentemente saudados como responsáveis pelo aprofundamento da democracia, têm sido pouco analisados sob o prisma da representação política. No cotidiano o movimento estudantil secundarista38 existe nas escolas, nos pátios, corredores e salas de aulas. Apenas extraordinariamente ele sai dos colégios para se manifestar em outros espaços, quando assume a forma de passeata, marcha, comício, ato público etc. Tais manifestações públicas do movimento, entretanto, são ocasionais e tendem a ocorrer em conjunturas específicas de radicalização dos conflitos. No dia a dia, sua presença nos espaços públicos, assim como a de muitos outros movimentos, se faz por meio da ação de representantes, sejam eles membros orgânicos, líderes, ou porta-vozes instituídos. Esta é uma das funções esperadas dos institutos de representação política: efetivar a presença do representado nas diferentes arenas políticas, publicizando seu repertório de demandas, 37 38 http://upespr.webnode.pt/sobrenos/ (Destaque dos autores). O mesmo se poderia dizer do universitário que, entretanto, não é objeto desse estudo. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 As ocupações das escolas públicas paranaense:... 271 interesses, vontades, ou simplesmente divulgando a sua visão de mundo. Outra, segue em sentido oposto, e deve levar as disputas e conflitos que se estabelecem na esfera pública até a presença dos representados. É isso que permite a unificação de lutas particulares e esparsas em um mesmo movimento. Na prática do movimento estudantil é o que significa levar as questões políticas “para dentro das salas de aula”. Nossa hipótese é de que estas funções da representação, no âmbito dos movimentos aqui observados, têm sido profundamente atingidas pelo desenvolvimento da internet e das redes sociais. Como ferramenta de comunicação de fácil acesso e grande poder de difusão, por um lado, a internet permite que as pessoas se façam presentes em diferentes arenas tornando possível a publicização de demandas, o compartilhamento e a articulação em redes independente da figura de um representante, fazendo com que ele deixe de ser visto como necessário. Por outro, proporciona um controle mais efetivo e constante sobre a fala e ações daqueles que assumem a função de representantes aumentando a inevitável dissociação entre representantes e representados reduzindo exponencialmente a margem de dissintonia entre ambos. Por isso, por mais que entidades como a UPES estejam presentes no ciberespaço e lancem mão das novas tecnologias de comunicação, constituam e participem de redes, elas não conseguem impedir o crescimento progressivo da fissura existente entre entidade e movimento, representante e representado, e o consequente aumento de manifestações independentes, que escapam ao seu controle. Nesse sentido parece forte a hipótese de Hardt e Negri (2014) de que as ações de resistência atuais, os protestos e manifestações, cada vez mais tendem a assumir a forma de uma multidão e, como diz Negri (2004), “a multidão desafia qualquer conceito de representação”. Nas ocupações de outubro no Paraná se pôde testemunhar a manifestação de um movimento que não queria ser representado. Um movimento que, em determinado momento, recusou taxativamente a representação. A contrapartida desse tipo de ação, entretanto, é que a falta de um porta-voz legitimamente constituído, de alguém que tenha autorização para falar em nome do movimento, permite que uma multiplicidade de vozes seja ouvida. A polifonia instituída não chega a constituir um Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 272 Conrado Pereda Minucelli et al. problema, podendo, pelo contrário, até ser considerada uma vantagem do ponto de vista da expressão da diversidade que tende a ser sacrificada em nome da unidade política instituída na figura de um representante. Mas a falta de mecanismos – ou momentos – de expressão da vontade coletiva pode permitir que alguém, do interior do próprio movimento, mas dispondo de mais recursos como, por exemplo, maior acesso a canais de comunicação, ou integração em redes mais amplas, possa fazer sua voz se sobrepor à dos demais. E, o que é ainda mais grave, a ausência de uma referência clara permite que forças externas ao movimento – sejam apoiadoras ou adversárias, de boa ou de má-fé – se sintam livres para agir como se o seu discurso sobre o movimento correspondesse plenamente ao conteúdo do próprio movimento ou como se o sentido do movimento correspondesse exatamente aos seus interesses particulares. Nesses casos, todos os problemas e distorções da democracia atribuídos à representação, expulsos pela porta, retornam, sorrateiramente, pela janela. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS CAMPOS, A. J. M.; MEDEIROS, J.; RIBEIRO, M. M. Escolas de Luta. São Paulo: Veneta, 2016. CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998. DEMIER, F.; HOEVELER, R. A onda conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2016. GOHN, M. da G. 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Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 247-274, fev./dez. 2016 nORMaS paRa apRESEntaçãO DE ORIgInaIS InfORMaçõES gERaIS A Revista TEMÁTICAS publica trabalhos originais de alunos, professores e pesquisadores em Ciências Sociais, na forma de artigos, resenhas, entrevistas, comunicações e traduções. Serão aceitas resenhas de livros que tenham sido publicados no Brasil, nos dois últimos anos, e no exterior, nos quatro últimos anos. Prioritariamente, os trabalhos devem ser redigidos em português ou espanhol. O Resumo e as Palavras-chave, que precedem o texto, escritos no idioma do artigo; os que sucedem o texto, em inglês (Abstract/Keywords). É permitida a reprodução parcial ou total dos trabalhos da Revista TEMÁTICAS em outras publicações ou sua tradução para outro idioma, desde que citada a fonte original. A publicação de artigos não é autorizada aos membros do Conselho Editorial da Revista TEMÁTICAS. pREpaRaçãO DOS ORIgInaIS Apresentação. Os trabalhos devem ser apresentados em cd e acompanhados dos printers (três cópias impressas, fiéis ao cd, sendo duas cópias sem nome do autor do texto), em um dos seguintes programas: Word 6.0 ou superior, não devendo exceder 12.000 palavras. Estrutura do trabalho. Os trabalhos devem obedecer à seguinte seqüência: folha de rosto com Título; Autor(es) (por extenso e apenas 276 Normas para apresentação de originais o sobrenome em maiúscula); programa e área aos quais está(ão) vinculado(s), vínculo docente, endereço residencial e telefone para contato; no corpo do texto: Título, Resumo (com máximo de 200 palavras); Palavras-chave (com até sete palavras tiradas do Thesaurus da área, quando houver); Texto; Abstract e Keywords (versão para o inglês do Resumo e Palavras-chave); Bibliografia (indicar também obras consultadas ou recomendadas, não referenciadas no texto, se houver). Referências Bibliográficas. Devem ser dispostas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor e seguir a NBR 6023 da ABNT. Abreviaturas. Os títulos de periódicos deverão ser abreviados conforme o Current Contents. Exemplos: • Livros e outras monografias: FIGUEIREDO, A. C., FIGUEIREDO, M. O plebiscito e as formas de governo. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 98. • Capítulos de livros: JOHNSON, W. Palavras e não palavras. In: STEINBERG, C. S. Meios de comunicação de massa. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 47-66. • Dissertações e teses: BITENCOURT, C.M.F. Pátria, Civilização e Trabalho ensino nas escolas paulistas (1917-1939). São Paulo, 1988. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 275-278, fev./dez. 2016 Temáticas 277 • Artigos de periódicos: LESSA, S. Lukács. Trabalho, objetivação, alienação. Trans/ Form/Ação, São Paulo, v. 15, p. 39-51, 1992. Citação no texto. O autor deve ser citado entre parênteses pelo sobrenome, separado por vírgula da data de publicação (Torres, 1978). Se o nome do autor estiver citado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses: “Segundo Schaff (1992)...” Quando for necessário especificar página(s), esta(s) deverá(ão) seguir a data, separada(s) por vírgula e precedida(s) de p. (Delouya, 1994, p. 54). As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem ser discriminadas por letras minúsculas após a data, sem espacejamento (Marx, 1984a) (Marx, 1984b). Quando a obra tiver dois autores, ambos são indicados, ligados por & (Lamounier & Meneguello, 1986) e quando tiver três ou mais, indica-se o primeiro seguido de et al. (Weffort et al., 1988). Notas. Devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no pé de página. As remissões para o rodapé devem ser feitas por números arábicos, na entrelinha superior. As opiniões e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores. RESEnhaS E tRaDUçõES As resenhas devem seguir o padrão de publicação de Temáticas contendo no máximo 6000 palavras. Temáticas, Campinas, 24, (47/48): 275-278, fev./dez. 2016 temáticas Revista dos Pós-Graduandos em Ciências Sociais Pedidos: Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH Setor de Publicações Cidade Universitária “Zeferino Vaz” Caixa Postal 6.110 CEP: 13083-970 – Campinas – SP – Brasil Publicações: Fone: 19 – 3521.1603 Livraria: Fone/Fax: 19 – 3521.1604 http://www.ifch.unicamp.br/publicacoes http://revistatematicas.blogspot.com/ https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/tematicas/index tmaticas@unicamp.br pub_ifch@unicamp.br https://www.facebook.com/revistatematicas/ www.facebook.com/pubifch Tiragem: 300 exemplares SOLICITA-SE PERMUTA Exchange Desired Diagramação – Revisão – Impressão IFCH/UNICAMP