UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE - FURG
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PROPESP
FACULDADE DE DIREITO - FADIR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO E JUSTIÇA SOCIAL
NÍVEL MESTRADO
CLARICE GONÇALVES PIRES MARQUES
DIREITO E FEMINILIDADES: O DISCURSO JURÍDICO COLONIAL E
DECOLONIAL EM FACE DA LEI DO FEMINICÍDIO
RIO GRANDE
2015
1
CLARICE GONÇALVES PIRES MARQUES
DIREITO E FEMINILIDADES: O DISCURSO JURÍDICO COLONIAL E
DECOLONIAL EM FACE DA LEI DO FEMINICÍDIO
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Direito e Justiça Social da
Universidade Federal do Rio Grande
(FURG) para obtenção do Grau de Mestra
em Direito. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Raquel
Fabiana Lopes Sparemberger. Linha de
pesquisa: A realização constitucional da
solidariedade
Rio Grande
2015
2
Dedico este trabalho aos meus pais
Dalila Gonçalves (in memorian) e
Flavius Vinicius Araújo Pires (in memorian).
3
AGRADECIMENTOS
Somos como grãos de areia em comparação ao cosmos e, diante disso,
impossível não pensar sobre o que move tudo aqui, o que é tangível e também o
que é intangível. Tendo em vista as crenças nas quais edifico meus valores e
minhas compreensões acerca deste cosmos, da minha própria existência e da
existência de tudo o que há, me sinto à vontade para agradecer à divindade e ao
plano espiritual, pelas possibilidades e oportunidades que me foram/são concedidas
a cada novo amanhecer, pelas pessoas que tenho ao meu redor, pelos bons
encontros,
pelos
êxitos
e
pelos
tropeços
que
possibilitaram/possibilitam
aprendizados, pois nenhuma experiência é estéril.
Agradeço aos meus pais Dalila Gonçalves e Flavius Vinicius Araújo Pires pelo
quanto nos foi possível estar juntos, pelo quanto amaram, ensinaram, incentivaram
enquanto se encontravam neste plano de existência.
Agradeço à família que me acolheu há treze anos, meus sogros e cunhada,
Marli Michaello Marques, Carlos Alberto Marques e Anne Michaello Marques,
respectivamente, os quais, sem nenhuma obrigação e, talvez até sem saber,
proporcionaram um ambiente onde eu pudesse evoluir como ser humano, a partir da
nossa convivência.
Agradeço ao meu amado esposo, companheiro de inúmeras empreitadas, por
podermos compartilhar nossas caminhadas, por sua compreensão, cumplicidade,
parceria, paciência e amor, pois incansável, sempre esteve ao meu lado, fornecendo
apoio e incentivo.
Agradeço à minha querida amiga Lísia Amorim Pinheiro pelas incontáveis
palavras de apoio e incentivo, pela escuta atenta, pelo riso frouxo, mesmo naqueles
dias em que a atmosfera pesava diante de tantos compromissos. Há irmãos que não
são de sangue, são de alma.
Agradeço à minha estimada orientadora, Prof.ª Dr.ª Raquel Fabiana Lopes
Sparemberger,
por
compartilhar
generosamente
seus
conhecimentos,
pela
orientação, pelo apoio, pela liberdade e pela confiança.
Agradeço aos/às colegas pelos conhecimentos compartilhados durante o
curso de Pós-Graduação em Direito e Justiça Social, bem como ao corpo docente,
pelos conhecimentos que nos possibilitaram construir outras percepções e
possibilidades de analisar o contexto em que vivemos.
4
“Se, no contexto da produção colonial,
o sujeito subalterno não tem história e não pode falar,
o sujeito subalterno feminino está ainda mais
profundamente na obscuridade.”
(SPIVAK, 2010, p. 67)
5
RESUMO
A presente dissertação tem como tema de investigação ―Direito e Feminilidades: o
discurso jurídico colonial e decolonial em face da Lei do Feminicídio. Para tanto,
essa temática foi delimitada através da investigação sobre a capacidade do Direito,
através de seu discurso jurídico com relação ao feminicídio, promover a
dessubalternização das mulheres no Brasil, realizada a partir de uma leitura
decolonial do fenômeno para atingir o fim de compreender os processos que
resultaram em altos índices de violência letal em razão do gênero no país. Diante
disso, se propõe a responder à questão de pesquisa, qual seja: em que medida a Lei
do Feminicídio (Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015) contribui para a
dessubalternização das mulheres dentro da perspectiva do discurso jurídico
colonial/decolonial. O objetivo geral é o de verificar em que medida a lei brasileira
destinada a coibir os crimes de feminicídio possibilta a dessubalternização das
mulheres considerando o discurso jurídico empregado na produção da mesma. Os
objetivos específicos consistem em uma série de análises que possibilitam acolher
ou refutar as hipóteses elaboradas à questão, envolvendo as seguintes etapas:
investigar as contribuições dos Estudos Decoloniais e suas categorias de análise
para observar o fenômeno da subalternização das mulheres latino-americanas;
perceber as relações entre a colonialidade do gênero e o ego conquiro proposto por
Nelson Maldonado-Torres; identificar as proposições do Feminismo de Cor acerca
da violência contra as mulheres; notar como se estabeleceu a produção das
identidades femininas na América Latina; verificar as contribuições das matrizes
ocidentais de pensamento bem como das ciências, e das ciências jurídicas, para a
manutenção e reforçamento da representação de inferioridade das mulheres,
inclusive no contexto brasileiro; destacar as contribuições dos Estudos Feministas
para a ruptura com o paradigma androcêntrico de ciência; apontar a ciência jurídica
como instrumento de manutenção e reforçamento da colonialidade do gênero no
Brasil; detalhar o feminicídio enquanto categoria e sua tipologia; delinear a trajetória
da questão do feminicídio na América Latina; indicar a origem da regulação do
feminicídio como crime nos países latino-americanos; discorrer acerca dos efeitos da
não-regulação e da condenação dos Estados como violadores de Direitos Humanos;
referir os índices da violência letal contra mulheres no continente e no Brasil;
analisar se a lei do feminicídio brasileira foi estabelecida dentro de parâmetros que
privilegiam o discurso jurídico colonial ou decolonial. A metodologia estabelecida foi
o método analético, propondo ruptura com as metodologias eurocêntricas e
totalizantes que oportunizaram as opressões que se busca rechaçar, atendendo às
escolhas teóricas propostas na releitura do fenômeno.
PALAVRAS-CHAVE: Feminicídio. Direito. Discurso jurídico colonial/decolonial.
Decolonialidade.
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RESUMEN
La disertación tiene el tema de investigación "Derecho y feminidades: el discurso
legal colonial y decolonial ante la Ley de Feminicidio. El tema ha sido definido con el
fin de percibir a través de la investigación sobre la capacidad de la ley, a través de
su discurso legal en relación con el feminicidio, garantizar desubalternización de las
mujeres en Brasil, elaborado a partir de una lectura decolonialista del fenómeno para
llegar a comprender los procesos que han dado lugar a altas tasas de violencia letal
en razón del género en Brasil. Por lo tanto, se dispone a responder a la pregunta de
investigación, que es: ¿hasta qué punto la Ley contra el Femicidio (Ley N ° 13.104,
de 9 de marzo, 2015) contribuye a las mujeres desubalternización desde la
perspectiva del discurso legal colonial / decolonial. El objetivo general es determinar
en qué medida la legislación brasileña creada para frenar los delitos de feminicidio
permite a mujeres la desubalternización partir del discurso legal utilizado en la
producción de los mismos. Los objetivos específicos consisten en una serie de
análisis que permite validar o refutar las hipótesis formuladas en el asunto, que
involucra los siguientes pasos: investigar las contribuciones de los estudios
descoloniales y sus categorías de análisis para observar el fenómeno de la
subordinación de las mujeres de América Latina; entender la relación entre la
colonialidad del género y el ego conquiro propuesto por Nelson Maldonado-Torres;
identificar las proposiciones del feminismo de cor acerca de la violencia contra la
mujer; observar cómo se estableció la producción de identidades femeninas en
América Latina; verificar las contribuciones de las matrices del pensamiento
occidentales y de las ciencias, y ciencias jurídicas para el mantenimiento y el
refuerzo de la representación de la inferioridad de la mujer, incluso en el contexto
brasileño; destacar las contribuciones de Estudios Feministas de romper con el
paradigma androcéntrico de la ciencia; señalando la ciencia jurídica como
instrumentalización de mantenimiento y refuerzo del colonialismo de género en
Brasil; detallar feminicidio como categoría y tipología; diseñar la trayectoria de la
cuestión del feminicidio en América Latina; indicar el origen del feminicidio y su
regulación como delito en los países de América Latina; discutir sobre los efectos de
la falta de regulación y de la condenación de los Estados como violadores de los
Derechos Humanos; presentar las tasas de la violencia letal contra las mujeres en el
continente y en Brasil; considerar si la ley del feminicidio brasileña fue establecido
dentro de los parámetros que favorecen el discurso jurídico colonial o decolonial. La
metodología establecida es el método analéctico, proponiendo la ruptura con
metodologías eurocéntricas y totalizadoras que oportunizaram la opresión que se
pretende rechazar, dadas las opciones teóricas propuestas en releer el fenómeno.
PALABRAS-CLAVE: Feminicidio. Derecho. Discurso legal colonial/decolonial.
Decolonialidad.
7
ABSTRACT
This dissertation is research topic - Law and femininities: the colonial legal discourse
and decolonial in the face of Femicide Act. To this end, this thematic has been
defined through research about the capacity of law, through his legal discourse
regarding femicide, promote dessubalternização of women in Brazil, made from a
colonialist reading of the phenomenon to achieve the purpose of understanding
processes that have resulted in high rates of lethal violence by reason of its kind in
the country. Therefore, it is proposed to answer the research question, which is: what
extent the Law on Femicide (Law No. 13,104, of March 9th 2015) contributes to the
women dessubalternização from the perspective of colonial/decolonial legal
discourse. The overall aim is to check to what extent the Brazilian that was designed
to curb the femicide crimes, to enable the dessubalternização women considering the
legal discourse used in the production of her. The specific objectives consists of a
series of analyzes that allow host or refute the hypotheses formulated in the matter,
involving the following steps: to investigate the contributions of decolonial studies and
their categories of analysis to observe the subordination of the phenomenon of Latin
American women; understand the relationship between the coloniality of gender and
the ego conquiro proposed by Nelson Maldonado-Torres; to identify the color of
Feminism propositions about violence against women; to notice how settled the
production of feminine identities in Latin America; to verify the contributions of
Western matrices of thought and of the sciences, and legal sciences to the
maintenance and reinforcement of the representation of inferiority of women,
including in the Brazilian context; highlight the contributions of Feminist Studies to
break with the androcentric paradigm of science; pointing out the legal science as
instrument maintenance and reinforcement of gender colonialism in Brazil; to detail
femicide as a category and typology; to delineate the trajectory of the femicide issue
in Latin America; to indicate the origin of the regulation femicide as a crime in Latin
American countries; to argue about the effects of non-regulatory and condemnation
of states as violators of human rights; to refer the contents of lethal violence against
women on the continent and in Brazil; to consider whether the law of the Brazilian
femicide was established within parameters that favor the colonial or decolonial legal
discourse. The established methodology was analetic method, proposing break with
the Eurocentric and totalizing methodologies, they enable the oppressions that seeks
to repulse, given the theoretical choices proposed in rereading the phenomenon.
KEYWORDS: Feminicide. Law. Legal discourse colonial/decolonial. Decolonialidade.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
1. APRESENTANDO OS ESTUDOS DECOLONIAIS .............................................. 15
1.1. OUTRA FORMA DE VER O MUNDO: UM OLHAR A PARTIR DA AMÉRICA
LATINA ...................................................................................................................... 15
1.1.1. Os primeiros passos do grupo Modernidade/Colonialidade e suas
influências ................................................................................................................. 18
1.1.2. O Giro Decolonial: um movimento de resistência ............................................ 19
1.1.3. As contribuições dos Estudos Decoloniais e categorias de análise: as
lentes utilizadas ......................................................................................................... 21
1.1.4. Colonialidade do gênero e sua relação com o ego conquiro proposto por
Maldonado-Torres ..................................................................................................... 31
2. A CONSTRUÇÃO DA/S FEMINILIDADE/S: AS VISÕES DAS IDENTIDADES
FEMININAS E O DISCURSO JURÍDICO DA COLONIALIDADE ............................. 46
2.1 A QUESTÃO DA/S IDENTIDADE/S FEMININA/S............................................... 46
2.1.1 Identidades produzidas pelas matrizes do pensamento Ocidental ................... 52
2.1.2 Identidades produzidas pelo entrecruzamento entre ciência e a
feminilidade ............................................................................................................... 54
2.1.3 Quando mulheres passam a teorizar sobre mulheres: o desafio de
problematizar assimetrias seculares ......................................................................... 60
2.2 A CIÊNCIA JURÍDICA: INSTRUMENTO DE MANTENUTENÇÃO E
REFORÇAMENTO DA COLONIALIDADE DO GÊNERO NO BRASIL ..................... 68
3. PENSAR SOBRE O NÃO-DITO: A LEI 13.104/15 À LUZ DOS ESTUDOS
DECOLONIAIS ......................................................................................................... 77
3.1 FEMINICÍDIO: CATEGORIA QUE VISIBILIZA O ASSASSINATO DE
MULHERES .............................................................................................................. 77
3.2 CIUDAD JUÁREZ: CIDADE DO SILÊNCIO, CIDADE DO FEMINICÍDIO
CORPORATIVO ........................................................................................................ 85
3.3 A REGULAÇÃO DO FEMINICÍDIO NOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS:
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E OS REFLEXOS
DE CIUDAD JUÁREZ ................................................................................................ 89
3.3.1. No que implicam as condenações estatais, o prejuízo em não
regulamentar o feminicídio e outras reflexões ........................................................... 92
3.3.2. Os números da violência letal contra mulheres na América Latina e no
Brasil ......................................................................................................................... 99
3.4 A REGULAÇÃO DO FEMINICÍDIO NO BRASIL: DISCURSO JURÍDICO
COLONIAL OU DECOLONIAL? .............................................................................. 102
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 108
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 113
9
INTRODUÇÃO
A temática do feminicídio passou a adquirir importância no cenário de
debates na América Latina tendo em vista os altos índices de assassinatos violentos
de mulheres na região, ganhando maior visibilidade após a condenação do Estado
mexicano pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, devido aos casos
ocorridos em Ciudad Juárez. Tal desencadeou uma produção legislativa no sentido
de regular o feminicídio como crime em dezesseis países latino-americanos. Dentre
estes países está elencado o Brasil, que, ainda que não tenha sofrido condenação
semelhante por feminicídio, promulgou a Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015,
para o fim alterar o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/40)
estabelecendo o feminicídio como circunstância agravante de homicídio, e alterar o
artigo 1º da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990), classificando o
feminicídio como crime hediondo.
Assim, a presente pesquisa cujo título se apresenta como ―Direito e
Feminilidades: o discurso jurídico colonial e decolonial em face da Lei do
Feminicídio‖, pretende lançar contribuição às discussões que envolvam a temática
do feminicídio, em especial ao buscar sua afinidade com o processo de
subalternização e inferiorização das mulheres na América Latina, bem como com
reforços do discurso jurídico colonial para a manutenção deste status e a
necessidade de uma leitura decolonial da questão para a regulamentação deste tipo
de crime. Para tanto, o ponto de partida foi questionar em que medida a Lei do
Feminicídio (Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015) contribui para a
dessubalternização das mulheres dentro da perspectiva do discurso jurídico
colonial/decolonial?
Nesse sentido, a pesquisa calcada neste questionamento, almejou verificar a
validade das seguintes hipóteses: o discurso empregado na produção da referida lei
tem o condão auxiliar no processo de dessubalternização das mulheres brasileiras
pelo caráter político que o termo ―feminicídio‖ carrega, a partir do discurso colonial; o
discurso jurídico empregado na produção da referida lei não tem o condão de
auxiliar na dessubalternização das mulheres brasileiras por manter o discurso
colonial da ciência jurídica no país, sem evidenciar dimensão política do termo
―feminicídio‖; o discurso jurídico empregado na produção da referida lei tem o
condão auxiliar na dessubalternização das mulheres brasileiras ao revelar as
10
assimetrias de poder entre homens e mulheres, ressaltando o caráter político do
termo ―feminicídio‖ em uma perspectiva decolonial da ciência jurídica.
No decorrer da pesquisa se almejou trazer elementos passíveis de
proporcionar a validação ou refutação das hipóteses acima elencadas a partir do
questionamento de pesquisa. Diante disso, foi necessário analisar em que medida a
Lei do Feminicídio contribui para a dessubalternização das mulheres brasileiras a
partir do discurso empregado na referida legislação. Isso, sem perder de vista as
premissas que se está fundamentando, que são de uma análise a partir da noção de
modernidade/colonialidade na América Latina, considerando os processos que
resultaram na mencionada subalternização feminina na região, à luz dos Estudos
Decoloniais e Feministas Decoloniais.
Sem desconsiderar a noção de totalidade que se pretende ao estabelecer
um objetivo geral, dentro de diversas premissas, cumpre detalhar a investigação das
seguintes temáticas que corroboram e se complementam no propósito de
concretizar a pesquisa: investigar as contribuições dos Estudos Decoloniais e suas
categorias de análise para observar o fenômeno da subalternização das mulheres
latino-americanas; perceber as relações entre a colonialidade do gênero e o ego
conquiro proposto por Nelson Maldonado-Torres; identificar as proposições do
Feminismo de Cor acerca da violência contra as mulheres; notar como se
estabeleceu a produção das identidades femininas na América Latina; verificar as
contribuições das matrizes ocidentais de pensamento bem como das ciências, e das
ciências jurídicas para a manutenção e reforçamento da representação de
inferioridade
das
mulheres,
inclusive
no
contexto
brasileiro;
destacar
as
contribuições dos Estudos Feministas para a ruptura com o paradigma androcêntrico
de ciência; apontar a ciência jurídica como instrumento de manutenção e
reforçamento da colonialidade do gênero no Brasil; detalhar o feminicídio enquanto
categoria e sua tipologia; delinear a trajetória da questão do feminicídio na América
Latina; indicar a origem da regulação do feminicídio como crime nos países latinoamericanos; discorrer acerca dos efeitos da não-regulação e da condenação dos
Estados como violadores de Direitos Humanos; referir os índices da violência letal
contra mulheres no continente e no Brasil; analisar se a lei do feminicídio brasileira
foi estabelecida dentro de parâmetros que privilegiam o discurso jurídico colonial ou
decolonial.
11
O crescente número de feminicídios no Brasil, considerado como 7º país
(WAISELFISZ, 2012) em que mais ocorrem mortes violentas de mulheres, em um
ranking formado por 84 países do mundo, estabelecido em 2012, demonstra a
necessidade de apreciar este fenômeno em termos mais amplos, que levem em
consideração não só instrumentos punitivos, mas que possibilitem a ruptura com a
lógica patriarcal trazida pela colonização e perpetuada pela colonialidade do poder.
Nesse sentido, conforme destaca Lugones (2013), não há decolonização sem que
se reverta a introdução colonial da dicotomia hierárquica homem/mulher na América
Latina.
Corroborando com isso, Lagarde (2012) assevera que na causa voltada à
erradicação da violência contra as mulheres, legislar faz parte de um processo que
implica, dentre outras práticas, nomear teoricamente os atos normalizados na
sociedade (neste caso o assassinato violento de mulheres em razão de seu gênero),
a partir de um olhar feminista, tornando estas leis marcos de observância
obrigatória, convertendo-se em políticas de Estado, modo de vida e de convivência.
Assim, a pesquisa demonstra a sua importância teórica ao estabelecer
relações entre a colonialidade e o cenário de subalternização e violência letal contra
mulheres que se estabeleceu na América Latina e, em especial no Brasil, indicando
as contribuições do discurso jurídico pátrio neste contexto. No mesmo sentido, a
importância prática é de conferir substancialidade prática ao ressignificar a questão
do feminicídio a partir de aportes decoloniais, conferindo maior visibilidade ao
fenômeno da ocorrência de assassinatos violentos de mulheres em razão do gênero
no Brasil. Por fim, apresenta a sua importância social ao fornecer subsídios para o
pensamento crítico de uma eventual mudança na perspectiva colonial que
porventura venha sendo oferecida ao feminicídio no Brasil.
Além disso, há de se ressaltar a pertinência da mesma com a linha de
pesquisa, pois as discussões de temas como Direito, Modernidade/Colonialidade na
América Latina, Decolonização da Ciência Jurídica, Gênero e Feminicídio, estão
adequadamente inseridos na linha de pesquisa ―A realização constitucional da
solidariedade‖, do Programa de Pós-Graduação em Direito e Justiça Social, em nível
de Mestrado, por envolver discussões interdisciplinares sobre o Direito, bem como
adere à linha de pesquisa da orientadora, Prof.ª Dr.ª Raquel Fabiana Lopes
Sparemberger, que desenvolve temáticas atinentes a Teoria Geral do Direito, Direito
Constitucional, Direito Ambiental e Direitos Humanos, América latina e questões
12
decoloniais, no Grupo de Estudos da Universidade Federal do Rio Grande - FURG
sobre o Constitucionalismo Latino-Americano.
No intuito de atingir os objetivos propostos, e como aporte teórico ao diálogo
estabelecido, a temática será abordada a partir da leitura das teorizações
decoloniais inauguradas pelo grupo Modernidade/Colonialidade e desenvolvida por
uma série de teóricos/as como Nelson Maldonado-Torres, Santiago Castro-Gómez,
Ramón Grosfogel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Boaventura de Sousa Santos,
dentre outros/as. No que se refere ao feminismo latino-americano foram utilizadas
obras de autoras como María Lugones, Rita Segato, Marcela Lagarde e Karina
Bidaseca. Sendo estas algumas das referências principais, destaca-se, no entanto
que, sendo os Estudos Decoloniais um campo que admite um número variado de
teorias e fontes, foram utilizadas também outras contribuições como Gayatri
Chakravorty Spivak, Stuart Hall, Diana Russell, Joan Scott, Thomas Laqueur, Nancy
Fraser, Ulrich Beck, Zigmunt Bauman, Alain Touraine, Tomaz Tadeu da Silva, dentre
outros/as.
A presente pesquisa será de abordagem qualitativa, não sendo necessária a
coleta de dados quantitativos, posto que a discussão empreendida se estabelece
eminentemente no plano teórico, a fim de que, em momento posterior tome forma de
possível aporte prático. Diante das escolhas temáticas e teóricas será empregado o
método analético, preconizado por Enrique Dussel, atendendo à proposta de ruptura
com as metodologias eurocêntricas totalizantes que resultaram na objetificação das
mulheres, assimetrias de poder entre homens e mulheres, racialização e outras
formas de opressão. Pontue-se ainda que foi utilizada a técnica de pesquisa
bibliográfica e documental para obter os elementos necessários ao diálogo da
temática, empregando-se os/as principais teóricos/as que se debruçam sobre estes
temas.
A estrutura da pesquisa conta com três capítulos. O primeiro capítulo cujo
título é ―Apresentando os Estudos Decoloniais‖, conta com o item ―Outra forma de
ver o mundo: um olhar a partir da América Latina‖, subdividido em quatro subitens, a
saber: Os primeiros passos do grupo Modernidade/Colonialidade e suas influências;
O Giro Decolonial: um movimento de resistência; As contribuições dos Estudos
Decoloniais e categorias de análise: as lentes utilizadas; Colonialidade do gênero e
sua relação com o ego conquiro proposto por Maldonado-Torres.
13
Neste primeiro capítulo são abordadas as teorizações dos Estudos
Decoloniais, trazendo algumas das categorias de análise necessárias para o
desenvolvimento do trabalho, em especial no que se refere à colonialidade do poder,
do saber, do ser e do gênero, estabelecendo uma relação entre o ego de conquista
e a ética de guerra trazida pelo colonizador para a América Latina e a colonialidade
do gênero, além de trazer as proposições do feminismo de cor no sentido de ruptura
com a colonialidade.
O segundo capítulo intitulado ―A Construção da/s Feminilidade/s: as visões
das identidades femininas e o discurso jurídico da colonialidade‖ é composto por
dois itens: ―A questão da/s identidade/s feminina/s‖ e ―A Ciência Jurídica:
instrumento de manutenção e reforçamento da colonialidade do gênero no Brasil‖. O
primeiro item é subdividido em três subitens: Identidades produzidas pelas matrizes
do pensamento Ocidental; Identidades produzidas pelo entrecruzamento entre
ciência e a feminilidade; Quando mulheres passam a teorizar sobre mulheres: o
desafio de problematizar assimetrias seculares.
O segundo item não possui
subitens.
Neste segundo capítulo são abordadas algumas questões que contribuíram
para a subalternização das mulheres na América Latina e no Brasil, através das
representações sobre a feminilidade produzidas pelas matrizes do pensamento
Ocidental, pelas ciências e os movimentos de resistência com a lógica androcêntrica
empreendidos pelas ondas do feminismo. Além disso, são observadas questões
relacionadas à ciência jurídica e ao Direito que proporcionaram a manutenção da
subalternização feminina no Brasil.
O terceiro capítulo denominado ―Pensar sobre o Não-Dito: a Lei nº. 13.104/15
à luz dos Estudos Decoloniais‖ se subdivide em quatro itens: ―Feminicídio: categoria
que visibiliza o assassinato de mulheres‖; ―Ciudad Juárez: cidade do silêncio, cidade
do feminicídio corporativo‖; ―A regulação do feminicídio nos países latinoamericanos: proteção dos Direitos Humanos das Mulheres e os reflexos de Ciudad
Juárez‖; ―A regulação do feminicídio no Brasil: discurso jurídico colonial ou
decolonial?‖. O primeiro e segundo itens não contam com subdivisões. O terceiro
item conta com a subdivisão: ―No que implicam as condenações estatais, o prejuízo
em não regulamentar o feminicídio e outras reflexões‖; ―Os números da violência
letal contra mulheres na América Latina e no Brasil‖. O quarto item não possui
subdivisões.
14
No terceiro capítulo são averiguadas as questões relacionadas com o
feminicídio enquanto categoria, sua tipologia, sua emergência e trajetória na
América Latina, os efeitos das condenações na Corte Interamericana de Direitos
Humanos neste sentido, o movimento de regulação na região, os índices de
violência na região e a regulação no contexto brasileiro.
Diante disso, as considerações finais desta pesquisa, pretendem apontar o
condão que o discurso jurídico empregado na Lei do Feminicídio brasileira tem no
sentido de auxiliar na dessubalternização feminina no país, bem como no que
podem contribuir as concepções decoloniais sobre o discurso jurídico nesse sentido.
15
1. APRESENTANDO OS ESTUDOS DECOLONIAIS
“[…] la superación de la colonialidad metódica requiere de un nuevo tipo de escepticismo
y de actitud teórica que re-articule la búsqueda de la verdad con la búsqueda del bien —entendido
éste como fraternidad no-sexista, o convivialidad humana más allá de la línea de
color y de jerarquías que descansan en la naturalización de diferencias humanas.”
(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 136).
Os Estudos Decoloniais oferecem elementos significativos às análises
pretendidas considerando que se trata de um campo de Estudos composto por
teorizações de diversas áreas do conhecimento. Assim, o referencial possibilita
abordar questões relacionadas com os fatores que proporcionaram uma série de
fenômenos que se estabelecem na atualidade.
Tais fenômenos estão atrelados e se devem ao que se chama colonialidade,
processo iniciado com a colonização nesta região, mas que não se ateve ao final do
período colonial, se perpetuando e produzindo efeitos em temas como as
discussões sobre gênero e as assimetrias nas relações de poder entre homens e
mulheres que resultaram/resultam em mazelas como o feminicídio, por exemplo. A
seguir se aborda estes referenciais, trazendo um panorama do que tratam e
indicando no que consiste o feminismo decolonial, ou também chamado ―feminismo
de cor.‖
1.1. OUTRA FORMA DE VER O MUNDO: UM OLHAR A PARTIR DA AMÉRICA
LATINA
Os Estudos Decoloniais1 têm sua origem nas teorizações do grupo
Modernidade/Colonialidade, iniciado por intelectuais latino-americanos/as, de áreas
como filosofia, antropologia, sociologia, semiótica, direito e linguística. Dentre
eles/as pode-se mencionar nomes como Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter
1
Conforme destaca Ballestrin (2013) a utilização do termo ―decolonial‖, sem o ―s‖ de ―descolonial‖
foi uma sugestão de Catherine Walsh no sentido de distinguir o projeto ―decolonial‖ do grupo
Modernidade/Colonialidade da ideia de descolonização, processo ocorrido durante a Guerra Fria,
através da libertação de nacional das colônias européias. Utiliza-se esta expressão em todo o
trabalho por ser um marcador de diferenciação entre os Estudos Decoloniais produzidos pelo
grupo Modernidade/Colonialidade em relação aos Estudos Subalternos Latino-Americanos, póscoloniais e outras vertentes de pensamento.
16
Mignolo, Immanuel Wallerstein, Santiago Castro-Gómez, Nelson Maldonado-Torres,
Ramón Grosfóguel, Edgardo Lander, Arthuro Escobar, Fernando Coronil, Catherine
Walsh, Boaventura Souza Santos e Zulma Palermo. (BALLESTRIN, 2013).
Estes/as
estudiosos/as
empreenderam
esforços
em
um
movimento
epistemológico para a renovação das ciências sociais na América Latina. Sua
principal proposta está na renovação crítica e utópica das ciências sociais,
colocando como pontos de partida a decolonização epistêmica, teórica e política em
contraponto ao que denominam de colonialidade global, a qual atinge todos os
níveis da vida individual e coletiva. (BALLESTRIN, 2013).
Observe-se que ao indicar a decolonização epistêmica, teórica e política o
grupo não desconsidera toda a produção teórica já existente, mesmo teorizações
originadas na matriz européia de pensamento, ao contrário:
Os estudos decoloniais utilizam um amplo número de fontes, as teorias
européias e norte-americanas críticas da modernidade, os estudos
chamados propriamente de pós-coloniais, a teoria feminista chicana, a
filosofia africana, entre outros. A principal força orientadora dos estudos
decoloniais é, entretanto, uma reflexão continuada sobre a realidade cultural
e política latino-americana, sendo influenciados decisivamente pelo
pensamento filosófico e político desenvolvido no nosso continente.
(DAMÁZIO, 2011, p. 70).
Assim, este campo de estudos auxilia na produção de uma releitura de
mundo, colocando sob suspeita as narrativas universalizantes produzidas na
modernidade (a partir da Europa e, posteriormente, a partir de concepções norteamericanas), as quais colonizaram os saberes, a política, a cultura, economia e
outras instâncias na América Latina, reproduzindo aqui uma série de distorções que
acabam por negar direitos aos sujeitos historicamente subalternizados seja por
gênero, etnia, religiosidade, sexualidade, estágio do ciclo de vida ou condição sócioeconômica. Desde o início do movimento do grupo Modernidade/Colonialidade
várias questões passaram a ser debatidas de modo que:
Categorias como colonialidade, modernidade, decolonialidade, sistemamundo moderno/colonial, matriz colonial de poder (colonialidade do poder),
colonialidade do saber, diferença colonial, ocidentalismo, eurocentrismo,
locus de enunciação privilegiado, ―hybris do ponto zero‖, pensamento de
17
fronteira, entre outras, são grandes contribuições dos estudos decoloniais
2
para se pensar a questão colonial. (DAMAZIO, 2011, p. 71).
A construção destas categorias trouxe consigo o estabelecimento de um
vocabulário próprio para os Estudos Decoloniais que lhes diferenciam de outras
matrizes de pensamento, tornando-se base para as reflexões de outros/as
estudiosos/as da modernidade/colonialidade/decolonialidade, em várias áreas.
(BALLESTRIN, 2013).
No que tange à ciência jurídica e ao campo do Direito, especificamente,
Damázio esclarece que:
Os estudos pós-coloniais e decoloniais possibilitam compreender os
discursos jurídicos pretensamente universais como construções que surgem
a partir das relações coloniais. Estes discursos, inevitavelmente, resultam
na subalternização dos saberes que surgem a partir do ―outro‖, do
anthropos. Trata-se, desta maneira, de uma perspectiva diferente de se
entender o direito, pois permite que este seja pensado a partir de diferentes
categorias e formas de conhecimento, inimagináveis para o direito
eurocêntrico. (DAMÁZIO, 2011, p.75).
É neste sentido que os Estudos Decoloniais mostram-se como aporte teórico
potente para a discussão do objeto de pesquisa pretendido, pois conduzem a outras
compreensões
acerca
do
discurso
jurídico
estabelecido
pela
modernidade/colonialidade em nosso país e em relação às mulheres e seus direitos,
desnaturalizando entendimentos consolidados sobre a feminilidade através dos
séculos, pois "sua principal força orientadora [...], é uma reflexão continuada sobre a
realidade
cultural
e
política
latino-americana,
incluindo
o
conhecimento
subalternizado dos grupos explorados e oprimidos." (ESCOBAR, 2003, p.53).
A seguir se procede um pequeno resgate acerca da constituição e atuação do
grupo
Modernidade/Colonialidade,
bem
como
a
apresentação
de
seus
entendimentos, suas influências, contribuições e categorias de análise, a fim de que
possamos expor adequadamente as teorizações que amparam as compreensões
que emergem deste estudo.
2
Algumas das categorias mencionadas serão expostas no decorrer do trabalho a fim de que se
possa relacioná-las com o objeto de pesquisa, pois auxiliam a compreender os caminhos que
levam à subalternização da feminilidade em nosso país, bem como a perpetuação desta
subalternização através do discurso jurídico.
18
1.1.1. Os primeiros passos do grupo Modernidade/Colonialidade e suas influências
Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) relatam que a partir de 1998, do século
XX, uma série de seminários e produções escritas começaram a reunir os estudos
dos/as intelectuais que passaram a formar o grupo Modernidade/Colonialidade, com
o apoio da Universidade Central da Venezuela e do Conselho Latino-Americano de
Ciências Sociais (CLACSO), sendo que este último coliga atualmente em seu portal
eletrônico uma vasta literatura acerca dos Estudos Decoloniais.
Alguns dos teóricos que se inseriram no Modernidade/Colonialidade já
traziam um longo histórico de contato com os temas que contribuíram para a
emergência das categorias de análise produzidas pelo grupo. Tal é o caso de Aníbal
Quijano, o qual já havia sido parte do grupo de estudos sobre a "teoria da
dependência" desde os anos 70, bem como de Immanuel Wallerstein, fundador da
"análise do sistema-mundo" e Enrique Dussel, com sua "Filosofia da Libertação".
(CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGEL, 2007).
A partir de um encontro organizado por Edgardo Lander em 1998 emergiu
uma das obras mais importantes do grupo, qual seja, "A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas Latino-Americanas", editado em
2002, composto de textos de autoria do próprio Edgardo, Enrique Dussel, Walter
Mignolo, Fernando Coronil, Arturo Escobar, Santiago Castro-Gómez, Alejandro
Moreno,
Francisco
López
Segrera
e
Aníbal
Quijano.
(CASTRO-GÓMEZ;
GROSFOGEL, 2007).
Posteriormente outros eventos foram realizados e aos poucos houve uma
aproximação entre as análises do "sistema-mundo" de Wallerstein e outras teorias
latino-americanas sobre a colonialidade. O movimento foi amadurecendo de modo
que em 2001 foi realizado um encontro para avaliar os avanços teóricos sob esta
nova perspectiva, agregando os diversos "focos" de estudos semelhantes e reunindo
de fato o grupo Modernidade/Colonialidade. Outros encontros ocorreram em 2002,
2003, 2004, 2005 e 2006, todos resultando em produções que deram corpo aos
Estudos Decoloniais. (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGEL, 2007).
Castro-Gómez e Grosfogel mencionam que além das contribuições
produzidas pelos/as autores/as enquanto grupo, é importante destacar contribuições
individuais que auxiliaram a criar o vocabulário próprio dos Estudos decoloniais
como as obras:
19
El encubrimiento del otro. Origen del mito de la modernidad (1992), de
Enrique Dussel; The Darker Side of de Ranaissance (1995) y Historias
Locales / Diseños globales (2002), de Walter Mignolo; Modernidad,
identidad y utopía en América Latina (1998) y artículos seminales como
"Colonialidad y Modernidad / Racionalidad" o "Colonialidad del poder,
eurocentrismo y América Latina", de Aníbal Quijano; La invención del Tercer
Mundo (1999) y El final del Salvaje (2000), de Arturo Escobar; The Magical
State (1999), de Fernando Coronil; La ciencia y la tecnología como asuntos
políticos (1994), de Edgardo Lander; Colonial Subjects (2003), de Ramón
Grosfogel; y Crítica de la razón latinoamericana (1996) y La hybris del punto
cero
(2005),
de
Santiago
Castro-Gómez.
(CASTRO-GÓMEZ,
GROSFOGUEL, 2007, p. 12, grifo do autor).
O grupo Modernidade/Colonialidade vai além da produção teórica, pois sua
proposta teórico-prática resulta em articulação política com os movimentos sociais
indígenas de países como Bolívia e Equador, bem como os movimentos negros no
Caribe, atuando ao lado de ativistas chicanos na realização de projetos culturais,
epistêmicos e políticos, de modo que o número de pesquisadores no campo dos
Estudos Decoloniais vem crescendo, sendo possível mencionar inclusive uma
segunda geração destes estudos. Aponta-se para seu fortalecimento em programas
acadêmicos como o Doutorado em Estudos Culturais da Universidade Andina Simón
Bolívar, localizada em Quito, no Equador, o Mestrado em Estudos Culturais da
Universidade Javeriana, em Bogotá, Colômbia e o Seminário "Fábrica de Ideias",
realizado em Salvador, Bahia, Brasil. (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGEL, 2007).
As
teorizações
dos
Estudos
Decoloniais,
elaboradas
pelo
grupo
Modernidade/Colonialidade, receberam influências da Filosofia da Libertação, da
teoria da dependência, discussões sobre modernidade e pós-modernidade, noções
de hibridismo surgidas na antropologia, dos Estudos Culturais, do grupo latinoamericano de estudos subalternos, teorias críticas da modernidade (européias e
norte-americanas), do grupo de estudos subalternos sul-asiático, teoria feminista
chicana, teorias pós-coloniais africanas e diferentes perspectivas da teoria do
sistema-mundo. (ESCOBAR, 2003; BALLESTRIN, 2013).
1.1.2. O Giro Decolonial: um movimento de resistência
Miglievich-Ribeiro (2014) refere que o giro decolonial é um movimento de
resistência teórico, ético e político à colonialidade, o qual questiona a objetividade do
conhecimento científico no campo das ciências sociais, refutando a sua neutralidade
20
e questionando as opções político-econômico-ideológicas que se consolidaram na
modernidade como universais.
No mesmo sentido, também Ballestrin (2013) afirma que "giro decolonial"
significa um movimento de resistência teórico, prático, político e epistemológico
contra a lógica da modernidade que se estabeleceu com a colonialidade, sendo que
o termo em questão foi elaborado por Nelson Maldonado-Torres em 2005, a fim de
designar esta possibilidade outra de olhar para a América Latina.
No entanto, Mignolo explica que mesmo que a reflexão sobre o giro
epistêmico decolonial seja recente, a prática decolonial tem sua origem ainda no
período de implantação da matriz colonial de poder:3
De modo que las primeras manifestaciones del giro decolonial las
encontramos en los virreinatos hispánicos, en los Anáhuac y Tawantinsuyu
en el siglo XVI y comienzos del XVII, pero las encontramos también entre
las colonias inglesas y en la metrópoli durante el siglo XVIII. El primer caso
lo ilustra Waman Poma de Ayala, en el virreynato del Perú, quien envió su
obra Nueva Corónica y Buen Gobierno al Rey Felipe III, en 1616; el
segundo caso lo vemos en Otabbah Cugoano, un esclavo liberto que pudo
publicar en Londres, en 1787 (diez años después de la publicación de The
Wealth of Nations, de Adam Smith), su tratado Thoughts and Sentiments on
the Evil of Slavery. Ambos son tratados políticos decoloniales que, gracias a
la colonialidad del saber, no llegaron a compartir la mesa de discusiones
con la teoría política hegemónica de Maquiavelo, Hobbes o Locke.
(MIGNOLO, 2007, p. 28, grifo do autor).
O autor ressalta para a urgência de inscrever estas origens do giro decolonial
a fim de que o pensamento político latino-americano não dependa exclusivamente
das matrizes teóricas gregas e romanas, inscritas e reinscritas no pensamento
ocidental e amplamente divulgadas como únicas, em seis idiomas, nominados por
Mignolo como "imperiais", qual sejam, italiano, espanhol, português, francês, inglês e
alemão. (MIGNOLO, 2007).
Mignolo
aponta
o
giro
decolonial
como
projeto
alternativo
à
modernidade/colonialidade:
El giro decolonial es la apertura y la libertad del pensamiento y de formas de
vida-otras (economías-otras, teorías políticas otras); la limpieza de la
colonialidad del ser y del saber; el desprendimiento de la retórica de la
modernidad y de su imaginario imperial articulado en la retórica de la
democracia. El pensamiento decolonial tiene como razón de ser y objetivo la
decolonialidad del poder (es decir, de la matriz colonial de poder).
(MIGNOLO, 2007, p. 29-30).
3
Também Ballestrin (2013) refere esta origem remota do giro decolonial.
21
Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) mencionam ainda que o giro decolonial
não deve alcançar apenas as ciências sociais, mas também outras instituições
modernas como o direito, a universidade, a arte, a política e os intelectuais. Assim, a
seguir se examina algumas das categorias de análise produzidas pelo grupo
Modernidade/Colonialidade a partir do giro decolonial, para uma maior aproximação
com suas expressões.
1.1.3. As contribuições dos Estudos Decoloniais e categorias de análise: as lentes
utilizadas
Tendo em vista que já foram apresentadas as noções sobre a formação do
grupo Modernidade/Colonialidade, suas influências, o significado do giro decolonial,
percebe-se a necessidade de comentar acerca dos temas aos quais se debruça,
suas contribuições, bem como categorias fundamentais que compõe os Estudos
Decoloniais e que possibilitam refletir sobre a colonialidade na América Latina e,
consequentemente, no Brasil. Ballestrin destaca que:
Dentre as contribuições consistentes do grupo, estão as tentativas de
marcar: (a) a narrativa original que resgata e insere a America Latina como
o continente fundacional do colonialismo, e, portanto, da modernidade; (b) a
importância da America Latina como primeiro laboratório de teste para o
racismo a serviço do colonialismo; (c) o reconhecimento da diferença
colonial, uma diferença mais difícil de identificação empírica na atualidade,
mas que fundamenta algumas origens de outras diferenças; (d) a
verificação da estrutura opressora do tripé colonialidade do poder, saber e
ser como forma de denunciar e atualizar a continuidade da colonização e do
imperialismo, mesmo findados os marcos históricos de ambos os processos;
(e) a perspectiva decolonial, que fornece novos horizontes utópicos e
radicais para o pensamento da libertação humana, em diálogo com a
produção de conhecimento. (BALLESTRIN, 2013, p.110).
Estas tentativas, nas palavras de Ballestrin (2013), são fomentadas e
amparadas
pela
discussão
das
categorias
colonialidade,
modernidade,
decolonialidade, sistema-mundo moderno/colonial, colonialidade do poder/matriz
colonial do poder, colonialidade do saber, diferença colonial, ocidentalismo,
eurocentrismo, locus de enunciação privilegiado, hybris do ponto zero, pensamento
de fronteira, que constituem a base dos Estudos Decoloniais.
Dentre estas categorias, para concretizar a pesquisa em curso, se destaca
algumas que estão mais afinadas com as análises pretendidas como: colonialidade,
22
modernidade, decolonialidade, colonialidade do poder, do saber, do ser e do gênero,
ocidentalismo e eurocentrismo, pois possuem relações intrínsecas com as questões
de gênero, conforme se explicita no decorrer do estudo.
Assim, percebe-se que Modernidade/Colonialidade trata-se de uma categoria
de análise da matriz colonial de poder, sendo que a categoria decolonialidade amplia
marcos e objetivos do projeto do pensamento decolonial, eis que "[...] la
conceptualización misma de la colonialidad como constitutiva de la modernidad es
ya el pensamiento decolonial en marcha." (MIGNOLO, 2007, p. 26).
Mignolo (2007) refere que a modernidade e colonialidade caminham juntas
tendo em vista que a colonialidade é constitutiva da modernidade 4. Menciona que a
retórica salvacionista da modernidade pressupõe a lógica opressiva da colonialidade
que produz uma energia de descontentamento, desconfiança e ruptura para com
quem reage à violência imperial. Segundo o autor, essa energia se traduz em
projetos decoloniais e em última instância também são constitutivos da
modernidade5.
Quijano (2007) elucida que ―colonialidade‖ não significa o mesmo que
―colonialismo‖, pois se trata de conceitos diferentes. Nesse sentido o colonialismo se
caracteriza como estrutura de dominação e exploração, conforme explica o autor,
em que o controle da autoridade política e dos recursos de produção e do trabalho
de uma determinada população possui outra identidade e sedes centrais de poder
em outra jurisdição territorial (colônia/metrópole). Aduz ainda que a colonialidade se
estruturou a partir do colonialismo e é posterior a ele, mas sem ele não teria sido
imposta de forma tão prolongada e enraizada ao mundo.
Neste mesmo sentido Maldonado-Torres explica que:
Colonialidad no significa lo mismo que colonialismo. Colonialismo denota
una relación política y económica, en la cual la soberanía de un pueblo
reside en el poder de otro pueblo o nación, lo que constituye a tal nación en
un imperio. Distinto de esta idea, la colonialidad se refiere a un patrón de
poder que emergió como resultado del colonialismo moderno, pero que en
vez de estar limitado a una relación formal de poder entre dos pueblos o
naciones, más bien se refiere a la forma como el trabajo, el conocimiento, la
4
5
―A modernidade não é um período histórico, mas a autonarração dos atores e instituições que, a
partir do Renascimento, conceberam a si mesmo como o centro do mundo.‖ (MIGNOLO, 2013,
p.1).
Mignolo (2007) se refere à modernidade como um monstro de três cabeças, ainda que só mostre
uma que é a retórica da salvação e progresso. Reforça que a colonialidade tem como uma de
suas faces a pobreza e a propagação da AIDS na África, as quais não aparecem na retórica da
modernidade como contraprestação e sim como algo apartado dela.
23
autoridad y las relaciones intersubjetivas se articulan entre sí, a través del
mercado capitalista mundial y de la idea de raza. Así, pues, aunque el
colonialismo precede a la colonialidad, la colonialidad sobrevive al
colonialismo. La misma se mantiene viva en manuales de aprendizaje, en el
criterio para el buen trabajo académico, en la cultura, el sentido común, en
la auto-imagen de los pueblos, en las aspiraciones de los sujetos, y en
tantos otros aspectos de nuestra experiencia moderna. En un sentido,
respiramos la colonialidad en la modernidad cotidianamente.
(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).
Desse modo, a ideia de decolonialidade parte do pressuposto que a
colonialidade, empreendida durante a expansão colonial européia não se esgotou
com a independência das colônias e sua transformação em Estados-Nações. Foi
nesta perspectiva que a colonialidade sofreu um deslocamento, de modo que,
houve:
[...] una transición del colonialismo moderno a la colonialidad global,
proceso que ciertamente ha transformado las formas de dominación
desplegadas por la modernidad, pero no la estructura de las relaciones
centro-periferia a la escala mundial. (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGEL,
2007, p. 13).
A decolonialidade é um complemento da descolonização, porque a
independência jurídica e política não foi o suficiente para "descolonizar" os outros
níveis da vida como relações sociais, raciais, sexuais, epistêmicas, econômicas e de
gênero, que continuam intocadas e sendo conduzidas a partir dos pressupostos
universalistas, eurocêntricos, disseminados nas colônias por seus colonizadores.
(CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGEL, 2007).
Quijano (2007) indica que a colonialidade é elemento constitutivo específico
do padrão mundial do poder capitalista. A manutenção desta colonialidade nos
diversos níveis acima apontados é o que Quijano chama de ―colonialidade do
poder‖. Nesta perspectiva pode-se compreender poder como:
[…] un espacio y una malla de relaciones sociales de
explotación/dominación/conflicto articuladas, básicamente, en función y en
torno de la disputa por el control de los siguientes ámbitos de existencia
social: (1) el trabajo y sus productos; (2) en dependencia del anterior, la
―naturaleza‖ y sus recursos de producción; (3) el sexo, sus productos y la
reproducción de la especie; (4) la subjetividad y sus productos materiales e
intersubjetivos, incluido el conocimiento; (5) la autoridad y sus instrumentos,
de coerción en particular, para asegurar la reproducción de ese patrón de
relaciones sociales y regular sus cambios. (QUIJANO, 2007, p.96).
A partir do momento em que a América passou a tomar lugar no contexto do
capitalismo mundial moderno/colonial, as pessoas passaram a classificar e ser
24
classificadas a partir de três eixos fundamentais que se articulam como colonialidade
do poder, quais sejam, o trabalho (implica no controle da força de trabalho, dos
recursos naturais e propriedade), o gênero (implica no controle do sexo, prazer e
descendência em função da propriedade) e a raça (incorporada em função de
ambos eixos anteriormente citados), sobre os quais está centrado o controle da
produção, dos recursos de manutenção da sobrevivência social e reprodução da
espécie.
A colonialidade do poder concentra estes três eixos, os quais estão
intimamente implicados e que são responsáveis pela organização e manutenção das
relações
de
poder
configuradas
na
modernidade/colonialidade
capitalista
eurocentrada. (QUIJANO, 2007). Assim, a ideia de colonialidade se estende a vários
âmbitos, de modo que atinge outras esferas além do poder, como o controle da
economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do gênero e
sexualidade, bem como subjetividade e conhecimento, constituindo o que se chama
de colonialidade do poder, colonialidade do ser e colonialidade do saber.
(MIGNOLO, 2010; BALLESTRIN, 2013).
Maldonado-Torres (2007) acrescenta que a colonialidade do poder se refere à
interrelação entre as formas modernas de exploração e dominação e a colonialidade
do saber responsável pela produção de conhecimento e reprodução dos regimes de
pensamento coloniais, sendo a colonialidade do ser a própria experiência vivida e
seu impacto na linguagem.
Acerca da colonialidade do saber, verifica-se que a mesma conta com a
influência de padrões eurocêntricos que partiram de uma perspectiva construída por
pensadores que compunham as bases teóricas da modernidade, assim:
Desde el siglo XVII, en los principales centros hegemónicos de ese patrón
mundial de poder — en esa centuria no por acaso Holanda (Descartes,
Spinoza) e Inglaterra (Locke, Newton) —, desde ese universo intersubjetivo
fue elaborado y formalizado un modo de producir conocimiento que daba
cuenta de las necesidades cognitivas del capitalismo: la medición, la
cuantificación, la externalización (objetivación) de lo cognoscible respecto
del conocedor, para el control de las relaciones de las gentes con la
naturaleza, y entre aquellas respecto de ésta, en especial de la propiedad
de los recursos de producción. Dentro de esa misma orientación fueron,
también, ya formalmente naturalizadas las experiencias, identidades y
relaciones históricas de la colonialidad y de la distribución geocultural del
poder capitalista mundial. Ese modo de conocimiento fue, por su carácter y
por su origen eurocéntrico, denominado racional; fue impuesto y admitido en
el conjunto del mundo capitalista como la única racionalidad válida y como
emblema de la modernidad. (QUIJANO, 2007, p. 94).
25
A partir destas concepções que saberes/conhecimentos das populações
situadas na América Latina6, suas formas de produzir e ser passaram a ser
assimiladas, desconsideradas, classificadas como míticas e primitivas, sendo
substituídas pela racionalidade da modernidade/colonialidade, construída na Europa
ou norte global, supostamente mais desenvolvida, adequada, benéfica e correta, em
nível universal e absoluto. O conhecimento produzido nas metrópoles européias foi
trazido para a América Latina e perpetuado, de modo que as epistemologias
eurocêntricas se mantêm ainda nos dias atuais, de forma bastante acentuada.
Esta lógica é responsável por definir quem/o que é dominante ou subalterno 7,
quem tem voz e vez, que direitos lhes são atribuídos, dentro de padrões coloniais
que seguem privilegiados nos discursos científicos, incluindo os discursos jurídicos e
sobre gênero, caracterizados pela objetividade e reprodução, aceitos de forma geral,
posto que revestidos de pressupostos de validade e verdade constituídas a partir de
máximas universais. (SPAREMBERGER; KYRILLOS, 2012).
No que diz respeito à colonialidade do ser, este conceito foi desenvolvido
inicialmente por Walter Mignolo e, posteriormente, analisado por Nelson MaldonadoTorres. “La colonialidad del ser introduce el reto de conectar los niveles genético,
existencial e histórico, donde el ser muestra de forma más evidente su lado colonial
y sus fracturas‖. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 130-131).
Esta se constituiu em resultado da colonialidade do poder em diferentes áreas
da sociedade. Maldonado-Torres pondera que, tendo em vista que a colonialidade
do poder se refere às relações entre as formas de exploração e dominação
produzidas na modernidade e, a colonialidade do saber está relacionada com a
epistemologia que lastreia a produção de conhecimento e a produção/manutenção
de regimes de pensamento coloniais, a colonialidade do ser só poderia referir-se às
experiências vividas e seus impactos na linguagem. (MALDONADO-TORRES,
2007).
6
7
A América Latina trata-se de uma invenção do autorrelato da modernidade, a ponto de poder ser
considerada como produto da colonialidade do saber, restando entrelaçada a um discurso
salvacionista, percebida como espaço a ser civilizado e melhorado. (MIGNOLO, 2013).
Compreende-se o termo ―subalterno" nos termos propostos por Spivak (2010) a qual o atribui aos
sujeitos que compõe as camadas mais baixas da sociedade, excluídos pelo mercado, carentes de
representação política, legal e sem viabilidade de se constituírem como classe social dominante.
No que tange à questão de gênero verifica-se que, sendo a identidade masculina considerada
como central e dominante, dentro da perspectiva colonial, restou subalternizada qualquer
identidade que se afaste desta centralidade, incluindo a(s) identidade(s) feminina(s). Refere-se
identidade feminina no plural tendo em vista que há várias formas de vivenciar a feminilidade que
não a colocada pelos padrões e discursos coloniais.
26
Tal afirmação se justifica na argumentação de Mignolo, quando este refere
que a ciência não se separa da linguagem, pois as linguagens não são somente
fenômenos culturais nos quais as pessoas encontram sua identidade, mas são
também o lugar onde o conhecimento está inscrito, para Mignolo a linguagem não é
apenas algo que as pessoas têm, mas sim o que são, de modo que a colonialidade
do poder e do saber, produziram como consequência uma colonialidade do ser.
(MIGNOLO, 2003).
Maldonado-Torres (2007) ao trazer contribuições para o desenvolvimento do
conceito de colonialidade do ser expõe que esta começa com a colonialidade do
poder, cujo início se expressa no questionamento sobre os índios terem alma ou
não.8
A partir daí foram criadas novas identidades no contexto da colonização das
Américas, como europeu, branco, índio, negro, mestiço, se estabelecendo uma série
de hierarquizações a partir destas classificações sociais, de modo que estas
identidades restaram colocadas/significadas umas superiores a outras. Assim:
[…] tal grado de superioridad se justifica en relación con los grados de
humanidad atribuidos a las identidades en cuestión. En términos generales,
entre más clara sea la piel de uno, más cerca se estará de representar el
ideal de una humanidad completa. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 132).
Quijano (2005) refere que a ―raça‖ no sentido moderno não tem referência em
momento anterior à colonização da América, portanto, foi uma noção construída a
partir de aqui, com base nas diferenças fenotípicas entre colonizadores e
colonizados. O autor explica que ―a idéia de raça foi uma maneira de outorgar
legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista.‖ (QUIJANO, 2005,
p. 118).
A colonização das Américas e, a posterior expansão dos povos europeus a
outras partes do mundo, levou à construção da perspectiva eurocêntrica de
conhecimento e teorizações que naturalizaram a ideia de raça como parte das
relações coloniais entre europeus e não-europeus, atribuindo legitimidade à
manutenção de relações pautadas pelo binarismo superioridade/inferioridade,
transformando-se em uma das mais potentes e duradouras ferramentas de
dominação social e universal. (QUIJANO, 2005).
8
Neste ponto, Maldonado-Torres refere que Aníbal Quijano propôs esta localização, sendo este o
passo inicial para a colonialidade do poder/saber/ser.
27
Quijano explica que, a ideia de raça:
Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de
dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente
universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos
conquistados e dominados foram postos numa situação natural de
inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem
como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se
no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial
nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em
outras palavras, no modo básico de classificação social universal da
população mundial. (QUIJANO, 2005, p. 118).
Esta lógica passou a produzir uma visão de mundo característica da
modernidade,
dando
início
à
colonialidade
global.
A
diferença
entre
colonizador/colonizado se estabelece a partir da ideia de raça, o que Mignolo
denominou como ―diferença colonial‖9. (MIGNOLO, 2003; MALDONADO-TORRES,
2007).
Tal lógica é dotada de outros elementos, os quais Maldonado-Torres (2007)
coloca em voga em suas contribuições a partir da análise da ética de guerra e do
que chama de ego conquiro, algo que precedeu o que denomina como ego cogito,
proposto de René Descartes10 em ―Discurso do Método‖, publicado em 1637. O
autor menciona que os primeiros cristãos romanos eram contra a escravidão de
outros seres humanos, no entanto, com o tempo esta lógica mudou, sendo aceita a
escravidão de povos inimigos/não cristãos, dominados pela força, bem como a
violação das mulheres e feminilização dos homens ―conquistados‖. Explica que:
La guerra, sin embargo, no trata sólo de matar y esclavizar al enemigo. Esta
incluye un trato particular de la sexualidad femenina: la violación. La
colonialidad es un orden de cosas que coloca a la gente de color bajo la
observación asesina y violadora de un ego vigilante. El objeto privilegiado
de la violación es la mujer. Pero los hombres de color también son vistos
con estos lentes. Ellos son feminizados y se convierten para el ego conquiro
en sujetos fundamentalmente penetrables. (MALDONADO-TORRES, 2007,
p. 138).
Nesta lógica/ética de guerra que produz um tipo de subjetividade ao qual se
atribui o nome de ego conquiro, esta é a subjetividade da modernidade, de modo
9
10
Maldonado-Torres (2007) refere a ―heterogeneidade colonial‖, relativa às várias formas de
desumanização a partir da diferença entre colonizador/colonizado, fundada na raça, aplicadas aos
não europeus, indígenas, africanos e até mesmo aos brancos não-europeus. No entanto destaca
que a desumanização fundada na raça foi preferencialmente direcionada aos índios e negros na
modernidade.
Cogito, ergo sum, ou seja, penso, logo existo.
28
que, nas palavras do autor, o ego conquiro é também um ego fálico, portanto,
masculino. Nesse sentido, o ego conquiro que permeou a colonização das Américas
gradualmente espalhou-se pelo mundo. (MALDONADO-TORRES, 2007).
Maldonado-Torres (2007) ao desenvolver a teorização em torno do ego
conquiro se vale das contribuições de Joshua Goldstein, mencionando que a
conquista é uma extensão da violação e exploração das mulheres em tempo de
guerra, o que atribui à relação entre três pontos fundamentais que são a sexualidade
masculina como causa da agressão, a feminização dos inimigos como dominação
simbólica e a dependência da exploração do trabalho das mulheres, segundo ele,
estes pontos se fundem e se naturalizam com a ideia de uma suposta inferioridade
intrínseca dos sujeitos de cor e na ideia de raça que emerge e se propaga a partir da
colonização das Américas. Deste modo explica que:
Una vez los tales son vencidos en la guerra, se les ve como perpetuos
sirvientes o esclavos, y sus cuerpos vienen a formar parte de una economía
de abuso sexual, explotación y control. La ética del ego conquiro deja de ser
sólo un código especial de comportamiento, que es legítimo en periodos de
guerra, y se convierte en las Américas — y gradualmente en el mundo
entero —, por virtud del escepticismo misantrópico, la idea de raza y la
colonialidad del poder, en una conducta que refleja la forma como las cosas
son (una lógica de la naturalización de diferencias jerarquizadas
socialmente, que alcanzará su clímax en el uso de las ciencias naturales
para validar el racismo en el siglo XIX). La concepción moderna del mundo
está altamente relacionada con la idea del mundo bajo condiciones de
conquista y guerra. (MALDONADO-TORRES, 2007, p.139).
No entanto, cumpre ressaltar que a utilização das ciências naturais 11 não se
limitou à validação do racismo, pois além de buscar comprovar a suposta
inferioridade dos sujeitos racializados, também foi instrumento para a validação da
suposta inferioridade das mulheres, independentemente da questão racial, o que
corroborou com a ideia de um ego conquiro, fálico e desumanizador, tema que será
abordado no próximo capítulo.
De outra banda, Maldonado-Torres (2007) afirma que a modernidade
apresenta uma ambiguidade no que se refere ao seu ímpeto humanista, pois o trai
significativamente no momento em que se estabelece dentro da ética de guerra ou
não-ética e por sua naturalização calcada na questão racial. Refere que “la
modernidad es, entre otras cosas, un proceso perpetuo de conquista, a través de la
ética que es característica de la misma.ˮ (MALDONADO-TORRES, 2007, p.139).
11
Campos como a Biologia, Medicina, Anatomia.
29
O mundo colonial é marcado por aspectos raciais e de gênero característicos
da naturalização da ética/não-ética de guerra e a colonialidade do ser está atrelada
à normalização de eventos que são excepcionais, somente verificáveis em estados
de exceção. Assim, a morte e a violação que se percebe nas situações de guerra,
passam a ser realidades e ameaças constantes no dia a dia dos/as colonizados/as,
trata-se de um estado de coisas que se protrai no tempo. (MALDONADO-TORRES,
2007).
Este processo se desdobra em outras questões e dá forma à colonialidade do
ser, de modo que se pode afirmar que:
La invisibilidad y la deshumanización son las expresiones primarias de la
colonialidad del ser. La colonialidad del ser indica esos aspectos que
producen una excepción del orden del ser: es como si ésta fuera el producto
del exceso del ser que, en su gesta por continuar siendo y por evitar la
interrupción de lo que reside más allá del ser, produce aquello que lo
mantendrá siendo, el no-ser humano y un mundo inhumano. La colonialidad
del ser no se refiere, pues, meramente, a la reducción de lo particular a la
generalidad del concepto o a un horizonte de sentido específico, sino a la
violación del sentido de la alteridad humana, hasta el punto donde el alterego queda transformado en un sub-alter. […] La colonialidad del ser no es,
pues, un momento inevitable o consecuencia natural de las dinámicas de
creación de sentido. Aunque siempre está presente como posibilidad, ésta
se muestra claramente cuando la preservación del ser (en cualquiera de sus
determinaciones: ontologías nacionales e identitarias, etc.) toma primacía
sobre escuchar los gritos/llantos de aquellos cuya humanidad es negada.
(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 151).
A colonialidade do ser é, portanto, uma das resultantes do processo de
conquista
que,
pautado
modernidade/colonialidade,
pela
ética
de
agindo
sobre
todos
guerra
se
os
sujeitos
perpetuou
que
não
na
se
enquadraram/enquadram no modelo eurocêntrico de ―ser humano‖ (masculino,
heterossexual, branco, burguês, cristão), pois sendo o colonizador a medida de
todos os outros seres humanos, restaram os colonizados/as condenados/as a nãohumanidade.
Maldonado-Torres (2007) elucida que as categorias gênero, classe, raça e
sexualidade têm sido as formas de classificação/diferenciação mais utilizadas para
transgredir a primazia da relação eu-outro, indicando que:
[…] el entrecruzamiento entre raza, género y sexualidad puede ser
explicado, aunque sea en parte, por su relación con la no-ética de la guerra
y su naturalización en el mundo moderno/colonial. Ellas se conjugan en la
definición y las acciones del ideal de subjetividad representado en el ego
conquiro. La emergencia del ego conquiro y de su contrapartida, el sub-
30
alter, altera las coordenadas metafísicas de la realidad humana. Un mundo
definido por sujetos que se conciben como criaturas divinas o alter egos de
distintos rangos, viene a ser formado por relaciones sociales que elevan a
un grupo al nivel de la divinidad y que someten a otros al infierno de la
esclavitud racial, la violación y el colonialismo perpetuo. (MALDONADOTORRES, 2007, p. 153).
Disto se depreende que as mulheres, enquanto seres racializados ou não,
estão imersas na colonialidade do ser, posto que a lógica da violação do ego
conquiro se perpetuou até os dias atuais, a colonialidade do ser é a realidade dos
corpos femininos na América Latina e, por consequência no Brasil.
El cuerpo permite el encuentro, la comunicación y la relación íntima con
otros, pero también se convierte, por su misma exposición, en objeto
privilegiado de la deshumanización, a través de la racialización, la
diferenciación sexual y de género. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 155).
Diante disso, se faz necessário lançar um olhar sobre a colonialidade das
relações de gênero, pois estão intimamente imbricadas com a colonialidade do ser e
do poder. Quijano (2007) refere que no mundo colonial, em sua totalidade, as
normas e padrões considerados formais ou ideais (socialmente aceitos) para o
comportamento sexual e dos gêneros masculino e feminino e, também os padrões
de organização familiar dos europeus esteve lastreado na classificação racial. O
autor explica que este tipo de organização familiar perpassou pela dinâmica de
liberdade sexual dos homens e a fidelidade das mulheres, em contrapartida, isso
implicou no ―livre‖12 acesso sexual dos homens brancos às mulheres negras e
indígenas, diferentemente do que ocorria na Europa, em que a prostituição das
mulheres era a contrapartida do padrão de família burguesa.
Quijano (2007) indica que o custo da manutenção da unidade e integração
familiar colocadas como eixos do padrão de família burguesa eurocêntrica implicou
na continuada desintegração das unidades parentais nas raças não-brancas, as
quais eram vistas como objeto de apropriação, distribuição e mercantilização. Tal
custo recaiu em especial sobre os escravos negros, tornando-se mais explícita e
prolongada. Por fim, Quijano coloca que a característica hipócrita das normas e
valores formais-ideais da família burguesa está profundamente intercalada com a
colonialidade do poder e, consequentemente com a colonialidade do ser, uma vez
que, a colonialidade do gênero está atrelada à racialidade. (QUIJANO, 2007).
12
O autor refere o termo ―livre‖ no sentido de acesso sexual sem pagamento, diferentemente do que
ocorre no caso da prostituição.
31
Ao mencionar a questão do gênero, Quijano (2007) refere que este foi
produzido como se fosse idêntico ao sexo, e pondera que na sua percepção o sexo
é realmente um atributo biológico, implicando em processos biológicos e tendo algo
a ver com gênero, diferentemente da ideia de raça/cor, que segundo ele, passa a ser
produzida a partir da colonialidade. Nesse ponto Quijano, de certa forma, silencia
acerca das implicações que a atribuição do gênero ao aspecto biológico enquanto
construção da modernidade produz dentro da questão da colonialidade do gênero,
mas conforme destacado anteriormente faz uma relação entre gênero e raça para
pensar sobre a colonialidade do gênero.
1.1.4. Colonialidade do gênero e sua relação com o ego conquiro proposto por
Maldonado-Torres
Sobre a colonialidade do gênero, mais além do que Quijano refere em suas
teorizações, María Lugones (2014) traz outras percepções acerca do tema a partir
do feminismo de cor, percepções estas que criticam e aprofundam o que propõe
Quijano13 e que para a pesquisa em curso, permitem uma análise do objeto de
estudo mais ampla, pois ultrapassa as categorias fixas estabelecidas pela
modernidade,
sendo
suas
teorizações
especificamente
voltadas
para
subalternização das mulheres.
Nesse sentido, expõe-se a seguir as contribuições de Lugones sobre o tema e
posteriormente estabelece-se a relação com a noção de ego conquiro (ética de
guerra/não ética) proposta por Maldonado-Torres, abordada em tópico anterior, a
qual demonstra os rumos violentos e desumanizadores que tomou a colonialidade
nas Américas.
Lugones (2014) refere que a modernidade organiza o mundo ontologicamente
em categorias homogêneas que acabam por compor o universalismo feminista
criticado pelas mulheres de cor e do terceiro mundo, as quais reivindicam a
intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero, ultrapassando esta noção de
categorias homogêneas, de modo que pensar nas mulheres não-brancas rompe
com esta lógica categorial, pois dentro da lógica categorial ―mulher e negro são
13
A autora utiliza as categorias de colonialidade do poder, saber e ser, conforme Aníbal Quijano, no
entanto diverge em alguns pontos no que se refere à colonialidade do gênero, e aprofunda a
questão, indo além do que propôs Quijano para esta temática.
32
termos para categorias homogêneas, atomizadas e separáveis, então sua
intersecção mostra-nos a ausência das mulheres negras – e não sua presença.‖
(LUGONES, 2014, p. 935).
A autora propõe o que chama de ―sistema moderno colonial de gênero‖ como
―lente‖ através da qual se pode aprofundar a teorização da lógica opressiva colonial,
da
utilização
de
dicotomias
hierárquicas
imposta
por
ela
e
da
lógica
categorial/dicotômica que sustenta o pensamento capitalista/colonial/moderno sobre
raça, gênero e sexualidade. (LUGONES, 2014).
Um importante apontamento a fazer é que quando Lugones (2008) menciona
o termo ―mulheres de cor‖, presente em toda a sua construção teórica, explica que
este se originou nos Estados Unidos, com as mulheres vítimas da dominação racial,
como um termo para nomear as múltiplas opressões estas sofriam. Ocorre, no
entanto, que não se trata tão somente de um marcador racial ou de uma dominação
racial, mas sim um movimento solidário horizontal.
De acordo com Lugones (2008), o termo ―mulheres de cor‖ adotado pelas
mulheres subalternas, vítimas de dominações múltiplas nos Estados Unidos, não se
trata de um termo que aponta para uma identidade que separa, que individualiza,
que aparta, se trata de uma coalizão orgânica entre mulheres indígenas, mestiças,
mulatas, negras, cherokees, porto-riquenhas, sioux, chicanas, mexicanas, pueblo,
enfim, abrange toda a complexidade de vítimas da colonialidade de gênero. Referese a uma articulação não no sentido de unir vítimas, mas sim no sentido de unir
protagonistas de um feminismo decolonial. Destaca que esta coalizão é aberta, com
intensa interação cultural, abrangendo todas as mulheres subalternizadas das
Américas.
Lugones (2008) entende que raça, gênero e sexualidade são marcadores
potentes de sujeição ou dominação do sistema moderno/colonial/capitalista que
atuam de forma que nenhuma delas, ao estar oprimindo, molda e reduz uma pessoa
sem estar tocada por ou separada de outras marcas que ao estar também
oprimindo, moldam e reduzem esta pessoa, o que significa que estes são
marcadores interdependentes, não atuando de forma isolada.
Acerca da colonialidade do gênero, a autora demarca o seu posicionamento
partindo da compreensão de que a centralidade da modernidade colonial se
estabelece
na
hierarquização
dicotômica
entre
humano
e
não-humano,
acompanhada das hierarquizações já existentes entre homens e mulheres,
33
tornando-se esta distinção uma marca da ―civilização‖, abordando a noção de
colonialidade do ser. Lugones explica que dentro desta lógica:
Só os civilizados são homens ou mulheres. Os povos indígenas das
Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como
espécies não humanas – como animais, incontrolavelmente sexuais e
selvagens. O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um
sujeito/agente, apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de
civilização, heterossexual, cristão, um ser de mente e razão. A mulher
européia burguesa não era entendida como seu complemento, mas como
alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza sexual, sua
passividade, e por estar atada ao lar a serviço do homem branco europeu
burguês. A imposição dessas categorias dicotômicas ficou entretecida com
a historicidade das relações, incluindo as relações íntimas. (LUGONES,
2014, p. 936).
Lugones (2014) esclarece que, quando menciona ―relações íntimas‖, isto não
se refere ao contexto relações sexuais, mas sim às interações cotidianas que
resistem à diferença colonial e que permeiam a vida social entre as pessoas que não
atuam como representativas ou como autoridades, ou seja, sujeitos subalternizados
pela colonialidade. A autora afirma que os/as colonizados/as foram condenados/as
pela ―imposição brutal do sistema moderno colonial de gênero‖. (LUGONES, 2014,
p. 936).
Conforme mencionado, diante da conceitualização de gênero imposta pelos
colonizadores europeus, somente eles eram seres humanos em sua plenitude, de
forma que os comportamentos dos/as colonizados/as eram percebidos como
animalescos, promíscuos, sexuais, pecaminosos, não engendrados, ou seja, não
eram pautados pelas ideias européias de gênero e de divisão de papéis de gênero
e, portanto, inaceitáveis para os colonizadores. (LUGONES, 2014).
A autora explica que ainda que na época houvesse a compreensão de que
havia apenas um sexo, o masculino, com sua variante ―imperfeita, inversa e
deformada‖ que era a mulher (isomorfismo sexual) era presente a ideia de
macho/fêmea de modo que hermafroditas, sodomitas, viragos e colonizados/as
(considerados não humanos/as) eram todos/as aberrações aos olhos dos
colonizadores, ou seja, aberrações da perfeição masculina européia.
Acerca desta compreensão, coloca-se aqui um parêntese para esclarecer que
a abordagem de Lugones (2014) sobre esta classificação dos sexos é fundamentada
nas teorizações de Thomas Laqueur (1994), na obra ―A construção do sexo: corpo e
gênero dos gregos até Freud‖. A qual se discorre a seguir por tratar-se de ponto
34
relevante para a compreensão da colonialidade do gênero e das ideias colocadas
anteriormente.
Thomas Laqueur (1994) aduz que o modelo de sexo único (chamado de
isomorfismo) remonta da antiguidade até o final do século XVII14, se mantendo ainda
por algum tempo, sendo modificada após uma série de estudos empreendidos pela
ciência
moderna.
Neste
modelo
era concebido
que
havia
dois
gêneros
correspondentes a um sexo único, um tipo de sexo com graus de gênero
diferenciados em macho e fêmea. Atribui a longevidade e a manutenção deste
modelo ao fato de estar intrinsecamente relacionado com o poder, refletindo a
característica de uma cultura eminentemente masculina em que o homem era
pensado como medida de todas as coisas. Laqueur (1994) afirma, portanto, que
neste modelo a mulher não existe enquanto categoria ontologicamente distinta.
O autor aponta ainda que o dimorfismo sexual, ou seja, a concepção da
existência de dois sexos estáveis e diferentes, e dois gêneros diferentes passa a
tomar corpo no mundo ocidental somente a partir do século XVIII, sendo que o
gênero precedeu as diferenciações sexuais. Com o estabelecimento dos dois sexos
foi gerada a ideia de que estes são complementares, opostos, voltados para a
procriação desde uma perspectiva cristã, sendo que a organização política,
econômica, cultural e dos papéis de gênero se estabeleceu em torno dessa
compreensão, o que por consequência, definiu também a heterossexualidade como
única forma de expressão da sexualidade aceitável socialmente.
Fecha-se o parêntese anunciado para destacar que, a noção de isomorfismo
esteve presente fortemente no processo de colonização, diante deste contexto, resta
clara
matriz
da
condenação
dos/as
colonizados/as
ao
status
de
seres
hipersexualizados e abomináveis desde o ponto de vista dos europeus, uma vez que
não se enquadravam nos padrões ocidentais, o que segundo Lugones (2014)
justificou uma série de crueldades com os povos das Américas. A autora indica que:
[...] pessoas colonizadas tornaram-se machos e fêmeas. Machos tornaramse não-humanos-por-não-homens, e fêmeas colonizadas tornaram-se nãohumanas-por-não-mulheres. Consequentemente, fêmeas colonizadas
nunca foram compreendidas como em falta por não serem como-homens,
tendo sido convertidas em viragos. Homens colonizados não eram
14
O que reforça a ideia de que o gênero é um eixo de dominação pré-existente à colonização e à
colonialidade, no entanto, a partir dela foi reproduzido e reestruturado de forma a acentuar a sua
perversidade ao ser aliado à questão da raça e da desumanização atribuída aos/às
colonizados/as.
35
compreendidos como em falta por não serem como-mulheres. O que tem
sido entendido como ―feminização‖ de ―homens‖ colonizados parece mais
um gesto de humilhação, atribuindo a eles passividade sexual sob ameaça
de estupro. Esta tensão entre hipersexualidade e passividade sexual define
um dos domínios da sujeição masculina dos/as colonizados/as. (LUGONES,
2014, p. 937).
As colocações de Lugones (2014) demonstram um profundo entrelaçamento
com o que coloca Maldonado-Torres (2007) sobre o ego conquiro e a lógica de
violação que se estabeleceu nas colônias, em especial no que se refere ao ego
fálico mencionado pelo autor, pois ao final e ao cabo, tanto as ―não-mulheres‖
quanto os ―não-homens‖ colonizados estão sujeitos à dominação violenta
generificada do colonizador europeu, o que se perpetuou pela força da colonialidade
do gênero.
Tal se pode explicar tendo em conta o que Lugones (2014) chama de ―missão
civilizatória colonial‖, a qual, segundo ela tratava-se de um embuste para viabilizar o
[...] acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma exploração
inimaginável, violação sexual, controle da reprodução e terror sistemático
(por exemplo, alimentando cachorros com pessoas vivas e fazendo
algibeiras e chapéus das vaginas de mulheres indígenas brutalmente
assassinadas). (LUGONES, 2014, p. 939).
A autora explica que esta ―missão civilizatória colonial‖ utilizou a dicotomia de
gênero como forma de avaliação, ainda que não tivesse o interesse de transformar
os/as colonizados/as em seres humanos. Assim, a dicotomia não transformava os/as
colonizados/as em homens e mulheres no que tange à identidade, mas ao que tange
à natureza, havia uma função nesta postura, qual seja, a de fazer com que os/as
colonizados/as se voltassem uns/umas contra os/as outros/as para justificar os
abusos da ―missão civilizatória‖. (LUGONES, 2014).
No que se refere às mulheres, a ―missão civilizatória‖ trazia concepções de
mundo que as subalternizava de forma mais extrema, ficando abaixo dos homens
colonizados na hierarquia da desumanização, pois:
A confissão cristã, o pecado e a divisão maniqueísta entre o bem e o mal
serviam para marcar a sexualidade feminina como maligna, uma vez que as
mulheres colonizadas eram figuradas em relação a Satanás, às vezes como
possuídas por Satanás. (LUGONES, 2014, p. 939).
Não obstante a isso a ―missão civilizatória‖, calcada no cristianismo não só
implicou na imposição das noções de gênero européias como na introdução do
36
conceito de natureza como instrumento, o que é central para a implantação do
capitalismo nas Américas, posto que:
A transformação civilizatória justificava a colonização da memória e,
consequentemente, das noções de si das pessoas, da relação
intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual, com a terra, com o
próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização
social, ecológica e cosmológica. Assim, à medida que o cristianismo tornouse o instrumento mais poderoso da missão de transformação, a
normatividade que conectava gênero e civilização concentrou-se no
apagamento das práticas comunitárias ecológicas, saberes de cultivo, de
tecelagem, do cosmos, e não somente na mudança e no controle de
práticas reprodutivas e sexuais. (LUGONES, 2014, 939).
A autora alerta, com isso, sobre a dimensão que assume a imposição do
sistema moderno colonial de gênero, na medida em que este implica na
desumanização que constitui a colonialidade do ser e estabelece uma relação entre
o conceito de natureza como instrumento (central para o capitalismo) e a introdução
do conceito de gênero entre os/as colonizados/as.
Porém, Lugones (2014) reforça que o sistema de poder global, capitalista,
moderno colonial que iniciou com a colonização e está em vigor até os dias atuais,
ao ser implantado, não se deparou com um mundo a ser estabelecido, com mentes
vazias e animais em evolução15. Mas que ao contrário disso, se deparou com seres
que detinham cultura, organização, política, econômica e religiosa. Seres que se
relacionavam de forma diferente com o mundo e com o cosmos. Suas formas de
vida não deveriam ser simplesmente substituídas pelos colonizadores, mas sim
deveriam ser encontradas e dialogadas. Porém, ao contrário disso, houve a
invenção dos/as colonizados/as e o investimento no seu rebaixamento a seres
primitivos, não humanos, infantis, satânicos, agressivamente sexuais, sendo
solapada a sua autonomia e suas dinâmicas de vida.
Ao realizar o apagamento dos modos de vida dos/as colonizados/as e a
transformação destes/as a partir da colonialidade do gênero, são obtidos efeitos que
se protraem no tempo. Um destes efeitos é o que Lugones (2008) busca
problematizar, qual seja, a indiferença dos homens frente à violência sistemática
operada pelo Estado, pelo patriarcado e perpetuada por eles mesmos, e que é
15
Camacho (2014) refere que o conceito ―mulher‖ foi incorporado pela aliança entre o cristianismo e
o capitalismo para controlar os corpos das mulheres a fim de controlar a produção da força de
trabalho que consolidou o modo de produção capitalista, resultando na acumulação de riquezas
nos centro-hegemônico e o deslocamento da mais-valia do trabalho dos oprimidos para a
metrópole.
37
imposta sobre as mulheres de cor, ou seja, sobre as mulheres não-brancas, vítimas
da colonialidade do poder e do gênero, mulheres estas que têm criticado o
feminismo
hegemônico
devido
a
este
buscar
uma
―mulher
universal‖
desconsiderando as intersecções entre raça, classe, sexualidade e gênero. Em
especial, ela se refere à indiferença dos homens que também são vítimas da
dominação racial, da colonialidade do poder e da submissão ao capitalismo global.
Verifica-se que a inércia destes homens remete sobremaneira ao processo histórico
referido anteriormente.
A autora se posiciona ao dizer que:
Entiendo la indiferencia a la violencia contra la mujer en nuestras
comunidades como una indiferencia hacia transformaciones sociales
profundas en las estructuras comunales y por lo tanto totalmente relevantes
al rechazo de la imposición colonial. Busco entender la forma en que se
construye esta indiferencia para, así, convertirla en algo cuyo
reconocimiento sea ineludible para quienes sostienen que están
involucrados en luchas liberadoras. (LUGONES, 2008, p. 76).
Lugones (2008) denuncia que neste caso a indiferença é insidiosa pelo fato
de que coloca barreiras intransponíveis na luta decolonial/feminista das mulheres de
cor no que tange à sua própria integridade, autodeterminação, que é o cerne das
lutas por libertação das comunidades subalternizadas. Relata o alcance desta
indiferença ao referir que ela se encontra tanto ao nível da vida cotidiana como ao
nível das teorizações acerca da opressão e libertação, de forma que não é causada
apenas pela separação categorial de raça, gênero, classe e sexualidade, ainda que
esta separação ofusque o olhar sobre a violência, não se resume à questão da
cegueira epistemológica originada na separação categorial, algo que é combatido
pelas feministas de cor.
O que a autora retrata é a indiferença/conivência dos homens subalternizados
para com a opressão imposta pela colonialidade do poder e do gênero sobre as
mulheres subalternizadas, o que remete ao fato de que restou eficientemente
concretizada
anteriormente,
a
proposta
pois
a
colonizados/colonizadas
da
missão
lógica
de
permite
a
civilizatória
lançar
nos
termos
destacados
colonizados/colonizadas
manutenção
do
sistema
contra
opressivo
da
modernidade/colonialidade/capitalista. Lugones refere que:
Sin embargo, esto no ha sido suficiente para despertar en aquellos
hombres, que también han sido víctimas de la dominación y explotación
38
violentas, ningún tipo de reconocimiento de la complicidad o colaboración
que prestan al ejercicio de dominación violenta de las mujeres de color. En
particular, la teorización de la dominación global continúa llevándose a cabo
como si no hiciera falta reconocer y resistir traiciones o colaboraciones de
este tipo. (LUGONES, 2008, p. 76).
No momento em que Lugones (2008) refere que a própria teorização sobre a
dominação global se omite em reconhecer a colaboração dos homens, pautada pela
indiferença, na manutenção da violência contra as mulheres, traz uma crítica a
Aníbal Quijano na medida em que aponta que este não tem tomado consciência de
sua própria aceitação do significado hegemônico de gênero. A autora expõe que
para Quijano “las luchas por el control del ‗acceso sexual, sus recursos y productos‘
definen el ámbito del sexo/género y, están organizadas por los ejes de la
colonialidad y de la modernidad.” (LUGONES, 2008, p. 78, grifo da autora). No
entanto, ela percebe esta análise da construção moderna/colonial de gênero como
algo muito limitado. Na perspectiva de Lugones (2008) o olhar de Quijano pressupõe
uma compreensão patriarcal e heterossexual das disputas pelo controle do sexo,
seus recursos e seus produtos, que aceita o entendimento capitalista, eurocêntrico e
global de gênero.
Isso se justifica porque, para a autora, não é necessário que as organizações
sociais estejam constituídas em termos de gênero e sexo, porém a organização
social em termos de gênero não tem por que ser heterossexuais ou patriarcais e
nem uma questão histórica. Assim, afirma que:
Entender los rasgos históricamente específicos de la organización del
género en el sistema moderno/colonial de género (dimorfismo biológico, la
organización patriarcal y heterosexual de las relaciones sociales) es central
a una comprensión de la organización diferencial del género en términos
raciales. Tanto el dimorfismo biológico, el heterosexualismo, como el
patriarcado son característicos de lo que llamo el lado claro/visible de la
organización colonial/moderna del género. El dimorfismo biológico, la
dicotomía hombre/mujer, el heterosexualismo, y el patriarcado están
inscriptos con mayúsculas, y hegemónicamente en el significado mismo del
género. Quijano no ha tomado conciencia de su propia aceptación del
significado hegemónico del género. (LUGONES, 2008, p. 78).
A crítica a Quijano está no fato de que ele não aborda estes aspectos em sua
teorização sobre gênero, não busca problematizá-la, silenciando e adotando a ideia
hegemônica de gênero, binária e heterossexual, que não discute uma série de
questões que implicam na subalternização feminina.
39
Lugones (2008) destaca que em suas colocações sobre a colonialidade de
gênero, Quijano coloca a questão como a partir do viés biológico, pressupondo a
lógica reprodutiva, apresentando a disputa pelo controle do sexo como uma disputa
entre homens em que já está definido ―quem tem acesso‖ aos recursos sexuais e
―quem é recurso sexual‖, colocando as mulheres à margem da disputa pelo acesso
sexual. Trata-se de uma estruturação eminentemente colonial e eurocêntrica que
não alcança a complexidade da questão de gênero.
Lugones (2008) traz a questão da intersexualidade para questionar acerca de
que forma o diformismo sexual serviu e serve para exploração e dominação
capitalista global eurocêntrica. Explica que a lei não reconhece os intersexuais,
sendo realizadas cirurgias ―corretivas‖ na maioria das vezes ainda na infância e
tratamentos hormonais, para que a criança seja ―adequada‖ a um ou outro sexo e
seja educada de acordo com um dos gêneros, pois a ambiguidade é inaceitável
dentro da lógica binária colonial.
El diformismo sexual ha sido una característica importante de lo que llamo
―el lado claro/visible‖ del sistema de género moderno/ colonial. Aquellos
ubicados en ―el lado oscuro/oculto‖ no fueron necesariamente entendidos en
términos dimórficos. Los miedos sexuales de los colonizadores los llevaron
a imaginar que los indígenas de las Américas eran hermafroditas o
intersexuales, con penes enormes y enormes pechos vertiendo leche.
(LUGONES, 2008, p. 85, grifo da autora).
De outra forma, explica que a condição de intersexualidade não se constituía
como um problema dentro da organização das populações originárias colonizadas,
pois os sujeitos intersexuais eram reconhecidos em muitas sociedades tribais sem
que lhes fosse imposta a assimilação binária. (LUGONES, 2008).
Lugones (2008) revela que têm buscado um caminho que a leva além do
modelo de Quijano de colonialidade do gênero para revelar o que este modelo oculta
no alcance do sistema de gênero do capitalismo global eurocêntrico e que embora
ela acredite que a descrição de Quijano traz elementos importantes no que se refere
à intersecção de raça e gênero, tal descrição apaga e exclui as mulheres
colonizadas da maioria das áreas da vida social quando deveria colocar esta
situação em evidência.
A autora se vale dos estudos de Paula Allen para dizer que muitas tribos de
nativos/as Americanos/as eram organizadas sob um ―igualitarismo ginecrático‖, ou
seja, as comunidades acreditavam em uma força primária do universo que era
40
feminina e esta compreensão influenciava diretamente nas relações sociais no
interior destas comunidades no período pré-colonial, assim nestes contextos as
mulheres eram centrais e seu pensamento e consentimento faziam parte da
organização destas comunidades. (LUGONES, 2008).
Assim, para que os colonizadores substituíssem a organização ―ginecrática
igualitária‖ (dotada de pluralidade espiritual) pela patriarcal hierárquica (marcada
pelo cristianismo com apenas um ser supremo e masculino) era necessário obter
êxito em concretizar quatro objetivos: destituir a primazia do feminino como ente
criador e instituir a primazia de um criador masculino; destruir as instituições de
governo tribais e suas filosofias; expulsar as comunidades de suas terras como meio
de impedir a sua subsistência a fim de forçá-las a depender das instituições brancas
e, logo da dominação masculina para garantir sua sobrevivência; e reestruturação
dos clãs a partir da noção de família nuclear, de modo que as mulheres líderes
passassem a ser substituídas por oficiais eleitos destruindo a rede psíquica mantida
pela lógica ―ginecrática‖ não autoritária baseada no respeito à pluralidade dos
deuses e às pessoas. (LUGONES, 2008). “El colonizador blanco construyó una
fuerza interna en las tribus cooptando a los hombres colonizados a ocupar roles
patriarcales.‖ (LUGONES, 2008, p. 90).
Ainda nesse sentido, fazendo uso das teorizações de Paula Allen, Lugones
(2008) indica que nas comunidades indígenas no período de pré-colonização o
gênero não era entendido especificamente em termos biológicos, pois as pessoas se
encaixavam dentro do rol de gêneros tribais de acordo com sua propensão,
inclinação e temperamento e cita o exemplo da tribo Yuma, na qual a designação do
gênero se baseava nos sonhos, de forma que se uma mulher sonhava com armas
se transformava em homem para todos os efeitos dentro da tribo.
Aponta ainda para a elaboração da ideia de terceiro gênero a qual se faz útil
para desconstruir a ideia de gênero atrelado ao sexo, pois afirma que nas
comunidades pré-colombianas era aceita de forma não problemática a união entre
pessoas do mesmo sexo, tendo em vista que o gênero não tinha conotação
biológica, prática percebida pelos colonizadores como uma aberração pecaminosa e
condenável. Lugones arrazoa que:
[…] es importante que veamos, mientras intentamos entender la
profundidad y la fuerza de la violencia en la producción tanto del lado
oculto/oscuro como del lado visible/claro del sistema de género
41
moderno/colonial, que esta heterosexualidad ha sido coherente y
duraderamente perversa, violenta, degradante, y ha convertido a la gente
―no blanca‖ en animales y a las mujeres blancas en reproductoras de La
Raza (blanca) y de La Clase (burguesa). (LUGONES, 2008, p. 92, grifo da
autora).
Assim, a autora demonstra que as mudanças trazidas pelos colonizadores
fizeram parte de um longo processo, não linear, permeado pela colonialidade do
poder que inferiorizou violentamente as mulheres colonizadas, lançando-as ao
espaço privado, vulnerabilizando e afastando da vida política retirando-lhes o poder
de decisão e lhe sujeitando à violência dos homens. Explica que a colonialidade do
poder constituiu o sistema de gênero e o sistema de gênero constituiu a
colonialidade do poder. Assim:
Entender el lugar del género en las sociedades precolombinas nos rota el
eje de compresión de la importancia y la magnitud del género en la
desintegración de las relaciones comunales e igualitarias, del pensamiento
ritual, de la autoridad y el proceso colectivo de tomada de decisiones, y de
las economías. Es decir, por un lado la consideración del género como
imposición colonial — la colonialidad del género en el sentido complejo —
afecta profundamente el estudio de las sociedades precolombinas,
cuestionando el uso del concepto ―género‖ como parte de la organización
social. Por el otro, la comprensión de la organización social precolonial
desde las cosmología y prácticas precoloniales son fundamentales para
llegar a entender la profundidad y alcance de la imposición colonial. Pero no
podemos hacer lo uno sin lo otro. Y, por lo tanto, es importante entender
hasta qué punto la imposición de este sistema de género fue tanto
constitutiva de la colonialidad del poder como la colonialidad el poder fue
constitutiva de este sistema de género. La relación entre ellos sigue una
lógica de constitución mutua. (LUGONES, 2008, p. 92-93, grifo da autora).
Disso se depreende que ao destruir as organizações pré-coloniais, a partir do
sistema de gênero moderno colonial, coloca-se o homem colonizado a serviço do
projeto colonial até os dias atuais, transformando os sujeitos subalternizados em
inimigos, que, divididos, não conseguem restabelecer os vínculos comunais e
solidários que possibilitam uma convivência mais harmônica e igualitária.
A violência dos homens colonizados em relação às mulheres colonizadas tem
raízes que podem ser observadas no que traz Segato (2010) quando refere que, à
época da colonização,
[…] junto a esta hiperinflación de la posición masculina en la aldea, ocurre
también la emasculación de esos mismos hombres en el frente blanco, que
los somete a estrés y les muestra la relatividad de su posición masculina al
sujetarlos a dominio soberano del colonizador. Este proceso es
violentogénico, pues oprime aquí y empodera en la aldea, obligando a
reproducir y a exhibir la capacidad de control inherente a la posición de
42
sujeto masculina en el único mundo ahora posible, para restaurar la virilidad
perjudicada en el frente externo. Esto vale para todo el universo de
masculinidad racializada, expulsada a la condición de no-blancura por el
ordenamiento de la colonialidad. (SEGATO, 2010, p. 18).
Daí se verifica uma das origens de sua complacência com a violência de
gênero, pois uma vez relativizada a sua própria masculinidade, se vê compelido a
impor a brutalidade como meio de obter novamente a virilidade relativizada pelos
colonizadores brancos.
Parte do enfraquecimento da articulação das mulheres colonizadas reside
também no fato de que a substituição do sistema de gênero pré-colonial pelo
sistema colonial produziu, conforme já mencionado anteriormente, uma quebra no
fazer político destas mulheres, pois as apartou das deliberações acerca do bem
comum, afastando-as politicamente, e seu confinamento ao espaço doméstico
privado proporcionou que:
Los vínculos exclusivos entre las mujeres, que orientaban a la reciprocidad
y a la colaboración solidaria tanto ritual como en las faenas productivas y
reproductivas, se ven dilacerados en el proceso del encapsulamiento de la
domesticidad como ―vida privada‖. Esto significa, para el espacio doméstico
y quienes lo habitan, nada más y nada menos que un desmoronamiento de
su valor y munición política, es decir, de su capacidad participación en las
decisiones que afectan a toda la colectividad. Las consecuencias de esta
ruptura de los vínculos entre las mujeres y del fin de las alianzas políticas
que ellos permiten y propician para el frente femenino fueron literalmente
fatales para su seguridad, pues se hicieron progresivamente más
vulnerables a la violencia masculina, a su vez potenciada por el estrés
causado por la presión sobre ellos del mundo exterior. (SEGATO, 2010, p.
18).
Segato (2010) discorre que o confinamento compulsivo do espaço doméstico
e de seus habitantes tem conseqüências terríveis com respeito à violência que lhes
vitimiza e ressalta que estas consequências são modernas e produtos da
modernidade/colonialidade, destacando que:
Así como las características del crimen de genocidio son, por su
racionalidad y sistematicidad, originarias de los tiempos modernos, los
feminicidios, como prácticas casi maquinales de extermino de las mujeres
son también una invención moderna. Es la barbarie de la colonial
modernidad mencionada anteriormente. Su impunidad, como he tentado
argumentar en otro lugar, se encuentra vinculada a la privatización del
espacio doméstico, como espacio residual, no incluido en la esfera de las
cuestiones mayores, consideradas de interés público general. (SEGATO,
2010, p. 19).
43
Segato (2010) menciona que com a emergência da estrutura universal
moderna colonial, da qual provém o Estado, a política, os direitos e a ciência, tanto o
contexto doméstico quanto a mulher que o habita se transformam em restos, à
margem dos assuntos considerados de relevância universal e perspectiva neutra.
Desse modo:
En este nuevo orden dominante, el espacio público, a su vez, pasa a
capturar y monopolizar todas las deliberaciones y decisiones relativas al
bien común general, y el espacio doméstico como tal se despolitiza
totalmente, tanto porque pierde sus formas ancestrales de intervención en
las decisiones que se tomaban en el espacio público, como también porque
se encierra en la familia nuclear y se clausura en la privacidad. (SEGATO,
2010, p. 24).
A autora afirma que a despolitização do espaço doméstico o torna vulnerável
e frágil, sendo inúmeros os testemunhos dos graus e formas cruéis de vitimização
que se estabelecem quando se ausenta o amparo da noção de comunidade sobre o
mundo familiar e assim, se desmonta a autoridade, valor e prestígio das mulheres na
sua esfera de ação.
O sistema de gênero colonial moderno se constitui como ferramenta de
dominação,
útil
para
a
fragmentação
dos
laços
de
solidariedade
entre
colonizados/as, resultando em um estado de coisas que perpetua a violência e a
indiferença de dominadores sobre dominados e entre dominados.
É neste sentido que o ego conquiro denunciado por Maldonado-Torres
(2007), se apresenta na contemporaneidade, revisto, maximizado, perpetuado,
assimilado e reproduzido pela subjetividade dos sujeitos colonizados, de modo que a
não-ética de guerra permanece produzindo suas vítimas, porém, agora, também
operada pelos próprios conquistados através da sua contribuição direta, de sua
indiferença ou de seu silenciamento diante dos efeitos da violência.
Segato (2010) refere que o assassinato das mulheres é, atualmente,
conhecido como feminicídio e que este se trata de um sintoma da barbárie de
gênero moderno, indicando que este tipo de violência revela uma transformação
contemporânea da violência de gênero. Segundo ela, o mundo testemunha, na
atualidade, tenebrosas formas de crueldade com os corpos femininos e
feminilizados. Neste sentido, a autora, se valendo dados apresentados por Ana
Carcedo menciona que:
44
Guatemala, El Salvador y México, en nuestro continente, y Congo dando
continuidad a las escenas horrendas de Ruanda, son emblemáticos de esta
realidad. En Congo, los médicos ya utilizan la categoría ―destrucción
vaginal‖ para el tipo de ataque que en muchos casos lleva a sus víctimas a
la muerte. En El Salvador, entre 2000 y 2006, en plena época de
―pacificación‖, frente a un aumento de 40% de los homicidios de hombres,
los homicidios de mujeres aumentaron en un 111%, casi triplicándose; en
Guatemala, también de forma concomitante con el restablecimiento de los
derechos democráticos, entre 1995 y 2004, si los homicidios de hombres
aumentaron un 68%, los de mujeres crecieron en 144%, duplicándose; en
el caso de Honduras, la distancia es todavía mayor, pues entre 2003 y
2007, el aumento de la victimización de los hombres fue de 40% y de las
mujeres de 166%, cuadruplicándose. (SEGATO, 2010, p. 3)
Assim, os dados apresentados corroboram com a argumentação trazida pelo
referencial teórico exposto até aqui. Segato (2010) discorre que passou a perceber
que a crueldade e desamparo com relação às mulheres crescem à medida que a
modernidade e o mercado se expandem sobre os espaços colonizados e, que
atualmente permanecem sob a colonialidade, nesse sentido:
A pesar de todo el despliegue jurídico de lo que se conoce, desde la
Conferencia Mundial sobre Derechos Humanos de 1993, como ―los
derechos humanos de las mujeres‖, podemos sin duda hablar de la barbarie
creciente del género moderno, o de lo que algunos ya llaman ―el genocidio
de género‖. (SEGATO, 2010, p. 3).
Percebe-se, portanto, que em que pese o aparato jurídico para coibir a
violência voltada às mulheres, esta não têm se reduzido, ao contrário, o número de
assassinatos e casos de crueldade cresce, na mesma proporção que crescem as
leis para reprimi-los, as quais podemos exemplificar no contexto brasileiro pela Lei nº
11.340/2006 (Lei Maria da Penha)16, cuja elaboração só se efetivou mediante
condenação pública e pressão de instâncias internacionais de proteção aos Direitos
Humanos, bem como pela Lei nº 13.104/2015 (Lei do Feminicídio).
Segato (2010) coloca uma crítica ao Estado no que se refere a oferecer
apenas o aparato legal como solução para a violência contra as mulheres frente aos
efeitos do rompimento das estruturas tradicionais e comunitárias pré-coloniais,
nesse sentido se posiciona afirmando que:
16
O estudo da referida Lei não é o objeto da presente pesquisa, no entanto, utiliza-se a mesma
como exemplo, por tratar-se de fruto de pressão internacional da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos sobre o Brasil devido ao descaso das instâncias governamentais com relação
às violações de Direitos Humanos sofridas por mulheres no país. (WESTIN, 2013). Ou seja, não
se trata de uma legislação nascida do anseio de igualdade entre gêneros e sim como um paliativo
para situação embaraçosa em que o Brasil se colocou frente à comunidade internacional e, traz
em si, uma série de reforçadores à desigualdade de gênero, por conter um discurso de
subalternização feminina, os quais serão mencionados posteriormente.
45
[…] el Estado entrega aquí con una mano lo que ya retiró con la otra:
entrega una ley que defiende a las mujeres de la violencia a que están
expuestas porque ya rompió las instituciones tradicionales y la trama
comunitaria que las protegía. El adviento moderno intenta desarrollar e
introducir su propio antídoto para el veneno que inocula. El polo
modernizador estatal de la República, heredera directa de la administración
ultramarina, permanentemente colonizador e intervencionista, debilita las
autonomías, irrumpe en la vida institucional, rasga el tejido comunitario,
genera dependencia, y ofrece con una mano la modernidad del discurso
crítico igualitario, mientras con la otra ya introdujo los preceptos del
individualismo y la modernidad instrumental de la razón liberal y capitalista,
conjuntamente con el racismo que somete a los hombres no-blancos al
estrés y a la emasculación. (SEGATO, 2010, p. 5).
A autora percebe esta questão no sentido de que o Estado se propõe
devolver o que ele próprio retirou das mulheres. A partir disso, percebe-se que a
estratégia estatal, sem um profundo rompimento com a colonialidade do poder, do
saber, do ser e do gênero, ou seja, com o rompimento com a não-ética de guerra
que se estabeleceu na colonialidade, não obterá a reversão deste processo de
eliminação das mulheres.
Assim, nota-se adequada a utilização dos Estudos Decoloniais como
ferramenta de análise, no sentido de possibilitar a desnaturalização da colonialidade
no discurso jurídico no tange às mulheres e seus direitos, considerando que a
legislação pátria trata-se muitas vezes de cópia malfadada de outros ordenamentos
jurídicos, ou construídas dentro trama sutil que permeia a colonialidade do saber.
No capítulo seguinte, verificam-se algumas questões relacionadas à
construção das identidades femininas e suas representações a partir do discurso
colonial sobre as feminilidades, produzido pela ciência moderna, bem como sua
influência sobre as ciências jurídicas e seus efeitos. Como foi possível verificar
durante a exposição do referencial teórico, a colonialidade do saber influencia
diretamente a colonialidade do ser e do gênero, de modo que é fundamental
destacar o papel do Direito na manutenção da colonialidade do gênero no Brasil.
46
2. A CONSTRUÇÃO DA/S FEMINILIDADE/S: AS VISÕES DAS IDENTIDADES
FEMININAS E O DISCURSO JURÍDICO DA COLONIALIDADE
“No hay descolonización si no se desliga de
la introducción colonial de la dicotomía
jerárquica hombre-mujer, macho-hembra.”
(LUGONES, 2013, p. 01)
O início da marginalização da mulher na história é de difícil identificação, mas
alguns estudiosos apontam origens na escrita do texto bíblico, perpassando pela
Idade Média com o discurso dos teólogos, consolidando-se ideologicamente com a
noção de propriedade, ganhando cientificidade nos postulados de Sigmund Freud,
reforçado pela Igreja, a sociedade patriarcal e a epistemologia científica
eminentemente masculina, apoiada pelo determinismo biológico que afirma uma
suposta subalternidade feminina. (GOMES, 2012).
Tal marginalização foi difundida pelos colonizadores na modernidade e
perpetuou-se através da colonialidade do poder, saber, ser e do gênero. Assim, a
seguir se destaca algumas questões acerca da construção da Identidade Feminina e
por
conseqüência
das
representações
da/s
feminilidade/s,
posteriormente
discorrendo acerca das contribuições da ciência e da ciência jurídica para a
perpetuação da opressão às mulheres.
2.1 A QUESTÃO DA/S IDENTIDADE/S FEMININA/S
Silva, Woodward e Hall (2000) definem identidade e diferença como
produções culturais e sociais. Identidade e diferença são mutuamente determinadas
e interdependentes. ―A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é
estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades [...]‖.
(WOODWARD, 2000, p. 14).
Uma concepção superficial da identidade/diferença se limita a nomear
identidade como o que se é, e diferença o que não se é, por exemplo, nesse sentido
se uma pessoa é heterossexual, a sua identidade sexual é esta e, com esta
47
afirmação nega todas as demais, as demais serão entendidas como diferença. Essa
compreensão isoladamente atende a uma proposta liberal de discussão da
identidade/diferença, a qual se limita apenas a reconhecer estas duas categorias
sem questioná-las. Neste sentido, a diferença seria o oposto binário da identidade,
sua sombra, sua derivação. Perceber identidade/diferença como produções
linguísticas, sociais e culturais é reconhecer que estão intimamente atreladas às
relações de poder.17 (SILVA, 2000).
Silva (2000) explica que a linguagem por si constitui um sistema de
diferenciações e que identidade e diferença sendo produzidas pela linguagem,
carregam suas características de instabilidade e indeterminação. Só podem ser
compreendidas dentro dos sistemas de significação e simbólicos de uma cultura.
Assim, embora muitas vezes sejam vistas como fatos da natureza, ao contrário,
precisam ser nomeadas e instituídas.
Os grupos que detém o privilégio de classificar/categorizar/hierarquizar os
demais grupos da sociedade detém também o privilégio de atribuir os diferentes
valores a cada grupo classificado, determinando o acesso de cada grupo a bens
materiais e simbólicos da sociedade. ―A identidade está vinculada também a
condições sociais e materiais, se um grupo é marcado como inimigo ou como tabu
isso terá efeitos reais porque o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens
materiais.‖ (WOODWARD, 2000, p. 17).
Silva (2009) esclarece que a disputa pela identidade envolve uma disputa por
recursos simbólicos e materiais da sociedade, assim, afirmar a identidade para
enunciar
a
diferença
faz
com
que
diferentes
grupos
sociais
situados
assimetricamente garantam acesso a estes bens, com isso, refere que a
identidade/diferença não são inocentes, carregam consigo um caráter político. O
autor refere que onde há diferenciação existe poder e, a diferenciação é o processo
pelo qual identidade e diferença são produzidas.
Estabelecer uma norma a partir de determinada identidade, segundo Silva
(2009) é uma forma de hierarquização de identidades e diferenças. O autor destaca
que normalizar é atribuir à identidade eleita todas as características positivas,
enquanto as demais (diferença) passam a carregar avaliações negativas, assim a
17
Compreende-se ―relações de poder‖ nos termos apresentados pelas teorizações de Michel
Foucault (2006), caracterizadas por uma relação de ações sobre ações. O poder não se concentra
em uma fonte, mas circula em rede, na qual os indivíduos exercem, sofrem e resistem ao poder.
48
identidade normal é considerada como única e desejável, assumindo uma
invisibilidade de acordo com a proporção de sua força homogeneização.
Taylor (1994) afirma que a identidade é formada, em parte, por força da
existência ou inexistência de reconhecimento e que, muitas vezes, pelo
reconhecimento incorreto dos outros. Aduz que pode uma pessoa ou grupo de
pessoas ser de fato prejudicadas, alvos de distorções caso as pessoas que lhe são
próximas reflitam imagem de inferioridade e desprezo por eles mesmos. Assim, o
não reconhecimento ou o reconhecimento incorreto podem afetar negativamente,
restringindo a pessoa ou grupo. Acerca disso revela que:
Assim, algumas feministas afirmaram que, nas sociedades patriarcais, as
mulheres eram induzidas a adoptar uma opinião depreciativa delas próprias.
Interiorizavam uma imagem da sua inferioridade, de tal maneira que,
quando determinados obstáculos reais à sua prosperidade desapareciam,
elas chegavam a demonstrar uma incapacidade de aproveitarem as novas
oportunidades. E, além disso, estavam condenadas a sofrer pela sua
debilitada auto-estima. Também surgiram argumentos semelhantes em
relação aos negros: que a sociedade branca projectou durante gerações
uma imagem de inferioridade da raça negra, imagem essa que alguns dos
seus membros acabaram por adoptar. Nesta perspectiva a sua autodepreciação torna-se um dos instrumentos mais poderosos da sua própria
opressão. A primeira coisa que deveriam fazer era expiarem essa
identidade imposta e destrutiva. Recentemente, afirmou-se o mesmo sobre
os indígenas e os povos colonizados, em geral. Pensa-se que desde 1492
os europeus têm vindo a projectar desses povos uma imagem de seres um
tanto inferiores, ―incivilizados‖, e que, através da conquista e da força,
conseguiram impô-la aos povos colonizados. (TAYLOR, 1994, p. 46, grifo
do autor).
Nesse sentido, a partir do reconhecimento incorreto, da forma depreciativa a
que foram submetidas as mulheres e, em especial as mulheres latino-americanas,
estas imagens de inferioridade foram se incorporando em seus cotidianos, de
maneira a contribuir com a opressão sobre elas, auxiliando na construção das suas
identidades.
O reconhecimento incorreto das identidades implica tanto na falta de respeito
devido à pessoa ou grupo de pessoas, como pode marcar suas vítimas e subjugálas através do sentimento de ódio que incapacita a elas mesmas, sendo que o
respeito não é só um ato de gentileza, mas uma necessidade humana vital.
(TAYLOR, 1994).
49
Hall (2011) discorre sobre três concepções de identidade: o sujeito do
Iluminismo (é possível identificar o sujeito moderno18 com o sujeito do Iluminismo a
partir das considerações de Alain Touraine), o sujeito sociológico e o sujeito pósmoderno19. O autor explica que a identidade do sujeito do Iluminismo consistia em
um núcleo essencial que surgia com o nascimento, se desenvolvia e permanecia
imutável durante toda a sua vida, sendo que esta concepção de sujeito e identidade
era individualista20 e masculina, ―já que o sujeito do Iluminismo é descrito como
masculino‖. (HALL, 2011, p. 11).
O sujeito sociológico, de acordo com Hall, surge com a ideia de que o núcleo
interior do sujeito se formava na relação com outras pessoas a partir da mediação
da cultura em que vivia, ou seja, na interação entre sujeito e sociedade. Estas
identidades eram estáveis dentro de suas culturas, alinhadas às estruturas sociais e
os valores da sociedade se tornavam parte da identidade do sujeito.
Por fim, Hall (2011), refere que o sujeito pós-moderno não se compõe de uma
única identidade, mas de várias, as identidades se tornaram provisórias, variáveis,
em constante transformação, pois a identidade passa a ser definida ―historicamente,
e não biologicamente‖. (HALL, 2011, p.13). O autor esclarece que com a
multiplicação dos sistemas de significação e representação cultural, multiplicam-se
18
19
20
Para Bauman (2001, p. 15, grifo do autor): "A modernidade começa quando o espaço e o tempo
são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias
distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram
ao longo dos séculos pré-modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da
experiência vivida, presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca.
Na modernidade, o tempo, tem história, tem história por causa de sua 'capacidade de carga',
perpetuamente em expansão - o alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo
permitem 'passar', 'atravessar', 'cobrir' - ou conquistar." Touraine (1994, p. 20) menciona que ―A
ideologia ocidental da modernidade, que podemos chamar de modernismo, substituiu a ideia de
Sujeito e de Deus à qual ele se prendia, da mesma forma que as meditações sobre a alma foram
substituídas pela dissecação dos cadáveres ou do estudo das sinapses do cérebro. Nem a
sociedade, nem a história, nem a vida individual, dizem os modernistas, estão submetidas à
vontade de um ser supremo a qual devem aceitar ou sobre a qual pode se agir pela magia. O
indivíduo está submetido às leis naturais.‖ O autor explica que o projeto da modernidade se
agrega ao Iluminismo, ambos baseados na razão humana, no humanismo, na racionalidade, e
que a partir do conhecimento o sujeito alcançaria o esclarecimento através da ciência para
concretizar uma sociedade livre, fraterna e igual, regida pelos valores do bem e do belo.
A pós-modernidade, assim como a modernidade, é de difícil conceituação. Bauman (1999, p. 26)
comenta que a "pós-modernidade, [...], vive num estado de permanente pressão para se despojar
de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar." De acordo
com o autor, a pós-modernidade ou modernidade líquida, trata-se de um período, atual, marcado
pela flexibilização das instituições e modos de vida anteriormente estabelecidos no que denomina
de modernidade sólida.
Considerada individualista porque não admitia qualquer modificação na interação com outros
sujeitos ou experiências.
50
também as identidades possíveis com as quais o sujeito pode se identificar, mesmo
que seja temporariamente. (Hall, 2011).
A partir das teorizações de Hall (2011), o qual rechaça a possibilidade da
manutenção
de
identidades
justificadas
pelas
diferenças
biológicas
na
contemporaneidade, resta claro que a hierarquização das identidades femininas21 a
partir de suas características anatômicas e biológicas, não se sustenta mais como
suporte para a subalternização política e social das mulheres, reforçada através dos
séculos, por diversas instâncias, inclusive pela ciência jurídica.
Como exemplo de identidade ―normal‖ ou ―normalizadora‖, menciona-se a
concepção de Identidade do sujeito do Iluminismo, explicando que esta Identidade
se traduz no próprio modelo de ser e existir dos colonizadores, é a identidade da
Modernidade/Colonialidade. Pode-se dizer que se vive em um tempo de várias
identidades e de várias diferenças, em que fixar identidades só tem sentido como
estratégia da colonialidade/capitalista/liberal de concentração de recursos materiais
e simbólicos para determinados grupos ou classes.
O questionamento, bem como a crítica da identidade e diferença, implica em
questionamento e crítica dos sistemas de representação que lhe apóiam, eis que é
através da representação que identidade e diferença se relacionam com o poder,
pois os grupos que detém o poder de representar os demais passam a definir e
determinar as identidades socialmente aceitas e as que se situarão à margem
destas, hierarquizadas. (SILVA, 2000).
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos
por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como
sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que
damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive
sugerir que estes sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e
aquilo no qual podemos nos tornar. (WOODWART, 2000, p. 17).
Silva (2000) explica que a representação é um sistema linguístico e cultural,
ou seja, uma forma de atribuir sentido, não se constituindo em tradução transparente
do ―real‖, mas sim um sistema arbitrário, permeado pela indeterminação e ligado às
21
Dentro da perspectiva moderna se estabelece um único referencial identitário de mulher, ou seja,
da mulher branca, ocidental, heterossexual, uma identidade universalizante, de acordo com o
contexto e valores em que foi forjado. Refere-se no texto ―identidades femininas‖ a partir da
compreensão da necessidade de romper com este pensamento, tendo em vista que há muitas
formas de vivenciar a feminilidade. Com base nestas descontinuidades os Estudos feministas se
desdobraram em várias vertentes como o feminismo negro, feminismo chicano, indígena, lésbicos,
etc. (LERMA, 2010).
51
relações de poder, aspecto característico dos sistemas de linguagem. Os sujeitos
que partilham a mesma cultura representam, dessa forma, as identidades de
maneira semelhante, pois
Pertencer a uma cultura é pertencer mais ou menos ao mesmo universo
conceptual e linguístico, saber como os conceitos e idéias são traduzidos
para diferentes línguas/linguagens, e como a linguagem pode ser
interpretada para se referir ou servir de referência ao mundo. Partilhar estas
coisas é ver o mundo a partir deste mesmo mapa conceptual e entendê-lo
através dos mesmos sistemas lingüísticos. (HALL, 1997, p. 22).
A partir disso, pode-se dizer que a colonialidade proporcionou a manutenção
das representações sobre a identidade masculina e feminina, seus papéis sociais e
sexuais, reproduzindo modelos e discursos acerca de como devem viver, se
comportar e se relacionar os sujeitos colonizados. Sendo a identidade masculina
tomada como central, restou a ―identidade feminina‖22 relegada a segundo plano,
algo como uma sub-identidade, ou identidade inferiorizada. Panorama existente no
contexto do colonizador que foi imposto e se perpetuou no contexto do colonizado.
Taylor (1994) ressalta que o que a idade moderna tem de novo, em relação à
identidade, não é a necessidade de reconhecimento, mas sim as condições que
podem levar a um fracasso na tentativa de reconhecimento. Resgata que no período
pré-moderno não se mencionava nem identidade e nem reconhecimento, porque,
embora as pessoas tivessem suas identidades, e dependessem de reconhecimento,
as identidades não eram problemáticas o suficiente para serem discutidas. Assim,
refere que:
O reconhecimento igualitário não é apenas a situação adequada para uma
sociedade democrática saudável. A sua recusa pode prejudicar as pessoas
visadas, segundo uma perspectiva moderna generalizada [...]. A projecção
de uma imagem do outro como ser inferior e desprezível pode, realmente,
ter um efeito de distorção e de opressão, ao ponto de essa imagem ser
interiorizada. (TAYLOR, 1994, p. 57).
É nesse sentido, considerando que a recusa de um reconhecimento igualitário
das mulheres, prejudica sobremaneira suas representações e oportuniza que sofram
com a desvalorização de suas próprias vidas e integridade física, como no caso do
feminicídio, que a seguir verificam-se algumas questões que possibilitaram a
constituição desta ―identidade feminina‖ hegemônica considerando as matrizes do
22
Refere-se ―identidade feminina‖ pensando no modelo de mulher ―universal‖ produzida pela
modernidade/colonialidade.
52
pensamento ocidental bem como a colaboração das ciências naturais e humanas
para a hierarquização das mulheres.
2.1.1 Identidades produzidas pelas matrizes do pensamento Ocidental
Conforme mencionado no início deste capítulo, precisar a origem da
marginalização das mulheres é tarefa de difícil êxito, todavia, é possível identificar
alguns fatores influenciaram para que a sua hierarquização em relação aos homens
se estabelecesse de alguma forma. Chassot (2004) aponta como fatores que
contribuíram para a desvalorização da figura feminina as matrizes do pensamento
ocidental, ou seja, as vertentes de pensamento grega, judaica e cristã.
Deste modo a ancestralidade grega remonta à constituição de significados a
partir de mitos que referem a criação da mulher, bem como das teorias aristotélicas
acerca do papel da mulher na reprodução. Tanto uma ideia quanto outra coloca a
mulher em posição de subalternidade em relação ao homem e, destaque-se, as
concepções aristotélicas foram aceitas de forma dominante até o final da Idade
Média.
A mitologia grega apresenta a figura da mulher como um castigo aos homens
(Pandora)23, sendo percebida como um ser que trazia consigo os males que
destruiriam a felicidade masculina. A representação negativa marcou o imaginário
dos povos cuja cultura grega tocou fazendo parte da organização social grega, de
forma que as mulheres naquela sociedade estavam destinadas apenas ao espaço
privado e à procriação. (CHASSOT, 2004).
Estas concepções marcaram o legado de Aristóteles, o qual estabeleceu a
existência de um único gênero com dois sexos e explicou o papel da mulher na
gestação, retratando-a como um ser marcado pela inferioridade. Assim, de acordo
com a narrativa do autor, Aristóteles explicava que a participação da mulher no
processo de fecundação se limitava a mero recipiente que recebia a semente
23
―No princípio os mortais (os humanos) conviviam com os imortais (os deuses nascidos da Terra e
do Céu), divididos em linhagens paralelas e algumas vezes se estabeleciam conflitos entre os
deuses e os humanos. Esses diferentes gêneros de seres – mortais e imortais – formavam uma
sociedade homogênea em que reinava felicidade. Um dia, porém, ocorre um grave conflito.
Prometeu, filho de Titão, zombou de Zeus quando da partilha de um boi destinado a um banquete.
As disputas sucedem-se. Prometeu rouba o fogo do Olimpo e o presenteia aos humanos. Depois
de sucessivas lutas Zeus resolve dar um castigo àqueles que estavam felizes com o presente de
Prometeu: dá-lhes a mulher. Esta se chama Pandora e traz consigo uma caixa fechada, de onde
deixará escapar todos os males que afligiram os homens.‖ (CHASSOT, 2004, p. 16-17).
53
masculina dotada de todas as características de um novo ser e, deste modo,
qualquer imperfeição do novo ser seria de responsabilidade dela. Destacava ainda
que, caso nascesse uma menina, tal fato se devia à incapacidade do homem em
produzir uma semente com um ser perfeito (macho), considerada a própria
menina/mulher24 como um defeito. (CHASSOT, 2004).
No mesmo sentido, Foucault (1985, p. 162) refere que ―Aristóteles atribuía ao
homem a possibilidade de desenvolver, até a perfeição, virtudes que, na mulher,
permaneciam inferiores e justificavam a sua subordinação.‖ Desta forma, alguns
aspectos da filosofia grega permearam a construção de significados sobre as
mulheres e, ainda que as ideias aristotélicas não se constituíssem como
unanimidade, estas se perpetuaram através dos séculos25.
Acerca das matrizes judaico-cristãs, Gomes (2012) refere o mito bíblico de
Eva, a mulher retirada da costela de Adão e criada por Deus para ser sua
companheira, é um dos marcos para a inferiorização das mulheres, pois o Gênesis
dita modelos de homem e mulher que a colocam na posição de submissão ao
homem26. O cristianismo levou adiante a subalternização, mantendo tradições
reforçadas pelos teólogos da Idade Média, os quais indicavam a prática do sexo
apenas com fins reprodutivos e construíam o estereótipo de uma mulher idealizada,
a qual deveria ser dotada de características como docilidade, submissão,
honestidade, devotamento e talento inato para a maternidade, o que se traduz na
figura da própria imagem da virgem Maria.
Com isso, já é possível traçar uma linha de raciocínio que liga estas matrizes
de pensamento e o contexto atual das mulheres na América Latina e Brasil,
passando por todo o histórico da colonização e tendo em conta a colonialidade, pois
uma vez que a fé professada pelos colonizadores era a cristã, e que a mesma foi
amplamente imposta e difundida entre os colonizados como missão civilizatória,
24
25
26
―Reduzir o dimorfismo sexual a desvios mensuráveis é uma operação vantajosa para a lógica do
sistema aristotélico e do ponto de vista macroscópico mensurável nas comparações das
aparências entre machos e fêmeas. Dessa forma nas mulheres são imperfeições: a ausência de
pênis, os músculos peitorais flácidos e porosos onde há leite, o sangue menstrual, menos voz, ser
frágil, são alguns dos exemplos para mostrar um corpo naturalmente mutilado.‖ (CHASSOT, 2004,
p. 17).
Aponta-se ressalvas a estas concepções, posto que para Platão a igualdade da educação entre os
homens e algumas mulheres era concebida na pólis, governada pelo rei filósofo, idealizada em ―A
República‖. (PLATÃO, 2000; OLIVEIRA, 2004).
De acordo com Chassot (2004) ainda no século XX as mulheres judaicas eram obrigadas a cortar
os cabelos após o casamento e cobrir a cabeça com véus ao se deslocar às sinagogas, sendo
este corte um sinal de pertencimento ao marido.
54
estes preconceitos e estereótipos foram aqui inoculados tal qual um vírus que afeta
não só os colonizados, mas também as colonizadas, que passam a acreditar que
seu lugar no mundo, de fato, é aquele que lhes dizem que devem ocupar.
Outros fatores que influenciam na subalternização das mulheres, segundo
Gomes (2012), foram o estabelecimento da propriedade privada, a divisão sexual do
trabalho, a sua exclusão das concepções de indivíduo nos séculos XIX e XX e a
dicotomia entre espaço público (masculino) e privado (feminino) construída a partir
das desigualdades dos sexos apontadas pela ciência a partir de caracteres
biológicos, as quais serão analisadas a seguir.
2.1.2 Identidades produzidas pelo entrecruzamento entre ciência e a feminilidade
A partir do séc. XVI o conhecimento ocidental europeu começa a passar por
transformações frente ao estabelecimento das ciências naturais e posteriormente
das ciências sociais no séc. XIX. Por ciências naturais compreende-se o campo das
ciências voltado a determinar as leis que regem a natureza, neste campo
enumerem-se áreas como biologia, química, física, astronomia, anatomia, medicina,
psiquiatria e a estas, outras se incorporaram depois, conhecidas também como
ciências duras, por se regerem através de regras, em tese, irrefutáveis e universais.
Quando emergiu a ciência moderna, inaugurada pelas ciências naturais, esta se
pautou não só pela dicotomia natureza/humano, mas também pela ―observação
descomprometida e livre, sistemática e tanto quanto possível rigorosa 27 dos
fenômenos naturais.‖ (SANTOS, 2008, p. 25).
A partir daí a verdade ditada na Idade Média pelo poder da Igreja e
professada pelos sacerdotes passa a ceder espaço à racionalidade científica
iniciada pelas teorizações de estudiosos como Galileu Galilei, Johannes Kepler,
Copérnico, bem como de filósofos como René Descartes e Francis Bacon, dentre
outros. (SANTOS, 2002).
27
Cabe refletir que, ainda que esta observação se oportunizasse ―tanto quanto possível rigorosa‖, e
por mais empenho que os cientistas da época empreendessem em se manter isentos, as suas
observações, indiscutivelmente estavam marcadas pela cultura que os constituía, de forma que,
imersos em uma cultura patriarcal, seus achados de pesquisa corresponderiam às lentes teóricas
patriarcais de que dispunham na época, ressalte-se a escassez ou ausência de cientistas
mulheres neste contexto. Foi exatamente o que ocorreu no que tange às diferenciações entre
homens e mulheres.
55
Para a construção destes novos ―conhecimentos‖ ou ―verdades‖, os cientistas
validavam o que era passível de observação, experimentação, medição e
quantificação a partir de métodos específicos, fragmentando as áreas do
conhecimento, pois ―conhecer significa dividir e classificar para depois estabelecer
as relações sistemáticas entre o que se separou.‖ (SANTOS, 2002, p. 63).
O cientista deveria observar seu objeto de estudo mantendo a neutralidade a
fim de evitar que sua subjetividade interferisse nos resultados das pesquisas e,
através da razão obteria o conhecimento acerca deste objeto. Com o advento das
ciências sociais/humanas, o paradigma não se modificou, mas foi transladado para
este novo campo de estudo, de forma que também os fenômenos sociais passaram
a ser descritos, quantificados e medidos, permanecendo a dicotomia sujeito/objeto
nas relações de investigação. (SANTOS, 2002; VEIGA-NETO, 2002).
Todavia, Veiga-Neto (2002) refere que foi sob o predomínio do olhar do
pesquisador, o qual, por sua vez, de fato, não conseguiria dissociar-se plenamente
do objeto estudado, considerando o estudo do humano, que as ―novas verdades‖
foram produzidas, bem como foram produzidas representações sobre estas
verdades. Assim, a ciência, que tem fundamentado o pensamento ocidental
dominante nos últimos séculos, se mostra arbitrária, até mesmo no que tange às
ciências naturais, o mesmo não seria diferente em relação às humanidades, sendo a
neutralidade do pesquisador uma utopia.
Santos (2002) indica alguns fatos que contribuíram, posteriormente, para o
enfraquecimento da epistemologia moderna tal qual concebida em momento inicial,
comprovando tal arbitrariedade, como as teorizações de Einstein sobre a
relatividade e simultaneidade dos acontecimentos presentes e distantes, bem como
do princípio da incerteza, elaborado por Heisenberg.
Albert Einstein estabelece diferenciações entre acontecimentos em um
mesmo lugar e acontecimentos simultâneos distantes, verificando que os
acontecimentos simultâneos podem ser definidos pelo arbítrio do cientista, mas não
podem ser verificados diante da distância espacial, colocando em xeque as ideias de
tempo e espaço absolutos de Isaac Newton e a universalidade da simultaneidade.
(SANTOS, 2002).
De acordo com o que estabelece a epistemologia do conhecimento moderno,
o que não pode ser verificado, não é ciência, tal constatação demonstra a fragilidade
da narrativa científica. No mesmo sentido, o princípio da incerteza de Heinsenberg
56
demonstra a interferência do sujeito no objeto, pois o cientista postulou que em
medições simultâneas de partículas o que se faz para reduzir o erro de uma, o
cientista aumentará o erro da outra, constatando assim a complexidade da relação
sujeito/objeto e a relativização desta dicotomia. (SANTOS, 2002).
Arendt (2007) refere que o progresso das ciências naturais proporcionou um
aumento comprovado e rápido da força e conhecimentos humanos, porém, afirma
que este mesmo fenômeno comprovadamente se refletiu em aumento do desespero
humano e niilismo que não poupou nem os diversos setores da população e nem os
mesmo os próprios cientistas. Segundo ela, no lugar de qualidades objetivas que se
pretendia encontrar, só foram encontrados instrumentos e ao invés da natureza do
universo, o ser humano encontrou apenas ele mesmo.
Nesse sentido, a ciência moderna, foi criada dentro da cultura européia
ocidental carregando consigo seus valores e representações e, posteriormente, a
própria ciência passou a reforçar esta cultura ao produzir pressupostos de verdade
que colonizaram o resto do mundo carregando consigo suas hierarquizações e
dicotomias. O conhecimento científico é socialmente construído e a sua objetividade
não implica em neutralidade. (SANTOS, 2008).
A relação desta ciência moderna28 com a constituição de identidades pode ser
ilustrada pelas primeiras diferenciações entre homens e mulheres, fundamentadas
exclusivamente no caráter biológico, por suas diferenças anatômicas, levado adiante
pelas ciências naturais e significado pela sistematização de saberes da medicina.
Assim,
[...] até o século XVIII, o pensamento filosófico e médico da Europa
acreditava na existência de um só sexo, o masculino. A mulher era o seu
representante inferior, sendo descrita como um homem invertido. Havia uma
relação da continuidade e hierarquização determinada pelo grau de
perfeição metafísica. O homem era portador do calor vital que o fazia evoluir
para a forma superior de macho com a exteriorização de seus órgãos
genitais e, na mulher, a ausência desse calor impossibilitava tal
exteriorização, determinando a posição de inferioridade. Haveria, então, um
só corpo, uma só carne, na qual se aplicavam distintas marcas sociais ou
inscrições culturais, conforme seu nível de perfeição. (COSTA apud
FERNANDES, 2009, p. 1053).
28
Compreende-se que a ciência moderna emerge dentro da cultura ocidental, já marcada pela
subalternização feminina naquele contexto. A partir de então, a ciência adquire argumento de
autoridade para chancelar ―objetivamente‖ o que até então estava representado ―subjetivamente‖.
A cultura passou a produzir a ciência e a ciência produzir a cultura em um movimento cíclico.
57
Desse modo, surgem as primeiras identidades produzidas pela ciência, pois
os estudos da ciência médica apresentam o masculino como único gênero
(isomorfismo) com dois sexos diferentes. O corpo masculino era considerado
perfeito e dominante, enquanto a mulher carregava o estigma da imperfeição, na
falta de condições essenciais biológico-anatômicas para constituir-se como sujeito
autônomo, a ela era concedido o status de ser incompleto e incapaz. (LAQUEUR,
1994).
No final de séc. XVIII essa concepção muda, deixa de existir a noção de
mesmo sexo hierarquizado e começa a emergir a noção de que havia dois sexos
diferentes (dimorfismo), com o estabelecimento de um modelo científico para referirse aos sexos. (LAQUEUR, 1994).
No entanto, o feminino passou da condição de ―mesmo sexo‖ hierarquizado
em posição inferior ao masculino, para a condição de gênero e sexo radicalmente
diferenciado, mas ainda hierarquizado em posição inferior ao masculino. ―Os
discursos científicos sobre as diferenças biológicas entre homens e mulheres,
construídos nos séculos XVIII e XIX, foram antecedidos pela rediscussão do novo
estatuto social da mulher e do homem.‖ (BENTO, 2010, p. 9).
Neste novo movimento a medicina, a psiquiatria e a biologia esquadrinharam
os corpos femininos justificando a partir da anatomia o lugar político e social que
deveriam ocupar. Dessa forma, Fernandes discorre acerca desta categorização
apontando que
Nesse cenário, o sistema reprodutivo feminino constituía a base da função
social da mulher e de suas características comportamentais, produzindo um
ser mais frágil do ponto de vista físico, intelectual e emocional. Esse
discurso impingiu à mulher a representação que a desqualifica enquanto
pessoa e a subordina a uma matriz biológica e procriadora. (FERNANDES,
2009, p. 1055).
Percebe-se, portanto, que a ciência contribuiu para produzir as identidades
femininas e masculinas a partir de seus caracteres biológicos, justificando a suposta
inferioridade feminina com fundamento em sua compleição física, seu sistema
reprodutor, sua ―função‖ reprodutiva, e sua variação hormonal, a qual, segundo as
observações científicas, influenciaria na sua capacidade de julgamento, tornando-a
suscetível aos instintos e emoções.
A identidade feminina era caracterizada pela fragilidade, passividade,
docilidade e emoção, a mulher tinha como destino irrefutável a maternidade e
58
cuidado com os filhos, sendo a recusa ou impossibilidade de assumir este papel,
considerada como algo desviante. De outra forma, a identidade masculina era
caracterizada pela agressividade, astúcia, coragem, inteligência e razão, sendo
desviante
também,
todo
homem
que
não
se
enquadrasse
neste
perfil.
(FERNANDES, 2009).
As ciências sociais, as quais emergiram após as ciências da natureza,
apropriaram-se dos conceitos produzidos pela biologia, anatomia e medicina, para
teorizar sobre a sociedade produzindo ―verdades‖ sobre as posições sociais e
papéis que homens e mulheres deveriam assumir29. No entanto:
O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode
ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características
exteriores e objectiváveis, uma vez que o mesmo acto externo pode
corresponder a sentidos de acção muito diferentes. A ciência social será
sempre uma ciência subjectiva e não objectiva como as ciências naturais;
tem de compreender fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do
sentido que os agentes conferem às suas acções, para o que é necessário
utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos
diferentes dos correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez
de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjectivo,
descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objectivo,
explicativo e nomotético. (SANTOS, 2008, p. 38-39).
Com isso, a feminilidade estereotipada na fragilidade, docilidade e
incapacidade, abraçadas pela racionalidade do paradigma da modernidade
ocidental, veio a estremecer no início do século XX com o crescimento dos
movimentos em favor dos Direitos Humanos, surgimento do movimento feminista e
dos estudos feministas, bem como o ingresso das mulheres no mercado de trabalho,
edificando lentamente a sua emancipação. (GOMES, 2012).
Paradoxalmente, a mesma ciência que serviu para reforçar a misoginia
existente no passado abre as portas da libertação feminina ao dissociar o
sexo da procriação e possibilitar às mulheres o controle de seus corpos por
meio da contracepção e, em um segundo momento, ao romper os limites
biológicos-temporais da maternidade com a popularização da procriação
assistida. Superadas as principais ―amarras‖ fisiológicas e, por conseguinte,
as psicológicas, é possível falar em uma nova mulher, agente de profundas
mudanças sociais [...]. Houve lenta e constante tomada de consciência e de
posição por parte das mulheres, que aos poucos conquistaram direitos
29
Santos (2008) destaca que inicialmente dois tipos de conhecimentos eram entendidos como não
científicos: o senso comum e os estudos humanísticos. Por volta do século XVIII, estudos como
história, filologia, literatura, estudos jurídicos, filosóficos e teológicos são percebidos como não
científicos, assim havia um forte policiamento sobre estes e, somente no século XIX é que a
racionalidade se estende a eles, o que justifica de certo modo que as ideias produzidas pelas
ciências naturais tenham sido apenas trasladadas para as humanidades de modo a consolidar o
novo campo científico, perpetuando as crenças estabelecidas.
59
rudimentares como o de votar e ser votada, de estudar e trabalhar, de
educar os filhos e participar das decisões familiares e, não obstante a todos
os progressos alcançados, restam muitas ―amarras‖ jurídicas e sociais a
superar. (GOMES, 2012, p. 74-75, grifo da autora).
Conforme refere Gomes (2012), ainda restam várias amarras jurídicas e
sociais a ser ultrapassadas30, pois a presença da colonialidade no cotidiano das
mulheres latinas e brasileiras é perceptível de forma contundente se verificados os
diversos tipos de violência que sofrem ainda agora, no século XXI.
Destaque-se que neste trabalho ainda está a ser discutida a lógica binária
homem/mulher que criou uma série de estereótipos e assimetrias entre os gêneros,
algo que de toda a forma ainda não foi superado, percebe-se que algo ainda muito
primário precisa ser discutido para que se avance sobre estas discussões.
A marca da colonialidade que carrega este binarismo influencia diretamente
na opressão vivenciada pelas mulheres daqui, ainda se mantém presente no
cotidiano, sendo necessário refletir ainda sobre este ponto para depois ir adiante,
tendo em vista que estas identidades estabelecidas ainda na gênese das ciências
naturais e humanas estão presentes nas representações sobre ser homem ou
mulher na sociedade atual.
A ciência moderna contribuiu para a compreensão das identidades de gênero
como algo dado a partir do corpo, da determinação do sexo biológico, no entanto, a
construção destas identidades trata-se de um processo cultural e histórico
determinado por múltiplos fatores.
Joan Scott (1998) refere-se ao conceito de gênero como um discurso sobre a
diferença entre os sexos que relaciona ideias, instituições e práticas cotidianas que
constituem as relações e a organização social, não refletindo a realidade biológica,
mas oferecendo suporte aos sentidos que se atribui a eles. Afirma que as diferenças
entre sexos são estruturas móveis que devem ser rediscutidas em seus contextos
históricos.
As identidades de gênero se constroem na socialização do sujeito a partir do
momento em que é rotulado como menino ou menina ao nascer, ou até mesmo
30
As conquistas do feminismo caminharam lado a lado com as conquistas alcançadas em Direitos
Humanos, pois os progressos obtidos nesta seara confundem-se nos anseios da busca de justiça
e igualdade social entre seres humanos almejado pelas mulheres. Nesse sentido, para superar as
amarras ainda existentes é preciso compreender o estabelecimento das identidades de gênero em
seu aspecto cultural, a fim de desconstruir antigos preconceitos e buscar meios de superar as
desigualdades ainda existentes.
60
antes através de exames médicos que detectam o sexo biológico da criança. Com a
atribuição do nome da criança se esperará dela uma série de comportamentos
socialmente atribuídos ao sexo masculino ou feminino. (GROSSI, 1996).
Durante seu desenvolvimento as crianças passam a incorporar estas
identidades e formar suas representações sobre o que é ser homem ou mulher
dentro da organização social, reproduzindo estas concepções e discursos, o que é
considerado feminino ou masculino, brincadeiras, postura, gestos e comportamentos
que refletirão na vida adulta e em suas relações sociais.
No entanto, tratando-se a identidade de algo construído culturalmente e
socialmente, esta deve e pode ser deslocada e transformada. É neste sentido que a
posição
de
inferioridade
historicamente
atribuída
às
mulheres
deve
ser
desconstruída e rediscutida, possibilitando a igualdade de direitos efetiva entre
homens e mulheres31.
Diante deste contexto é mister avançar sobre teorizações que rompam com
estas amarras, discutindo a feminilidade a partir do olhar feminino e suas nuances,
pois há diferentes compreensões acerca da feminilidade, bem como há variadas
vertentes do feminismo.
2.1.3 Quando mulheres passam a teorizar sobre mulheres: o desafio de
problematizar assimetrias seculares
Em que pese as colocações de Gomes (2012), anteriormente mencionadas,
no sentido de trazer à tona que, a mesma ciência que oportunizou a misoginia
também viabilizou descobertas e estudos que se reverteram em benefício das
mulheres, tal ainda não resultou em transformação da lógica androcêntrica32
perpetuada por vezes explicitamente, por vezes velada. Percebe-se que de toda a
forma, a colonialidade está presente também nestes processos, uma vez que o
31
32
―Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos
e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o
desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado
aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com as relações de
poder. A identidade e a diferença, nunca, são inocentes‖. (SILVA, 2000, p.81).
―Uma das principais características da sociedade patriarcal pode ser circunscrita na definição do
termo androcentrismo, postura segundo a qual, todos os estudos, análises, investigações,
narrações e propostas são enfocadas a partir de uma perspectiva unicamente masculina, e
tomadas como válidas para a generalidade dos seres humanos, tanto homens quanto mulheres.‖
(OLIVEIRA, 2004, p. 43).
61
capitalismo se apropriou de muitas destas conquistas tornando-as possibilidades de
mercado.
Fazendo uso dos exemplos citados pela autora se pode problematizar acerca
dos diversos tipos de contraceptivos produzidos e comercializados pela indústria
farmacêutica, bem como o alto custo dos tratamentos para reprodução assistida,
além de inúmeros outros nichos de mercado. Pode-se referir ainda a própria
exploração das mulheres no mercado de trabalho tomando-se por base o fato de
que em maioria recebem salários consideravelmente inferiores aos oferecidos aos
homens.33
Os movimentos de resistência às diferentes formas de opressão impingidas
às feminilidades, isolados ou coletivos, oferecem uma trajetória histórica de lutas no
espaço privado e público, lutas sociais que antecedem o ingresso da discussão
sobre o tema na academia e a oportunidade de produzir conhecimento científico que
pudesse almejar romper com o patriarcado. Este primeiro momento do feminismo foi
marcado pela reivindicação por igualdade de direitos civis e políticos, bem como o
acesso à educação. Caracteriza-se pelo empenho do movimento sufragista
originado em países como Inglaterra, França, Estados Unidos e Espanha, bem como
pela denúncia da opressão patriarcal sobre as mulheres. (NARVAZ; KOLLER, 2006).
Entre as décadas de 1960 e 1970 emergiu a segunda geração34 do feminismo
nos Estados Unidos e França, porém com propósitos diferenciados, pois as norteamericanas denunciavam a opressão patriarcal e desejavam igualdade (feminismo
de igualdade), ainda buscando o que propunha a primeira geração do feminismo.
Enquanto isso, as francesas requeriam a valorização das diferenças entre homens e
mulheres (feminismo da diferença) considerando a necessidade de estabelecer a
33
34
Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, divulgado em 2009, aponta que
na América Latina, mulheres, negros/as e indígenas, recebem menos do que os homens brancos
em dezoito países da região. As disparidades foram avaliadas em relação a pessoas com mesmas
características demográficas e de emprego. No Brasil a diferença chega a 30%, um dos níveis
mais altos entre os países pesquisados, sendo a Bolívia o país que apresenta menor disparidade.
Foi constatado que as mulheres latino-americanas ganham menos, ainda que tenham alto nível de
instrução, em todas as faixas etárias tipos de emprego ou de empresa, sendo menor a disparidade
no meio rural e entre os/as jovens universitários/as. (BRASIL, 2009; ATAL, ÑOPO, WINDER,
2009).
Narvaz e Koller (2006) referem o termo ―gerações‖ ou ondas para se referir ao feminismo, mas
talvez seja mais adequado compreendê-las como ―dimensões feministas‖, tal qual propõe Bobbio
(1992) no que tange às dimensões dos Direitos Humanos, pois o termo ―geração‖ nos remete à
ideia de organização cronológica e hierárquica, porém, as reivindicações de cada uma das fases
coexistem desde a sua organização até a atualidade.
62
ideia de equidade, paridade e equivalência no debate sobre igualdade e diferença
entre homens e mulheres. (NARVAZ; KOLLER, 2006).
A terceira geração do feminismo se articula na década de 1980 a partir das
francesas, com a crítica pós-moderna da ciência ocidental e do pós-estruturalismo
francês, apontando para o paradigma da incerteza no campo do conhecimento.
Naquele momento as feministas passaram a analisar questões como diferenças
alteridade, diversidade e produção discursiva de subjetividades. A partir de então
surgiram posicionamentos que começaram a distinguir os Estudos Feministas
(estudo das mulheres pelas mulheres) dos Estudos de Gênero (que envolvem a
compreensão do gênero como categoria relacional). Questões que anteriormente
circulavam no campo da militância política, passam a se relacionar com a teoria
científica, desse modo muitas universidades35 passaram a contar com centros de
estudos feministas e de gênero. (NARVAZ; KOLLER, 2006).
Com o acesso das mulheres à academia foi possibilitada uma série de
rupturas epistemológicas do paradigma de ciência dominante, porém poder pensar e
desconstruir a estrutura patriarcal consolidada por tanto tempo e enraizada de forma
tão profunda na sociedade e, até mesmo no que se refere às próprias mulheres,
constituídas dentro de uma cultura onde circulam representações negativas ou
inferiorizantes sobre as feminilidades ainda é um processo em andamento.36
Contudo, em que pese o esforço no sentido de questionar as assimetrias
seculares estabelecidas entre homens e mulheres, ainda assim, este movimento
sofre com a lógica perversa do capitalismo que ser renova e se adapta às críticas
feministas, encontrando novas formas de opressão que lançam as mulheres à
precarização do trabalho e à remuneração deficitária.
Nesse sentido Fraser (2009) denunciou uma afinidade da segunda onda do
feminismo com o neoliberalismo do pós-guerra, em suas reformulações o
capitalismo estatal organizado utilizou a crítica feminista à injustiça de gênero no
campo econômico, cultural e político, para se reestruturar. Refere que, ―por mais
inquietante que possa parecer, [...] a segunda onda do feminismo tem
35
36
As autoras relatam que, inclusive no Brasil, as universidades e explicam que as três gerações do
feminismo citadas não podem ser compreendidas como processo linear nem nos seus aspectos
políticos e nem nos teórico-metodológicos, pois há diferentes fases do feminismo que coexistem
na contemporaneidade. (NARVAZ; KOLLER, 2006).
Destaca-se, no entanto, que o resgate acerca do feminismo acima descrito, retrata um ―feminismo
colonizador‖, pois não menciona os movimentos de resistência das mulheres colonizadas,
existentes desde os primeiros passos do colonizador na América Latina.
63
involuntariamente
fornecido
um
ingrediente-chave
do
novo
espírito
do
neoliberalismo.‖ (FRASER, 2009, p.25).
Explica, por exemplo, que a cultura política androcêntrica do capitalismo
organizado pelo Estado que delineava um ideal de trabalhador, responsável pelo
sustento da família, cujo rendimento era o principal, contando com a figura do
―salário família‖ de modo que qualquer rendimento obtido pela mulher/esposa seria
suplementar, colocando-a na condição de dependente do trabalho do marido.
(FRASER, 2009).
Com a reestruturação do capitalismo em capitalismo desorganizado,
desenhada pelo neoliberalismo, essa figura do chefe de família, responsável pelo
sustento da família e de uma esposa que não trabalha é substituída pela lógica de
um lar com dois assalariados no lugar de apenas um, e com isso uma inundação de
trabalhadoras no mercado de trabalho e o aumento de famílias chefiadas por
mulheres, a autora segue problematizando que:
O capitalismo neoliberal tem tanto a ver com Walmart, maquiladoras e
microcrédito quanto com o Silicon Valley e o Google. E seus trabalhadores
indispensáveis são desproporcionalmente mulheres, não apenas jovens
mulheres solteiras, mas também mulheres casadas e mulheres com filhos;
não só as mulheres racializadas, mas virtualmente mulheres de todas as
nacionalidades e etnias. Como tais, as mulheres despejaram-se em
mercados de trabalho ao redor do globo; o efeito foi cortar na raiz de uma
vez por todas o ideal do salário familiar do capitalismo organizado pelo
Estado. No capitalismo neoliberal ―desorganizado‖, este ideal foi substituído
pela norma da família de dois assalariados. Não importa que a realidade
que subjaz o novo ideal sejam os níveis salariais decrescidos, diminuição da
segurança no emprego, padrões de vida em declínio, um aumento abrupto
no número de horas trabalhadas em troca de salários por família,
exacerbação do turno dobrado – agora frequentemente um turno triplo ou
quádruplo – e um aumento de lares chefiados por mulheres. O capitalismo
desorganizado vende gato por lebre ao elaborar uma nova narrativa do
avanço feminino e de justiça de gênero. (FRASER, 2009, p. 25, grifo da
autora).
A reestruturação do capitalismo em neoliberalismo, revestida de justiça de
gênero absorveu, no mercado de trabalho, mulheres de todos os níveis
socioeconômicos, nas mais variadas faixas de remuneração e níveis de instrução,
subordinando o desejo de emancipação feminina ao acúmulo de capital do sistema
econômico colonial globalizado, possibilitando que a crítica do salário familiar, que
colocava as mulheres em condição de dependência, passasse agora à função de
valorizar o trabalho assalariado do capitalismo. As mulheres conseguem obter
64
pequenas rupturas com a submissão econômica aos homens para passar para a
submissão ao sistema capitalista. (FRASER, 2009).
Beck (2011) comenta acerca da flexibilização e precarização do mercado de
trabalho no mesmo período indicado por Fraser (2009), ele refere que, em que pese
tenha havido um salto com relação à escolarização das mulheres e aquisição de
direitos, o que oportunizou que trabalhassem, as desigualdades permanecem no
mercado de trabalho, na vida pública e privada, pois os homens não acompanharam
estas mudanças para além de um discurso retórico.
No processo individualizatório, em busca do próprio eu, da identidade,
homens e mulheres se libertam lentamente das tradicionais formas e atribuições dos
papéis de gênero, mas ainda convivem com as contradições estabelecidas entre o
mercado de trabalho e as exigências familiares e da maternidade, sobre elas recai
um peso que não assiste aos homens, pois para eles sempre foi atribuída a
obrigação de buscar o sustento, o que se concilia sem problemas ao que se
naturalizou como papel de pai e lugar dentro da família. (BECK, 2011).
Outro aspecto relevante nesse processo é o fato de que quanto mais central é
um determinado âmbito, quanto mais poderoso, menor é a representatividade das
mulheres, quanto menos influente, ou marginal o grupo, tanto maior a probabilidade
de que as mulheres tenham conquistado este espaço. Tal se reflete na baixa
representatividade na política, economia, tribunais federais, nos altos cargos do
ensino superior, como exemplo. A taxa de desemprego é maior entre as mulheres e
seus salários continuam mais baixos do que os dos homens ainda que ocupem as
mesmas funções. (BECK, 2011).
Todas estas questões são emblemáticas e afetam de forma contundente as
mulheres latino-americanas. No entanto, para pensar sobre as assimetrias desde o
sul é preciso ir além do feminismo europeu ou norte-americano, é preciso pensar a
partir da perspectiva de mulheres colonizadas e racializadas, pois os processos
históricos que as atingem são diferentes dos que produziram o feminismo
colonizador. Camacho refere que:
Las feministas hegemónicas, desde su posición de poder estructural, tratan
de imponer nociones universalizantes, con sus propias significaciones, a
mujeres subalternas. No obstante, estas mujeres musulmanas, indígenas,
chicanas, africanas han contestado y resemantizado tales concepciones,
proponiendo definiciones de persona que transcienden el individualismo
occidental, concepciones de una vida digna que van más allá del derecho a
la propiedad y conceptualizaciones de equidad que incluyen no sólo la
65
complementaridad entre los géneros, sino entre los seres humanos y la
naturaleza. (CAMACHO, 2014, p. 77)
De acordo com Spivak (2010, p. 86) ―relatar, ou melhor ainda, participar do
trabalho antissexista entre as mulheres de cor ou as mulheres sob a opressão de
classe no Primeiro ou Terceiro Mundo está inegavelmente na ordem do dia.‖ No
entanto, Spivak alerta que deve ser acolhida a recuperação de informações em
áreas silenciadas, a partir da antropologia, ciência política, história e sociologia.
Todavia a autora ressalta que a pressuposição e a construção de um sujeito e uma
consciência sobre este sujeito – no caso mulheres de cor, racializadas, oprimidas –
em longo prazo pode se unir ao trabalho de constituição do sujeito imperialista,
misturando violência epistêmica com o avanço do conhecimento e da civilização,
fazendo com que a mulher subalterna, colonizada, continue silenciada, como
sempre foi, sendo necessário que ela mesma possa falar por si, a fim de deixar tal
condição.
De outra banda, resta evidenciada a inocuidade de um feminismo de
mulheres brancas para mulheres brancas, cujas condições histórico-econômicosociais se diferenciam das situações enfrentadas pelas colonizadas, para as quais a
idealização de mulher universalizada37 não reflete o contexto daqui. Por isso emerge
o feminismo de cor38, referido por Lugones (2014), e discutido no primeiro capítulo
da pesquisa, pois os problemas enfrentados pelas mulheres latino-americanas vão
além do que busca o feminismo do norte global, exatamente por estarem estas
colonizadas sob o jugo da ética de guerra da colonialidade, pela marca da ―não
humanidade‖ estabelecida nesta região.
Camacho (2014) elucida é necessário mencionar teorias feministas
produzidas fora do centro hegemônico não só como espaço geográfico, mas
também como espaço político e epistemológico. A autora denuncia que as razões
pelas quais não se fala sobre os feminismos de cor, do terceiro mundo, pós-coloniais
e decoloniais estão vinculadas com a colonialidade do saber, mestiçagem colonial
ou colonialismo interno. Assim, indica que citar autoras do terceiro mundo como
Lugones, por exemplo, dentre outras, e referir suas teorias, é um ato político.
37
38
Mulher branca, de classe média, heterossexual, cristã, fazendo alusão à identidade do sujeito do
Iluminismo caracterizado por Hall (2011).
Esta vertente de pensamento se situa na segunda onda do feminismo, conforme Fraser (2009). No
entanto, ainda há muito a fazer e discutir neste campo, a fim de obter a construção de novas
concepções acerca das feminilidades a partir do sul e proporcionar ruptura com a colonialidade.
66
Lugones (2013) afirma que não há ―despatriarcalização‖ sem uma
decolonização que não seja racista; que não há decolonização se não for desligada
a introdução colonial da dicotomia homem/mulher, macho/fêmea; que o feminismo
hegemônico, branco, é eurocêntrico, universalista e racista; e que a introdução
colonial do binarismo homem/mulher, macho/fêmea não é só heterossexual, mas
também heterossexualista, pois seu significado depende da dicotomia.39
A partir do processo de colonização, da lógica do colonizador, somente foram
consideradas ―mulheres‖ as européias burguesas por força da sua função de
reproduzir a raça e o capital. Com a dicotomia hierarquizante humano/não humano,
concretizada pela racialização dos/as colonizados/as, estes/as passam a seres
bestializados, inferiorizados percebidos como objetos em face da desumanização
que o colonizador lhes impôs. Assim, aos olhos dos homens:
La mujer, la única mujer que hay, está subordinada necesariamente al
hombre porque, de acuerdo al pensamiento moderno, está dirigida más por
la emoción que la razón, está más cerca de la natureza porque reproduce
con el hombre burgués a la próxima generación de hombres y mujeres, de
seres humanos y, al mismo tiempo, reproduce el capital y la raza. Asegurar
ese legado requiriró que la mujer burguesa sea concebida como
heterosexual, casta, sexualmente pura y pasiva, relegada al espacio
doméstico donde, gracias a su ser patológico (emocional), está capacitada
para inculcar su ―conocimiento‖ a los niños y solamente a los niños, antes
de la edad de la razón. Lo que se desarrolló en la Conquista y la Colonia, y
que hoy se sigue aplicando en todo el mundo, es la negación y la
destrucción de todo lo que constituía a cada persona, a cada comunidad, a
todas sus prácticas, saberes, relaciones con todo lo que existe en un
universo donde todo está interconectado, su comprensión del universo, su
manera de hacer comunidad. El poder colonial, capitalista, racializó el
trabajo y reservó para los indios y los negros los trabajos que deshumanizan
y matan. El proceso de negación y destrucción incluyó el intento de vaciar la
memoria, de llenarla con la cristiandad y la cosmología dicotómica,
jerárquica, violenta, cristiana, racional, que los relegaría a bestias. El
proceso de negación y destrucción lo hizo el hombre, el europeo, como el
individuo que puede porque tiene razón y poder. El proceso de destrucción
de la comunidad está íntimamente ligado a la relación entre sexualidad y
raza, y el sistema de género entiende al género como necesariamente
39
Acerca da sexualidade, Foucault (1988) refere que falamos dela o tempo todo, mesmo quando
silenciamos, a caracteriza como um dispositivo histórico, ressaltando que até o estabelecimento
do capitalismo, o sexo era tema corriqueiro e natural, não havia vigilância sobre as formas de
expressar o desejo de modo geral. Porém, a partir da era vitoriana e o início da sociedade
industrial, houve uma modificação cultural e o sexo passou a ser tema proibido, prática aceitável
apenas para fins de procriação e as formas de expressão dos desejos que não coadunavam que
este propósito foram clandestinizadas. A partir daí a sexualidade diferenciada da
heterossexualidade com fins reprodutivos, passou a ser estigmatizada com a produção discursiva
da anormalidade, patologia, disfunção da sexualidade e marginalização das sexualidades
desviantes da ―norma‖. A sexualidade estabelecida como norma, ou seja, a ―heterossexualidade
com fins reprodutivos‖ deixa de ser falada, analisada, pois ao se tornar considerada como normal,
e por não ser problemática, conferiu aos casais heterossexuais o benefício da privacidade, não
sendo mais discutida. (FOUCAULT, 1988).
67
humano, dicotómico, jerárquico, heterosexual, sexualmente dimórfico.
(LUGONES, 2013, p. 02).
Ocorre que neste processo de destruição das comunidades o colonizador
utilizou uma técnica que consistia em conferir autoridade ao ―macho‖40 indígena,
tratá-lo como tal entre os demais integrantes da comunidade e tratá-lo como
mediador da organização da produção, negando totalmente a autoridade para as
―fêmeas‖ indígenas, resultando esta postura em localizar a ―fêmea não-humana‖
hierarquicamente inferior ao ―macho não-humano‖.41 (LUGONES, 2013).
Lugones (2013) problematiza que o movimento hegemônico de liberação das
mulheres no sentido de obter o que os homens brancos têm não leva em
consideração a colonialidade de gênero, tendo em vista que obter o que os homens
têm, acarreta a exclusão das subalternizadas desde o ponto de partida, uma vez que
requer a assimilação à Colônia e ao eurocentrismo, pois pressupõe o abandono de
práticas, crenças, linguagens, concepções de comunidade e relações com o que
constitui o cosmos. Refere que o feminismo decolonial trata-se daquele que inicia
pela tomada de consciência do sistema de gênero baseado na dicotomia
humano/não humano, bem como da redução de pessoas e da natureza a coisas
para o uso de homens e mulheres eurocêntricos, capitalistas, burgueses e
imperialistas. A autora segue relatando o que percebe em sua própria experiência:
En mi propia experiencia veo que hemos internalizado la colonialidad de
género en nuestras propias comunidades. Pero también veo que no hemos
internalizado esta subordinación totalmente. Tenemos curanderas, médicas,
yerberas, historiadoras orales, parteras, pero también estamos
subordinadas y deshumanizadas. Tenemos que repensarnos para
realmente poder escuchar la voz de ellas las indígenas, las afro, las
mestizas que nos entendemos como partidas por la herida colonial, como se
conciben las chicanas, y rechazamos ser eurocentradas. Las mujeres
blancas prestaron atención en su feminismo solamente a la dicotomía que
las subordinaba, no a la dicotomía que las hacía a ellas humanas y a
nosotras bestias. Por eso es que la universalidad de "mujer" es el canto
global del feminismo hegemónico. Sugiero aquí que la organización del
cosmos, la realidad, los valores en el pensar y en las prácticas no-modernas
están profundamente viciadas por la colonialidad de género. Que la
descolonización/decolonialidad tiene que incluir necesariamente como
inseparable de toda descolonización/decolonialidad la constitución de toda
relación afectada por la inferiorización de las indígenas del mundo, por la
40
41
Refere-se ―macho‖ tendo em vista que para o colonizador trata-se de um não-humano, nãohomem.
Lugones (2013) explica que com esta imposição colonial os machos indígenas ficaram
responsáveis por pagar tributos com seu trabalho para o colonizador e a igreja enquanto que as
fêmeas se ocupavam de todas as tarefas que anteriormente eram complementares na
comunidade.
68
subordinación, por lo tanto, del dar vida, de crear, de dar aliento sobre las
cosas y dar ánimo a los seres, las cosas y los pensamientos. Hacer otra
cosa no es solamente dejarnos de lado sino dejar de lado la
descolonización de la comunidad y de nuestro propio ser. (LUGONES,
2013, p. 6, grifo da autora).
O que se percebe é que o feminismo hegemônico não traz respostas para a
questão da desumanização das latino-americanas, para a violência que as dizima.
Assim, ao que parece, é que não haverá a dessubalternização das mulheres daqui a
menos que se considere a questão da colonialidade de gênero e de sua
―coisificação‖ secular.
Considerar a colonialidade do gênero, do ser, do poder e do saber passa por
pensar sobre a ciência jurídica, que a exemplo de outros campos das ciências,
contribuiu para a manutenção do Estado patriarcal capitalista, dando suporte para as
diferentes configurações deste sistema, sendo útil que este ramo da ciência seja
também colocado sob suspeita, analisado, percebido a partir de uma perspectiva
feminista decolonial.
Para tanto, a seguir verifica-se algumas contribuições do discurso colonial da
ciência jurídica na perpetuação da colonialidade do gênero para que, ao final, no
terceiro capítulo seja viável pensar sobre a Lei do Feminicídio brasileira a partir da
possibilidade de um discurso jurídico decolonial.
2.2
A
CIÊNCIA
JURÍDICA:
INSTRUMENTO
DE
MANUTENÇÃO
E
REFORÇAMENTO DA COLONIALIDADE DO GÊNERO NO BRASIL
A ciência jurídica tradicional no Brasil possibilitou a manutenção da ordem
social inalterada no que se refere às mulheres desde a época do Império. Segundo
Gomes (2012) as normas constitucionais de 1891 negavam o direito à cidadania às
mulheres, as quais não participavam do sufrágio universal devido à interpretação
restritiva da norma. A autora relata ainda a postura discriminatória adotada pelo
Código Civil de 1916, o qual estabelecia a relatividade da capacidade jurídica da
mulher casada42, a qual restava elencada junto aos menores púberes, silvícolas 43 e
42
Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156).
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
III. Os pródigos.
IV. Os silvícolas.
69
pródigos, reforçando a condição de desigualdade já mencionada em relação aos
homens.
Além destes, outros tantos dispositivos do referido Código instituíam o
patriarcado como regra na sociedade brasileira, reafirmando o poder masculino e
relegando à condição de subalternidade as mulheres da época. O referido diploma
legal contava com um capítulo destinado aos ―Direitos e Deveres do Marido‖ e outro
aos ―Direitos e Deveres da Mulher‖.
O marido era o chefe da sociedade conjugal44, competindo-lhe o sustento da
família, o gerenciamento dos bens (seus e da mulher), a representação legal da
família, o direito de fixar seu domicílio e o direito de autorizar a mulher a trabalhar,
ou seja, o acesso ao mercado de trabalho dependia da autorização do marido, total
cerceamento de liberdade nesse sentido. Observe-se o art. 242 do Código de 1916:
Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251):
I. Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher
(art. 235).
II. Alienar, ou gravar de onus real, os imóveis de seu domínio particular,
qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, nº II, III, VIII, 269, 275 e
310).
III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outra.
IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado.
V. Aceitar tutela, curatela ou outro munus público.
VI. Litigiar em juízo civil ou comercial, anão ser nos casos indicados nos
arts. 248 e 251.
VII. Exercer profissão (art. 233, nº IV).
VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do
casal.
IX. Aceitar mandato (art. 1.299).
(Incluído pelo Decreto do Poder
Legislativo nº 3.725, de 1919). (BRASIL, 1916).
Blay (2003) traz outros aspectos perversos da legislação brasileira, relativos
à esfera penal, que perpetuaram a violência contra as mulheres e validavam a
justificativa de ―matar por amor‖. Em nome da defesa da honra do marido traído,
explicada pela privação de sentidos em face da descoberta do adultério ou em nome
do sentimento de rejeição diante do desejo da mulher em abandonar o cônjuge para
buscar um novo relacionamento ou apenas viver sem a sua companhia era
permitido/desculpado o seu assassinato.
43
44
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e
regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação. (BRASIL, 1916)
Ainda tratados/as de forma discriminatória na atualidade.
De acordo com Spivak (2010, p.108) ―[...] assimetria legalmente programada do status do sujeito,
que efetivamente define a mulher como objeto de um marido, obviamente opera no interesse do
sujeito-status legalmente simétrico do homem.‖
70
No Brasil, sob o pretexto do adultério, o assassinato de mulheres era
legítimo antes da República. Koerner mostra que a relação sexual da
mulher, fora do casamento, constituía adultério – o que pelo livro V das
Ordenações Filipinas permitia que o marido matasse a ambos. O Código
Criminal de 1830 atenuava o homicídio praticado pelo marido quando
houvesse adultério. Observe-se que, se o marido mantivesse relação
constante com outra mulher, esta situação constituía concubinato e não
adultério. (BLAY, 2003, p. 87, grifo da autora).
Além disso, destaque-se o artigo 215 (estabelecia pena para quem tivesse
conjunção carnal com mulher ―honesta‖, mediante fraude) e 216 (estabelecia pena
para quem induzisse mulher ―honesta‖, mediante fraude, a praticar ou submeter a
mesma à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal) do Código Penal de
1940, cuja redação só foi modificada no ano de 2005. Tal adjetivação seria cômica
se não fosse trágica e inútil.
Foi desta forma que a ciência jurídica contribuiu para a perpetuação da
subalternidade feminina, na ordem do discurso.45 Blay (2003) menciona o esforço
acadêmico no sentido de ensinar os jovens advogados a denegrir a imagem das
vítimas a fim de desqualificá-las, colocando a opinião pública a favor dos
agressores, a partir da preparação de suas defesas. A autora cita o livro do jurista
Evandro Lins e Silva, ―A defesa tem palavra‖, no qual utiliza como modelo didático
para jovens advogados a defesa que preparou para Doca Street, assassino de
Angela Diniz, caso emblemático de 197646, absolvido em um primeiro julgamento.
Portanto, segue a mulher cerceada de uma série de direitos com pequenos
avanços, como o direito ao voto, conquistado na CF de 1934 e algumas garantias
trabalhistas até a década de 1960, com o advento do Estatuto da Mulher Casada
(Lei nº 4121/62),47 momento em que foram afastadas normas acerca de deveres
como esposa e mãe, bem como a incapacidade relativa. (GOMES, 2012).
45
46
47
Foucault (1986) menciona o discurso como uma prática que forma sistematicamente os objetos
dos quais fala, destacando que os discursos são constituídos por signos, mas que estes signos
são utilizados para designar ―mais‖ do que coisas e que é este ―mais‖ que vai além da língua e do
ato da fala. Produzem relações de poder, posições de sujeito, mantém ou modificam determinada
ordem de coisas, pois o discurso nunca é neutro, carrega consigo as marcas de seu tempo e das
forças que lhe circundam.
O caso referido mobilizou a opinião pública, a vítima foi assassinada porque desejava separar-se
do agressor (lugar comum ainda nos dias de hoje, pois centenas de mulheres são assassinadas
pelo mesmo motivo todos os anos). Doca, réu confesso do assassinato de Angela, foi absolvido
em um primeiro julgamento ocorrido em 1979. A promotoria recorreu da sentença e um novo
julgamento ocorreu em 1981, sendo Doca condenado a 15 anos de prisão em regime fechado.
Nas décadas de 1960 e 1970 os movimentos feministas ganham espaço e se organizam
politicamente obtendo uma série de pequenas conquistas, de modo que a questão de gênero
passa a ser uma questão de Direitos Humanos, as conquistas os avanços obtidos em âmbito
internacional se refletiram também no Direito interno brasileiro
71
As mulheres adquiriram o direito de trabalhar sem que lhes fosse necessária
a autorização do marido, passaram a conquistar o espaço público com mais
intensidade, no entanto:
São as mulheres que carregam o maior peso da pobreza; e quando têm sua
presença tolerada, pela modernidade no mercado de trabalho, continuam
responsáveis pelo ambiente doméstico. Assim, tem-se a intolerância
mascarada de tolerância com o claro propósito de mais uma vez ressaltar a
superioridade masculina, quem tolera não aceita, nem respeita o valor do
outro, é sim ‗generoso‘ para com suas imperfeições, sutilmente reafirmando
sua inferioridade. A mudança nas relações domésticas foi no sentido de
ajudar a dividir as despesas do lar, as mulheres aos poucos passavam à
vida pública, mal remunerada e explorada, porém, sempre com a submissão
no âmbito privado em relação ao macho dominante, ou seja, dupla
submissão [...]. (SPAREMBERGER; LEAL, 2012, p. 65).
Somente a partir da Constituição de 198848, institui-se a democratização do
país e a questão da igualdade passa a tomar corpo. Todavia, as mulheres seguem
pagando um alto preço por sua inserção no espaço público, dominado politicamente
e culturalmente pela lógica patriarcal.
O fato é que diante de condições historicamente estruturadas a opressão à
feminilidade se manteve e se mantém, mesmo com os avanços das normas
brasileiras, tratados de direito internacional em prol da defesa das mulheres, pactos,
constitucionalização dos direitos da mulher, o advento da Lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006),
pois
os
discursos
consolidaram
representações
de
difícil
desconstrução.
Há sobre as mulheres uma pesada carga, de modo que ainda que estas
sejam maioria numérica, permanecem ainda como minoria política e, mesmo quando
ascendem às posições de destaque, são colocadas à prova em relação à suas
capacidades.
Os ―avanços‖ em termos de legislação voltados à proteção e promoção de
igualdade de gênero no Brasil não atingem a todas as faces da feminilidade, pois há
uma gama delas a qual não se estendem equitativamente, as mulheres de cor
descritas e elencadas por Lugones (2014) não estão contempladas, porque há a
necessidade de decolonizar o direito, pensar em novas formas de solucionar os
48
O papel feminino de coadjuvante na dinâmica familiar estende-se com mais ou menos vigor,
conforme o contexto social, até a Constituição Federal de 1988, muito embora as mulheres
tenham somado neste período inúmeras vitórias políticas e profissionais, tendo definitivamente
ocupado os bancos escolares, incrementando o seu nível de escolaridade, ingressado na política
partidária e no mercado de trabalho. (GOMES, 2012, p. 78).
72
problemas das mulheres subalternizadas das Américas, as quais experimentam a
violência nas suas mais diversas formas. Nesse sentido:
Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação
do objeto, a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas
em um violento arremesso que é a figuração deslocada da ―mulher do
Terceiro Mundo‖ encurralada entre a tradição e a modernização. (SPIVAK,
2010, p. 119).
Faz-se necessária a desconstrução das representações inferiorizantes que
viabilizam a subalternização feminina na ciência jurídica tradicional, a qual
permanece como entrave para a cidadania plena e concretização de fato da
democracia em nosso país, posto que as garantias legais muitas vezes não são
suficientes para o sem número de violações a que são submetidas as mulheres em
diversas esferas de suas vidas, quer em relação a direitos trabalhistas, liberdades
sexuais, direitos reprodutivos, no ambiente familiar, dentre as incontáveis situações
do cotidiano que levam à opressão de gênero.
O discurso jurídico tradicional no Brasil carece da adoção dos Estudos
Decoloniais como ponto de referência, pois estes tratam de ―uma perspectiva de
estudos heterogênea que prioriza os estudos transdisciplinares, isto é, estudos que
utilizam conhecimentos provindos de várias áreas para a análise de um objeto
particular.‖ (DAMÁZIO, 2011, p. 69).
A ciência jurídica tradicional, isoladamente não tem o condão de romper com
o discurso colonial que possibilita a inferiorização feminina, conforme já mencionado
anteriormente,
somente
transdisciplinariedade,
a
poderá
integração
reinventar-se
de
quando
conhecimentos
de
se
permitir
outros
à
campos
diferenciados49 como Sociologia, Psicologia Social, Educação, teorizações dos
Estudos Culturais, Feministas e de Gênero, permitindo uma visão mais ampla da
questão das identidades femininas, suas representações, bem como de suas
repercussões na efetivação da democracia.
Os Estudos Decoloniais se contrapõem às grandes narrativas universalistas
criadas pela ciência moderna, representando alternativa não só para a América
Latina, mas também para o mundo das ciências sociais e humanas, possibilitando
reflexões sobre a realidade cultural e política latino-americana. (DAMÁZIO, 2011).
49
Os estudos decoloniais utilizam um amplo número de fontes, as teorias européias e norteamericanas críticas da modernidade, os estudos chamados propriamente de pós-coloniais, a
teoria feminista chicana, a filosofia africana, entre outros. (DAMAZIO, 2011, p. 70).
73
O processo de colonização na América Latina é um movimento que não se
limitou ao seu tempo, mas que se estende até os dias atuais, por vários vieses,
sejam culturais, políticos ou ideológicos. (QUIJANO, 2005). Adquiriu força através da
implantação dos Estados Nacionais, importação de ordenamentos jurídicos
homogeneizantes de matriz européia, modos de produção capitalistas, valores,
simbolismo, perpetuando um imaginário coletivo enraizado na modernidade.
(MIGNOLO, 2005).
Assim, de acordo com Mignolo (2010) a colonialidade do poder é composta
por vários níveis como controle da economia, da autoridade, da natureza, dos
recursos naturais, do gênero, sexualidade, subjetividade e conhecimento. Os
desdobramentos atinentes à produção de conhecimento influenciam diretamente na
ciência jurídica50.
Muitos pensadores provenientes de diversas áreas refletiram e refletem
sobre a colonização como um grande evento prolongado e de muitas
rupturas, e não como uma etapa histórica já superada. A colonização não
diz respeito apenas à administração colonial direta sobre determinadas
áreas do mundo, mas refere-se a uma lógica de dominação, exploração e
controle que inclui a dimensão do conhecimento e também do
conhecimento jurídico, como ocorrido no Brasil. Nesse sentido, fala-se em
colonialidade e não apenas de colonialismo. (SPAREMBERGER;
KYRILLOS, 2012, p. 02).
Destaca-se, portanto, que a colonialidade do saber jurídico produziu/produz
uma série de entraves para a questão da igualdade51 de gênero no Brasil52. Os
estudos decoloniais problematizam a questão da colonialidade, trazendo novas
formas de pensar e, portanto, novas formas de ressignificar o contexto atual
contemporâneo.
50
51
52
Os estudos pós-coloniais e decoloniais possibilitam compreender os discursos jurídicos
pretensamente universais como construções que surgem a partir das relações coloniais. Estes
discursos, inevitavelmente, resultam na subalternização dos saberes que surgem a partir do
―outro‖, do anthropos. Trata-se, desta maneira, de uma perspectiva diferente de se entender o
direito, pois permite que este seja pensado a partir de diferentes categorias e formas de
conhecimento, inimagináveis para o direito eurocêntrico. (DAMAZIO, 2011, p. 75, grifo da autora).
Partilha-se da noção de igualdade em que: ―[...] as pessoas e os grupos sociais têm direito a ser
iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os
descaracteriza.‖ (SANTOS, 1997, p. 30).
Tome-se como exemplo a questão do binarismo vítima/agressor contido no texto legal da Lei
Maria da Penha (Lei 11.340/06), que pressupõe a fragilidade da vítima/ofendida/mulher e o
agressor/dominador/ homem, ficando invisibilizada uma série de questões subjacentes, como os
casais formados por mulheres, bem como, mais uma vez, com o discurso, reforçando a
―fragilidade feminina‖ no contexto doméstico dominado pelo homem.
74
Um espaço de evidente desigualdade pode ser citado na análise da
conjuntura política brasileira, pois em um país como o Brasil, no qual as mulheres
são a maioria do eleitorado, segundo dados no Tribunal Superior Eleitoral 53, não se
justifica, por exemplo, a sua representatividade política ínfima nas instâncias
governamentais. É fato que aos poucos as mulheres passaram a assumir espaços
tradicionalmente masculinos, como as escolas, universidades, cargos nos poderes
executivo, legislativo e judiciário, mas ainda há um longo percurso.
A proposta dos Estudos Decoloniais relacionada ao direito vêm no sentido
de pensar em outra feminilidade e outro discurso, que rompa com os conceitos e
pré-conceitos que foram incorporados a partir da colonização, dos saberes
eurocêntricos.
Estas vertentes de pensamento são suporte à desconstrução de
estereótipos mantidos, tanto culturalmente quanto juridicamente. A partir da ação de
suspeitar e problematizar as representações normalizadas de feminilidade que
fizeram/fazem parte da ciência, incluindo a ciência jurídica tradicional, é possível a
construção de novas percepções e ressignificações necessárias para uma
sociedade mais justa e igualitária.
A subalternização da feminilidade é determinada por uma complexa trama
de relações de poder e tensões estabelecidas historicamente desde os tempos mais
remotos da humanidade, eternizada pela colonialidade do poder/saber/gênero que
propagou as concepções da ciência moderna, da cultura ocidental e do discurso das
ciências jurídicas refletindo na inferiorização das identidades femininas no Brasil.
O sujeito da modernidade/Iluminismo, descrito por Hall (2011) foi a medida
das categorizações produzidas pelas ciências naturais que possibilitaram o reforço
das hierarquizações entre homens e mulheres. Evidentemente uma ciência
masculina geraria, dentro do contexto em que emergiu, uma supremacia masculina,
negando às mulheres, por décadas, a condição de sujeito e de detentoras de
direitos.
A ciência jurídica tradicional acompanhou este processo, servindo de
instrumento de perpetuação desta condição e a manutenção da sociedade patriarcal
opressiva, relegando à mulher o papel de ―ser humano de segunda categoria‖,
reafirmando a ideia de fragilidade e incapacidade e destinando-lhe ao espaço
53
Dados de janeiro de 2014 mostram que, do total de 140.804.936 eleitores no Brasil, 73.148.701
são mulheres (51,950%). (BRASIL, 2015).
75
privado do lar para atividades consideradas de menor valor socialmente, atribuindolhe capacidade relativa para gerir a si e sua vida, necessitando do aval de um
homem para poder ingressar no mercado de trabalho que poderia lhe proporcionar
meios de subsistência que, talvez, pudessem lhe conferir alguma autonomia no
plano social.
O Direito mostrou uma de suas faces mais perversas ao permitir ao homem
o assassinato da esposa em caso de adultério e as atenuantes para os crimes em
defesa da honra, dentre tantas aberrações históricas que poderiam ser enumeradas.
A dívida da ciência jurídica para com as mulheres é histórica, e mesmo na
contemporaneidade, quando visa a reparar esta lacuna, o discurso empregado por
ela ainda deixa a desejar. Os direitos garantidos formalmente não se efetivam
muitas vezes nos casos concretos.
Por si só o Direito, como arcabouço teórico colonial, não é suficiente para
modificar o estado de coisas que se impôs às mulheres e é neste sentido que se
percebe os Estudos Decoloniais como possibilidade de diálogo e desconstrução
destas hierarquizações na ciência em questão, pois procura romper com os
universalismos
e
binarismos
estabelecidos
na
modernidade
ao
criticar
a
colonialidade dos saberes.
Sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro é ―cópia malfadada‖ de
ordenamentos de outros países, no qual a colonialidade parece bastante forte,
muitas vezes não produzindo os efeitos necessários para a concretização dos
valores democráticos que se pretendeu exaltar na Constituição Federal de 1988.
Percebe-se que as identidades são construções culturais, e, sendo a cultura
instável, dinâmica, atrelada ao seu tempo e a determinados grupos sociais que a
partilham, não se justifica a manutenção de estereótipos e representações fundadas
nas diferenciações anatômicas e biológicas entre homens e mulheres, as quais
povoaram e respaldaram as teorizações das ciências humanas e sociais sobre os
papéis de gênero, políticos e sociais que definiram as hierarquizações verificadas
atualmente.
A análise destes temas em uma perspectiva decolonial permite romper e
desacomodar a aparente normalidade das relações de gênero, a solidez dos
discursos cientificistas, as representações arcaicas sobre os papéis a ser
desempenhados pelas mulheres na sociedade o que refletirá em avanço rumo à
efetivação da igualdade garantida constitucionalmente.
76
As teorizações feministas latino-americanas compreendem que há vários
feminismos, assim como há várias mulheres e inúmeras reivindicações que passam
pelo campo da raça, etnia, orientação sexual (as reivindicações das mulheres
latinas, brasileiras, brancas, negras, indígenas, lésbicas, heterossexuais, enfim, de
um sem número de identidades possíveis, não são as mesmas das mulheres
européias, ou norte-americanas, com suas idiossincrasias, por exemplo).
A pesquisa não visa respostas prontas aos problemas aqui suscitados, nem
tão pouco colocar a ideia de que os Estudos Decoloniais e o Feminismo Latinoamericano são solução ou caminho de verdade para estes temas, pois se estaria
construindo uma nova narrativa, ou seja, exatamente o que se pretende criticar.
Assim, a consideração primordial é a de que estas teorizações são
instrumentos que podem auxiliar na desconstrução da subalternização da
feminilidade, ao plantar a dúvida, a desconfiança das verdades produzidas e
reproduzidas por tanto tempo, incentivar movimentos de resistência, suscitar
discussão e questionamento dos lugares ocupados pelas mulheres na estrutura
social, colocando sob suspeita as narrativas consolidadas pela modernidade e pelo
discurso jurídico tradicional brasileiro, pondo em xeque as representações sobre as
identidades femininas circulantes em nossa cultura.
Neste sentido, no capítulo a seguir, aborda-se a questão da Lei nº
13.104/15, conhecida como Lei do Feminicídio no Brasil, a fim de que se possa
realizar uma leitura decolonial do referido diploma e perceber em que medida
contribui para a dessubalternização das mulheres brasileiras.
77
3. PENSAR SOBRE O NÃO-DITO: A LEI 13.104/15 À LUZ DOS ESTUDOS
DECOLONIAIS
“Las condiciones estructurales de la organización social
de géneros están en la base de la violencia feminicida.
Aún cuando ha habido avances, el Estado corresponde
en parte a las condiciones de vigencia
de la opresión de género. ”
(LAGARDE, 2012, p. 234).
A Lei do Feminicídio foi aprovada em 09 de março de 2015 no Brasil, mas
tanto o conceito de feminicídio quanto as pretensões do dispositivo legal não foram
gestadas em solo brasileiro, a questão tem sido discutida desde os anos 90 do
século XX em outros países e, em especial na América Latina a partir do
emblemático caso de Ciudad Juárez, México, o qual será mencionado na sequência.
Assim, cumpre verificar as origens do conceito bem como as inspirações para que
tal legislação se integrasse ao Código Penal Brasileiro de 1940 (Decreto-Lei nº
2.848/40).54
Dessa forma, se buscará elementos para compreender como o conceito
passou a ser visibilizado, quais são as implicações disto e quais as relações deste
tipo de legislação com a colonialidade/decolonialidade do discurso jurídico, pois há
que se perceber se, de alguma forma o tipo penal punitivo inserido no contexto legal
pátrio auxilia/proporciona dessubalternização da feminilidade neste contexto, o que
será avaliado à luz dos Estudos Decoloniais.
3.1
FEMINICÍDIO:
CATEGORIA
QUE
VISIBILIZA
O
ASSASSINATO
DE
MULHERES
Bidaseca (2013) refere que o conceito ―femicide‖ foi desenvolvido em 1974,
por Carol Orlock, uma escritora norte-americana e, posteriormente utilizado por
Diana Russell de forma pública no Tribunal Internacional dos Crimes contra as
Mulheres, em Bruxelas, no ano de 1976, sendo traduzido em 2004, por Marcela
54
A Lei 13.104/15 alterou o art. 121 do Código Penal no sentido de prever o feminicídio como
circunstância qualificadora para o crime de homicídio e modificou o art. 1º da Lei nº 8.072/90 para
caracterizar o feminicídio como crime hediondo.
78
Lagarde, no México, como feminicídio, termo atualmente conhecido utilizado na
legislação brasileira e de outros países.
Lagarde (2012) explica que ao traduzir o termo, considerou que ―femicídio‖
seria o assassinato de mulheres, tal qual o homicídio é assassinato de homens. No
entanto ao definir o termo como ―feminicídio‖ ressignifica seu conteúdo e lhe dá
dimensão política que aponta a sua existência como fragilidade do Estado de Direito
quando este consente com a impunidade. A partir de então o feminicídio passa a ser
um crime de Estado, pois é de responsabilidade do Estado a prevenção e proteção
das mulheres em face à violência de gênero, pois este tem o dever de garantir sua
vida e liberdade. A impunidade, assim, implica em responsabilização do Estado por
ação ou omissão nestes casos, pois:
El feminicidio es el genocídio contra mujeres y sucede cuando las
condiciones históricas general prácticas sociales que permiten atentados
violentos contra la integridad, la salud, las libertades y la vida de niñas y
mujeres. (LAGARDE, 2012, p. 216).
Vázquez (2009)55 apresenta entendimento de que o femicídio tem sido
definido como a morte violenta de mulheres pela condição de ser mulher ou por
razões associadas ao gênero, em equivalência a homicídio simples ou qualificado,
podendo, em alguns casos, ser entendido de forma ampla e abarcar situações de
mortalidade materna evitável devido a aborto inseguro, câncer e outras
enfermidades não tratadas adequadamente, ou por desnutrição seletiva por gênero,
existente em algumas culturas. Já o feminicídio traz em seu conteúdo algo que
ultrapassa o que significa o femicídio, pois a expressão feminicídio carrega a
misoginia, ou seja, o ódio ou aversão pelas mulheres. De toda forma, esclarece que:
En cualquier caso, […], es importante tener en cuenta que tanto la
aproximación más restrictiva (muertes violentas consecuencia de delitos)
como la más amplia (muertes como resultado de discriminación de género
que no constituyen delito) pueden traer aparejada la responsabilidad
internacional del Estado en relación a sus obligaciones en materia de
derechos humanos. (VÁSQUEZ, 2009, p.26).
55
Sobre o material produzido por Vásquez (2009) cumpre fazer uma observação: o material, o qual
traz uma série de contribuições importantes para analisar a questão do feminicídio, elaborado pela
pesquisadora, para a Oficina no México do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos
Humanos, foi financiado pela Fundação Ford, ou seja, vinculada a uma corporação que é
considerada como uma das maiores montadoras de automóveis do mundo. Destaque-se que a
corporação é a mesma que conta com a mão de obra a baixo custo em toda a América Latina. Em
tópico específico será comentada de forma mais detalhada esta questão.
79
Dessa forma, tanto femicídio quanto feminicídio são termos utilizados para
referir a violência contra mulheres, resultando em suas mortes, muitas vezes
utilizados como equivalentes em que pese a tradução de Marcela Lagarde.
Entretanto, o conceito de feminicídio está atrelado à ideia de ―genocídio de
mulheres‖ derivado em virtude da própria condição de ser mulher. Com a
propagação do termo e das ideias que contém, a categoria foi utilizada como suporte
à elaboração de normas voltadas para coibir esta prática. (BIDASECA, 2013).
Percebe-se, portanto que, tendo em vista que se trata de categoria recente
[…] el debate sobre estas dos expresiones se ha extendido, llegando
incluso a los argumentos linguísticos a favor y en contra de una u otra. Y si
bien es posible observar una coexistencia relativamente pacífica de las
voces femicidio y feminicidio en Latinoamérica, considerando al elemento
impunidad – y por tanto, responsabilidad estatal – como principal
diferenciador entre ambas, el cuestionamiento a la validez de una u otra
expresión por parte de ciertas autoras dificultan hasta la actualidad la
posibilidad de acercarse a un consenso en el plano teórico y político.
(VÁSQUEZ, 2009, p. 28).
Caputi e Russell (1992) caracterizam o feminicídio como o ápice/extremo de
uma prática de terror continuada e antifeminina que inclui amplo espectro de abusos,
os quais podem ser verbais ou físicos, exemplificados por: violação; tortura;
escravidão sexual; prostituição e abuso sexual infantil intrafamiliar ou extrafamiliar;
violência física ou emocional; assédio sexual por telefone56, nas ruas, trabalho, no
ambiente
escolar/acadêmico;
desnecessárias
como
mutilações
histerectomia
genitais,
gratuita;
operações
ginecológicas
heterossexualidade
forçada,
esterilização forçada e maternidade forçada em virtude da criminalização do aborto;
psicocirurgia, negação de comida, cirurgias plásticas e outras mutilações realizadas
em prol do embelezamento. Afirmam que sempre que estas formas de terrorismo,
assim denominadas por elas, resultam em morte, podem ser categorizadas como
feminicídio.
Segato (2006) comenta que as referências para a formulação da categoria
feminicídio foram produzidas por Caputi e Russell, referindo que:
La intención de las autoras así como de todos los linajes del feminismo que
incorporaron la categoría era encomiable: desenmascarar el patriarcado
como una institución que se sustenta en el control del cuerpo y la capacidad
56
Atualizando as formas de comunicação poderia ser acrescentado o assédio realizado através de
e-mails e redes sociais, ação de assediar sexualmente efetuada por ―hackers‖ e ―stalkers‖ através
de meios informáticos, bem como outros meios similares de comunicação.
80
punitiva sobre las mujeres, y mostrar la dimensión política de todos los
asesinatos de mujeres que resultan de ese control y capacidad punitiva, sin
excepción. La relevancia estratégica de la politización de todos los
homicidios de mujeres en este sentido es indudable, pues enfatiza que
resultan de un sistema en el cual poder y masculinidad son sinónimos e
impregnan el ambiente social de misoginia: odio y desprecio por el cuerpo
femenino y por los atributos asociados a la feminidad. En un medio
dominado por la institución patriarcal, se atribuye menos valor a la vida de
las mujeres y hay una propensión mayor a justificar los crímenes que
padecen. Las autoras llegan a hablar de ―terrorismo sexual‖ para indicar las
formas de coacción que inhiben la libertad femenina y presionan a las
mujeres para permanecer en el lugar asignado a su género en un orden
patriarcal. (SEGATO, 2006, p. 3, grifo da autora).
Assim, a origem da categoria, claramente se estabelece nos anos 90,
buscando atribuir o caráter político ao terror sistêmico aplicados às mulheres por
força da estrutura patriarcal institucionalizada que detém o poder de vida e de morte
sobre os corpos femininos. A atribuição de valor menor às vidas femininas por
suposto, está intimamente relacionado ao histórico de desvalorização das mulheres
e sua objetificação em diversas culturas.
Segato (2006) esclarece, portanto, que a criação da categoria trata-se de
estratégia para politizar estes homicídios no sentido de que deixem de ser
considerados
como
casos
isolados,
dando
assim,
corpo
a
algo
que
sistematicamente é realizado, mas nem sempre percebido como algo conexo a
ponto de transformar estas mortes em uma problemática de gênero, ou em
argumento para contestação da lógica patriarcal.
A categoria possibilitou expor o pano de fundo no qual se desenrolam os
assassinatos de mulheres ao caracterizar os atos que são utilizados pelo poder
patriarcal para destruí-las. De outra forma demarcou diferenciações entre a violência
de gênero e outras formas de violência que, ao menos em primeira instância não
estariam relacionadas com aquele poder. Além disso, ao delimitar as especificidades
dos assassinatos de mulheres passou a retirá-los da classificação geral de
homicídio, trazendo para a mídia a ideia de que há crimes que só podem ser
compreendidos quando pensados a partir de um contexto patriarcal, sendo
colocados no patamar de crimes de ódio, tal qual racismo e homofobia. (SEGATO,
2006). Neste sentido, explica Segato o fundamento pelo qual o feminicídio é
enquadrado como crime de ódio:
Dentro de la teoría del feminicidio, el impulso de odio con relación a la mujer
se explicó como consecuencia de la infracción femenina a las dos leyes del
patriarcado: la norma del control o posesión sobre el cuerpo femenino y la
81
norma de la superioridad masculina. Según estos dos principios,
inspiradores de una variedad de análisis de corte feminista de crímenes
contra las mujeres, la reacción de odio se desata cuando la mujer ejerce
autonomía en el uso de su cuerpo desacatando reglas de fidelidad o de
celibato – la célebre categoría de “crímenes contra la honra” masculina
- , o cuando la mujer accede a posiciones de autoridad o poder
económico o político tradicionalmente ocupadas por hombres,
desafiando el delicado equilibrio asimétrico. En estos casos, los análisis
indican que la respuesta puede ser la agresión y su resultado la muerte. La
intencionalidad de matar o simplemente herir o hacer sufrir no define
diferencias: en esta perspectiva, a veces el feminicidio es un resultado no
deliberadamente buscado por el agresor. En este sentido, los crímenes del
patriarcado o feminicidios son, claramente, crímenes de poder, es decir,
crímenes cuja dupla función es, en este modelo, simultáneamente, la
retención o manutención, y la reproducción del poder. (SEGATO, 2006, p. 4,
grifo nosso).
Esta ―infração das leis do patriarcado‖, em especial no que tange ao controle
e posse do corpo feminino, pode ser facilmente identificada em estudo realizado no
Brasil, pela Secretaria de Reforma do Judiciário, vinculada ao Ministério da Justiça,
no qual Machado (2015) aponta a análise de 34 processos judiciais, oriundos da
Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraná, município de Santo André e região
metropolitana de São Paulo.
No levantamento referido, ao questionar por que morreram estas 34 mulheres
o resultado obtido pela pesquisa foi o de que algumas foram assassinadas pelas
seguintes
causas:
inconformidade
do
companheiro
com
o
término
do
relacionamento; reação violenta ao fato da companheira ter utilizado gás de cozinha
adquirido com recurso financeiro do assassino; menosprezo da vítima com relação à
virilidade do assassino; infidelidade por parte da mulher; discussões e ofensas; a
vítima ter permitido que um homem entrasse em casa na ausência do marido. Foram
indicados, ainda, casos em que a vítima foi a mãe da companheira do agressor ao
investir em defesa da filha, bem como foi elencado um caso em que a advogada,
contratada para realizar a separação do casal foi assassinada pelo companheiro da
sua cliente, devido a estar realizando seu trabalho de representar tal cliente.
(MACHADO, 2015). Assim, ainda com relação a este exame:
Na maior parte do material analisado, alegações relativas a ciúmes ou sentimento de posse em relação à vítima e inconformismo com o término do
relacionamento apareceram nos processos. ―Se não for minha, não vai ser
de mais ninguém‖ é uma frase que aparece em mais de um processo,
atribuída ao autor do crime, e que exprime a ideia corriqueira de que a
vontade da mulher de se separar deve sucumbir ao desejo do namorado,
companheiro ou marido de manter o relacionamento. Não bastante,
constata-se, nos discursos dos autores dos crimes, a expectativa de
fidelidade dessa mulher, mesmo após a separação, já que o envolvimento
82
posterior da mulher com outra pessoa foi apontado como motivo do crime.
(MACHADO, 2015, p. 43-44, grifo da autora).
Desta forma, as características conceituais demonstradas por Segato (2006),
ultrapassam a seara da teorização para se materializar de forma expressiva nos
fatos apresentados pelo estudo de Machado (2015) durante o exame da amostra de
processos judiciais, os quais tramitam nas instâncias do poder judiciário brasileiro.
Resgatando ainda o que Caputi e Russell (1992) entendem por características
que compõe a categoria feminicídio, ao verificar de que maneira morreram estas
mulheres, Machado refere que foram utilizadas/os:
Faca, peixeira, canivete. Espingarda, revólver. Socos, pontapés. Garrafa de
vidro, fio elétrico, martelo, pedra, cabo de vassoura, botas, vara de pescar.
Asfixia, veneno. Espancamento, empalamento. Emboscada, ataques pelas
costas, tiros à queima-roupa. Cárcere privado, violência sexual,
desfiguração. Quando se volta o olhar para a maneira pela qual foi infligida
a violência, chamam a atenção a diversidade dos instrumentos usados no
cometimento do crime e a imposição de sofrimento às vítimas anteriormente
à execução. A arma branca (faca, peixeira e canivete) foi identificada em 14
dos 34 casos analisados. A quantidade de facadas verificada em algumas
situações é expressiva – há processos em que as vítimas foram atingidas
por dezenas de facadas, o que tende a indicar tanto a intenção de provocar
aflição suplementar anterior à morte quanto o desejo de aniquilar
fisicamente a mulher. As facadas são profundas e não raro atravessam o
corpo. As regiões em que as agressões foram perpetradas geralmente são
as vitais, como tronco e pescoço, e algumas vezes o ataque se dá pelas
costas. Em um caso bastante emblemático, as facadas foram dirigidas a
seios e vagina, fato que suscita o intuito de atingir a especificidade do corpo
feminino. Ao final do ataque, a faca restou encravada, até a metade do
cabo, no peito da vítima. (MACHADO, 2015, p. 39-40).
Ainda neste mesmo sentido, ao resgatar o estudo empírico supra e ao
relacioná-lo com as teorizações de Caputi e Russell (1992), destaca-se que o
resultado ―óbito‖, conta com uma trajetória que o precede, e que se constitui em algo
naturalizado, como sendo normal haver desentendimentos entre casais que resultem
em alguma violência57 física ou psicológica para as mulheres, sendo que Machado
constatou que:
A leitura das narrativas processuais permite ainda inferir que a violência
fatal é o desfecho em alguma medida previsível de relacionamentos em que
são comuns xingamentos, ameaças, agressões. É bastante presente, na
análise dos feminicídios íntimos, o histórico de violência doméstica na
relação entre vítimas e autores. Esse convívio violento por muitas vezes
57
O Ministério da Saúde brasileiro, ao mencionar a questão da violência intrafamiliar, estabelece
uma classificação das formas de violência, indicando quatro tipos: física, psicológica, negligência,
sexual. (BRASIL, 1997, 2001).
83
mostrou-se naturalizado tanto pela mulher quanto pelo homem ou por testemunhas envolvidas. (MACHADO, 2015, p. 44).
O estudo de Machado (2015) levou em consideração assassinatos de
mulheres com histórico de violência doméstica reiterada, em alguns casos, com
alguns episódios de brigas e reconciliações entre as mulheres assassinadas e seus
assassinos, nos quais as justificativas para os crimes partiram de construções
arquetípicas/representações dos papéis femininos e masculinos que em alguns
momentos atribuía a responsabilidade pelo ato às mulheres, ora aos homens, de
forma individual. As percepções passavam desde a figura da mulher considerada
como boa mãe, esposa, dentro dos padrões machistas de valores e que sofriam com
homens agressivos e patologizados até a percepção de mulheres desafiadoras dos
padrões machistas, que, ao desafiar estes padrões provocaram a agressão de um
homem considerado como bom marido, pai de família, trabalhador.
Na análise empreendida no estudo verificou-se que em ambas as situações
arquetípicas a ocorrência das mortes é apreciada de forma individual, sem que haja
ponderação acerca da violência estrutural de gênero, o que neste caso, Machado
(2015) denuncia como fator que propicia a manutenção e reprodução de padrões
que limitam a liberdade das mulheres, do exercício de sua sexualidade e justificam a
conduta machista. Os casos mencionados estão na esfera do feminicídio decorrente
de violência doméstica, ou denominado como feminicídio íntimo.
Caputi e Russel (1992)58 indicam três tipos de feminicídio, quais sejam:
íntimo, não íntimo e por conexão. As autoras elucidam que o ―íntimo‖ é aquele em
que a morte é causada por homens com quem a vítima tinha ou teve relações de
intimidade ou convivência, relações familiares, amizade (maridos, ex-maridos,
companheiros, pais, irmãos, tios, namorados, ex-namorados, amigos, etc...); o ―não
íntimo‖ ocorre quando o assassino não tem qualquer relação com a vítima e, muitas
vezes envolve uma violação sexual anterior à morte, podendo ser considerado como
feminicídio sexual, dependendo do caso; ―por conexão‖, na classificação proposta,
trata-se do assassinato de mulheres que saíram em defesa de outra mulher que
seria assassinada, sendo comum nos casos em que mulheres intervieram para
proteger outra. Esta classificação é exemplificativa, uma vez que está aberta em
58
Vázquez (2009) também refere esta classificação.
84
virtude dos debates sobre estes conceitos ainda estarem em construção, pois há
casos de feminicídio que não se enquadram nesta tipologia.
Atencio (2011) elenca outros tipos de feminicídio: a) feminicídio familiar o qual
é praticado por um homem com laços de parentesco; b) feminicídio infantil que seria
o assassinato de meninas praticado tanto por homens quanto mulheres que tenham
relação de confiança com a criança; c) feminicídio por ocupações estigmatizadas
seria aquele praticado contra mulheres que trabalham na noite, em bares e casas
noturnas, como bailarinas, stripers, garçonetes e prostitutas; d) feminicídio sexual
sistêmico desorganizado envolve sequestro, tortura, violação e descarte do cadáver,
sendo que os assassinos podem ser conhecidos ou desconhecidos e matam de uma
só vez e em período determinado. e) feminicídio sexual sistêmico organizado
também envolve sequestro, tortura, violação e descarte do cadáver, porém é
praticado por redes organizadas, com métodos específicos, de forma sistemática.
Russel e Harmes (2006) comentam que o feminicídio pode ser praticado
também por mulheres, quando estas agem como agentes do patriarcado, ou seja,
são casos em que mulheres auxiliam homens a praticar o assassinato de outras
mulheres, quando mães matam as filhas devido à preferência pelos filhos, quando
as mortes resultam de mutilação genital realizadas por mulheres, quando agem
como cúmplices, e, seguindo a mesma lógica, quando matam suas companheiras,
namoradas, ex-namoradas, etc.
Segato (2006) estabelece outro tipo de feminicídio denominado idiossincrático
ou corporativo, no qual enquadrou os assassinatos de mulheres do caso de Ciudad
Juárez, no México. Explica corporação como:
[…] el grupo o red que administra los recursos, derechos y deberes propios
de un Estado paralelo, establecido firmemente en la región y con tentáculos
en las cabeceras del país. Se asemejan, por lo tanto, en su fenomenología,
a los crímenes y desapariciones perpetrados por regímenes totalitarios.
Comparten una característica idiosincrática de los abusos del poder político:
se presentan como crímenes sin sujeto personalizado realizados sobre una
víctima tampoco personalizada, donde un poder secreto abduce a un tipo de
mujer, victimizándola, para exhibir, reafirmar y revitalizar su capacidad de
control. Por lo tanto, son más próximos a crímenes de Estado, crímenes de
lesa humanidad, donde el Estado paralelo que los produce no puede ser
encuadrado porque carecemos de categorías y procedimientos jurídicos
eficientes para enfrentarlo. (SEGATO, 2006, p. 11).
A autora afirma que se faz necessário criar uma categoria específica de
feminicídio para enquadrar este ―Estado
Paralelo‖, tornando juridicamente
85
compreensível e classificável o espectro de atuação dos ―assassinos corporativos‖,
pois alega que não se trata de crimes que possam ser agregados aos demais
relacionados com motivação sexual, falta de entendimento no ambiente doméstico,
pois são crimes que poderiam ser categorizados como ―de segundo Estado o
crímenes de corporación, en los que la dimensión expresiva y genocida de la
violencia prevalece.‖ (SEGATO, 2006, p. 11, grifo da autora).
Por vezes se torna difícil diferenciar claramente os feminicídios corporativos
de outras espécies de feminicídio posto que a mídia revele estes eventos de forma
conjunta, obscurecendo a noção de particularidade que estes atos possuem, pois ao
manter a indistinção resta prejudicada a construção de uma ideia de particularidade
de um conjunto de crimes com característica semelhantes, assim:
Crímenes pasionales, violencia doméstica seguida de muerte, abuso sexual
y violaciones seguidas de muerte en manos de agresores seriales, tráfico de
mujeres, crímenes de pornografía virtual seguidos de muerte, tráfico de
órganos, aparecen en la media y en los boletines de ocurrencias mezclados
y confundidos en un único conjunto. Entiendo esa voluntad de indistinción
como una cortina de humo que impide ver claro en un conjunto particular de
crímenes de mujeres que presenta características semejantes. (SEGATO,
2006, p. 11).
Assim, a seguir se resgata o caso de Ciudad Juárez, mencionado, tendo em
vista que foi o ponto de partida para que legislações acerca do feminicídio
começassem a ser produzidas na América Latina. A produção legislativa nesse
sentido se estabeleceu inicialmente no México e, posteriormente foi realizada em
vários outros países latino-americanos.
3.2 CIUDAD JUÁREZ: CIDADE DO SILÊNCIO, CIDADE DO FEMINICÍDIO
CORPORATIVO
O caso de Ciudad Juárez trata-se de um marco e ponto de partida para as
discussões sobre a questão do feminicídio na América Latina, a história tornou-se
popularizada tendo sido transformada em dramatização, através de produção
cinematográfica, com lançamento mundial em maio do ano de 2006 sob o título de
―Bordertown‖59 e traduzido para o idioma português como ―Cidade do Silêncio‖,
contando com elenco e produção de artistas norte-americanos/as e latino-
59
O que pode ser traduzido como ―cidade de fronteira‖ ou ―cidade fronteiriça‖.
86
americanos/as. A cidade se localiza no estado de Chihuahua, México, fazendo
fronteira com El Paso, nos Estados Unidos da América.
Desde o início dos anos de 1990 do século XX passaram a ocorrer várias
denúncias sobre o assassinato de mulheres nesta localidade, as quais traziam
relatos da ocorrência de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos
que seguiram se repetindo, casos não solucionados que resultavam em impunidade
e omissão estatal. (PASINATO, 2011).
Lagarde (2012) explica que o feminicídio no México transcendeu fronteiras
porque organizações relacionadas aos processos de justiça e os movimentos sociais
passaram a recorrer a organismos internacionais civis e institucionais buscando
solucionar a questão da impunidade em relação aos casos.
Surgieron organizaciones de apoyo a familiares de las víctimas y de lucha
frente a la violencia contra las mujeres, así como grupos de atención a
víctimas que se manifestaron con fuerza como parte de movimientos civiles
en defensa de los derechos humanos y de los movimientos de mujeres y
feminista. (LAGARDE, 2012, p. 211).
A mobilização e força da sociedade civil e dos movimentos sociais naquele
local foram essenciais para levar ao âmbito internacional as denúncias de violência.
Ainda assim os assassinatos continuaram, porém, as denúncias locais passaram a
ter repercussão nacional e, posteriormente internacional, ficando Ciudad Juárez
conhecida mundialmente pelos crimes contra mulheres e meninas devido às
campanhas intensas para combater a impunidade em um país considerado como
um dos mais violentos do mundo. (LAGARDE, 2012).
Organizações de Direitos Humanos internacionais e várias instâncias da ONU
direcionaram mais de cinquenta recomendações internacionais, durante dez anos,
ao México, no sentido de exigir que o governo esclarecesse todos os casos de
feminicídio em Ciudad Juárez, garantisse acesso à justiça para os familiares das
vítimas, oferecesse políticas públicas de igualdade de gênero para enfrentar as
causas dos crimes e erradicasse a violência contra mulheres naquela região,
extinguindo a impunidade. (LAGARDE, 2012).
Sobre a questão já se pronunciaram a Anistia Internacional, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o Parlamento Europeu, os congressos de
países europeus incluindo o Congresso de Deputados da Espanha, o Congresso
87
dos Estados Unidos, grupos de localidades de diversos países, organizações não
governamentais, redes de mulheres e outras entidades. (LAGARDE, 2012).
Pasinato (2011) relata que, a origem dos problemas atuais enfrentados em
Ciudad Juárez, está localizada nos anos de 1960, momento em que sua economia
foi modificada por duas situações: 1) o fim da política de migração legal para os
Estados Unidos para a realização de trabalho braçal nas lavouras; 2) adoção da
política de implantação de grandes indústrias, conhecidas como ―maquillas‖, o que
fomentou a migração interna no México para aquela região.
Estas novas indústrias se estruturaram a partir da mão-de-obra feminina
entendida como barata e dócil, provocando o engajamento de mulheres
jovens/migrantes de outras partes do México. Essa entrada massiva das mulheres
no mercado de trabalho da cidade impactou nos arranjos tradicionais de gênero
daquele lugar, fazendo com que as mulheres abandonassem papéis tradicionais de
esposas, mães, donas-de-casa para ganhar o espaço público, passando a auxiliar
no sustento de suas famílias e adquirindo certa autonomia financeira, enquanto que,
em contraponto, este movimento gerou desemprego entre os homens de Ciudad
Juárez. (PASINATO, 2011).
Segato (2005) define a cidade como um lugar simbólico do sofrimento das
mulheres, pois é o local em que ter corpo de mulher significa perigo de morte,
explica que a cidade é também emblemática no que se refere à incidência da
globalização econômica, neoliberalismo e o que chama de ―fome insaciável de
ganância‖.
Nesse sentido refere que naquele ambiente60 é possível perceber uma
relação direta entre capital e morte, acumulação de renda e concentração de renda
combinadas com ―[...] o sacrifício de mulheres pobres, escuras, mestiças, devoradas
60
Segato (2005) conta sobre sua própria experiência em Ciudad Juárez, pois foi convidada a ir até a
cidade em 2004, o convite fora realizado por duas mulheres integrantes de organizações
mexicanas de defesa das mulheres após estas ouvirem-na em uma conferência formulando
hipótese sobre o caso de Juárez. A autora relata que se comprometeu ao estar naquele lugar por
nove dias a fim de participar de um fórum sobre os feminicídios, mas que foi interrompida por uma
série de fatos que culminaram no sexto dia, quando ao iniciar a sua explanação sobre os
feminicídios no canal de televisão local houve a queda do sinal de televisão a cabo, impedindo que
a entrevista fosse transmitida. A pesquisadora comenta que a coincidência da queda do sinal no
momento em que diria a primeira palavra sobre o assunto fez com que decidisse deixar o lugar na
manhã seguinte, recebendo posteriormente, de todas as pessoas com as quais havia mantido
contato durante a sua estada, que a decisão de abandonar a cidade teria sido de fato a mais
sensata. Para ela, não há coincidências fortuitas naquele lugar, pois tudo o que lá ocorre parece
fazer parte de uma máquina comunicativa em que suas mensagens se tornam inteligíveis somente
para quem adentrou o código, como referido em suas palavras. Ou seja, para quem de alguma
forma compreendeu o que acontece em Juárez.
88
pela fenda onde se articulam economia monetária e economia simbólica, controle de
recursos e poder de morte.‖ (SEGATO, 2005, p.265-266).
Neste contexto foram registradas, por onze anos, numerosas e contínuas
mortes de mulheres com tipos físicos semelhantes, assassinatos realizados com
desmedida crueldade, após estupros coletivos e tortura. A apuração dos fatos
chegou ao número de pelo menos 300 feminicídios, podendo este número ser maior.
(SEGATO, 2005).
É relatada uma tendência local, tanto das instituições quanto das pessoas que
vivem na cidade, quanto na mídia de significar os assassinatos de mulheres na
cidade em conjunto com outros crimes misóginos, confundindo-os com outras
questões que poderiam ser enquadradas como feminicídios íntimos ou sexuais, no
entanto, foi identificado um perfil específico, um modus operandi comum às mortes
de Juárez que pode ser descrito da seguinte forma:
[...] sequestro de mulheres jovens com um tipo físico definido e em sua
maioria trabalhadoras ou estudantes, privação da liberdade por alguns dias,
torturas, estupros ―coletivos‖ – como declarou no fórum o ex-chefe de
perícia Oscar Máynez mais de uma vez –, mutilação, estrangulamento,
morte certa, mistura ou extravio de pistas e evidências por parte das forças
da lei, ameaças e atentados contra advogados e jornalistas, pressão
deliberada das autoridades para culpar bodes expiatórios claramente
inocentes, e continuidade ininterrupta dos crimes desde 1993 até hoje. A
essa lista soma-se o fato de que nunca nenhum acusado pareceu
verossímil para a comunidade e nenhuma ―linha de investigação‖
demonstrou resultados. (SEGATO, 2005, p. 268-269, grifo da autora).
Há duas ideias que circulam acerca da responsabilidade sobre as mortes em
Ciudad Juárez, a primeira a de que seriam cometidos pelos narcotraficantes e a
segunda de que se trata de crimes de motivo sexual. 61 Segato (2005) percebe estas
mortes de outra forma, referindo que o ódio pelas vítimas não é um fator
predominante, que a misoginia e o desprezo pela mulher são generalizados naquele
local, mas que a vítima é produto secundário de um processo, em outras palavras o
que a autora traz é que estas mortes são percebidas como parte de um rito 62 de
61
62
A primeira hipótese é acolhida pela polícia, Procuradoria Geral da República, Procuradoria
Especial, Comissionado dos Direitos Humanos, imprensa e ativistas de ONGs. A outra
considerada pela população e reforçada pela imprensa ao noticiar a descoberta de novos corpos.
(SEGATO, 2005)
Segato (2005) refere dois eixos de poder percebidos no caso em questão: um vertical, de cima
para baixo, que constitui na hierarquização do homem sobre a mulher; e um horizontal que
reafirma o poder dos homens em relação a outros homens.
89
pertencimento a grupos de homens membros de organizações criminosas e com
isso afirma que:
Quem domina a cena são os outros homens e não a vítima, cujo papel é ser
consumida para satisfazer a demanda do grupo de pares. Os interlocutores
privilegiados nessa cena são os iguais, sejam estes aliados, sejam
competidores: os membros da fratria mafiosa, para garantir o pertencimento
e celebrar seu pacto; os antagonistas, para exibir poder diante dos
competidores nos negócios; as autoridades locais, as autoridades federais,
os ativistas, os acadêmicos e jornalistas que ousem intrometer-se no
sagrado domínio, os parentes subalternos – pais, irmãos, amigos – das
vítimas. Essas exigências e formas de exibicionismo são características do
regime patriarcal de uma ordem mafiosa. (SEGATO, 2005, p. 273).
A
autora
propõe
outro
olhar
sobre
a
questão,
de
forma
que
incontestavelmente está presente o desprezo pelas mulheres, no entanto, o
propósito deste extermínio é tão somente a demonstração de poder dos homens
pertencentes às ordens mafiosas, produzindo sentidos naquele contexto local, tratase de demonstração de força ―coesão, vitalidade e controle territorial da rede
corporativa que comanda‖. (SEGATO, 2005, p. 276).
O feminícidio, obviamente, não é exclusividade de Ciudad Juárez, mas tendo
em vista a proporção que os casos adquiriram naquele espaço, pode-se dizer que lá
se situou o estopim de uma série de discussões sobre o tema na América Latina, e a
repercussão de seus casos na Corte Interamericana de Direitos Humanos
reverberou em um processo legislativo focado no tema em diversos países do
continente conforme se verá a seguir.
3.3 A REGULAÇÃO DO FEMINICÍDIO NOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS:
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E OS REFLEXOS DE
CIUDAD JUÁREZ
Os casos de Ciudad Juárez repercutiram no sistema de proteção de Direitos
Humanos da América Latina.
Destaca-se que a América Latina conta com um
sistema regional de proteção de Direitos Humanos que é a Organização dos
Estados Americanos (OEA) e um sistema universal, materializado pela Organização
das Nações Unidas (ONU). Os dois sistemas produziram uma série de tratados,
convenções e acordos internacionais que compreendem os Direitos Humanos das
Mulheres, os quais, uma vez descumpridos, acarretam responsabilização aos
Estados signatários. (MACHADO, 2015).
90
Com relação aos tratados da Organização dos Estados Americanos voltados
para os Direitos das Mulheres, estão vinculados às suas três convenções63 a
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana,
Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai,
Suriname, Uruguai e Venezuela, ou seja, dezoito países latino-americanos.
(MACHADO, 2015).
Ainda no que tange ao sistema de proteção, Machado (2015) relata que 27
países da América Latina aderiram à Convenção da ONU sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, da qual são signatários mais
de 170 países.
Os casos de violação de Direitos Humanos perpetrados pelos Estados latinoamericanos são encaminhados para a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Dentre outros
casos de violência no continente, foi objeto de apreciação o chamado caso ―Campo
Algodonero‖ ou caso González e outras versus México. (MACHADO, 2015).
O caso tratava do desaparecimento e morte de três mulheres jovens,
incluindo duas menores de idade, em Ciudad Juárez, em que o Estado mexicano foi
denunciado por negligência em relação à proteção das vítimas e omissão no que se
refere à prevenção e investigação destes crimes, mesmo diante de um quadro de
violência de gênero que atingia um número expressivo de mulheres. (MACHADO,
2015).
Bidaseca (2013) relata que em 16 de novembro de 2009 o Estado mexicano
foi condenado pelo caso referido, sendo uma decisão simbólica com a intenção de
tipificar feminicídio como um subtipo de genocídio, levando em consideração a
situação de violência estrutural contra as mulheres baseada no gênero, produzindo
jurisprudência sobre o tema, ou seja, produzindo reflexos que resultaram em um
movimento de normatização acerca do feminicídio nos Estados a partir desta
decisão.
Machado (2015) aponta como destaque, além do caso ―Campo Algodonero‖,
outros três casos significativos para a normatização acerca da violência de gênero
na América Latina:
63
São elas: a Convenção Interamericana sobre Direitos Políticos das Mulheres, a Convenção
Interamericana sobre Direitos Civis das Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, também conhecida como Convenção de Belém
do Pará.
91
[...] o primeiro caso, María Mamérita Mestanza Chávez versus Peru (nº
12.191), solucionado por via amistosa entre as partes e encerrado em 10 de
outubro de 2003, o Estado peruano foi questionado perante a Comissão
por praticar uma política pública localizada de esterilização forçada de
mulheres, que resultou na morte de uma mulher submetida a essa
intervenção médica. No caso Paloma Angélica Escobar Ledezma e outros
versus México (nº 12.551), 10 decidido em 12 de julho de 2013, o Estado
mexicano foi considerado internacionalmente responsável por não
assegurar condições institucionais para que mulheres vivessem livres de
violência e discriminação, pois seus agentes estatais não teriam atuado com
a devida diligência para procurar uma mulher sequestrada e para investigar
as condições de sua morte, o que foi entendido como violência institucional. O terceiro caso, decidido em 16 de abril de 2001, Maria da Penha
Maia Fernandes versus Brasil (nº 12.051),11 versa sobre contínua violência
doméstica contra a mulher e tornou o Estado brasileiro responsável
internacionalmente em razão de demora injustificada na performance do
sistema de justiça criminal brasileiro, o que poderia levar à impunidade de
crimes cometidos contra Maria da Penha por seu ex-marido. (MACHADO,
2015, p. 14-15, grifo nosso).
Atualmente dezesseis países da América Latina contam com legislações
voltadas à punição do feminicídio, são eles: Argentina (2012), Bolívia (2013), Brasil
(2015), Chile (2010), Colômbia (2008), Costa Rica (2007), El Salvador (2012),
Equador (2014), Guatemala (2008), Honduras (2013), México (2012)64, Nicarágua
(2012), Panamá (2011), Peru (2011), República Dominicana (2014) e Venezuela
(2014). (ONU, 2015; MACHADO, 2015; COMPROMISSO E ATITUDE65, 2015)
Há várias diferenciações nas leis sobre feminicídio destes países, alguns
optaram pela produção de lei especial, outros pela reforma no Código Penal e,
adoção de lei especial em conjunto com a reforma do Código Penal. Portanto, há
contextos em que a inserção de normas sobre o tema passa por uma exposição de
motivos acerca do significado do feminicídio, promoção de modificações processuais
e criação de instituições voltadas ao combate deste tipo de crime, e há contextos em
que se resumiu a mero ―remendo‖ de Códigos Penais já vigentes66.
64
65
66
Curiosamente, embora tenha sido o México o primeiro Estado a ser condenado por omissão em
casos de feminicídio, segundo a Organização Não Governamental ―Compromisso e Atitude‖,
voltada para campanhas em defesa dos Direitos das Mulheres, o primeiro país a criminalizar o
feminicídio foi a Costa Rica, que o fez em 2007. O México só passou a prever tipificação para
estes casos no ano de 2012. (Disponível em < http://www.compromissoeatitude.org.br/legislacoesda-america-latina-que-penalizam-o-feminicidio/>. Acesso em 31 de outubro de 2015.).
A ―Organização Compromisso e Atitude – Lei Maria da Penha – A Lei é mais forte‖ é coordenada
por uma parceria entre representantes de vários órgãos estatais como representantes da
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, do Conselho Nacional de
Justiça, Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados e da União, Ministério
da Justiça, Conselho Nacional dos Defensores Públicos, Colégio de Presidentes de Tribunais de
Justiça, Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, da Câmara
de Deputados e do Senado Federal.
Caso do Brasil, o qual será avaliado na sequência.
92
Não se pretende a realização de um estudo comparado destas legislações,
portanto, não se detalhará o que traz cada uma delas em seus textos, todavia,
percebe-se que se trata de fruto de um momento específico, devido à proximidade
com que as legislações são produzidas, ou seja, no intervalo que compreende o ano
de 2007 a 2015.
Neste sentido, cumpre refletir acerca do significado das punições estatais e
deste movimento massivo na América Latina no sentido de regular o feminicídio
neste período, pois se é inegável a necessidade de regulamentação ante os fatos
referidos, é também verdade que se faz necessário lançar outros olhares para esta
transformação, pois em um contexto dominado pela colonialidade do poder, do
gênero, do saber e do ser, pelo neoliberalismo e o modo de produção capitalista, é
pertinente se questionar o que teria produzido tal efeito nesta escala.
3.3.1. No que implicam as condenações estatais, o prejuízo em não regulamentar o
feminicídio e outras reflexões
Conforme verificado anteriormente, dezesseis países do continente passaram
a produzir legislações acerca do feminicídio diante da jurisprudência formada pelas
condenações por violações de Direitos Humanos de Mulheres. Note-se que estas
condenações chamaram a atenção da comunidade internacional para a questão,
dando visibilidade ao caráter político do feminicídio.
A partir de então, as condenações passaram a gerar implicações aos Estados
condenados67, pois uma vez que são signatários de acordos internacionais para a
proteção dos Direitos Humanos das Mulheres, e se comprometem a proporcionar
uma vida livre de violência e discriminação, ao se omitirem, conforme destacado
acima, acabam por cometer crimes de Estado, ao permitir o feminicídio em seus
territórios.
Isso se explica pelo que Vásquez (2009) refere, pois o genocídio se trata de
crime de Direito Internacional definido como grave pelas Nações Unidas, contando
com convenção específica elaborada e sancionada em Nuremberg, ocorrendo a
responsabilização do Estado independentemente de ter sido cometido em tempos
67
Estas decisões resultaram em um movimento de produção normativa em que novas leis passaram
a ser elaboradas pelos Estados, inclusive no Brasil, pois a condenação do país na Corte
Interamericana de Direitos Humanos resultou diretamente na produção legislativa da Lei nº
11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha.
93
de guerra ou paz e, não requerendo que seja concretizado em contexto de ataque
sistemático ou generalizado contra a população civil. Sendo o feminicídio definido
como subespécie de genocídio, o mesmo a ele se aplica.68 Lagarde (2012, p. 217)
afirma que ―es preciso aclarar que hay feminicidio en condiciones de guerra y de
paz.‖
A responsabilização do Estado se resume a indenizar as vítimas (no caso do
feminicídio, as famílias das vítimas) e tomar medidas que revertam ou mitiguem a
situação danosa como a criação de leis, instituições e políticas públicas que auxiliem
na modificação do contexto de violência e oportunizem levar a cabo os
compromissos assumidos internacionalmente.69
De outra forma, ainda que não haja condenação específica para determinado
Estado:
La inexistencia de leyes en ciertas materias puede significar un incumplimiento de las obligaciones del Estado de respetar y garantizar los
derechos humanos, ya que esta última impone la obligación de adoptar
medidas legislativas que tiendan a asegurar el goce de éstos. Conforme los
Estados se organizan, especialmente a partir de la legislación que adoptan,
ésta es una de las herramientas fundamentales para lograr la adecuada
garantía de los derechos fundamentales, aun cuando por sí sola sea
insuficiente para garantizarlos, si no está combinada con medidas
administrativas o de otra naturaleza que den una verdadera efectividad a su
contenido. (VÁSQUEZ, 2009, p. 41-42).
Assim, mesmo que o Estado não seja denunciado por sua omissão, a simples
inexistência de legislações internas que possibilitem o cumprimento das disposições
contidas em tratados, convenções e acordos que versam sobre os Direitos
Humanos, no caso Direitos das Mulheres, pode ensejar a punição, o que justifica
que, países como o Brasil, que não foram condenados em face do feminicídio, mas
que tenham sofrido condenações por outras questões, ou mesmo que não tenham
sofrido condenações, passassem a produzir legislação interna sobre o tema.
68
69
Vásquez (2009) comenta ainda que o feminicídio tem sido relacionado com os crimes contra a
humanidade, os quais respeitam a mesma ideia atribuída ao genocídio, ou seja, que podem ser
caracterizado independentemente de ocorrerem em contexto de guerra, porém são somente são
considerados quando praticados como parte de um ataque sistemático ou generalizado à uma
população civil, diferentemente do que ocorre em relação ao genocídio.
―[...] a responsabilidade internacional apresenta características próprias em relação à
responsabilidade no direito interno: a) ela é sempre uma responsabilidade com a finalidade de
reparar o prejuízo; o Direito Internacional praticamente não conhece a responsabilidade penal
(castigo etc.); b) a responsabilidade é de Estado a Estado, mesmo quando é um simples particular
as vítimas ou o autor do ilícito; é necessário, no plano internacional que haja o endosso da
reclamação do Estado nacional da vítima, ou ainda, o Estado cujo particular cometeu o ilícito é
que virá a ser responsabilizado.‖ (MELLO, 2002, p. 138).
94
Lagarde (2012) relata que há condições para que o feminicídio ocorra:
quando o Estado ou suas instituições não oferecem garantias suficientes para
mulheres e meninas; quando não garante a manutenção de suas vidas em
comunidade, nem no espaço privado e nem público, ou seja, nem em casa, nem em
seu deslocamento ao trabalho e outros espaços; quando as autoridades não
realizam suas funções eficientemente; quando o Estado é parte estrutural do
problema, tendo em vista sua característica patriarcal e a preservação desta ordem.
Por isso o feminicídio é um crime de Estado, porque este viabiliza sua prática.
As condições descritas por Lagarde (2012) são facilmente identificáveis no
contexto dos Estados da região. Disso se depreende, portanto, que o movimento de
produção legislativa destes Estados, no sentido de coibir o feminicídio, não se
origina de uma preocupação estatal genuína em reverter a situação de violência de
gênero proporcionada pelas estruturas patriarcais que a colonialidade impôs às
mulheres latino-americanas, mas sua gênese está na ciência de que oferecem
condições para que o feminicídio ocorra e, ao temer estas condenações simbólicas,
internacionais, quer no plano jurídico ou moral, bem como pressão externa devido
aos compromissos assumidos perante a comunidade internacional, lançam-se
nestes processos legislativos.
Nesse sentido, caberia pensar sobre o que significa para um país ser
considerado
como violador de
Direitos Humanos perante a
Comunidade
Internacional, pois em princípio, conforme mencionado, as omissões implicam tão
somente em condenações simbólicas, em tese, não há uma punição em si,
diferentemente do que ocorre no ordenamento interno dos Estados.
Assim, uma hipótese plausível para o recente empenho dos Estados em
inserir dispositivos legais punitivos voltados ao feminicídio em seus ordenamentos
internos pode ser imaginada a partir de parâmetros econômicos, pois os investidores
internacionais possivelmente não desejem que suas corporações, empresas
multinacionais, transnacionais70 e negócios sejam associados a países violadores de
Direitos Humanos.
Pinheiro (2013) ao discorrer sobre investimentos e Direitos Humanos refere
que com relação aos investidores:
70
Resgatamos aqui a observação acerca do material produzido Vásquez (2009) para a Oficina no
México do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, financiado pela
Fundação Ford.
95
A grande corporação transita por todo o globo praticamente sem barreiras, é
uma cidadã do mundo sem vínculos reais e responsabilidades sociais,
distintamente dos indivíduos. O desafio da inclusão social da maioria da
população mundial que se encontra abaixo da linha da pobreza deve ser
compartilhado com a empresa, que muitas vezes detém mais peso politico e
econômico do que o dos Estados em que se localiza. Promover o
crescimento econômico não basta. Se responsabilizar pela elaboração, em
conjunto com a sociedade, de formas criativas e eficientes de incremento na
qualidade de vida de seus empregados e das comunidades afetadas por
suas atividades, deve ser visto como diretriz do grupo e não como uma
externalidade dispendiosa. (PINHEIRO, 2013, p. 28-29)
Ao colocar esta questão, Pinheiro (2013) esclarece que as corporações
passaram a assumir a ideia de responsabilidade social e buscar meios para que
estas ―pessoas fictícias‖ intervenham de alguma forma no contexto em que se
instalam, adotando diretrizes de Direitos Humanos ainda que os Estados onde se
instalem não as possuam (devem se revestir com uma imagem que prioriza a
preocupação com Direitos Humanos) ainda que no plano fático continuem de
alguma maneira a explorar, precarizar as condições de trabalho, impor jornadas de
trabalho extensas e baixas remunerações.
Adotam a ideia de responsabilidade social para mitigar o impacto de seus
investimentos nas comunidades locais. Gize-se que o efeito deste impacto equivale
ao que foi claramente ressaltado por Pasinato (2011) ao discorrer sobre o contexto
econômico de Ciudad Juárez que propiciou o estabelecimento do feminicídio
naquela região, conforme já referido.
Observe-se que a tendência é a de promover Direitos Humanos a partir dos
investidores/corporações, considerando a pressão dos consumidores de países ricos
por um desenvolvimento sustentável nos países considerados como ―em
desenvolvimento‖, os quais são o alvo destes investimentos.
Parece óbvio que quando um Estado é considerado como violador de Direitos
Humanos tenderá a perder estes recursos, ou seja, ser condenado por violação de
Direitos Humanos repercute negativamente para os negócios, assim, obviamente
que
os
Estados-alvos
de
investimentos
empreenderam/empreenderão
uma
crescente produção legislativa voltada para reparar ou prevenir esta classificação.
Pinheiro (2013) refere que, em 2012, 45% do volume total de investimentos
de países mais desenvolvidos se destinou para países em desenvolvimento. Deste
percentual 34% foram destinados para vários países da América Latina, sendo
líderes na recepção de recursos o Brasil, Colômbia, México, Ilhas Virgens Britânicas
e Chile e, destes, o Brasil ficou em primeiro lugar.
96
Coincidentemente neste mesmo período percebe-se a ebulição normativa
relacionada à tipificação do feminicídio, sendo que apenas dois, dos dezesseis
países editaram as suas leis antes de 2012, na América Latina. Ainda que não haja
estudos sobre esta relação depreende-se do contexto que essa corrida legislativa
esteja relacionada com novas exigências do capital internacional.
Observe-se o que está colocado em documento cujo título é ―Feminicidio: un
fenómeno global – de Lima a Madri‖, publicado pela fundação Heinrich Böll
Stiftung71, na União Européia, em Bruxelas, impresso na Bélgica em abril de 2010,
no idioma espanhol:
La diversidad económica, de oportunidades de mercado y en particular la
riqueza de la biodiversidad y de los recursos naturales, coloca a la región de
Latino América y el Caribe (LAC) como un gran socio comercial en potencia,
razón por la cual la UE ha buscado estrategias de fortalecimiento de
alianzas bi-regionales para la expansión de su economía. La UE, liderada
por la actual presidencia española y las futuras presidencias belga y
húngara, considera como una prioridad la consolidación de estas relaciones, esperando con gran expectativa la firma del Acuerdo de Asociación
UE-Centro América y los Acuerdos Comerciales Multipartitos con Colombia
y Perú, y la recuperación de las negociaciones con Mercosur. Mediante la
incorporación de los tres pilares: diálogo político, cooperación y el capitulo
comercial, estas relaciones están tomando diferentes dinámicas, que
buscan canales para la complementariedad social con principios y valores
de democracia, derechos humanos, ayuda humanitaria, gestión de crisis de
seguridad, manejo y prevención de conflictos armados. Sin embargo, detrás
de todo interés económico y comercial, existe una responsabilidad política,
social y ética, en especial cuando el impacto de estas acciones pueden ser
perjudiciales o discriminatorias para uno o varios sectores sociales. De cara
a las negociaciones del Acuerdo de Asociación (AdA) entre la UE y
Centroamérica, la organización Central America Women‘s Network (CAWN)
publicó en el 2008 una investigación sobre el posible impacto social de este
acuerdo, donde muestra que la implementación de muchas de las cláusulas
que presenta el AdA, podrán profundizar la situación actual de pobreza y
desigualdad de las mujeres, precarizando y poniendo en riesgo la
protección y defensa de sus derechos humanos, económicos y laborales.
Por ello es igualmente relevante fortalecer los mecanismos de participación,
seguimiento, monitoreo y rendición de cuentas por parte de diferentes
71
A Heinrich Böll Stiftung é uma fundação alemã sem fins lucrativos que faz parte da corrente
política verde que se desenvolveu em várias partes do mundo nos anos 1970. Preocupa-se com
valores como a defesa da liberdade, justiça, tolerância, engajamento sociopolítico, o debate aberto
e a valorização da arte e cultura como esferas independentes de pensamento e ação. Seus
princípios são o da ecologia e da sustentabilidade, da democracia e dos direitos humanos, da
autodeterminação e da justiça social, a democracia de gênero, emancipação social e direitos
iguais a mulheres e homens. A fundação apóia a promoção de processos de democratização.
Dentro e fora da Alemanha, a Fundação busca parcerias estratégicas países que compartilham
seus valores da entidade, agindo de forma independente, inclusive com relação ao próprio Partido
Verde alemão. Sua sede é em Berlim e atua no debate de ideias e no apoio a atividades em 60
países, através de 28 escritórios. Em 2000, foi inaugurado o escritório do Rio de Janeiro como
forma de estreitar a cooperação e intensificar o diálogo entre pessoas e instituições do Brasil e da
Alemanha. (disponível em < http://br.boell.org/pt-br/o-que-queremos-0>. Acesso em 01 de
novembro de 2015).
97
actores, principalmente de la sociedad civil y las organizaciones de mujeres,
en todas las iniciativas de integración y relaciones entre estas dos regiones.
(RONDEROS, 2010, p. 25).
A partir do excerto acima, parece um tanto mais clarificada uma possível
relação entre a bandeira levantada em prol dos Direitos Humanos das Mulheres, na
consolidação
de
legislações
antifeminicidas,
e
os
interesses
econômicos
europeus/externos, pois visivelmente sob a análise da União Européia estes dois
temas estão imbricados de forma que os acordos comerciais dependem de uma
erradicação ou minoração das violações de Direitos Humanos na América Latina.
Percebe-se ainda, no mesmo documento, o discurso do colonizador revestido
de sua antiga face de colonizador, ainda agora, em pleno século XXI, pois observese outro trecho:
Los avances obtenidos en la Unión Europea (EU) se refieren principalmente
a la sensibilización de los tomadores de decisiones sobre el vínculo directo
entre el aumento de los asesinatos de mujeres en AL, la impunidad
alarmante que los rodea y la incapacidad institucional y política de los
estados a invertir la tendencia. Frente a esta realidad la UE no puede
mantenerse pasiva ni indiferente. Debe actuar promoviendo sus
valores fundamentales es decir, los derechos humanos, la igualdad de
género, el buen gobierno y el estado de derecho. (JIMÉNEZ, 2010, p. 28,
grifo nosso).
À luz dos Estudos Decoloniais é curioso perceber a narrativa salvacionista do
colonizador em um documento produzido na União Européia, articulando sobre a
necessidade de promover Direitos Humanos na América Latina, tarefa da qual ―eles‖
colonizadores ―não podem manter-se passivos‖.
Duas análises podem ser extraídas deste trecho: a primeira análise é a de
que, de fato, as populações da América Latina continuam sendo de alguma forma
representadas como ―a barbárie‖ tal qual na época da colonização, pois é preciso
que ―eles‖, os colonizadores, nos mostrem o caminho da luz e da racionalidade, de
maneira que ―eles‖ devem atuar aqui, promovendo os valores fundamentais ―deles‖,
o que exemplifica como Direitos Humanos, igualdade de gênero, bom governo e
Estado de Direito.
Os latino-americanos são os ―não-humanos‖, ―não-machos e não-fêmeas‖,
sem discernimento suficiente, primitivos/as, que não conseguem por si mesmos/as
solucionar suas próprias mazelas, estas, aliás, trazidas pelos próprios colonizadores;
a segunda análise é a lavratura de um atestado de culpa, pois ao implantarem a
98
ética de guerra à época da colonização, a qual se manteve nestes países, suas excolônias, dizimaram com todas as formas de organização sociais aqui existentes, as
quais possuíam diferenciadas estruturas e trouxeram para cá esta estrutura
patriarcal violadora, que resulta na opressão, violação, tortura e morte de centenas
de mulheres.
De outra banda colocar sob suspeita o movimento legislativo massivo dos
países latino-americanos no que tange às leis sobre feminicídio remete ao que traz
Fraser (2009) ao denunciar a afinidade da segunda onda do feminismo com o
neoliberalismo pós-guerra.
Se esta produção legislativa for, de fato, fruto do receio dos países latinoamericanos em perder os investidores internacionais, trata-se de uma rede de
interesses econômicos que não tem como finalidade última a erradicação do
feminicídio, tão pouco a modificação da estrutura patriarcal, mas o cumprimento de
uma formalidade prevista em acordos internacionais de Direitos Humanos com vistas
ao capital externo.
Talvez a luta feminina em prol da erradicação do feminicídio esteja,
infelizmente e involuntariamente, mais uma vez, fornecendo elementos para que o
neoliberalismo se reinvente, eis que conforme afirma Fraser (2009) o capitalismo
desorganizado ilude com a narrativa de justiça de gênero.
Todas estas considerações levam a mais perguntas do que respostas. Será
que não está a se apresentar mais uma reconfiguração do neoliberalismo à custa da
morte de centenas de mulheres? Os investidores internacionais já perceberam que,
muitas vezes os investimentos de grandes corporações resultam em violações de
Direitos Humanos, perceberam a necessidade das empresas em se revestir de
proposições de responsabilidade social.
Será que não estamos diante de situação similar a que Fraser (2009) relatou
ao suspeitar dos avanços em termos de igualdade propostos às mulheres,
absorvendo trabalhadoras de todos os extratos sociais, de todas as etnias, com o
intuito de explorar a mão de obra barata das mulheres?
Será que a intenção do capital exterior não é dizer: ―parem de matar nossa
mão de obra barata, pois vocês estão prejudicando os negócios‖. Não será o que
fundação Ford faz ao financiar um estudo sobre feminicídio na América Latina? Não
é esta uma forma de evitar o boicote dos consumidores dos países ricos, ao
perceberem os produtos que consomem ―manchados de sangue‖? Decerto em
99
algum tempo ninguém desejará comprar de uma corporação de produz em um país
que viola Direitos Humanos e mata mulheres.
Disso se pode inferir que não há interesse autêntico em reverter a
colonialidade do poder, há interesse em não sofrer mais sanções enquanto Estado,
em não perder investimentos. Assim, mesmo Estados não condenados a produzir a
legislação antifeminicida, como no caso do Brasil72, pode o estar fazendo a fim de
prevenir tal punição, tendo em vista que têm indicativos significativos de violência
contra a mulher, conforme se observará no tópico a seguir.
3.3.2. Os números da violência letal contra mulheres na América Latina e no Brasil
Os números de feminicídios na América Latina são extremamente
significativos e impactam pela quantidade de assassinatos de mulheres na região.
Há dificuldades no que se refere às estatísticas sobre as mortes, tendo em vista que
alguns países não possuem estes dados sistematizados, e, há ainda casos que
sequer são registrados. De acordo com documento de referência da ONU Mulheres:
Na América Latina, existem alguns dados sobre mortes violentas de
mulheres por razões de gênero, mas, os sistemas estatísticos seguem
apresentando desafios importantes e são, frequentemente, desatualizados.
Por outro lado, a informação pode ser limitada no que diz respeito a
fenômenos que possam estar relacionados à morte violenta de mulheres
como são os desaparecimentos de mulheres ou o tráfico de seres humanos.
De maneira geral, o femicidio/feminicídio é considerado como um dos
principais problemas que enfrentam as mulheres da América Latina.
Segundo um relatório do Observatório de Igualdade e Gênero da América
Latina e o Caribe da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe
(CEPAL), em 2011 se registraram 1,139 homicídios de mulheres pelo fato
de serem mulheres em oito países da região. Em 29.4% dos casos, a morte
foi ocasionada por namorados, ex-namorados, maridos, ex-maridos,
companheiros ou ex-companheiros. É importante ressaltar que a
comparação das cifras entre os países é muito complexa, já que o conceito
de femicidio ou feminicídio varia de um país para outro e descreve
realidades distintas (em alguns países, apenas se considera quando a
morte violenta das mulheres ocorre em uma relação de casal; em outros
países, a definição abarca também mortes ocorridas em outros contextos).
(ONU, 2013).
Assim, percebe-se que os dados encontrados fornecem um panorama
aproximado dos indicadores de feminicídio na região, no entanto, já possibilitam
72
Destaque-se que o Brasil não foi condenado em virtude de violação de Direitos Humanos por força
do feminicídio, mas sim violação destes direitos em face de omissão frente a casos de violência
contra a mullher, ou seja, o emblemático caso de Maria da Penha, cuja condenação do país
resultou na elaboração da Lei que coíbe a violência doméstica, conforme descrito anteriormente.
100
formular uma noção da magnitude do problema. Entre 1º de janeiro a 30 de junho de
2012 foram registrados 119 femicídios/ feminicídios na Argentina; entre 2009 e 2012
foram registrados 345 feminicídios73 na Bolívia; entre 2000 e 2010 foram 43.654
casos de femicídio no Brasil; no Chile foram 34 femicídios em 2012 e 29 em 2013;
no Equador 234 feminicídios em 2012; no Peru foram 116 femicídios sendo que
destes 51 são possíveis feminicídios, em 2011; no Uruguai 20 femicídios; na
Venezuela 157 entre 2010 e o primeiro trimestre de 2013. (ONU, 2013).
Lagarde (2012) apresenta resultados de diagnóstico realizado no México
apontando de que em 2004 foram assassinadas 1.205 mulheres, cerca de quatro
meninas e mulheres por dia, mais de 6.000 mulheres e meninas em seis anos, no
período compreendido entre 1999 e 2005, ou seja, são cerca de 1.000 assassinatos
por ano74.
Ao fazer um recorte para o contexto brasileiro, se verifica que o Brasil é o
sétimo país onde há mais assassinatos de mulheres no mundo, analisados 84
países, o que demonstra a gravidade da violência neste Estado, com uma taxa de
4,4 assassinatos em 100 mil mulheres, só fica atrás de El Salvador (1º), Trinidad e
Tobago (2º), Guatemala (3º), Rússia (4º), Colômbia (5º), Belize (6º), estando na
frente, inclusive, do México, classificado em 26ª posição neste ranking, segundo
dados da OMS entre 2006 e 2010. (WAISELFISZ, 2012).
Waiselfisz (2012) indica que entre 1980 e 2010 ocorreram mais de 92 mil
assassinatos de mulheres, destes, 43.700 foram concretizados entre 2000 e 2010 e,
nesta década, especificamente, as mortes passaram de 1.353 para 4.465, ou seja,
triplicaram, representando aumento de 230%. Aponta
também,
que,
houve
um
crescimento das taxas de feminicídios75
Outro dado é o de que entre 1980 e 1996 houve um crescimento na taxa de
feminicídios (as taxas duplicam, passando de 2,3 para 4,6 feminicídios para cada
73
74
75
No entanto o número total de mortes violentas de mulheres foi de 542.
Lagarde (2012) refere que estas mulheres eram de todas as faixas etárias, níveis de instrução e
classes socioeconômicas, variadas funções profissionais, mexicanas e estrangeiras, até mesmo
turistas, ou seja, mulheres com os mais variados perfis, porém com predominância de mulheres e
meninas pobres ou marginais.
O autor utiliza o termo ―homicídios de mulheres‖, no entanto, seguindo o que propõe Segato
(2006) utiliza-se no trecho feminicídio em lugar de ―homicídio de mulheres‖ ou femicídio, justificase: a) por considerar as teorizações da autora no sentido de que há um encobrimento dos casos
de feminícidio ao serem classificados como femicídio (eis que isso tende a retirar a dimensão
política da categoria); b) pelo fato de que no ano em que foi produzido o estudo de Waiselfisz, ou
seja, 2012, ainda não havia o tipo penal ―feminicídio‖ no ordenamento jurídico brasileiro, apenas o
tipo ―homicídio‖; c) pelo reconhecimento de que o Brasil é um país de estruturas patriarcais e
androcêntricas, conforme foi possível perceber no segundo capítulo desta pesquisa.
101
200 mil mulheres), a partir de 1996 até 2006 a taxa se estabiliza e apresenta
tendência de queda. No entanto:
No primeiro ano de vigência efetiva da lei Maria da Penha, 2007, as taxas
experimentam um leve decréscimo, voltando imediatamente a crescer de
forma rápida até o ano 2010, último dado atualmente disponível, igualando
o máximo patamar já observado no país: o de 1996. (WAISELFISZ, 2012, p.
9).
Enquanto no estudo de Machado (2015), realizado a partir da análise de 34
processos judiciais, se verificou que 41% dos feminicídios foram praticados com
arma branca (faca, peixeira e canivete), em uma análise macro, ampliada para os
casos registrados no país, o estudo de Waiselfisz (2012) apontou que em 2010 a
maioria dos feminicídios foi executada com arma de fogo (49,2%), em segundo lugar
com
objetos
cortantes/penetrantes
(25,8%),
objetos
contundentes
(8,5%),
estrangulamentos e sufocações (5,7%) e outros meios, não elencados (10,8%).
Indica também, que o local onde ocorreram os incidentes que produziram as lesões,
as quais originaram as mortes, em sua maioria, é a residência ou habitação da
vítima, o que equivale a 41% dos casos76.
Waiselfisz (2012) estabelece também um ranking do feminicídio77, no ano de
2010, por unidade federativa considerando número de mulheres mortas e taxa
percentual relativa a amostra de 100 mil mulheres, estando o Espírito Santo
posicionado em 1º lugar (175 mulheres em 100 mil, taxa de 9,8%) e o Piauí em 27º
lugar (onde ocorrem menos feminicídios, 40 mulheres em 100 mil, taxa de 2,5%)78.
Indica que os níveis são mais elevados nas capitais:
76
77
78
Em comparação com os assassinatos de homens, somente 14,3% deles sofrem as lesões que
acarretam suas mortes no ambiente de sua residência ou habitação. (WAISELFISZ, 2012).
Percebe-se que a pesquisa de Waiselfisz (2012) foi realizada com base em dados do Ministério da
Saúde, porém há de se considerar que possa haver distorções, tendo em vista que possivelmente
haja casos que não tenham sido notificados.
Alagoas – 2º lugar – 134 mortes – 8,3%; Paraná – 3º lugar – 338 mortes – 6,4%; Pará – 4º lugar –
230 mortes – 6,1%; Mato Grosso do Sul – 5º lugar – 75 mortes – 6,1%; Bahia – 6º lugar – 433
mortes – 6,1%; Paraíba – 7º lugar – 117 mortes – 6,0%; Distrito Federal – 8º lugar – 78 mortes –
5,8%; Goiás – 9º lugar – 172 mortes – 5,7%; Pernambuco – 10º lugar – 251 mortes – 5,5%; Mato
Grosso – 11º lugar – 80 mortes – 5,4%; Tocantins – 12º lugar – 34 mortes – 5,0%; Roraima – 13º
lugar – 11 mortes – 5,0%; Acre – 14º lugar – 18 mortes – 4,9%; Rondônia – 15º lugar – 37 mortes
– 4,8%; Amapá – 16º lugar – 16 mortes – 4,8%; Rio Grande do Norte – 17º lugar – 71 mortes –
4,4%; Sergipe – 18º lugar – 71 mortes – 4,2%; Rio Grande do Sul – 19º lugar – 227 mortes –
4,1%; Minas Gerais – 20º lugar – 405 mortes – 4,1%; Rio de Janeiro – 21º lugar – 339 mortes –
4,1%; Ceará – 22º lugar – 174 mortes – 4,0%; Amazonas – 23º lugar – 66 mortes – 3,8%;
Maranhão – 24º lugar – 117 mortes – 3,5%; Santa Catarina – 25º lugar – 111 mortes – 3,5%; São
Paulo – 26º lugar – 671 mortes – 3,2%. (WAISELFISZ, 2012)
102
Se a taxa média dos estados no ano de 2010 foi de 4,4 homicídios cada 100
mil mulheres, a taxa das capitais foi de 5,1. Destacam-se aqui, pelas
elevadas taxas, Vitória, João Pessoa, Maceió e Curitiba, com níveis acima
dos 10 homicídios em 100 mil mulheres. (WAISELFISZ, 2012, p.12)
No que se refere à faixa etária das vítimas, foram registrados
feminicídios entre 2000 e 2010 de vítimas menores de um ano de idade até mais de
oitenta anos, sendo em sua maioria mulheres entre quinze e vinte e nove anos,
preponderando a faixa entre vinte a vinte e nove anos, com tendência de queda para
mulheres com idades acima de trinta anos. (WAISELFISZ, 2012). Ou seja, trata-se
de mulheres predominantemente jovens, o que se assemelha com o que ocorre em
outros países da América Latina, como no México, por exemplo.
Waiselfisz (2012) ao discutir sobre os dados que coletou assevera que o
Brasil tem número elevado de feminicídios; que níveis elevados de feminicídios são
acompanhados de altos níveis de tolerância da violência contra mulheres, sendo
resultado desta tolerância, a qual se constitui a partir da culpabilização da vítima,
dentre outros fatores; que o fato da violência doméstica ter-se reduzido logo após a
promulgação da Lei Maria da Penha e retornado aos patamares anteriores no ano
seguinte indica que as políticas brasileiras não têm sido suficientes para reverter
este quadro de violência.
Infere-se daí que a mera regulação acerca da violência contra as mulheres,
seja para coibir a violência doméstica, seja para coibir os assassinatos motivados
pelo gênero, não significa modificação das estruturas e instituições que viabilizam tal
contexto. Assim, a seguir se realiza a análise da legislação brasileira acerca do
feminicídio.
3.4 A REGULAÇÃO DO FEMINICÍDIO NO BRASIL: DISCURSO JURÍDICO
COLONIAL OU DECOLONIAL?
A Lei nº 13.104, sancionada em 09 de março de 2015, conhecida como Lei do
Feminicídio, se originou a partir do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 292/2013,
tramitando na Câmara dos Deputados sob regime de urgência como Projeto de Lei
nº 8.305/2014. O projeto é de autoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
Violência contra a Mulher no Brasil e previa a alteração do art. 121 do Código Penal
(Decreto-Lei nº 2.848/1940), para prever o feminicídio como circunstância
103
qualificadora do crime de homicídio, bem como para incluir o feminicídio no rol dos
crimes hediondos, no artigo 1º da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990).79
O Brasil optou apenas pela reforma no dispositivo que versa sobre homicídio,
ou seja, art. 121 do Código Penal e na Lei dos Crimes Hediondos. O feminicídio foi
acrescentando como circunstância agravante que resulta em aumento de pena.
Nesse sentido, seguiu a mesma tendência adotada pela Colômbia, que também
passou a considerar o feminicídio como agravante. Outra tendência adotada
pelos/as legisladores/as brasileiros/as foi a de apenas reformar leis já existentes de
forma semelhante à Argentina, Chile, Equador, Honduras, México, Peru, República
Dominicana e Venezuela80. Percebe-se, no entanto, que a Bolívia criou lei específica
para garantir às mulheres uma vida livre de violência, assim como a Costa Rica, El
Salvador, Guatemala, Nicarágua, Panamá. (COMPROMISSO E ATITUDE, 2015).
Para ilustrar a modificação legislativa brasileira, cita-se na íntegra a mesma,
conforme segue:
o
o
Art. 1 O art. 121 do Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Homicídio simples
Art. 121. ........................................................................
.............................................................................................
Homicídio qualificado
o
§ 2 ................................................................................
.............................................................................................
Feminicídio
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
.............................................................................................
o
§ 2 -A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o
crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
..............................................................................................
Aumento de pena
..............................................................................................
o
§ 7 A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o
crime for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos
ou com deficiência;
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.‖ (NR)
o
o
o
Art. 2 O art. 1 da Lei n 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com
a seguinte alteração:
o
―Art. 1 .........................................................................
79
80
Ficha de tramitação do projeto de lei disponível na página eletrônica da Câmara dos Deputados
em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=858860>.
Acesso em 02 de novembro de 2015.
Contudo, ressalte-se que a alteração na lei venezuelana está contida em diploma legal específico
denominado ―Lei Orgânica pelo Direito das Mulheres a uma vida sem violência‖. (COMPROMISSO
E ATITUDE, 2015).
104
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de
extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado
o
(art. 121, § 2 , I, II, III, IV, V e VI);
...................................................................................‖ (NR)
o
Art. 3 Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. (BRASIL, 2015).
Note-se que o Brasil coloca o feminicídio apenas como circunstância
agravante do homicídio, e, no sentido de demonstrar a pobreza do texto legislativo,
traz-se dispositivo elaborado por El Salvador, que criou lei específica para tratar do
tema, o qual refere a dimensão política do crime:
Art. 9º […] b. forma extrema de violencia de género contra las mujeres,
producto de la violación de sus derechos humanos, en los ámbitos público y
privado, conformada por el conjunto de conductas misóginas que conllevan
a la impunidad social o del Estado, pudiendo culminar en feminicidio y en
otras formas de muerte violenta de mujeres. (EL SALVADOR, 2012).
Também na exposição de motivos que inaugura o Decreto 520/2012 está
expressamente colocado que todas as agressões voltadas contra mulheres estão
imbricadas com a distribuição díspar de poder por força do estabelecimento de
relações assimétricas entre homens e mulheres na sociedade. (EL SALVADOR,
2012).
Da mesma forma, o Decreto 22/2008, norma específica criada pela
Guatemala para tratar do assunto, traz em seu artigo 3º a referência à morte violenta
de mulher ocasionada no contexto de relações desiguais de poder entre homens e
mulheres e o exercício do poder de gênero contra as mulheres. Semelhantemente
ocorre com o Decreto 520/2012, de El Salvador. (GUATEMALA, 2008).
Com isso, pode-se dizer que estes, são alguns exemplos de inserção da
dimensão política do feminicídio nas legislações antifeminicidas. Nesta senda,
percebe-se que enquanto a legislação destinada a coibir o feminicídio em outros
países da América Latina assumiu um posicionamento expresso quanto à
constatação de que o feminicídio é fruto da estrutura patriarcal, tendo em vista que
citam a questão das relações desiguais de poder entre homens e mulheres, o Brasil
limitou-se a ocultar essa dimensão no texto da regulação da agravante do tipo penal,
destinado à punição do homicídio.
O dispositivo legal pátrio considera feminicídio aquele ―praticado contra a
mulher por razões da condição de sexo feminino‖, e esclarece o que deseja definir
como ―condição de sexo feminino‖: ou seja, há razões da ―condição de sexo
105
feminino‖ quando o crime envolve ―violência doméstica e familiar‖ e ―menosprezo ou
discriminação à condição de mulher‖.
Analisa-se o mesmo como vago e, ao omitir elementos essenciais ao
conteúdo político que o termo feminicídio carrega, deixa escapar um significado
contido no não-dito, qual seja, o do discurso jurídico colonial, de manutenção de
estruturas patriarcais, pois se a tipificação por si, isoladamente, não é suficiente para
a reversão do quadro de violência81, ao ocultar a questão da assimetria das relações
de poder entre homens e mulheres o discurso jurídico empregado mantém esse
contexto.
O Direito muitas vezes tem sido apontado como responsável por legitimar
discursivamente, ideologicamente, normativamente e na prática a ordem patriarcal,
legitimando com isso a dominação masculina como parte da ―boa ordem social‖.
Nesse sentido, é preciso pensar o Direito a partir de outro paradigma que supere a
dominação masculina que se nota na aprendizagem e linguagem jurídica. Disso
decorre que adotar uma perspectiva de gênero, no que tange ao contexto brasileiro,
passa pela decolonização do Direito, considerando que as questões de gênero82 e a
colonialidade estão intrinsecamente relacionadas nesta conjuntura. (ALFARO,
2014).
Na medida em que o discurso jurídico empregado na Lei nº 13.104/15
demonstra, através de seu não-dito, que não passou por uma discussão e reflexão
profunda que coloque em evidência as causas desta violência, percebe-se que esta
legislação não tem o condão de dessubalternizar as feminilidades no Brasil, uma vez
que não lhes proporciona o debate necessário a partir deste discurso.
Para o estabelecimento de um discurso jurídico decolonial é imprescindível
que, ao elaborar as legislações voltadas a erradicar a violência letal e não letal
contra as mulheres sejam levados em consideração fatores como a colonialidade do
poder, a colonialidade do gênero, os efeitos do neoliberalismo globalizado sobre a
América Latina, as estruturas patriarcais que sustentam o sistema capitalista, as
questões da raça e da sexualidade. É preciso ter em conta a lógica/ética de guerra
81
82
O que pode ser analisado a partir dos índices de violência comentados por Waiselfisz (2012) no
tópico anterior.
Alfaro (2014, p. 95) esclarece que ―La cuestión de gênero adquiere toda su centralidad en medida
que puede vertebrar uma nueva y radical forma de ver, sentir e organizar el mundo, nuestras
relaciones y a nosotros mismos. Esta perspectiva tiene, por su vez, mucho que decir(nos) en y
respecto al derecho, […], así como a la forma en que podemos imaginar nuevos derroteros para la
convivencia social conforme a derecho.‖
106
que produz a subjetividade ego conquiro, a subjetividade da modernidade que
carrega este ego fálico, masculino do qual fala Maldonado-Torres (2007). Além
disso:
[..], un aspecto e que se expresa ese tributo androcrático del modo de ser
del derecho en las sociedades occidentales capitalistas es el uso de un
lenguaje sexista por cuanto, si – como señala Maturana – somos por el
lenguaje y el lenguajear y renacemos y nos constituimos en el lenguaje,
entonces, el lenguaje sexista no sólo revela una sociedad patriarcal y un
modo androcráctico del derecho, sino que, a la vez, lo constituye y refuerza
como tal. Así, en la mayoría de los textos de instrumentos normativos, sean
del ordenamiento jurídico internacional o de los ordenamientos jurídicos
nacionales, el uso de los términos masculinos no deja duda de que detrás
está la imagen del varón como modelo de sujeto del derecho. (ALFARO,
2014, p. 98-99).
Nesse ponto o discurso jurídico atualmente empregado no Brasil não se
apresenta como suficiente para auxiliar na modificação das estruturas opressoras. O
feminicídio, conforme comentado anteriormente é subtipo de genocídio, ou seja,
crime de guerra, que ocorre naturalizadamente em ―tempos de paz‖, por que ora,
não vivemos em ―tempos de paz‖ na América Latina, nem tão pouco no Brasil,
recorde-se, este é o sétimo país em número de feminicídios.
Vive-se no Brasil a subjetividade do ego conquiro, a violação e exploração do
trabalho das mulheres tal qual em tempos de guerra, que se percebe a partir das
teorizações de Fraser (2009), de Pasinato (2011), de Segato (2005, 2006, 2010), de
Lagarde (2012). Devido a isso:
En la causa para erradicar la violencia contra las mujeres y las niñas y por
construir sus derechos humanos, legislar es parte de un proceso abarcador
que implica el movimiento, el activismo, el estudio, la conciencia, la
posibilidad de nombrar teóricamente desde una visión feminista de género
aquellos hechos invisibles, irrelevantes o considerados normales, hacerlos
visibles, crear conocimientos y luego, tener el poder de llevar a las leyes
pautas, mecanismos y políticas configuradas como marco jurídico de
observancia obligatoria. Habrá que construir los poderes que permitan
proseguir en el arduo camino para que la ley se convierta en política de
Estado y en modo de vida y de convivencia. (LAGARDE, 2012, p. 236-237).
A partir do que discorre Lagarde (2012) o discurso jurídico e a produção
legislativa brasileira ainda haverá de ultrapassar o que tem oferecido em termos de
instrumento legal voltado para a erradicação do feminicídio, não só com a adoção de
uma perspectiva decolonial, mas também com a proposta de gerar outros
mecanismos de atuação antifeminicidas que não se limitem à punição.
De
acordo
com Alfaro (2014) não existe uma ―natureza do Direito‖ que defina que o mesmo
107
deve servir sempre à ordem patriarcal, no entanto, enquanto esta for hegemônica, o
Direito produzido por ela continuará a lhe servir.
É necessário reverter o processo dicotômico homem/mulher, macho/fêmea,
produzido pelo colonizador, ao qual se refere Lugones (2013), e, que exterminou a
noção de comunidade entre sujeitos na América Latina, proporcionando um contexto
de todos contra todos, gerando assimetrias de poder entre colonizados e
colonizadas daqui.
Este contexto perverso possibilita, como coloca Lugones (2008), que homens
subalternizados
sejam
indiferentes
à
violência
sofrida
pelas
mulheres
subalternizadas, que sejam reprodutores e perpetradores da lógica de violação/
morte, estes mesmos homens que tanto quanto as mulheres também são vítimas da
dominação racial, da colonialidade do poder, inferiorizados pelo capitalismo
globalizado e, ainda assim, exterminam aquelas que poderiam ser suas parceiras na
luta pela ruptura deste sistema exploratório e desigual.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para analisar os fenômenos que ocorrem na América Latina e no Brasil é
necessário estabelecer um olhar desde aqui, uma perspectiva que viabilize repensar
acerca de temas que se naturalizaram através do tempo, desde a intervenção dos
colonizadores nesta região até os dias atuais. Verifica-se possível realizar esta
empreitada a partir das teorizações do grupo Modernidade/Colonialidade tendo em
vista que se trata de um movimento de renovação das ciências sociais na América
Latina, que propõe a decolonização epistêmica, teórica e política deste campo das
ciências, sem, no entanto, fechar-se ao diálogo com a produção teórica já existente,
ainda que estas sejam de matriz européia, ao contrário, adota um amplo número de
fontes, eis que sua principal diretriz é a reflexão continuada da realidade latinoamericana, quer cultural ou política, em especial à luz do pensamento filosófico e
político produzido aqui.
Assim, este campo de estudos, ao colocar sob suspeita as narrativas
universalizantes produzidas na modernidade, auxilia a compreender questões
fundamentais que implicam na subalternização das feminilidades neste contexto,
revelando possíveis origens do estabelecimento das assimetrias de poder entre
homens e mulheres no centro e sul da América. Nesta senda, as lentes utilizadas na
compreensão do estabelecimento da subalternização/ violência contra as mulheres,
nesta região, passaram pelo reconhecimento de categorias produzidas pelo
movimento
epistemológico
Modernidade/Colonialidade,
de
resistência
Colonialidade
do
Poder,
referido,
como:
Colonialidade
do
ser,
Colonialidade do saber e Colonialidade do gênero.
Ao partir do pressuposto de que a colonialidade é inaugurada pelo
colonialismo, dotado de estrutura de dominação e exploração, que não se confunde
com ele, e não se encerra com ele, é possível compreender a manutenção e
prolongamento da estrutura referida em várias partes do mundo até a atualidade. A
colonialidade enquanto padrão de poder originado no colonialismo moderno está
imbricado
com
forma
de
trabalho,
conhecimento,
autoridade
e
relações
intersubjetivas que se articulam entre si por meio do mercado capitalista global, bem
como com a ideia de raça, e, permeia as subjetividades dos/as latino-americanos/as.
109
Os três eixos que se articulam com a colonialidade do poder, trabalho, gênero
e raça, são os pilares sobre os quais estão assentados o controle da produção, dos
recursos de manutenção da sobrevivência social e reprodução da espécie e,
portanto, a estrutura patriarcal estabelecida na América Latina é de interesse do
sistema de produção capitalista. Para manter um dos pilares da colonialidade do
poder, é preciso manter as feminilidades submetidas. Paralelo a isso, a racialização
dos sujeitos colonizados legitimou a dominação do colonizador europeu nesta
região, trata-se de uma invenção moderna, sem registros anteriores à colonização
da América Latina, assim, elementos como raça e gênero são receita aprazível para
a manutenção da dominação sobre os sujeitos latino-americanos.
A diferença colonial ou ideia de raça possibilitou ao colonizador a implantação
da ética de guerra na América Latina, produzindo a subjetividade ego conquiro ou
subjetividade da modernidade, um ego fálico, o qual se enraizou nestas terras e se
espalhou pelo mundo. Resulta desta ética de guerra a violação e exploração das
mulheres
coquistadas/colonizadas
e
a
feminização
dos
homens
conquistados/colonizados.
Todavia, considerando que o colonizador colocou os/as colonizados/as na
condição de não-machos e não-fêmeas, a partir da sua racialização e inferiorização,
objetificou estes seres tornando-os não-humanos e, ao torná-los objetos, a
destruição de seus corpos passa a não ter relevância, na medida de sua nãohumanidade. Estas representações, de alguma forma, permaneceram circulando na
cultura através da colonialidade.
Assim, a subalternização feminina, existente desde origens remotas na
cultura do colonizador, chancelada pelas ciências naturais a partir de diferenças
biológico-anatômicas e, transladada para as ciências sociais, foi trazida para a
América Latina e perpetuada pela colonialidade do saber, a estrutura patriarcal foi
inoculada tal qual um vírus nas comunidades originárias da região, destruindo
estruturas equitativas aqui estabelecidas. Eis que foi formada uma corrente de
subalternização: homens brancos que subalternizavam mulheres brancas; ambos
que subalternizavam não-homens e não-mulheres racializados; não-homens
racializados que subalternizavam não-mulheres racializadas. Infere-se acerca disso
que na atualidade as mulheres latino-americanas vivem em um contexto de grande
vulnerabilidade, sofrendo inclusive com a indiferença e violência de homens tão
subalternizados quanto elas.
110
Ao focar o contexto brasileiro, agregado a isso se percebe a contribuição da
ciência jurídica para a manutenção condição de subalternidade das mulheres, com
um espectro de normas permeado por um discurso de inferiorização e incapacidade
feminina, desde o império até a Constituição Federal de 1988, a qual ao adotar
princípios calcados nos Direitos Humanos estabeleceu a igualdade entre homens e
mulheres em direitos e deveres, o que por si, não foi suficiente para minorar os
efeitos de séculos de inferiorização e violência.
Os movimentos de resistência feminina passaram por várias fases, se
constituíram em movimentos sociais, de militância, passaram a tomar lugar na
academia buscaram romper o paradigma de ciência dominante que auxiliou na sua
subalternização. Pouco a pouco a reivindicação de direitos por parte das mulheres
se incorporou na pauta de reivindicação por Direitos Humanos, resultando em uma
série de documentos internacionais (tratados, convenções, acordos) de órgãos
internacionais engajados na promoção de Direitos Humanos pós-guerra, na segunda
metade do século XX e, aqui, destaca-se a Organização das Nações Unidas (ONU),
considerado como sistema universal de Direitos Humanos e a Organização dos
Estados Americanos (OEA), considerada sistema regional de Direitos Humanos.
Contudo, os movimentos feministas de mulheres brancas para mulheres
brancas trouxeram importantes contribuições, no entanto, não atendiam às
necessidades das mulheres latino-americanas, mulheres de cor, já consideradas
não-humanas, racializadas, há muito tempo, status que as mulheres brancas não
gozaram, pois ainda que subalternizadas, guardavam uma importância na estrutura
patriarcal, qual seja, a de reproduzir e passar adiante os valores patriarcais aos
descendentes do homem branco. O feminismo de cor procurou trazer à tona esta
questão da raça em um eixo raça-gênero-sexualidade e, partem para uma ideia de
feminismo decolonial, que toma em consideração todo o histórico de exploração no
continente para pensar acerca das estruturas patriarcais violadoras de Direitos
Humanos desde aqui.
Nota-se que a face mais perversa da violência contra as feminilidades
subalternizadas no continente se mostrou nas denúncias dos inúmeros assassinatos
de mulheres, caracterizados pela bestialidade com que são concretizados, que ao
serem apreciados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, colocou em
evidência o descaso dos Estados Latino-Americanos frente a esta realidade e
demonstra sua contribuição por omissão em proporcionar uma vida livre de violência
111
de gênero. Com isso, põe em descoberto a estrutura patriarcal genocida de suas
instituições negligentes, e mais, revela efeitos de ordenamentos jurídicos de matriz
colonial, comprovada a colonialidade do poder em sua gênese.
A partir da condenação do México pelos assassinatos violentos de mulheres
por razões de gênero em Ciudad Juárez, entrou no cenário de discussões a
categoria feminicídio, que carrega o caráter político que reveste as mortes destas
mulheres como crimes praticados contra mulheres simplesmente por carregarem
corpos de mulheres, e por estarem situadas em contextos misóginos, patriarcais,
machistas e, no caso em específico em uma zona de fronteira onde a face do
neoliberalismo impera e produz seus efeitos, conforme verificado no texto. Outras
condenações ocorreram depois destas e, com a responsabilização dos Estados,
devido à pressão internacional, dezesseis países do continente passaram a elaborar
normas voltadas à punição do feminicídio, inclusive o Brasil.
Suspeita-se, ainda que não haja estudos sobre o assunto, que o movimento
massivo de produção legislativa no sentido de coibir o feminicídio nos Estados
Latino-Americanos em período semelhante, incluindo Estados que não sofreram
condenações, pode estar relacionado a uma nova configuração do neoliberalismo,
pois ao serem declarados como ―violadores‖ de Direitos Humanos, restam mal vistos
pela comunidade internacional em face de descumprimento de compromissos
assumidos com outros países em defesa destes direitos, podendo perder
investimentos internacionais em virtude de pressão e boicote de consumidores de
países ricos.
O Brasil, enquanto sétimo colocado no rankig de feminicídios em comparação
com 84 países do mundo produziu legislação voltada apenas à punição de crime de
feminicídio no ano de 2015. A Lei nº 13.104/15 destinou-se tão somente a inserir o
feminicídio como circunstância agravante à pena de homicídio no art. 121 do Código
Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940), e a inserir o feminicídio como tipo de
crime hediondo, no art. 1º da Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990).
Diferentemente de alguns países da América Latina, o Brasil manteve o
discurso jurídico colonial no texto de sua lei antifeminicida, a partir de seu não dito,
conforme analisado no terceiro capítulo, mantendo sua tradição, uma vez que não
mencionou que o crime de feminicídio ocorre em virtude da assimetria nas relações
de poder entre homens e mulheres por força da estrutura patriarcal, coisa que o fez
países como El Salvador e Guatemala, por exemplo.
112
Assim, percebe-se a produção legislativa neste sentido aligeirada, esvaziada
de reflexão política, não trazendo a dimensão que o conceito de feminicídio carrega,
apresenta-se sim como mera formalidade cumprida a evitar condenações
internacionais devido a não produção de norma sobre a matéria. A norma sequer
estabelece um tipo específico, conta com uma exposição de motivos ou prevê outras
medidas mitigatórias que importem em modificação da estrutura vigente, prima tão
somente pelo agravamento de pena do crime já tipificado.
Para uma decolonização epistemológica da ciência jurídica e a adoção de um
discurso jurídico decolonial passível de auxiliar na erradicação do feminicídio é de
fundamental importância que se leve em consideração as condições que
propiciaram tão altos índices de violência letal contra mulheres, sendo necessário
lançar um olhar que tome em conta a colonialidade do poder, a colonialidade do
gênero, os efeitos do neoliberalismo globalizado sobre a América Latina, as
estruturas patriarcais que sustentam o sistema capitalista, as questões da raça e da
sexualidade, avaliando em que medida a lógica/ética de guerra continua a produzir e
reproduzir a subjetividade ego conquiro.
Percebe-se que o Direito foi instituído para manter a ordem e as estruturas
jurídicas do patriarcado, o controle jurídico da dominação das mulheres se
perpetuou por anos, se refletiu tanto no plano jurídico quanto social. Nesse caminho
os movimentos de reivindicação de mulheres e a crescente ampliação dos Direitos
Humanos forçaram o Direito a oferecer respostas, no entanto, neste processo a
ciência jurídica não se humanizou.
Nota-se, de outra banda, que a colonialidade do poder/saber/ser/gênero é um
trauma que precisa ser trazido à consciência para que se perceba o sofrimento que
causou e causa, a fim de ser ressignificado a partir de novas compreensões, novas
epistemologias e novos instrumentos jurídicos.
Por fim, valida-se a hipótese de que a Lei nº 13.104/15 (Lei do Feminicídio)
não tem o condão de dessubalternizar as feminilidades brasileiras, posto que
carregue em si a marca do discurso colonial no seu não-dito, embora tenha ao
menos inserido o termo ―feminicídio‖ no ordenamento jurídico pátrio. Tendo em vista
que a lei é muito recente, supõe-se que ainda suscitará várias discussões acerca do
conteúdo político do feminicídio, na medida em que for possível avaliar seus efeitos
a partir de estudos que apontem para a redução, ou não, dos crimes referidos.
113
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