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DUQUE, P.H. e COSTA, M. A. LINGUÍSTICA COGNITIVA: em busca de uma arquitetura de linguagem compatível com modelos de armazenamento e categorização de experiências. Natal: EdUFRN, 2012. (Capítulo 2). 2 CATEGORIZAÇÃO: CONSTRUINDO E ORDENANDO A REALIDADE Se o século XX culminou com a façanha da clonagem como sua última conquista, pelo menos não nos convenceu de que a linguagem possa ser um instrumento de clonagem no que se refere a processos de categorização e referenciação. (MARCUSCHI, 2007, p. 87) Estamos chamando de categorização toda atividade mental que nos permite organizar, em termos de classes, a imensa variedade de entidades que constituem o ambiente externo, dando-lhes significações particulares, com o propósito de resolvermos certas disponibilidades e atingirmos objetivos considerados importantes. Categorizar significa construir uma ordem física e social para o mundo (JACOB; SHAW, 1998, p. 155). Isso acontece, por exemplo, quando organizamos as coisas à nossa volta em termos de MOBILIÁRIO, ALIMENTOS, VESTIMENTAS, JOGOS, VEÍCULOS, ANIMAIS DOMÉSTICOS, ALIMENTAÇÃO ORGÂNICA, ESPÉCIES EM EXTINÇÃO; quando caracterizamos grupos e instituições como sendo AMIGOS, SÓCIOS, ESTRANGEIROS, CÚMPLICES, TRAIDORES, REFUGIADOS DO CLIMA, FAMÍLIA, ESCOLA, IGREJA; quando delimitamos o que seja MASCULINO ou FEMININO, SAGRADO ou PROFANO, SAUDÁVEL ou PATOLÓGICO, INFÂNCIA, IDADE ADULTA, TERCEIRA IDADE, ou quando, ingênua e pretensiosamente, pensamos o mundo dividido entre O BEM e O MAL. Fica claro, portanto, que assumimos ser a categorização uma atividade cognitiva e sociocultural, a partir da qual a realidade é construída, e não um processo da mente individual. Presente na experiência humana desde os primeiros momentos de vida, a categorização é uma atividade cognitiva fundamental que atesta nossa interação com o meio ambiente onde vivemos. Ela responde, por assim dizer, às situações de espanto, admiração e assombro diante do mundo e a necessidade que temos de dar significado a tais experiências. Como ponto central para o entendimento sobre o modo como pensamos e produzimos conhecimento, a compreensão de como categorizamos é, nas palavras de Lakoff (1987, p. 5), “um ponto central para a compreensão daquilo que nos faz humanos”. O ato de categorizar atesta os elos entre nossas ações e nossos processos cognitivos. Corpo, cérebro e interação fornecem a base do nosso sentido do que seja a realidade. Se não há interação entre os organismos e entre os organismos e o ambiente à sua volta, não há o que categorizar, assim como não há razão ou necessidade de se fazer inferências. Por outro lado, segundo Collins e Quillian (1969, p. 240), uma das principais funções das categorias é a promoção da economia cognitiva. Isso significa que a divisão que fazemos do mundo em classes de seres, objetos, ações etc. resulta na diminuição da quantidade de informação que temos de aprender, perceber, recordar e reconhecer. Ao investigarmos os processos de categorização, concluímos que fatores históricos, culturais, idiossincráticos e fatores universais se interligam na cognição e na linguagem. É extensa e notória a variação categorial, inter e translinguística, resultante seja de processos diacrônicos, que aferem mudanças conceptuais, seja através da observação sincrônica, em decorrência de fatores culturalmente específicos, ou ainda como evidência das múltiplas perspectivas adotadas pelos sujeitos, relativas a diferentes contextos e situações discursivas. Eco (2007, p. 190), tratando especificamente dos problemas relativos à tradução, afirma que essa “não diz respeito apenas a uma passagem entre duas línguas, mas entre duas culturas, ou duas enciclopédias”. E, procurando compreender como, mesmo sabendo que nunca se diz a mesma coisa, se pode dizer “quase” a mesma coisa, e o quanto deve ser elástico esse “quase”, afirma-nos o autor: Depende do ponto de vista: a Terra é quase como Marte, na medida em que ambos giram em torno do Sol e têm forma esférica, mas pode ser quase como qualquer outro planeta girando em outro sistema solar, e é quase como o sol, pois ambos são corpos celestes, e quase como a bola de cristal de um adivinho, ou quase como uma bola, ou quase como uma laranja. Estabelecer a flexibilidade, a extensão do “quase” depende de alguns critérios que são negociados preliminarmente. Dizer quase a mesma coisa é um procedimento que se coloca, como veremos, sob o signo da “negociação” (ECO, 2007, p. 10-11). De outro modo, também observamos a existência de inúmeros universais conceptuais, diretamente ligados ao fato de os indivíduos terem a mesma estrutura biológica e interagirem num mundo basicamente igual para todos (LANGACKER, 1997). Na compreensão de Lakoff e Johnson (1999), a categorização é uma consequência inevitável da estrutura biológica humana, uma vez que As peculiaridades do corpo humano contribuem para as peculiaridades do sistema conceptual. Temos olhos e orelhas, pernas e braços que trabalham de certas maneiras e não de outras. O sistema visual fornece estrutura por meio de mapas topográficos e células sensíveis à orientação, que moldam nossa habilidade de conceptualizar relações espaciais. As habilidades de movimento que possuímos e de perceber o movimento de outros objetos dão ao movimento um papel fundamental em nosso sistema conceptual. O fato de termos músculos e usá-los para aplicar força de certa forma leva à estrutura de nosso sistema de conceitos causais. O que é importante, portanto, não é apenas o fato de termos corpos e de que o pensamento é de certa forma corporificado. Mais importante ainda é que a natureza peculiar de nosso corpo modela nossas possibilidades de conceptualização e categorização (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 18-19). Por ser uma área privilegiada para as teorias do conhecimento, os estudos sobre categorização têm propiciado a interdisciplinaridade, reunindo interesses da psicologia, antropologia, filosofia, neurofisiologia e linguística, por exemplo. O problema de se saber através de quais mecanismos nós somos capazes de agrupar entidades distintas em uma mesma categoria, tratando-as como equivalentes, faz da atividade de categorização um dos mais fundamentais processos cognitivos e a mais relevante função da linguagem. Embora algumas respostas ainda se mostrem fortemente marcadas pela tradição filosófica que remonta à filosofia na Antiguidade clássica, nomeadamente às ideias de Platão e de Aristóteles, a contribuição das várias ciências cognitivas tem revelado, nas últimas décadas, diferentes e importantes perspectivas quanto à categorização. A abordagem cognitiva contemporânea no interior dos estudos da linguagem, que ganha força a partir da década de 70 do último século, tem demonstrado que não existe uma faculdade autônoma da razão desvinculada das capacidades corporais tais como a percepção e o movimento e que, portanto, a categorização não pode ser tomada como produto de nosso raciocínio consciente, mas como resultante de nossa interação com o meio ambiente com base em nossos corpos e nossas mentes. No que tange aos estudos da cognição corporificada, grande parte das mudanças foi obtida com o resultado da análise crítica de vários postulados sobre a forma como as categorias estariam organizadas e estruturadas. Durante as décadas de 50 e 60 do século passado, o modelo de categorização amplamente adotado era o de traços definidores, também conhecido como Teoria Clássica, que apresentaremos na seção seguinte. 2.1 Teoria Clássica do Significado e da Categorização: as categorias como conjunto de traços compartilhados A filosofia desenvolvida pelos gregos antigos é um marco fundamental, no Ocidente, do debate sobre as relações entre a linguagem e o mundo. Discutia-se acerca da arbitrariedade ou não dos recursos linguísticos através dos quais o mundo é descrito: o significado linguístico resultaria de uma convenção, mero resultado de acordos e tradições, ou cada palavra seria, de fato, apropriada por natureza à coisa que ela designa? Essas duas teses dividiram os gregos da Antiguidade clássica em convencionalistas e naturalistas, respectivamente. No que diz respeito à categorização, Lyons (1979, p. 426) faz referência à “controvérsia filosófica entre realistas e nominalistas, que de uma maneira ou de outra vem vindo desde Platão até os nossos dias”. Enquanto os realistas acreditavam que as coisas às quais damos o mesmo nome (por exemplo, todos os animais que denominamos VACA) teriam algumas propriedades essenciais comuns pelas quais pudéssemos identificá-las, os nominalistas achavam que as coisas não teriam nada em comum a não ser o nome que, por convenção, aprendemos a dar-lhes. Essa discussão é particularmente desenvolvida por Aristóteles, como veremos adiante. É oportuno lembrar que a controvérsia entre convencionalistas e naturalistas foi retomada, no início do século XX, por Ferdinand de Saussure que, alinhando-se aos convencionalistas, reafirmou o caráter arbitrário da língua. Para o linguista suíço, não existe relação natural entre a “imagem acústica” do signo linguístico (o significante) e aquilo que ele evoca conceptualmente (o significado). Contudo, como bem observa Taylor (1992, p. 6), para Saussure, não há sentidos preexistentes esperando para serem nomeados. O léxico de uma língua não é simplesmente uma nomenclatura para algum inventário universal de conceitos. Os elementos da língua se definem uns em relação a outros (noção de sistema). Portanto, os conceitos têm valor diferencial: eles são definidos não positivamente por seus valores intrínsecos, mas negativamente, por sua relação com os outros termos do sistema. Centrando-se nas línguas enquanto sistemas, procurando descrevê-las, a linguística saussuriana focou-se na língua em si mesma, nos seus elementos constituintes, os signos. De acordo com essa postura teórico-metodológica, falar seria, fundamentalmente, relacionar os signos entre eles mesmos, e não signos com a realidade. Araújo (2004, p. 28) reconhece que com notáveis avanços e, ao mesmo tempo, com sérios entraves, a análise de Saussure é ponto obrigatório na discussão da relação dos signos com o chamado fator extralinguístico. A linguística, a fim de poder constituir-se como ciência, deve ocupar-se da langue e não da parole, segundo Saussure, pois esta última representa um verdadeiro obstáculo epistemológico para o linguista. A referência fica fora da linguagem, uma vez que para a linguagem contam apenas as relações intrassígnicas [os grifos são do autor]. Desse modo, o estruturalismo saussuriano, em nome da objetividade científica nos estudos linguísticos, abandona o problema da referência, deixando para a filosofia a missão de “estabelecer a relação na qual se encontram implicadas as questões da verdade, verificabilidade, valor de verdade e outras, nenhuma delas pertinente à linguística, segundo Saussure” (ARAÚJO, 2004, p. 28). No campo da filosofia, Platão nos oferece, no diálogo Crátilo, uma boa representação das ideias defendidas por naturalistas e convencionalistas acerca das relações entre a linguagem e o mundo: enquanto o grupo de Crátilo, inspirado em Heráclito, sustenta que há uma relação natural entre os nomes e as coisas que elas designam (ou pelo menos que, sem essa relação, não existe nenhum nome autêntico), e assume, desse modo, que os nomes eram, em última instância, uma “imitação” das coisas, o outro grupo, buscando inspiração em Demócrito e ligado ao pensamento relativista de que o homem é a medida de todas as coisas, assegura que a atribuição dos nomes é arbitrária, uma questão de lei, de instituição, de convenção. De acordo com a Doutrina das Formas (ou Teoria das Ideias), desenvolvida por Platão, tudo o que existe no mundo representa uma cópia efêmera de uma “forma ideal” detentora de uma existência permanente e independente do espaço e do tempo. No Fédon, através da fala de Sócrates, encontramos: [...] receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas ideias e procurar nelas a verdade das coisas. [...] Se alguém me diz por que razão um objeto é belo, e afirma que é porque tem cor ou forma, ou devido a qualquer coisa desse gênero – afasto-me sem discutir, pois todos esses argumentos me causam unicamente perturbação. Quanto a mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele belo em si, de qualquer modo que se faça a sua comunicação com este (PLATÃO, 1972, p. 112, 99e – 100a). É na República que Platão elabora sua compreensão dualista do real, defendendo haver uma oposição entre o mundo sensível, das aparências, que se apresenta aos nossos sentidos em mutação contínua, e um mundo inteligível, habitat das Formas perfeitas (as Ideias), de realidade atemporal e imutável. Dessa ontologia dualista, interessa-nos ressaltar que ela exclui a experiência humana vivenciada através dos sentidos como fundamento da objetividade categorial, uma vez que, de acordo com o pensamento elaborado por Platão, as Ideias, transcendendo a experiência concreta e relativa dos sujeitos, não se localizam na mente humana na forma de conceitos ou representações, “ao contrário, existem em si, nem nos objetos (de que são os modelos), nem nos sujeitos (que conhecem esses objetos)” (PESSANHA, 1986, p. 59). Como matrizes perfeitas das quais tudo a nossa volta não passa de sombras, as Ideias só são acessadas por nós em raros e fortuitos momentos. Conforme teremos oportunidade de discutir posteriormente, essa separação entre o “Mundo das Ideias” e o mundo material sensorialmente cognoscível, como importante modelo da tradição ocidental de pensamento, está na base de muitas investigações filosóficas e subjaz o projeto cartesiano de separação estrita entre mente e corpo. Nas palavras de Cornford (2001, p. 77), enquanto “o platonismo desconfia dos sentidos e os condena [...] o espírito de Aristóteles inclinava-se naturalmente para outra direção, para o estudo do fato empírico”. Aristóteles rejeitou a tese dualista platônica. Para ele, “só existe um mundo acerca do qual se pode filosofar, aquele em que vivemos e que vivenciamos” (MAGEE, 1999, p. 32), pois tudo quanto estiver fora de toda possibilidade de experiência para o homem não pode representar qualquer coisa que seja. Por isso mesmo, as questões centrais do pensamento aristotélico procuram responder “o que é ser?”, ou seja, “o que significa existir alguma coisa?”. Conforme Magee (1999, p. 34-35), [...] sua primeira conclusão importante foi que as coisas não são apenas a matéria de que consistem materialmente. Ele (Aristóteles) usa o exemplo de uma casa. Se você contratasse um construtor para erguer uma casa em seu terreno e ele mandasse descarregar no local os tijolos, os ladrilhos, a madeira etc. e lhe dissesse: “Pronto, aqui está sua casa”, você pensaria tratar-se de uma piada [...]. Ali estariam todos os materiais constituintes de uma casa, mas não haveria casa nenhuma [...]. Para ser uma casa, tudo precisaria ser reunido de um certo modo, com uma estrutura muito específica e detalhada, e seria por virtude dessa estrutura que seria uma casa. [...] Aristóteles estende esse argumento a espécies inteiras. Não chamamos de cão todos os diferentes tipos de cães porque eles são feitos de algum material distintivo. São cães por virtude de uma organização e uma estrutura distintivas que eles compartilham e que os diferenciam de outros animais também feitos de carne, osso e sangue [o grifo é do autor]. Norteado por tal compreensão, Aristóteles estabelece a distinção terminológica entre essência e acidente. Para o filósofo, essência corresponde a todas as partes que fazem com que alguma coisa seja o que é, portanto, é a causa imanente da existência dos entes, a qual os limita e individualiza. A destruição da essência tem como consequência a destruição do todo. Acidente, por sua vez, relaciona-se às propriedades que não determinam o que a coisa é. Embora podendo ser relacionado a ela, não se trata de um traço necessário nem suficiente para categorizar a coisa. O significado é, nesse sentido, algo prévio ou preexistente às palavras, um assunto metafísico, pois tem relação com o fundamento da realidade, ou seja, com sua própria essência. Para efeitos do significado próprio ou fundamental de uma categoria, não importam os atributos acidentais, isto é, aqueles que, estando num ente, pertencem a ele apenas de maneira incerta, sem afetar a sua essência. Um atributo acidental da categoria HOMEM seria, por exemplo, [ser calvo], ao passo que um atributo essencial seria [ser racional]. De acordo com essa visão, uma definição explica e descreve o significado de uma uma categoria abastecendo seu esquema intrínseco, sistemático ou constitutivo (RIVANO, 1970), ou seja, revela as características gerais e específicas que permitem reconhecer um ente e diferenciá-lo de outros. Assim, por exemplo, podemos dizer que algo é um PEIXE porque conhecemos o significado da palavra “peixe”, o que sugere que conheçamos a essência de “peixe”. Em outras palavras, atribuímos uma entidade a uma categoria P, examinando se as propriedades dessa entidade coincidem com os traços que definem a essência dessa categoria. Nosso conhecimento desse conjunto de traços caracteriza nosso conhecimento do significado de P. Estudos perspectivados nesse modelo defendem que todos os exemplares de uma categoria partilham entre si propriedades comuns, consideradas condições necessárias e suficientes para sua definição. Nesse sentido, ao apresentarem os mesmos atributos, os membros da categoria são igualmente representativos. Por exemplo, AVES são animais (1) com o corpo coberto de penas, (2) voam, (3) têm duas asas e (4) são bípedes. Isso torna claro o que pode ou não ser considerado um exemplar de um grupo, de modo que as fronteiras entre as classes sejam claramente definidas. Sendo assim, quando organizamos as categorias numa hierarquia, as mais específicas incluem todos os traços das mais gerais. No exemplo apresentado anteriormente, a categoria MARITACA incluiria todos os atributos definidores da categoria mais geral AVE. A suposição de que o mundo real é estruturado em grupos hierárquicos que compartilham propriedades inerentes tem fundamento na filosofia aristotélica. Ao conceber esse modelo de categorização, Aristóteles distinguiu signo linguístico, mente (alma, razão) e realidade representada pelo signo. O funcionamento dessa tríade se daria de modo que a linguagem (dimensão do signo) nos permitiria expressar, através da definição real ou essencial de suas categorias, a essência dos entes (realidade representada) impressa na alma do homem: As palavras faladas são símbolos da experiência mental e as palavras escritas são os símbolos das palavras faladas. Assim como todos os homens não têm a mesma escrita, todos os homens também não têm os mesmos sons da fala, mas as experiências mentais, as quais esses simbolizam diretamente, são as mesmas para todos, como também são as coisas de que nossas experiências são as imagens (ARISTÓTELES, 1952, p.25). Acreditamos, pois, ser plausível atribuir a Aristóteles uma concepção mentalista acerca da categorização. Sua filosofia, que confere espaço prioritário à Lógica, almeja compreender os princípios que regem a articulação racional do pensamento. Como nos diz Martins (2004, p. 465), a convergência fundamental entre um interesse pelo pensamento racional e uma atenção à linguagem traduz-se desde logo na própria polissemia do termo logos no mundo grego: este significa, entre outras coisas, linguagem ou discurso, mas referia-se também justamente à capacidade racional humana que tanto interessava a Aristóteles [grifos da autora]. As ideias do filósofo sobre a relação entre a linguagem, o significado e a constituição dos entes, a serviço de uma essência, estabeleceram as primeiras noções do que se tem rotulado como Teoria Clássica do Significado e da Categorização (BRUNER; GOODNOW; AUSTIN, 1956). Essa teoria contempla as seguintes suposições: as categorias são definidas em termos de um conjunto de traços necessários e suficientes, isto é, um membro pertence a uma categoria determinada se, e somente se, exibe todos os traços que o definem; a falta de algum desses traços significaria a sua exclusão imediata da categoria; os traços são binários, ou seja, as coisas possuem ou não possuem um traço, pertencem ou não pertencem a uma categoria; decorre do segundo pressuposto que as categorias tenham limites bem-definidos, uma vez que dividem o universo da denotação em dois grupos de coisas: as que pertencem e as que não pertencem à categoria. Logo, não é possível haver casos ambíguos; dessa bipolaridade dos traços, deduz-se que todos os membros de uma categoria têm o mesmo status. Ora, se os membros pertencem [+] ou não pertencem [-] a uma categoria, não existem graus de pertinência, isto é, não há membros que sejam melhores do que outros; existe uma correlação perfeita entre os atributos dentro da categoria, ou seja, ao sermos capazes de identificar a categoria a que um membro pertence, percebemos, com clareza, que alguns de seus atributos, condições necessárias e suficientes para a pertinência à categoria (category membership) coocorrem. Com relação à análise das categorias linguísticas, Taylor (1992, p.24-26) observa que a perspectiva aristotélica orientou, de maneira predominante, os estudos desenvolvidos durante o século XX. Segundo Taylor, é talvez na fonologia que esse modelo tenha se mostrado mais produtivo. Partindo do pressuposto de que os fonemas são analisados/definidos a partir de um conjunto de traços necessários e suficientes, a fonologia incorpora, entre outras, as seguintes suposições da abordagem clássica: os traços são binários: cada fonema apresenta um entre dois valores; os traços são primitivos: as propriedades constituintes do fonema não podem ser decompostas em elementos mais básicos; os traços são universais: os fonemas de todas as línguas humanas devem ser definidos em termos de propriedades extraídas de um inventário universal de traços. Os conceitos da fonologia foram adotados por alguns linguistas na análise das categorias morfossintáticas (por exemplo, os traços universais que identificam categorias como nome, verbo, adjetivo, entre outras) e semânticas (a significação das palavras em termos de traços como [masculino], [adulto] e [humano]). Dentre esses estudiosos, podemos citar Katz e Fodor (1963), Katz e Postal (1964), Chomsky (1965), Bierwisch (1967, 1970), Nida (1975), Leech (1981), dentre outros. A semântica estruturalista, por sua vez, assumiu parcialmente os pressupostos clássicos. Uma das ideias básicas do estruturalismo, em geral, está relacionada com a concepção da linguagem como um sistema autônomo. A semântica estruturalista admite, por exemplo, que os traços do significado de uma entidade linguística estão relacionados entre si, sistematicamente, o que permite fazer predições acerca de sua classe denotacional. Essa afirmação encontra respaldo no quinto pressuposto da semântica clássica sobre a perfeita correlação dos traços na estrutura de uma categoria. Dentro da perspectiva estrutural, um dos enfoques a respeito do significado e da análise semântica que se encaixa nos pressupostos da teoria clássica é o da Análise Componencial (LYONS, 1979). A aplicação deste tipo de análise, na semântica, tem uma larga história na linguística, na lógica e na filosofia. Essa modalidade de análise é fundamental para o método tradicional de definição por gênero e diferença específica. De acordo com o enfoque componencial, a estrutura do significado de uma categoria (p. ex. VACA) se organiza em termos de traços ou componentes necessários e suficientes (essenciais), compartilhados por todos os seus membros (p. ex. [fêmea], [adulto], [bovino] etc.). Esses traços distinguem uma categoria das outras, dentro de um mesmo campo semântico (p. ex. TOURO, NOVILHO, BEZERRO). É possível fatorizar esses componentes até chegar aos componentes últimos da análise (p. ex. [animal], [humano], [não humano]). A categorização, dessa forma, é compreendida em termos de traços essenciais, muitas vezes, de caráter analítico, sob a suposição de que reproduzem as distinções do mundo no qual o sujeito se desenvolve (LYONS, 1979; LEHER, 1974). Os sujeitos podem se comunicar à medida que compartilhem as mesmas distinções semânticas e as mesmas concepções do mundo. Nesse caso, categorias são unidades homogêneas, com limites claros e recortados. A decisão acerca da pertinência (inclusão ou exclusão) não deverá ser, de nenhum modo, problemática. Segundo essa perspectiva, então, é possível esperar uma descrição bem completa de uma categoria com uma enumeração organizada dos componentes semânticos comuns, ou seja, dos traços que todos e cada um dos membros de uma categoria compartilham e que são suficientes para definir a categoria completamente. Algumas concepções teóricas, como o modelo gerativo-transformacional, postulam o estabelecimento de traços universais, válidos para todas as línguas (KATZ, 1967; LYONS, 1979). Depois de mais de vinte séculos, embora a teoria clássica da categorização ainda se faça notar fortemente em diferentes áreas do conhecimento, um conjunto de evidências empíricas tem apontado, nos últimos anos, as fragilidades dessa abordagem no trato de várias questões, propondo, por isso, alternativas analíticas. Ao transpormos o modelo clássico de categorização para a realidade concreta, encontramos problemas. O mundo, como bem observado por Taylor (1992), apresenta uma grande variabilidade categorial. As categorias são inumeráveis e expansíveis. Lyons (1979) também vê com desconfiança a pretensão da validade universal de certos componentes e põe em dúvida o grau de validade cognitiva do modelo, pelo fato de a interpretação e atribuição dos componentes semânticos se basearem na introspecção ou intuição do linguista e em seus próprios julgamentos culturais. Para Eysenck e Keane (2005), a teoria clássica não consegue captar aspectos significativos do comportamento conceptual e, além disso, o pressuposto central de que os conceitos dependem de uma conjunção de características essenciais não tem sustentação empírica. O fato é que a análise componencial não é um método fundado numa teoria semântica de interesse cognitivo. Sua aplicação não responde à pretensão de realizar uma descrição da maneira como os falantes comuns e correntes categorizam entidades no mundo e organizam informação linguística e metalinguística. A teoria semântica clássica, cujos pressupostos sustentam grande parte da metodologia componencial, não é, como assinala Lakoff (1987), uma teoria de como a mente faz com que o mundo tenha sentido, mas sim, uma teoria acerca de como são as coisas no mundo. Um modelo alternativo à perspectiva clássica sobre a categorização é a Teoria dos Protótipos que, em vez de considerar as categorias como estruturas estáveis e claramente definidas, as concebe como estruturas de atributos graduáveis e com limites difusos [categorias Fuzzy] (TAYLOR, 1992). Os graus de relevância dos atributos, dentro das categorias, correspondem ao fato de que essas se organizam em torno de um centro cognitivo exemplar, dentro do qual as entidades são ordenadas e também incluídas ou excluídas pelos falantes, produzindo o que se conhece como efeitos de protótipo [Prototype Effects] (LAKOFF, 1987; TAYLOR, 1992). A concepção da estrutura prototípica das categorias linguísticas tem fundamentos na Psicologia Cognitiva e na filosofia de Wittgenstein, que antecipa as inadequações do enfoque clássico. Para melhor entendermos tais fundamentos e como seus proponentes explicitaram as deficiências do modelo clássico, mais especificamente o que diz respeito à necessidade de definição de atributos para os membros de uma classe, é importante que tenhamos uma compreensão, mesmo que sucinta, das mudanças epistemológicas ocorridas a partir do final do século XIX que culminaram na virada pragmática em meados do século XX. 2.2 A Tradição Analítica e a Filosofia da Linguagem: o enfoque lógico-representacionista do significado Conforme vimos, na tentativa de conceituar os termos linguísticos, a filosofia da Antiguidade clássica discutiu sobre a natureza desses termos, procurando analisá-los. Podemos dizer, portanto, que a análise conceitual chega até nós como uma antiga tradição que remonta a Platão, Aristóteles e, posteriormente, a outros filósofos. De acordo com Magee (1999, p. 194), “o sistema de lógica estabelecido por Aristóteles permaneceu essencialmente inalterado até o século XIX”. Todavia, no final daquele século, o filósofo alemão Gottlob Frege questionou os princípios desse sistema ao afirmar que as proposições lógicas são verdades objetivas e, assim sendo, não estariam submetidas às leis do pensamento, mas ancoradas na relação entre a linguagem e os referentes do mundo. Com esse enfoque lógico-representacionista, Frege inaugurou os fundamentos da filosofia analítica, voltada para uma linguagem formalizada, de inspiração na matemática, que funcionava por meio de operações chamadas cálculos simbólicos. O objetivo maior desses cálculos era “avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso. Dava-se ênfase à sintaxe lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade representativa indicativa da linguagem” (CHAUÍ, 2005, p. 153). As sentenças com conteúdo proposicional assumem, desse modo, papel central nas análises. Nesses termos, a linguagem natural, isto é, a usada cotidianamente, por ser considerada confusa e cheia de elementos afetivos e imaginativos, fica afastada. A filosofia analítica, voltando-se mais diretamente para a configuração sintático-semântica das línguas, procurou assegurar um tratamento rigoroso à análise conceitual, motivada pela visão de que só através de um tratamento criterioso dos conceitos seria possível uma responsabilidade maior em torno do uso da palavra e, consequentemente, um maior rigor nos estudos filosóficos. É sob esse enfoque que, a partir do final do século XIX, a relação entre a linguagem e a realidade volta a ser um problema a ser resolvido. O fato é que a perspectiva desenvolvida pela filosofia a partir de Frege desloca drasticamente, no pensamento ocidental, a tese platônica da existência de uma fenda metafísica entre a realidade e a representação linguística dessa realidade. Na compreensão de Araújo (2004, p. 11-12): Em fins do século XIX, dá-se um corte epistemológico, uma mudança no campo conceptual: no lugar do puro pensamento e das ideias do racionalismo e do empirismo do século XVII e no lugar da razão kantiana com suas formas puras a priori, surge a linguagem como um dos problemas centrais do pensamento ocidental. (...) Na mesma época, surge a lógica matemática com Frege, Russel e o Wittgenstein do Tractatus logico-philosophicus, que contribuiu primeiramente com a teoria da figuração, dando todo “poder” à proposição, e depois de uma impressionante revisão teórica, passa à análise da linguagem ordinária. Como nos lembra a autora, Wittgenstein, no primeiro momento de sua obra, ainda sob a influência da filosofia analítica da chamada corrente lógica, elaborou o que passou a ser conhecida como a teoria figurativa da linguagem, que versa sobre o paralelismo entre linguagem e mundo. De acordo com essa teoria, a conexão entre as palavras e os objetos só é possível por haver uma correspondência entre a figuração do mundo na linguagem e o próprio mundo afigurado. Como explica Wittgenstein (1953), “o que a figuração deve ter em comum com a realidade para poder afigurá-la à sua maneira – correta ou falsamente – é a sua forma de afiguração” (TLP § 2.17). Ancorado em uma analogia com a pintura, o autor argumenta que uma pequena tela de lona é um tipo de objeto totalmente diferente de uma extensão de paisagem, e, todavia, um pintor consegue fazer a primeira representar a segunda por meio de manchas de tinta, fazendo-as corresponder a elementos que estão relacionados entre si na paisagem. A esse conjunto de relações internas Wittgenstein deu o nome de “forma lógica”, assegurando que, por ser a forma lógica a mesma em ambos os casos, uma podia representar a outra. Do mesmo modo, como argumenta o autor, somos capazes de reunir palavras, que substituem coisas, em enunciados que têm a mesma forma lógica dos estados de coisas que os enunciados descrevem (operação que nos permite representar a realidade na linguagem). O autor conclui daí que a correspondência entre a linguagem e o mundo é possível devido ao fato de ambos partilharem da mesma forma lógica, o que assegura a possibilidade da afiguração. Vale ressaltar, contudo, que não se deve entender a proposição como uma imagem do tipo cópia, isto é, colada à realidade, puramente reflexiva, mas uma imagem do tipo diagramático, que arranja projetivamente, dispõe convencionalmente os elementos da proposição e do fato a ser nela projetado. Há um traçado, uma forma de afiguração, uma regra ou lei de projeção entre a proposição e a realidade figurada (ARAÚJO, 2004, p. 79). Posteriormente, Wittgenstein, reconhecendo as lacunas de sua proposta inicial, concluiu que a linguagem não se limita às proposições que figuram fatos do mundo e que o significado de um termo ou de um conceito não apresenta uma única face, embora haja provavelmente uma semelhança de família entre suas várias faces. Assim, se tomarmos um termo ou um conceito isolado, seu significado resulta da soma total de seus usos possíveis, que podem ser variados. Não existe necessariamente “uma coisa” qualquer que ele “represente”. Essa nova perspectiva, que provoca uma profunda mudança paradigmática rumo à virada pragmática em meados do século XX, rejeita, portanto, a tese defendida pela teoria clássica do significado de que palavras específicas representam coisas específicas e têm significados fixos, passando a defender que o significado só existe no uso que fazemos da linguagem em situações sociais. Agora, para Wittgenstein, a linguagem é pública, não existindo nada parecido com uma “linguagem particular”. É no interior desse novo enfoque que iremos tratar os pressupostos da teoria dos protótipos relacionados aos processos de categorização. 2.3 Ludwig Wittgenstein: as semelhanças de família Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein (1953) sugere que não devemos buscar o significado, mas sim os usos das palavras e orações, que são tão inumeráveis quanto os jogos: Há inumeráveis gêneros diferentes de emprego de tudo o que chamamos “signos”, “palavras”, “orações”. E esta multiplicidade não é uma coisa fixa, que acontece de uma vez por todas; mas que novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem nascem e outros envelhecem e são esquecidos (WITTGENSTEIN, 1953, p. 23). Referindo-se à extensão do significado de JOGO, o filósofo aponta as inadequações da teoria aristotélica que trata da categorização ao chamar nossa atenção para a dificuldade de se estabelecer um conceito para JOGO, uma vez que os vários membros dessa categoria não compartilham uma propriedade comum que os distinga do NÃO JOGO. Ou seja, os diferentes membros da categoria JOGO não têm, ao menos, um traço que a multiplicidade de atividades designadas pela palavra compartilhe, nem sequer uma base sobre a qual se decida o que seja um jogo ou o que não seja: Considere, por exemplo, os procedimentos que chamamos de “jogos”. Refiro-me a jogos de tabuleiro, jogos de cartas, jogos de bola, jogos olímpicos, etc. O que é comum a todos eles? – Não diga “algo deve ser comum a todos eles, senão não se chamariam ‘jogos’” – mas olhe se há algo comum a todos eles. Pois, se você os contempla não verá com efeito algo que seja comum a todos, mas verá semelhanças, afinidades, na verdade, toda uma série delas. Como disse: não pense, mas olhe! – Olhe, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com suas múltiplas afinidades. Agora passe para os jogos de cartas: aqui você encontra muitas correspondências com aqueles da primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem, e outros surgem. Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa comum se conserva, mas muitas se perdem. – São todos “recreativos”? Compare o xadrez com o jogo da amarelinha. Ou há em todos um ganhar e perder, ou competição entre os jogadores? Pense no jogo de paciência. Nos jogos de bola há um ganhar e perder; mas se uma criança atira a bola na parede e a apanha outra vez, este traço desapareceu. Olhe que papéis desempenham a habilidade e a sorte. E como é diferente a habilidade no xadrez e no tênis. Pense agora nos brinquedos de roda: o elemento de recreação esta presente, mas quantos dos outros traços característicos desapareceram! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver semelhanças surgirem e desaparecerem (WITTGENSTEIN, 1953, p. 31-32). Dessa observação, Wittgenstein conclui que o que ocorre com a categoria JOGO não se trata de uma particularidade. Muito pelo contrário, a dificuldade de se ter categorias fechadas, com fronteiras nítidas, ocorre na maioria das vezes. O filósofo sugere, portanto, que, em lugar de traços comuns, existe entre essas múltiplas atividades uma rede entrecruzada de semelhanças que passa a denominar semelhanças de família. Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a expressão “semelhanças de família” [Familienähnlichkeiten]; pois é assim como se superpõem e entrecruzam as diversas semelhanças que ocorrem entre os membros de uma família: estatura, cor dos olhos, andar, temperamento etc. Assim, podemos dizer: os jogos compõem uma família (WITTGENSTEIN, 1953, p. 32). Há atributos que, tipicamente, associamos à categoria. Alguns membros apresentam alguns desses atributos, mas não há nenhum que possa ser compartilhado com todos os outros. Inclusive, pode haver membros que não apresentem nenhum atributo em comum com os demais e, por outro lado, os atributos podem ser incluídos em mais de uma categoria, já que os atributos (semelhanças de família) não são ‘exclusivos’. Dessa forma, os limites das categorias são difusos: E é assim como empregamos de fato a palavra jogo. Pois de que modo está fechado o conceito de jogo? Que é ainda um jogo e o que não é? Pode-se indicar um limite? [...] Não se pode traçar um, pois não há nenhum limite. [...] Pode-se dizer que o conceito de jogo é um conceito de limites difusos (WITTGENSTEIN, 1953, p. 33-34). Se a estrutura das categorias consiste em um conjunto de semelhanças de família e não em traços mínimos essenciais compartilhados e se, como ocorre muitas vezes, as categorias tendem a fundir-se em outras (possuem limites difusos, apagados), o conhecimento de uma categoria não implica que possamos estabelecer, com completa certeza e unanimidade, que membros pertençam ou não a ela. Por isso, a teoria clássica do significado não serve para demonstrar a classe denotacional das categorias, mesmo porque novos membros nascem, enquanto outros envelhecem e morrem. Se as categorias são estruturas difusas e de uma grande variabilidade denotacional, como as aprendemos? Wittgenstein sugere que isso ocorre através do uso, mediante a exposição de exemplares: Como explicaríamos a alguém o que é um jogo? Acredito que, se descobríssemos um novo jogo, poderíamos acrescentar a descrição: isso (e coisas semelhantes) se chama jogo (WITTGENSTEIN, 1953, p. 33). Fiel ao seu pensamento, o filósofo não desenvolveu sistematicamente o conceito de semelhanças de família e de aprendizagem mediante exemplares. Foram outros autores que conectaram tais noções com resultados experimentais, dando forma a uma perspectiva semântica alternativa à teoria clássica. As ideias e a certeza de Wittgenstein de que a teoria clássica do significado (e da categorização) é inadequada para predizer a classe denotacional das palavras foram confirmadas empiricamente nos estudos que se originaram na Psicologia Cognitiva, o que favoreceu o surgimento de uma perspectiva mais versátil para o estudo da estrutura das categorias e que poderia cobrir os casos para os quais a Semântica Clássica, de fundamento aristotélico, resultava inadequada: trata-se da Teoria dos Protótipos, no interior da Semântica Cognitiva. 2.4 Categorias prototípicas: o enfoque cognitivista As considerações apresentadas na seção anterior a respeito do caráter difuso da categorização, desenvolvidas em termos de atributos e semelhanças de família, ganharam força dentro do enfoque cognitivista. Trazendo inovações à noção de categorização, a Teoria dos Protótipos (doravante TP) passou a postular que as categorias não são estruturas homogêneas. Para se distinguir do enfoque clássico da categorização e do significado, a TP reempregou a noção “traço” ou “componente”, substituindo-a pela noção de “atributo”. Enquanto os traços se caracterizam por ser binários e, em consequência, por ter o mesmo status analítico, os atributos têm efeito: a existência de membros mais representativos implica que existem atributos mais centrais (prototípicos) que outros. Podemos concluir, portanto, que uma significativa diferença entre a abordagem clássica e a categorização prototípica está no fato de a primeira permitir apenas dois graus de participabilidade [membership]: a entidade é ou não é membro de uma categoria. Diferentemente, trabalhando-se com o modelo de protótipos, a expectativa é a de que, distribuídos em um continuum, diversos membros possam ser agrupados dentro de uma mesma categoria. Para Rosch (1978), o protótipo atua como ponto de referência cognitivo [cognitive reference point]. Isso quer dizer que a categoria se organiza em torno do exemplar prototípico: no centro, situam-se os exemplares que têm maior semelhança com o protótipo e, na periferia, os que têm menor semelhança. Kleiber (1995) define protótipo como um objeto mental, esquema ou imagem cognitiva associada à palavra que se categoriza. Taylor (1992) argumenta que, paralelamente à visão de protótipo, como exemplo, é necessário postular uma representação mental do protótipo, para tornar o falante hábil para identificá-lo em diferentes ocasiões. As categorias prototípicas apresentam uma flexibilidade ignorada por Aristóteles para acomodar os novos dados, ainda não familiares. De acordo com a posição aristotélica, os novos dados poderiam forçar, para a sua categorização, a criação de novas categorias ou uma redefinição das já existentes. Por outro lado, no modelo dos protótipos, novas entidades e novas experiências podem ser prontamente associadas como membros periféricos para uma categoria prototípica, sem necessariamente exigir a reestruturação do sistema da categoria. Para Geeraerts (1975, apud Taylor 1992), a inflexibilidade das categorias clássicas pode torná-las altamente ineficientes para a cognição humana, uma vez que o fluxo de experiência raramente acontece com uma perfeita correlação entre atributos e categorias, tal como postulado pela teoria clássica. As categorias prototípicas permitem uma relação entre os seus membros que compartilham poucos atributos com o membro central. Dessa forma, as categorias prototípicas encontram a flexibilidade exigida pelo ambiente em constante mudança. Há duas formas para se entender o significado de “protótipo”. O termo pode ser aplicado para o  membro central ou para o agrupamento de membros centrais de uma categoria. Então, pode-se referir a um artefato em particular como um protótipo de xícara, ou, alternativamente, o protótipo pode ser entendido como uma representação esquemática do centro conceptual de uma categoria. Com confirmação empírica através de uma série de experimentos, Berlin e Kay (1969), Labov (2004), Rosch e Mervis (1975), por exemplo, evidenciaram que as categorias exibem uma estrutura prototípica, ou seja, apresentam bons e maus exemplos. Os membros mais representativos, aqueles que os falantes primeiro evocam ao ouvir (ou ler) o nome de uma categoria, são os membros centrais ou prototípicos (melhores exemplos), em torno dos quais os demais se organizam. Uma investigação pioneira, que serviu de argumento não só para a noção de protótipo mas também para a linguística cognitiva em geral, é o estudo das cores básicas (BERLIN; KAY, 1969). Os resultados dessa pesquisa contradizem a hipótese estruturalista da arbitrariedade das categorias linguísticas, assim como a concepção de sua organização em traços essenciais. Segundo o estruturalismo e o enfoque de componentes de significado, a realidade é um continuum indiferenciado que a linguagem divide arbitrariamente em unidades discretas. As categorias não têm, então, um fundamento objetivo, com uma base na realidade. A terminologia da cor deveria ser idealmente apta para demonstrar essa ideia, já que cada linguagem divide o contínuo da cor de maneira diversa. O estudo de Berlin e Kay revela, contudo, algo diferente. Embora seja certo que as línguas apresentem uma grande variedade de termos de cor, a evidência experimental assinala que existe um inventário universal de onze cores focais. Assim, contrariamente à visão estruturalista, a divisão e organização do continuum da cor em categorias não se constitui em termos de unidades discretas, mas sim, em torno de entidades focais (mais centrais, mais estáveis). Segundo Duque (2002), cada categoria de cor apresenta uma cor focal, um exemplar central primário, de cuja generalização depende a classe de denotação completa da categoria, cuja existência está determinada  por fatores biológicos, cognitivos e ambientais. Nesse sentido, as categorias de cor têm centro e periferia e seus membros, em consequência, não têm o mesmo status (existem roxos melhores, verdes melhores, amarelos melhores etc.), além disso, os exemplares focais permanecem constantes dentro da categoria, independente da quantidade de termos de cor, ou seja, independentemente do fato de estarem ou não lexicalizadas, na língua, outras cores. As categorias de cor não formam, portanto, um sistema, no sentido saussuriano (TAYLOR, 1992). A TP é, de certo modo, uma generalização das conclusões acerca da categorização da cor. Os protótipos são considerados tipos de categorias focais. Embora não se possa sustentar que todas as categorias têm, como as de cor, uma base biológica, pode-se sustentar, em geral, que as categorias se estruturam em torno de um centro cognitivo, seja perceptivo ou conceptual, até que os falantes julguem e meçam sua classe denotacional e aplicação. As entidades e os atributos, dentro de uma categoria, se ordenam com diferenças de graus a partir da projeção desses focos cognitivos. Os membros mais distantes do centro serão casos limites que podem, inclusive, fazer parte de outras categorias. Rosch (1973, 1975), partindo dos achados de Berlin e Kay (1969), pesquisou crianças da pré-escola de Nova Guiné, detentoras de uma cultura não ocidental, a cultura Dani. Dessa pesquisa, a autora concluiu que (RIZZATTI, 2001): cores focais são perceptualmente mais salientes do que cores não focais; as crianças de três anos têm maior atração pelas cores focais do que pelas não focais; as crianças de quatro anos combinam as cores focais com mais precisão para a amostra dada de outras cores, do que as cores não focais; as cores focais são mais precisamente lembradas pela memória de curto prazo e mais facilmente retidas na memória de longo prazo; os nomes das cores focais são mais rapidamente produzidos nos exercícios de nomeação de cores e são adquiridos mais cedo pelas crianças. Labov (2004), por sua vez, pesquisou a categorização linguística de utensílios domésticos como XÍCARAS, CANECAS, TIGELAS e VASOS. Para realizar sua pesquisa, ele apresentou a uma plateia recipientes de diferentes tamanhos, indagando o nome do que estava sendo apresentado. Contrariando a expectativa da teoria clássica, ficou constatado que não há uma linha divisória clara entre, por exemplo, XÍCARA e TIGELA, uma vez que, quando apresentado um objeto com área circular, afinado em direção ao fundo, esse era reconhecido como XÍCARA, enquanto objeto similar, com a largura e a profundidade aumentadas, era identificado como TIGELA, sem se saber a partir de que ponto o objeto deixou de ser xícara para se tornar tigela. Havia, portanto, situações em que o mesmo objeto era identificado por alguns como XÍCARA, enquanto outros o identificavam como TIGELA. Ficou constatado, assim, que uma categoria pode emergir gradualmente da outra. Desses experimentos, o autor chegou às seguintes conclusões, utilizadas em outros estudos que se seguiram: categorias não representam divisões arbitrárias dos fenômenos do mundo, mas devem se vistas com base nas capacidades cognitivas da mente ou memória humana; categorias cognitivas de cores, formas, assim como de organismos e objetos concretos, estão ancoradas em protótipos conceitualmente salientes que têm papel importante na definição de categorias; os limites ou fronteiras das categorias cognitivas são fuzzy – difusos, mal delimitados; por exemplo, categorias vizinhas não estão separadas por limites ou fronteiras rígidas, mas surgem paulatinamente umas das outras; entre protótipos e limites, as categorias cognitivas contêm membros que podem ser avaliados numa escala de tipicalidade que se estende desde bons a maus exemplos. Essas conclusões acerca da natureza e da estrutura da categorização alicerçaram as investigações acerca do caráter prototípico das categorias. Diferentemente da proposta aristotélica, as categorias prototípicas possuem uma flexibilidade que permite acomodar dados novos e não-familiares. No experimento de Rosch e Mervis (1975), para cada número de categorias como MÓVEIS, VEÍCULO e FRUTA, os autores selecionaram nomes de 20 membros da categoria. Cada membro foi dado a um grupo de 20 informantes que listaram o máximo possível de atributos em um determinado período de tempo. Percebeu-se que alguns atributos foram associados com vários membros da categoria, enquanto outros eram peculiares a membros individuais. Por exemplo, os cinco membros mais centrais de MÓVEIS apresentaram 13 atributos em comum, ao passo que os cinco menos centrais compartilharam apenas 2. O experimento de Rosch e Mervis demonstrou que o membro mais central de uma categoria compartilha mais atributos do que os membros marginais. Observe-se que, na visão clássica, não há razão para se atribuir um status especial a nenhum nível particular de categorização. A conclusão de Rosch e Mervis, entretanto, é a de que questões relacionadas à cognição e à linguagem desmentem essa visão: existe de fato um nível de categorização que é cognitiva e linguisticamente mais saliente do que os outros – o nível básico de categorização. Por que, então, certos exemplares de uma categoria apresentam o status privilegiado de “membros prototípicos”, enquanto outros se tornam “membros marginais”? Rosch (1975) propõe algumas respostas: a prototipicalidade possivelmente é uma consequência de propriedades inerentes da percepção humana. Existe evidência de que certas formas geométricas (círculos e triângulos) e certas orientações espaciais (vertical e horizontal mais do que oblíquo, por exemplo), assim como as cores focais, são perceptivelmente mais salientes do que as derivações dessas formas; os membros de uma categoria podem atingir o status de prototípicos por serem, em geral, mais frequentes. A autora recomenda, entretanto, cuidado com essa relação: a frequência pode ser mais um sintoma da prototipicalidade do que sua causa; a ordem do aprendizado. Aquilo que é primeiramente apre(e)ndido pela criança torna-se membro prototípico de uma determinada categoria. A partir dos estudos de Brent Berlin sobre as taxonomias populares, Rosch et al. (1978) estabelecem a existência de uma dimensão horizontal, ou seja, uma organização intercategorial hierárquica. Sua proposta reduz o número de níveis, dentro das categorias, de cinco (Berlin) para três: Nível supraordenado Nível de base Nível subordinado Ao se estabelecer essa hierarquia, determinava-se um nível privilegiado dentro da categoria: o nível de base. Por exemplo: Quadro 1: Níveis de uma categoria linguística SUPRAORDENADO arma fruta móvel NÍVEL BÁSICO arma de fogo maçã cadeira NÍVEL SUBORDINADO revólver maçã argentina poltrona As pessoas utilizam essa hierarquia para representar, mentalmente, as relações de inclusão de classes entre as categorias (CADEIRA dentro da categoria MÓVEL). O nível básico é aquele em que os conceitos têm maior número de atributos distintivos e é o mais econômico cognitivamente (há menos partilha de atributos de conceito). Alguns estudos fundamentam esses dados: Rosch (1976) pediu a alguns falantes que listassem todos os atributos de itens em cada um dos três níveis existentes dentro de uma hierarquia (ex. MÓVEIS – POLTRONAS – ESPREGUIÇADEIRAS). Descobriu que poucos atributos foram listados para as categorias supraordenadas (como MÓVEIS) e muitos atributos foram listados para as categorias nos outros dois níveis. No nível inferior, atributos muito semelhantes foram listados para as diferentes categorias. As categorias de nível intermediário (ou básico, p. ex., CADEIRA) salientaram-se por um equilíbrio entre a informatividade (número de atributos de um conceito) e a economia (resumo dos atributos importantes que distinguem as categorias entre si). Ou seja, no nível superior, sacrifica-se a informatividade e, no nível inferior, sacrifica-se a economia. Kleiber (1995) resume assim as características do nível básico, assinalando que elas são prioritárias em três planos: no plano perceptivo, por meio da sensação de uma forma global semelhante, como a representação por meio de uma simples imagem mental de toda a categoria e de uma identificação rápida; no plano funcional, por meio de um programa motor geral semelhante; e no plano comunicativo, através do emprego de palavras que, de um lado, são as mais curtas, as mais comumente empregadas e utilizadas nos contextos neutros e, de outro lado, são as que as crianças aprendem primeiro e as primeiras que entram no léxico de uma língua. O nível básico é um nível bastante informativo, já que tem um grande número de atributos comuns. ANIMAL (nível supraordenado) oferece menos informação que CACHORRO (nível básico), enquanto que BOXER (nível subordinado) oferece um aumento de informação complementar, mas, à custa de uma maior carga mental de classificação. Como observa Rizzatti (2001, p. 18), “no nível básico, as categorias são maximamente distintas, isto é, maximizam as similaridades percebidas entre os membros das categorias e minimizam as percebidas entre categorias contrastantes”. A TP introduz, assim, uma metodologia alternativa de análise e apresentação da estrutura do significado. Uma descrição categorial deve considerar, como fonte dos atributos a incluir, tanto os bons e os maus exemplos, quanto os membros marginais (de pertinência duvidosa). Com essa informação, é possível construir o mapa categorial, que deve apresentar os atributos em ordem de representatividade. Os dados necessários para desenhar o mapa de uma categoria se obtêm do falante, como resultado de diversas tarefas experimentais. O enfoque é cognitivo, não só porque apela à competência lexical e pragmática do usuário de uma língua, mas, particularmente, porque parte do pressuposto de que a organização da categoria na mente do falante, em torno de exemplos representativos, determina seu rendimento nas tarefas experimentais, assim como a compreensão linguística e o modo em que estrutura sua experiência na vida cotidiana. Um mapa categorial acompanha e representa a descrição prototípica de uma categoria. Nos últimos 40 anos, a TP foi apresentada a partir de duas versões: a “versão padrão”, formulada no âmbito da Psicologia Cognitiva Experimental por Eleanor Rosch e seu grupo no início dos anos 1970, em que o protótipo é considerado o exemplar mais adequado, o melhor representante ou caso central de uma categoria; a “versão estendida”, conforme Kleiber (1995), em que o protótipo se converte em efeitos prototípicos e a noção de semelhança de família (WITTGENSTEIN, 1953) em elemento que vincula os membros de uma mesma categoria: o protótipo deixa de ser causa para ser efeito. O conceito de semelhança de família, somado à teoria dos protótipos, sugere que, na organização das categorias, os elementos se vinculam de forma lateral, em cadeias, de modo que a vinculação categorial entre o primeiro e o último componente só é compreensível quando toda a cadeia é levada em conta. Uma organização centralizada da categoria, que tem o protótipo como centro (conforme a versão padrão), passa a ser substituída por uma organização colateral dos elementos. Desse modo, como afirma Rizzatti (2001, p. 23), de acordo com a versão estendida, “a relação que une os diferentes membros de uma mesma categoria é a de semelhança de família. O processo de categorização se faz pelos elos de associação entre as diferentes instâncias”. Uma importante consequência acarretada por essa mudança de perspectiva é a passagem de uma concepção monorreferencial das categorias para uma concepção multirreferencial. Trabalhando-se com a ideia de semelhança de família, é possível se admitir que uma categoria seja formada por diversos tipos de subcategorias, relacionadas de tal forma que entre elas pode não haver nada em comum, como na organização AB, BC, CD, DE, em que a última nada tem em comum com a primeira, a não ser as relações de semelhança: Figura 1: Estruturação prototípica em semelhança de família, segundo Kleiber (1995, p. 160) Como assinala Kleiber (1995), a versão estendida da teoria dos protótipos pode ser considerada polissêmica frente à teoria padrão, que seria monossêmica. Ao destacar que uma mesma palavra pode ser empregada para tipos de referentes diferentes, os elementos que vinculam os membros das categorias agora correspondem a tipos de empregos ou usos diferentes. Para ilustrar os novos campos de ação e explicação, abertos pela mudança de orientação para o terreno polissêmico, Kleiber recolhe o exemplo utilizado por Lakoff (1987) sobre o dyrbal dos aborígines australianos. O termo bayi, em dyrbal, agrupa: Os homens (machos), os cangurus, os morcegos, a maior parte das serpentes, a maior parte dos peixes, alguns pássaros, a maior parte dos insetos, a lua, as tempestades, o arco-íris, os bumerangues, algumas javalinas etc. (KLEIBER, 1995, p.156-157). Nem o modelo clássico das Condições Necessárias e Suficientes (CNS) nem a versão padrão dos protótipos pode dar conta desse conjunto multirreferencial de elementos, ou seja, seriam incapazes de explicar por que tantos elementos estão vinculados a um mesmo termo: bayi. Por abandonar a noção de propriedades compartilhadas (dos elementos) e, graças ao encadeamento das semelhanças de família, a versão estendida pode manejar referentes tão diferentes: Lakoff considera que este agrupamento não é arbitrário. Cada membro está relacionado, ao menos, com outro, mediante uma propriedade comum. Se a lua, por exemplo, está na categoria de bayi é porque compartilha um traço comum com os homens; nos mitos, aparece como o marido, enquanto o sol é a esposa [...] a presença dos aparelhos de pesca em bayi se explica por sua relação associativa com os peixes, pois formam parte do mesmo âmbito de experiência que os peixes. A categoria complexa bayi se encontra, desta maneira, estruturada por uma série de encadeamentos que parte dos membros primários (ou centrais), neste caso, os homens e os animais estão unidos a outros membros que, por sua vez, se unem a outros e assim sucessivamente (KLEIBER, 1995, p. 157). A versão estendida leva a uma vinculação do protótipo (efeito) com processos metonímicos, algo também novo, que se faz evidente no exemplo bayi. O estado em que ocorre a noção de protótipo na nova versão pode, portanto, ser assim resumido: o protótipo se reduziu a um fenômeno de superfície; o protótipo toma diferentes formas, de acordo com o modelo da categoria que o cria, daí a denominação de efeitos prototípicos; sua extensão, no campo da polissemia, através da noção de semelhança de família, favorece o surgimento de uma flexibilidade que lhe priva do elemento definidor essencial da versão padrão, o protótipo. Ainda que seja considerado como efeito, já não é, obrigatoriamente, o exemplar reconhecido como o mais idôneo pelos indivíduos. O que qualquer teoria semântica deve extrair disso tudo é que há a necessidade de se levar em conta as manifestações cognitivas relacionadas à compreensão dos textos e às escolhas que os indivíduos fazem na construção do discurso. Na versão padrão da teoria dos protótipos, houve um ganho importante: o estabelecimento de uma dimensão vertical das categorias, pois a consideração de um nível de base, privilegiado dentro da categoria, remodela a paisagem da hierarquia léxica (KLEIBER, 1995). No caso da versão estendida, ainda que se negue o seu caráter polissêmico, as relações cognitivas remetem-nos aos diferentes sentidos de um termo polissêmico. Podemos concluir dessa exposição que, dos antigos gregos à versão estendida da teoria dos protótipos, os processos de categorização estiveram, com muita frequência, vinculados, de uma maneira ou de outra, às questões que envolvem as relações entre linguagem e cognição (mente/cérebro). Especificamente sobre essas relações, trataremos no capítulo seguinte.