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Volume 14, número 2, mai./ago. 2019 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS JURÍDICOS Volume 14, número 2, mai./ago. 2019 ISSN 1809-7278 (Impresso) ISSN 2358-9744 (CD-Room) REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS JURÍDICOS v. 14, n. 2 – Quadrimestral – Montes Claros, MG – mai./ago. 2019 A Revista Brasileira de Estudos Jurídicos é uma publicação quadrimestral do Curso de Direito da Faculdade Santo Agostinho (FASA), editada pelo Prof. Dr. Rafael Soares Duarte de Moura FACULDADE SANTO AGOSTINHO (FASA) ©COPYRIGHT: INSTITUTO EDUCACIONAL SANTO AGOSTINHO Diretor-Geral: Prof. Dr. Antônio Augusto Pereira Moura Diretora Acadêmica: Profa. Ms. Naiara Vieira Silva Ivo Coordenadora do Curso de Direito: Profa. Ms. Tatiana de Souza Araújo Antunes REVISTA BRASILEIRADE ESTUDOS JURÍDICOS (Brazilian Journal of Legal Estudies) Editor: Prof. Dr. Rafael Soares Duarte de Moura - Faculdade Santo Agostinho (FASA), Montes Claros, MG, Brasil Faculdade Santo Agostinho (FASA), Montes Claros,MG, Brasil Membros do Conselho Editorial Prof. Dr. Adilson José Moreira - Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil Prof. Dr. Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil Prof. Dr. Casimiro Manuel Marques Balsa Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal Prof. Dr. Eduardo Ramalho Rabenhorst Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil Prof. Dr. Elian Pregno - Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina Prof. Dr. Fábio de Carvalho Leite - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Prof. Dr. Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Mello Bandeira - Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (ESG/IPCA), Minho, Portugal Prof. Dr. Horácio Wanderley Rodrigues - Faculdade Meridional - IMED, Porto Alegre e Passo Fundo,RS, Brasil. Prof. Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Prof. Dr. Menelick de Carvalho Neto - Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil Prof. Dr. Paulo Ferreira da Cunha - Universidade do Porto, Porto, Portugal Prof. Dr. Ricardo Maurício Freire Soares Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil Organização, padronização e revisão linguística: Prof. Dr. Rafael Soares Duarte de Moura Diagramação/Editoração gráfica/Capa: OMNIA VFX Correspondências, pedidos de assinatura e solicitação de números avulsos deverão ser endereçados a: (All correspondences, subscriptions and claims for missing issues should be addressed to the Editor) Endereço: (Address) Av. Osmane Barbosa, 937 – JK – Montes Claros – MG, CEP 39404-006. E-mail: < estudosjuridicos@santoagostinho.edu.br > Publicação quadrimestral/Published 3 times per year Para envio de artigos veja notas ao final/For submissions see final notes in the Journal v. 14, n. 2 – Quadrimestral – Montes Claros, MG – mai./ago. 2019 – Montes Claros (MG) : Editora Fundação Santo Agostinho, 2020– v. : 19 x 26 cm. ISSN 1809-7278 (Impressa) . ISSN 2358-9744 (CD-Rom) 1. Direito - Periódicos. 2. Ciências Sociais - Periódicos. I. Faculdades Santo Agostinho. II. Título. CDU – 34 Ficha catalográfica: Biblioteca da Faculdade Santo Agostinho Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 A ORIENTAÇÃO DOS PRAXISTAS E AS DÚVIDAS DOS MINISTROS NAS DEMARCAÇÕES DE TERRA NO BRASIL COLONIAL (SÉCULO XVIII) ORIENTATION OF THE PRAXISTS AND PROBLEMS FACED BY JUDGES ON LANDMARKS IN COLONIAL BRAZIL (18th Century) Carmen Margarida Oliveira Alveal1 RESUMO: O artigo visa analisar a teoria e a prática do direito colonial por meio das demarcações de terra no período colonial. Foram analisadas as instruções organizadas por um praxista, António Vanguerve Cabral, na condução de demarcações que seriam solicitadas pelos requerentes. Posteriormente, foram analisados processos de demarcações realizados pelos desembargadores, onde relataram as dificuldades de realizá-las, bem como foram estudadas petições de moradores reclamando do processo. À luz da comparação entre o que estava escrito como se deveria proceder a demarcação de terras e a prática, percebe-se que havia um certo distanciamente, mas que não eclipsou as tentativas de se demarcar a terra por parte das autoridades coloniais envolvidas. Portanto, o direito colonial, proveniente do reino português, era aplicado na América portuguesa com base na sua realidade. Palavras-chave: direito colonial, demarcação de terras, praxista ABSTRACT:The article aims to analyze the theory and practice of colonial law through the demarcation of land in the colonial period. The instructions organized by a praxist, António Vanguerve Cabral, in conducting demarcations that would be requested by the applicants were analyzed. Subsequently, demarcation processes carried out by the judges were analyzed, where they reported the difficulties of carrying them out, as well as petitions from residents complaining about the process. In light of the comparison between what was written about demarcation of land and its practice, it is clear that there was a certain distance, but it did not eclipse attempts by the colonial authorities involved to demarcate the land. Therefore, colonial law, coming from the Portuguese kingdom, was applied in the Portuguese America based on its reality. 1. Professora associada do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (1997), mestrado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002) e PhD, Doctor of Philosophy in History, pela Johns Hopkins University (2007). Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Império Português, História do Brasil, História do Brasil Colônia, História do Rio Grande do Norte e História do Direito. Atua também nos seguintes temas: mulheres e gênero, história agrária e estudos jurídicos. É coordenadora do LEHS-UFRN (Laboratório de Experimentação em História Social). Coordena a Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro), que consiste em uma base de dados que pretende disponibilizar on-line as informações das sesmarias concedidas pela Coroa portuguesa no mundo atlântico. 90 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 Keywords: colonial law, demarcation of land, praxist Não é de hoje que a demarcação de terras é um problema no Brasil. Já no período colonial, a despeito da oferta de terras, havia conflitos pelas melhores áreas; e também o receio de que vizinhos se apossassem de partes do seu terreno fazia com que vários proprietários solicitassem a demarcação, etapa do processo sesmarial que se tornou obrigatória após a ordem régia de 1698 (LIMA, 1954; PORTO, 1965). Neste artigo, pretende-se, em primeiro lugar, analisar as orientações de um praxista português, António Vanguerve Cabral, que inclusive atuou no Brasil como Ouvidor na capitania de Itamaracá no século XVIII; em segundo lugar, pretende-se desvelar o modo como se efetivaram, na prática, algumas demarcações e autos de posse, bem como as dificuldades enfrentadas pelos ministros, e ainda dúvidas decorrentes, relacionadas a esse processo. A demarcação era uma exigência supostamente anterior à confirmação régia de uma sesmaria, mas, muitas vezes, na prática, sua solicitação era feita em concomitância com a confirmação em um único documento enviado ao rei. Todos esses requerimentos endereçavamse ao soberano. Primeiramente, era o provedor ou ouvidor que realizava a demarcação, mas em decorrência do aumento da demanda e da consequente demora diante do acúmulo de funções que provedores e ouvidores desempenhavam, havia muitos requerimentos solicitando que qualquer ministro fosse nomeado para tal fim. Em geral, os requerimentos de demarcação solicitavam um alvará ou uma provisão para que alguém fosse indicado para fazê-la. Mas se registram casos em que eram solicitados autos de posse, termo jurídico do próprio ato da demarcação. Os autos de posse eram verdadeiros rituais que serviam para publicizar a posse2. A solicitação de demarcação era feita na própria capitania, pelo aspirante, ao governador. Contudo, diante das demoras ou mesmo das recusas, os moradores enviavam petições diretamente ao rei solicitando a demarcação e a tão almejada confirmação. E é isso que se encontra em número relativamente abundante no Arquivo Histórico Ultramarino, considerandose que essas pessoas tenham tentado, por todas as formas, conseguir que suas sesmarias fossem medidas. Cabe lembrar que o processo para requerer uma sesmaria iniciava-se com uma petição ao governador ou capitão-mor justificando o porquê de a referida concessão fazer-se pertinente; depois era feita a concessão com uma série de exigências por parte das autoridades locais, entre as quais a de demarcação e confirmação em certo prazo, que, no geral, era de cinco anos. Após esse período, era necessário repetir o processo, ora solicitando a confirmação régia, após a demarcação, que, muitas vezes, se mostrou dificultosa. Conforme se constatou, chegaram até 2. Era como a traditio simbolica, quando um oficial ia com o sesmeiro até seu lote e pegava ramos e os jogava para o alto, ou algo semelhante. 91 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 Lisboa 108 requerimentos exclusivamente pedindo provisões régias para que se efetuasse a demarcação de sesmarias. Tal postura é observada em, praticamente, todo o período colonial. Em 1623, as duas herdeiras do ex-capitão-mor da capitania do Pará, Francisco Caldeira de Castelo Branco, escreveram ao rei Filipe III pedindo que fosse declarado quem faria a diligência, ou seja, a demarcação e posterior confirmação de suas sesmarias3. Em 1774, Frutuoso José Correia requereu que se determinasse ao juiz das sesmarias de Pitangui, capitania de Minas Gerais, providências quanto à demarcação das terras que possuía nas cabeceiras do Jacuba4. Já no ano de 1782, Francisca Maria de Melo e José Veloso da Silva pediram provisão para que se lhes tombassem terras de que eram possuidores na margem do rio Aguaçu, freguesia de Nossa Senhora da Piedade, na capitania de Minas Gerais5. Em 1789, João Paes Mascarenhas, morador da vila de Porto Calvo, na atual região de Alagoas, escreveu à rainha Dona Maria I para que ordenasse ao ouvidor geral da Comarca de Alagoas para proceder à demarcação e ao tombo de sua sesmaria, ou seja, ao registro desta nos livros oficiais6. Em sua petição, João Mascarenhas solicitava que se o ouvidor-geral estivesse impedido, já fosse nomeado Francisco José de Sales, que tinha sido ouvidor de Pernambuco. Isso comprova que os moradores estavam bem informados do procedimento e chegavam mesmo a sugerir outro ministro por conta própria, no sentido de apressar o procedimento, em vez de esperar que o Conselho Ultramarino enviasse carta indicando, de forma genérica, que o governador nomeasse um ministro. Ao mesmo tempo, o fato de indicar alguém que tivesse ocupado o cargo de ouvidor anteriormente podia desencadear uma dúbia compreensão: por um lado, poder-se-ia admitir que o morador tinha conhecimento de que aquele ministro, por ter sido ouvidor, sabia como realizar uma demarcação, podendo por isso executá-la. Por outro lado, poder-se-ia cogitar a possibilidade de o morador conhecer o ouvidor, razão pela qual lhe daria preferência, mesmo porque tal aproximação decerto lhe poderia ser bem mais favorável não só na agilização do processo. Em 1794, o capitão Tomás Aniceto de Macedo Nunes escreveu ao príncipe regente, Dom João, solicitando que se lhe passasse provisão dirigida ao ouvidor ou, na sua falta, ao juiz de fora, para resolver as contendas relativas às sesmarias na capitania do Maranhão7. Três anos depois, movido pelo problema da falta de pessoal para seguir com o processo de legalização da sesmaria, Inácio Cardim de Oliveira, morador na vila de Porto Calvo, enviou quatro requerimentos referentes a duas sesmarias que havia adquirido por meio de compra8. Contudo, fez o processo inverso: primeiro solicitou a confirmação de ambas as sesmarias para, depois, demandar a 3. REQUERIMENTO de Maria e Francisca Cabral Castelo Branco, para o rei [D. Filipe III], Pará, Cx. 1, Doc. 25, AHU. 4. REQUERIMENTO de Frutuoso José Correia, Minas Gerais, Cx. 107, Doc. 46, AHU. 5. REQUERIMENTO de Francisca Maria de Melo e José Veloso da Silva, Minas Gerais, Cx.118, doc. 64, AHU. 6. REQUERIMENTO de João Pais Mascarenhas à rainha [D. Maria I], Alagoas, Cx. 3, Doc. 4, AHU. 92 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 demarcação. Como a diferença de datas entre os requerimentos foi de apenas duas semanas, não haveria tempo para que o próprio Conselho o alertasse da necessidade de demarcação antes do pedido de confirmação. Acredita-se que alguém, na própria colônia, o tenha orientado a encaminhar o pedido de demarcação e solicitar a nomeação de ministro. Mais uma vez, o fato de se ter de encaminhar um requerimento ao rei para que autorizasse a demarcação mostra a disposição de alguns moradores em fazer valer o direito de ter sua sesmaria demarcada. Não se sabe se Inácio Cardim de Oliveira logrou seu intento, pois tanto nas Chancelarias quanto no Registro Geral de Mercês não se encontra nenhum registro em seu nome que comprove ter sua sesmaria confirmada pelo rei em Lisboa. Os requerimentos encaminhados à Coroa foram importantes instrumentos por parte dos sesmeiros no sentido de se comunicar com as autoridades máximas e exigir o cumprimento de suas necessidades e direitos na busca de obter os seus títulos conforme as ordens reais. Além disso, os próprios requerimentos representavam uma resposta que podia ser utilizada em prol do melhoramento da administração imperial. Além dos milhares de requerimentos de sesmeiros, havia também cartas escritas pelas próprias autoridades coloniais9. O provedor da Fazenda Real da capitania do Rio Grande (do Norte), Teotónio Fernandes Temudo, em 1742, denunciava o fato de muitas datas de sesmarias não estarem medidas e demarcadas, contribuindo para um número elevado de situações consideradas por ele como irregulares, o que impossibilitava a ocupação, por novos moradores, de forma regular10. Também o juiz de fora e provedor da Fazenda Real do Maranhão, Gaspar Gonçalves dos Reis, escreveu uma carta ao rei D. José, em 1754, sobre a necessidade de proceder à demarcação de terras na Parnaíba, na capitania do Piauí, devido aos abusos praticados na marcação da fronteira destas11. Aliás, a demarcação de sesmarias na capitania do Piauí era uma constante fonte de problemas, como se verá, de forma mais aprofundada, posteriormente. Em 1771, o governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, escreveu ofício ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre a notícia de que o provedor da Fazenda Real do Piauí propusera que se demarcassem as terras dadas em sesmaria, para evitar litígios entre a população; em particular, os problemas que isso poderia trazer devido às despesas das demarcações e a perturbação do direito antigo de legítimas posses12. Interessante a preocupação dessa autoridade com respeito aos antigos possuidores de terras, fossem eles legítimos possuidores ou não. Mas 9. Foram levantados nos catálogos dos avulsos 4.950 documentos relativos a sesmarias. 10. CARTA do provedor da Fazenda Real do Rio Grande do Norte, Teotónio Fernandes Temudo, ao rei [D. João V]”. AHU – Papéis Avulsos, Rio Grande do Norte, Cx. 4, Doc. 58. 11. CARTA do juiz de Fora e provedor da Fazenda Real do [Maranhão], Gaspar Gonçalves dos Reis, ao rei [D. José]”.AHU – Papéis Avulsos,Maranhão, Cx. 5, Doc. 325. 12. OFÍCIO do governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro. AHU – Papéis Avulsos, Piauí, Cx. 10, Doc. 12. 93 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 parece que tal ofício não surtiu o efeito desejado, vez que, no ano seguinte, se reiterou o pedido, enviando-se novo ofício, dessa vez ao secretário de estado do Reino e Mercês, marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre a necessidade de demarcar as sesmarias, dentre vários outros assuntos. Em 1788, o governador do Maranhão, Fernando Pereira Leite de Foios, escreveu para a rainha Dona Maria I, tratando do modo de atribuir, demarcar e tombar as sesmarias. Em seu texto, queixava-se da desorganização de todo o processo e da forma pouco clara como alguns ministros atuavam13. Sua insatisfação parecia bem acentuada, pois, em duas semanas, voltou a escrever sobre o assunto; agora, por meio de um ofício enviado ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, relatando o estado calamitoso em que se encontravam as sesmarias e respectivas demarcações na capitania do Maranhão, queixando-se do procedimento dos antigos governadores e dos atuais responsáveis pela demarcação. Parece que o governador foi advertido, pois, já no ano seguinte, Fernando Pereira Leite de Foios reclamava à rainha D. Maria I sobre as repreensões aos seus procedimentos nas demarcações e tombos de sesmarias, efetuadas por três posições do tribunal do Conselho Ultramarino, datadas de 5 de Junho de 178914. Márcia Motta, que estudou a questão das sesmarias no período mariano, confirma a existência de problemas nas demarcações e os inúmeros conflitos entre os confinantes, sempre bastante preocupados em obter a demarcação feita por oficiais, no sentido de publicizar sua posse e evitar contendas. Nessa época, final do século XVIII, quando a América portuguesa certamente estava mais densamente povoada e com maior número de senhores de terras, aumentava a luta pela garantia dos direitos de propriedade (MOTTA, 2009). Na capitania de Minas Gerais, por sua vez, em 1770, o governador D. José Luís de Menezes, Conde de Valadares, escreveu a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de estado da Marinha e Ultramar, informando, dentre outros assuntos, sobre o estado de abandono em que se achavam muitas sesmarias e sobre as medidas por ele tomadas para reativar a agricultura15. Em 1795, o governador Dom Fernando António de Noronha, da capitania do Maranhão, escreveu para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Luís Pinto de Sousa Coutinho, queixando-se do procedimento do juiz de fora nas demarcações das terras concedidas por sesmaria16. Novamente, na capitania de Minas Gerais, no ano de 1802, Manuel Rodrigues Rebelo, lavrador e mineiro, pedia providências contra o método “ilegal” da concessão das datas de 13. OFÍCIO do governador do Maranhão, Fernando Pereira Leite de Foios, para a rainha D. Maria I, Maranhão, Cx. 72, Doc. 6265, AHU; OFÍCIO do governador do Maranhão, Fernando Pereira Leite de Foios, para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro. AHU – Papéis Avulsos, Maranhão, Cx. 73, Doc. 6273. 14. CARTA do governador e capitão-general do Maranhão e Piauí, Fernando Pereira Leite de Foios, para a rainha D. Maria I. AHU – Papéis Avulsos,Maranhão, Cx. 74, Doc. 6415. 15. CARTA de D. José Luís de Menezes, Conde de Valadares e governador de Minas, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Ultramar. AHU – Papéis Avulsos, Minas Gerais, Cx. 97, Doc. 2. 16. REQUERIMENTO do capitão António João Belas. AHU – Papéis Avulsos Minas Gerais, Cx. 91, Doc. 94 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 sesmarias feitas pelo governador17. Toda essa correspondência evidencia que a demarcação sempre foi um problema, tanto para aqueles sesmeiros que pretendiam ter sua sesmaria demarcada, evitando problemas futuros de uma possível invasão de suas terras, quanto para as autoridades que se viam diante de um grande número de posseiros que não demarcavam suas terras, pois as percebiam como suas por estarem ocupando-as, sem necessidade de outros trâmites burocráticos. Isso, na verdade, poderia, fatalmente, gerar conflitos, uma vez que não se sabia ao certo se as terras ocupadas por eles já pertenceram a alguém que não as houvesse aproveitado. A cultura jurídica da sociedade colonial que envolvia as sesmarias colocava-se de forma complexa, uma vez que permitia o entendimento de que a posse, como legitimadora do domínio útil, era suficiente, possibilitando aos posseiros sustentar essa argumentação ao longo do século XVIII, como se verá adiante. Mas como deveriam ser realizadas, na prática, as demarcações? Em sua obra Prática Judicial, o desembargador António Vanguerve Cabral orienta como deveriam ser redigidos os documentos para efetivar os procedimentos relativos à demarcação. António Vanguerve Cabral e sua Prática Judicial António Vanguerve Cabral foi um praxista que deixou duas obras: Pratica judical, muyto útil, e necessária para os que principião os officios de julgar, e advogar e para todos os que solicitão causa nos Auditorios de hum, e outro foro (1712)18; e Epilogo Juridico de vários casos cíveis, e crimes concernentes ao especulativo, & pratico (1719). Pouco se sabe da vida de Vanguerve, mas se tem conhecimento de que atuou como ouvidor na capitania de Itamaracá, uma vez que, às vezes, exemplifica seus arrazoados com as experiências da América portuguesa. Segundo Bruno Zaroni, os autores praxistas estariam preocupados em escrever, de forma a guiar como se deveria atuar nos processos judiciais. Para tanto, a “jurisprudência formularia”, com base em casos práticos, no sentido de auxiliar aqueles que iriam iniciar a carreira advocatícia nos vários tipos de processos, tanto cíveis quanto criminais(ZARONI, 2014, p. 72). O próprio título do livro de Vanguerve, Prática Judicial, já remete a essa abordagem. Além de Vanguerve, houve outros praxistas conhecidos, como Gregório Martins Caminha, que publicou Forma de Libellos e Allegações; e forma de proceder no Juízo Secular, e Ecclesiástico, e dos Contratos com suas Glossas, e Cotas de Direito (1549), e Manuel Mendes de Castro, com A Pratica lusitana (1619). Esses autores contribuíam para instruir os iniciantes quanto ao modo de elaborar um requerimento para determinada situação, bem como orientavam como as autoridades deveriam redigir seus documentos. Portanto, eram orientações com modelos a serem seguidos no sentido 17. REQUERIMENTO de Manuel Rodrigues Rebelo. AHU – Papéis Avulsos, Minas Gerais, Cx. 161, Doc. 17. 18. Candido Mendes, no volume 1 das Ordenações Filipinas por ele comentadas, coloca a data de 1712, com uma segunda edição de 1727, tendo mais seis edições. Já Gustavo Cabral apresenta essa obra com a data de 1730, mas deve ser uma das edições posteriores. 95 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 de facilitar a produção e homogeneizar a documentação jurídica produzida no período moderno. Os praxistas diferem dos chamados decisionistas, uma vez que as decisiones seriam obras doutrinárias, com base em casos concretos, nas quais se comentavam as decisões dos tribunais. Os praxistas produziam guias, orientando sobre como proceder juridicamente em determinado assunto do direito (CABRAL, 2017). Tome-se por ilustrativo o capítulo XX, da quarta parte do Prática judicial, que se refere estritamente ao processo de demarcação, intitulando-se “Em que se trata a praxe para se fazerem as medições de terras, por outro nome os prédios rústicos, que se chama em direito, Praxis finium regundorum”(CABRAL, 1846 [1730]). No texto em foco, o praxista inicia o tópico explicando os quatro tipos de medição de terras existentes à época. Dois deles remetem mais diretamente aos casos da América portuguesa: A primeira é, quando algum possuidor quer tratar de medir as suas terras, e porlhe marcos, para a divisão dos mais possuidores de outras místicas , e feita a 19 demarcação, fazer tombo: para esta demarcação é necessário alcançar Provisão de Sua Majestade [...] quando for sentença final se mandam demarcar, ou dividir os prédios, ou prédio sobre que se litigou, a qual sentença foi confirmada na superior instancia, e nesta não é necessária Provisão, mas a mesma sentença20. Após conseguir a provisão real para se proceder à demarcação, seria nomeado um ministro que deveria executá-la. Não obstante, na realidade colonial, fazia-se a demarcação, na maioria das vezes, sem a provisão régia, com a simples autorização do governador ou capitãomor. Um contradito aos requerimentos mencionados anteriormente, com a solicitação do ministro ao rei, em tentativas, às vezes, desesperadas por não conseguir uma autoridade na colônia para tal ofício. Segundo orientação de Vanguerve, o requerimento para a demarcação deveria iniciar assim: Diz N.21 morador em tal lugar, que lhe alcançou a Provisão junta de Sua Majestade para este efeito de demarcar as suas terras, e feita a demarcação, fazer tombo delas, para cujo efeito quer o suplicante fazer citar os vizinhos possuidores das terras vizinhas com quem partem as do suplicante, e juntamente nomear Vossa Majestade os demarcadores no dia que Vossa Majestade consignar. P. a Vossa Majestade lhe faça mercê mandar por seu despacho, que qualquer oficial de justiça cite aos vizinhos, ou hereos, das ditas 19. Terras místicas eram terras vizinhas, confinantes. 96 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 terras, ou outras pessoas a quem tocar a possessão às mais terras circunvizinhas, para o dia que Vossa Majestade assinar, se acharem no dito lugar por si, ou seus procuradores, em cominação de se fazer a demarcação a sua revelia. E R. M. Após esse requerimento, viria o despacho. Mas vale ressalvar o fato de que Vanguerve oferece um exemplo para quem vivia no reino, provavelmente, cujo acesso ao rei era, por suposto, mais facilitado. Na América, esses requerimentos eram dirigidos aos governadores das capitanias, aos ouvidores ou mesmo às câmaras. A esse respeito, Vanguerve Cabral relata que vivenciou presencialmente umas medições de terras, nas quais teria atuado e se colocava como desconfiado dos medidores dos conselhos, o que não ocorreria se fossem usados pilotos experientes, pois os medidores dos conselhos fariam as medições com agulhões pequenos e, segundo Vanguerve, “à vista dos títulos antigos, ou crescia a terra, ou diminuía, conforme os rumos, que pelas agulhas iam os Pilotos correndo”. Por isso, recomendava o uso de pilotos experientes. Os documentos relativos ao Brasil mencionam pilotos da terra, mas infelizmente os agulhões não aparecem nos documentos, impossibilitando confirmar se havia o uso desse instrumento nas demarcações de terras na América22. Depois do despacho, citar-se-iam os hereos23, indicando onde se faria a tal medição, com os medidores do conselho, ou com piloto, e seu ajudante que pegaria na ponta da corda, com que se haveria de medir. Com base no título apresentado e nas testemunhas, iniciava-se o processo demarcatório, que deveria ser registrado pelo escrivão, da seguinte forma: Autos de demarcação. Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil, e setecentos, e tantos anos, aos tantos de tal mês do dito ano em tal lugar, perante o Doutor N. foi nomeado para juiz desta medição de terras, ou juiz nesta causa, ou louvado pelas partes; perante ele apareceu N. e por ele foi dito, e requerido, que N N. foram citados para a presente medição de terras, que os mandasse apregoar, e que não aparecendo, nem outrem por eles, à sua revelia desse princípio à desmarcação, ou vistoria; o que ouvido pelo dito juiz N. mandou, que preparado o necessário se desse o dito princípio à dita demarcação, e se principiasse a correr os rumos pela confrontação que o título do A. lhe dava, ou como a sentença manda, ou se principie vistoria por tal rumo, ou por tal parte. E eu escrivão que o escrevi. De acordo com o auto de demarcação, as partes interessadas deveriam estar presentes, 22. Nas medições de fronteira externa, realizadas após os tratados com a Espanha, teriam sido utilizados instrumentos mais sofistificados. 23. Proprietários das respectivas terras. Do latim erus, herus ou eerus. 97 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 bem como deveria haver testemunhas. Essa era uma prática, pois a questão da publicização do ato da demarcação era necessária para também legitimar o domínio do senhor daquelas terras a serem demarcadas. Os poucos casos de autos de posse existentes para a América portuguesa, estudados por Vanessa Lopes de Freitas, indicam que o interessado na demarcação tinha de andar pelo terreno, cortar árvores, fazer cruzes com elementos encontrados no local, atirar porções de terra para o alto, bem como fincar estacas, ritos indicativos de que estaria possuindo aquela terra, conforme a traditiosimbolica. Depois o escrivão gritava no sentido de saber se alguém se colocava contrário àquela demarcação (FREITAS, 2012). Vanguerve explica que, posteriomente, o juiz mandaria “vir perante si a corda com que se há de fazer a medição, e perante ele com os demarcadores, o Piloto, manda medir as braças que a corda tem, e declara se é de linho, ou de esparto”(CABRAL, 1846 [1730], p. 487). A corda era preparada, e se procedia ao juramento por parte dos medidores do concelho, eleitos por essa instituição, ou dos pilotos de corda, registrados pelo escrivão. No caso da América portuguesa, acredita-se que esses medidores do concelho faziam apenas medições nos núcleos urbanos. E os pilotos, quando havia, eram utilizados nas áreas rurais. Vanguerve, mais uma vez, orienta como deveria ser o termo de juramento do piloto: Termo de juramento ao Piloto N. e ao seu ajudante de corda N. E logo no dito dia, mês, e ano (ou em tal dia) perante o Doutor N. aparecerem N. Piloto, e seu ajudante N. (E se o ajudante da corda for também Piloto, muito melhor será) e pelo dito juiz lhe foi dado o juramento dos Santos Evangelhos do qual lhe encarregou, que bem, e verdadeiramente corressem os rumos da agulha, principiado pelo que fazia menção o título do A. ou a sentença manda, ou por onde se há de fazer a vistoria, não acrescentando, nem diminuindo dos que os ditos rumos da agulha mostram, e que declare os finais, ou final donde principia, que são alguma árvore, ou arvores de tal casta, ou por marco, etc. para tudo se declarar no auto de princípio da dita demarcação, divisão, ou vistoria, e logo o dito Piloto, N. e seu ajudante N. assim o prometerão, de que fiz este termo de juramento, em que assinarão com o dito doutor N. e eu N. escrivão, que o escrevi. E assina o juiz; e logo assinam o Piloto e o seu ajudante da corda. Feito esse termo de juramento, o juiz perguntava se a agulha para a demarcação estava “certa e preparada (...) capaz de se correrem os rumos”. Então se principiava a vistoria com a presença do escrivão, do piloto, de seu ajudante, e das partes. O autor do requerimento, isto é, o sesmeiro, deveria mostrar o título das terras, onde constariam os pontos limites a serem demarcados. Finalmente, iniciada a demarcação, de fato, o juiz e o escrivão, em companhia do Piloto, andavam pelo terreno, onde se tomavam por assento as braças, sendo medidas. Ao fim do dia, o escrivão relatava outro termo na forma seguinte: 98 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 Aos tantos de tal mês, e ano, o Piloto N. e seu ajudante, mediram tantas braças pela corda que foi dada para esta demarcação, o que eu escrivão dou por fé, e de como assim as mediram, assinaram este termo, e eu N. escrivão que o escrevi. Assina o Piloto, e seu ajudante com seus nomes inteiros. Esse processo continuaria pelos dias que fossem necessários até que se findasse a demarcação. Vanguerve adverte, nas suas orientações, que “o juiz era obrigado a assistir com seu escrivão em todos os dias que se faz a demarcação, porém não podendo, ou tendo ocupação, sempre há de assistir o escrivão em companhia do Piloto”. Dever-se-ia ter especial atenção aos marcos, pois eram os pontos nos quais deveria ser posta alguma marcação que indicasse o fim do terreno, para evitar tanto um avanço dos vizinhos quanto uma ampliação da terra do autor do pedido. A colocação de um marco também tinha seu registro próprio, sendo este assinalado pelo próprio piloto, na presença de duas testemunhas, tudo no sentido de evitar contendas e embargos. Entretanto, os marcos, em geral, eram passíveis de certa mutabilidade, pois eram árvores, pedra ou outros elementos naturais. Estabelecido o marco, o Piloto continuava com a demarcação, pelos mesmos rumos de que o título fazia menção. A importância da presença dos vizinhos era evidente pois eram eles que também garantiam que os marcos fossem colocados nos lugares corretos e reforçavam mais uma vez a publicização da demarcação. Era justamente nesses momentos que havia a possibilidade de solicitar um embargo (interdicto possessório), quando alguém contestasse e mostrasse seu título comprovando que os limites estavam sendo ultrapassados; a demarcação era suspensa momentaneamente24. Ao menos foi isso que Vanguerve testemunhou quando das medições de terra “que por sentença que alcançaram os religiosos de São Bento da cidade de Olinda de Pernambuco, contra o capitão Antônio Borges Lobo, no ano de 1700”. Essa medição foi feita pelo desembargador Cristóvão Tavares de Morais (SUBTIL, 2010, p. 142)25. O praxista, como ouvidor na Capitania de Itamaracá no ano de 1704, também participou diretamente na demarcação de umas terras em litígio entre o alferes Manoel Bezerra e o alferes Francisco Álvares, e da vistoria das terras da Igreja de Nossa Senhora do Pilar da Ilha de Itamaracá, em disputa com o alferes Antônio Correia. No caso dos embargos, as duas partes eram ouvidas, bem como os que participaram da demarcação. Após a sentença final sobre os embargos, mandava-se “requerer a parte vencida, para se tirar o marco, ou ficar, ou correr os rumos da demarcação, conforme a sentença mandar”; nesse caso, também com a presença de juiz e testemunhas. 24. Com relação aos embargos, o praxista Gregório Martins Caminha, mencionado acima, ensinava como fazer libelo, um aparte que se dispensa nesta abordagem que visa apenas analisar a demarcação. E de qualquer forma, os embargos e agravos não impediam a continuidade do processo demarcatório. 99 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 Vanguerve fazia uma ressalva específica no tocante às sesmarias: E quando as terras forem dadas por sesmarias, se hão de dar pessoa, ou pessoas, que dentro em tanto tempo as aproveitem, e passado o dito tempo, e não as cultivando, se podem dar por sesmaria a outra pessoa, que as aproveite; e não se aproveitando, nem cultivando no dito tempo, se podem requerer por vagas para se darem a pessoa, que as requerer: porém aquela pessoa, a quem primeiro se deram, deve ser ouvida juntamente com a que requer a sesmaria, para se averiguar a causa, que teve para não tratar de cultivar as terras no tempo, em que lhe foram dadas de sesmaria. E nesta matéria se deve observar o que dispõem a Ord. lib. 4. tit. 43.(CABRAL, 1846 [1730], p. 488). O entendimento de Vanguerve era o de que, apesar de o sesmeiro que recebeu a terra não a cultivar, podendo esta terra ter sido concedida a outro, o primeiro sesmeiro ainda deveria ser consultado para se saber o que o teria levado a não cultivá-la. Mas, nesse caso, o segundo sesmeiro deveria saber que havia um anterior, o que não se aplicava aos posseiros que, em geral, acreditavam que as terras que ocupavam estavam livres de qualquer domínio ou, ao menos, queriam acreditar. Isso adverte para o fato de que ninguém deveria apossar-se de terras sem investigar se estas já pertenciam a alguém. Vanguerve finaliza essa parte sobre o tema das demarcações, em sua Prática Judicial, fazendo o seguinte esclarecimento: Escrevi esta praxe acerca das demarcações de terras por ser muito usada, e poder suceder fazerem-se e posto que Leitão in prax. fin, regund. a tratou doutissimamente, foi mais no especulativo, do que no pratico; e conselho, que se a não vira fazer, em uma a que assisti, sendo advogado, não me parece não a faria com acerto, e circunstancias tão necessárias, como depois a pratiquei em quatro que fiz, e por isso fiz observação dela para a escrever, e se aproveitar quem principia o oficio de julgar, e o de advogar, para requerer o que fizer a bem de seis constituintes em os autos. Também escrevi acerca das sesmarias, para onde não há letrados, saberem que coisa seja sesmaria, e vejam a Ordenação alegada acerca dela.(CABRAL, 1846 [1730], p. 491). Parece indubitável a preocupação de Vanguerve em facilitar o trabalho daqueles que iriam iniciar os ofícios relativos ao direito e em esclarecer, ao responsável pela fiscalização das sesmarias, como deveria ser feito o processo demarcatório de terras no reino e na América. É 25. Natural de Funchal, atuou no Reino como juiz de fora e corregedor; na América portuguesa, atuou na Relação da Bahia e na Superintendência do Registro e arrecadação do tabaco da Bahia. 100 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 certo que sua obra espelha-se em sua experiência, mas também ancora-se nos juristas da época, a exemplo de Jorge de Cabedo, o próprio Mateus Homem Leitão (LEITÃO, 1695) e alguns nomes consagrados do direito comum (ius commune), como Baldo, não deixando ainda de guiar-se pelas Ordenações, no caso das sesmarias. Embora se disponha de um guia detalhado sobre como proceder a uma demarcação de terras, nesse capítulo XX, constata-se que, na América portuguesa, tal roteiro não era seguido fielmente. Para o caso da América portuguesa, havia dois tipos de processos demarcatórios: o que era ordenado diretamente pelo rei ou outra autoridade, no sentido de fazer uma verificação coletiva das terras, quase uma devassa, como as que os desembargadores João Puga de Vasconcelos e Cristóvão Soares Reimão fizeram, e o que era feito individualmente a partir daqueles requerimentos individuais (autos de posse). Para as devassas, existe correspondência e relatórios dos ministros nomeados, entre os quais já se analisaram alguns. Para os processos demarcatórios, o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro possui enorme acervo, mas bem do final do século XVIII ou início do século XIX, que ainda não foi utilizado pelos pesquisadores. A prática nas demarcações do princípio do século XVIII nas Capitanias do Norte do Estado do Brasil A primeira notícia de demarcação existente na América portuguesa ocorreu já em 1614, na capitania do Rio Grande do Norte(PORTO, 1965; MOTTA, 2009). Essa demarcação foi ordenada pelo rei Filipe II de Portugal, no período da união ibérica, em virtude de denúncias contra Jerônimo de Albuquerque e contra os jesuítas. É de se estranhar que uma capitania, cuja colonização havia iniciado em 1598, com a fundação da cidade do Natal, em 1599, já tivesse problemas agrários. Elenize Trindade Pereira apresenta a hipótese de uma possível rivalidade entre um padre secular, Gaspar Gonçalves da Rocha, e a ordem jesuítica, uma vez que, ao analisar detalhadamente o Auto de Repartição, a autora percebeu que o padre era um sesmeiro com cinco sesmarias, mas com tamanho bem inferior às sesmarias dos jesuítas que tinham seis. Sua hipótese é a de que o padre teria denunciado os jesuítas e também Jerônimo de Albuquerque, por este ter dado 12 léguas aos filhos (PEREIRA, 2014). O Auto de Repartição é o primeiro registro de uma tentativa de controle por parte das autoridades sobre a distribuição de sesmarias. Foram averiguadas pela comissão 186 sesmarias, embora muitas delas já estivessem devolutas à época, pois muitos fugiram dos ataques indígenas. Por ser ainda um período inicial da colonização naquela área, sendo os núcleos de Olinda e Salvador os mais dinâmicos, não havia pessoas especializadas em demarcação de terras, embora se contasse com um desembargador e um escrivão. Conforme se observou, a equipe que António Vanguerve Cabral mencionou como sendo indispensável em um auto de demarcação – escrivão, piloto de cordas, ajudante, ministro e testemunhas – não difere tanto da comissão de 1614, composta por Alexandre de Moura, capitão-mor de Pernambuco, Manoel Pinto da Rocha, 101 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 desembargador e ouvidor-geral do Estado do Brasil, Tomé Domingues, escrivão, e as testemunhas Manoel Rodrigues (considerado um dos moradores mais antigos) e o próprio vigário. A única ausência é a do piloto de cordas. A questão de conflitos de terras envolvendo poderosos e as relações destes com os homens da justiça já foi abordada por Stuart Schwartz em seus estudos sobre a capitania da Bahia. Em Burocracia e sociedade no Brasil colonial, já mencionava o fato de a justiça ser controlada por juízes cujos interesses imbricavam-se com os das famílias senhoriais de engenho. A morosidade ou a eficácia da justiça dependiam da conveniência dos agentes envolvidos. Também em sua outra obra, Segredos Internos, Schwartz mencionou vários conflitos entre donos de engenhos, relacionados a questões demarcatórias que foram parar nos tribunais. Trata ainda sobre a dificuldade de se encontrar pessoas idôneas, considerando o fato de haver diversas acusações de suspeição de juízes, denunciados pelas partes (SCHWARTZ, 1988). Desse modo, o processo de colonização e interiorização na América portuguesa transcorreu lentamente, adotando-se o sistema de sesmarias como forma principal de distribuição de terras (LIMA, 1954; PORTO, 1965; SILVA, 1996; MOTTA, 1998). Tal sistema, pensado para resolver problemas de abastecimento em Portugal, em 1375 (RAU, 1982; CASTRO, 1964)26 , e recorrente na colonização do Atlântico, teve de ser aperfeiçoado à medida que novas situações eram apresentadas no decorrer da ocupação territorial e da consolidação da sociedade colonial. Os agentes da Coroa, tanto no reino quanto nas conquistas, discutiam as melhores soluções para dirimir problemas lacunares das Ordenações régias. É sabido que, nos dois primeiros séculos da colonização, as sesmarias foram distribuídas com extensas dimensões, fruto da própria falta de especificações nas Ordenações27, mas também da visão de que, diante de tantas terras, não seria problema a cessão de grandes extensões. Um projeto de governo, com maior tentativa de centralização, foi-se constituindo desde a Restauração, com Dom João IV (1640- 1656), passando por Afonso VI (1656-1683), mas foi consolidado somente com Dom Pedro II (1683-1706), como destacou Maria de Fátima Gouvêa (GOUVÊA, 2001; CRUZ, 2015)28.E, a partir do momento no qual as conquistas na América passaram a receber mais atenção por parte das autoridades reinóis, este projeto formulou, no tocante às sesmarias, uma gama de ordens reais regulamentando pontos antes não contemplados pelas Ordenações29. As novas diretrizes resultaram em uma tentativa ampla de regulamentação da 26. O estudo de Virgínia Rau analisa a origem do sistema no período medieval português e mostra como a peste negra e outros fatores provocaram crises de fome, levando a Coroa a implementar o regime sesmarial para fomentar a produção agrícola.. Já Armando Castro afirma que a legislação sesmarial seria uma forma de maior controle sobre a terra por parte daqueles que efetivamente a poderiam cultivar, alijando o campesinato. 27.Ademais, registra-se que, no reino, as sesmarias eram distribuídas por sesmeiros membros da municipalidade, sendo seis os sesmeiros para regular as terras no termo; na América portuguesa, eram os governadores ou capitãesmores, junto com provedores, que assumiam esse papel para as capitanias, sendo que as dimensões territoriais eram muito maiores do que os termos de vilas. 28. O autor Miguel Dantas Cruz aborda os conflitos existentes entre os conselhos criados pós-Restauração e a coroa, bem como suas articulações por trás da organização dos conselhos. 102 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 posse de sesmarias em praticamente todas as capitanias, inclusive com a instituição de um foro anual, o que configurava uma mudança no estatuto jurídico das doações. Exceções, entretanto, permaneceram, evidenciando o caráter daquela sociedade movida ao gozo de privilégios, bem característica desse período. Faz-se necessário abordar dois aspectos: de um lado, as mudanças ocorridas na legislação sesmarial, sobretudo na década de 1690, as quais resultaram na cobrança de foro régio e alguns processos demarcatórios, situação vivenciada pelas Capitanias do Norte do Estado do Brasil, que culminou em disputas de jurisdições; de outro, a manutenção de privilégios para aqueles que lutavam “bravamente” contra grupos indígenas e negros, caso das tropas, principalmente do Terço dos Paulistas, que atuaram contra o Quilombo dos Palmares, e na chamada Guerra dos Bárbaros. Na última década do século XVII, no reinado de Dom Pedro II, houve um aumento da regulação sobre o sistema sesmarial a partir da definição de limites máximos para as sesmarias e da consequente necessidade de diligências para verificar tanto seu tamanho quanto sua demarcação e, principalmente, se haviam sido aproveitadas com a agricultura ou com a pecuária. Entre as ordens régias mais importantes estavam a de 1697, que, finalmente, deliberava sobre o tamanho da terra (ALVEAL, 2015), e a provisão de 1699, que estabelecia a cobrança de foro real sobre as sesmarias das Capitanias do Norte do Estado do Brasil – esta última resultaria em inúmeros problemas, desde o processo demarcatório, passando pela questão da nomeação da autoridade responsável pela concessão das sesmarias, e culminando em conflitos de jurisdição e críticas quanto à atuação das autoridades coloniais que não cumpriam a nova orientação. Em fins do século XVII, precisamente em 20 de janeiro de 1699, uma provisão dada pelo rei, estabelecendo a cobrança de foro proporcionalmente ao tamanho que as sesmarias deveriam ter, configurou-se como uma primeira tentativa de controlar a terra, mediante a atribuição de um valor aferido por sua dimensão. Tal provisão foi endereçada ao governador da Capitania de Pernambuco (NOZOE, 2006; PORTO, 1965; LIMA, 1954)30, para as Capitanias do Norte do Estado do Brasil sob sua jurisdição, ficando assim fora dessa regulamentação as Capitanias da Bahia e do Centro-Sul, bem como o Estado do Maranhão e Grão Pará. Embora inicialmente não houvesse especificações do valor a ser cobrado, a provisão indicava uma real possibilidade de aprimorar o controle sobre o sistema sesmarial. Além disso, data justamente do mesmo quinquênio em que várias outras provisões trataram do tamanho das sesmarias (VARNHAGEN, 1981, p. 265). E até aquele momento elas tinham extensões muito largas, o que causou inúmeras reclamações de outros moradores e mesmo acusações de usurpação (PORTO, 1965; MOTTA, 1998; NEVES, 2005; ALVEAL, 2007) . A ordem régia, portanto, pode ser entendida como uma tentativa de limitar o tamanho das terras concedidas em sesmarias; nessa perspectiva, a cobrança de foro colocava-se como um limite “natural” à grande extensão, no sentido de que o ônus total que incidia sobre a sua doação acabava por tornar-se um custo não desejado pelos sesmeiros. 29. Ressalte-se também a vitória dos moradores de Pernambuco e das capitanias vizinhas sobre os holandeses, fortalecendo os laços de vassalagem entre o reino e essas regiões. Ver MELLO (2007). 103 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 Faz-se necessário esclarecer que, quando o foro passou a ser cobrado, houve uma mudança jurídica no estatuto do sistema sesmarial, alterando-se os direitos de propriedade anteriormente estabelecidos pela Coroa: uma vez que a concessão era condicionada ao usufruto da terra (MOTTA, 1998), a partir do momento em que se passava a cobrar o foro, sinalizava-se que a Coroa tinha o entendimento de que as terras lhe pertenciam, configurando-se, então, uma relação de enfiteuse (PORTO, 1965), e não apenas uma mercê condicional, como era o caso das sesmarias. Com isso se modificavam, temporariamente, os direitos de propriedade relativos às sesmarias, cuja condição maior era o cultivo; agora, no caso das Capitanias do Norte, passava a ser o pagamento do foro régio anual. Foi justamente essa mudança no entendimento dos direitos de propriedade sobre as sesmarias (de mercê condicional à enfiteuse) que provocou algumas incertezas nas autoridades coloniais ligadas diretamente à fiscalização e à concessão destas31. Apesar de a cobrança de foro real ter enfrentado dificuldades inerentes à administração colonial, em alguns casos ela foi de fato perpetrada, sendo ratificada diversas vezes pela Coroa e pelas próprias autoridades coloniais. O primeiro problema suscitado pela nova medida referiu-se à sua aplicabilidade. Falava-se em cobrança embora não se tivesse estabelecido quem seria o agente que assumiria este encargo. Assim, Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro, Governador de Pernambuco, reuniu-se, no Palácio das Torres, em junta também composta pelo Bispo Francisco de Lima, pelo Ouvidor Geral, Manoel da Costa Ribeiro, e pelo Procurador da Coroa e Fazenda, Antonio Rodrigues Pereira, oportunidade em que se procedeu à leitura da provisão real, datada de 20 de janeiro de 1699, expedida pelo Conselho Ultramarino32. A junta definiu que em toda légua de terra dada em sesmaria fosse estabelecido foro equivalente a seis mil réis em áreas cuja distância fosse de até 30 léguas do Recife, considerandose a sua melhoria pela vizinhança da cidade. No caso de distância superior, o valor seria de quatro mil réis. Para assegurar a boa arrecadação dos ditos foros, previa-se, nas doações de sesmarias, a verificação das confrontações, juntamente com a data em que foram feitas, de modo a possibilitar a cobrança do foro anual. O estranho é que se criou uma qualidade hierárquica relativa à distância do “centro” da capitania, pois, para as autoridades, o Recife era colocado como parâmetro. E também causa estranhamento a ausência de discussão sobre a produtividade da terra, ou algo semelhante, princípio fundamental da lei de sesmarias. Portanto, o fato de a sesmaria ser cultivada ou não ficou em segundo plano. Os registros relativos a confrontações das terras eram enviados ao Governador e Capitão 30. O Governador Geral e também governador da capitania da Bahia, Dom João de Lencastro, recebeu uma carta mencionando exatamente o mesmo assunto, mas também se referindo à cobrança de foro nas áreas de Pernambuco. Alguns autores, como Nelson Nozoe, Rui Cirne Lima e Costa Porto, apresentam essa ordem régia como se ela tivesse sido aplicada em todo o Estado do Brasil. Entretanto, a pesquisa constatou que apenas as Capitanias do Norte ficaram sujeitas a ela. O porquê de apenas essa região ter ficado vinculada ao foro ainda não foi possível verificar. Caso se pense em uma tentativa de reduzir as posses dessa área, cabe mencionar que em todas as capitanias havia sesmarias com extensões exageradas, não sendo especificidade das Capitanias do Norte do Estado do Brasil. 31. Foi temporário, pois, como se verá adiante, o próprio Conselho Ultramarino afirmaria que nas Ordenações não 104 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 General de Pernambuco, que os remetia aos capitães-mores das freguesias e distritos em que haviam sido cedidas as datas. Depois de cobradas, deveriam ser encaminhadas ao almoxarife, espécie de tesoureiro real encarregado de cobrar os impostos, portanto responsável pela cobrança de foros na capitania de Pernambuco, que teria mais dois livros rubricados pelo provedor (um deles escrito pelo seu escrivão da Receita), os quais lhe serviriam de relação do que cobrar e das despesas que se houvesse de fazer33. No caso dos livros em que o provedor era o supervisor responsável, incluía-se o registro do pagamento dos novos direitos. Após definidos os valores do foro e quem os receberia, no que concerne às Capitanias do Norte, as demarcações ainda levaram um tempo para ser iniciadas. Tal como na situação mencionada, para calcular o foro real, o tamanho da sesmaria era uma qualidade muito relevante. O Conselho Ultramarino ordenou que se procedesse às medições, em 3 de março de 1702, bem como à verificação do cultivo das sesmarias em Pernambuco, e fez divulgar editais anunciando que sesmeiros e donatários deveriam apresentar suas confirmações e cartas em um prazo de seis meses34. Os editais notificavam, ainda, sobre o prazo de dois anos para demarcar as terras judicialmente. Alguns desembargadores foram nomeados para tratar das medições, significando que passavam a ter seus pagamentos vinculados ao pagamento feito pelos próprios sesmeiros, pela demarcação, sendo o valor pro rata35. Em 6 de junho de 1703, o desembargador da Relação da Bahia, João de Puga de Vasconcelos (SUBTIL, 2010, p. 292)36, foi indicado para proceder ao exame das terras, sendo assim apresentado: “por se ter boa opinião das terras, inteireza e capacidade deste ministro e que nesta comissão se haverá muito conforme as obrigações da sua pessoa e ao que convém do serviço de Vossa Majestade”37. Assim como no caso de outro desembargador, Cristovão Soares Reimão, nomeado para idêntica diligência nas Capitanias da Paraíba, Rio Grande e Ceará, tinha sua remuneração “ausentada” quando do embarque, passando a ser pago pelos próprios sesmeiros e donatários pro rata. Ademais, deveria este ser assistido pelos capitães-mores e oficiais da câmara em toda e qualquer situação em que essa ajuda se fizesse necessária. O fato de a remuneração do magistrado ser suspensa pela Coroa e imediatamente substituída por pagamentos realizados pelos próprios sesmeiros à proporção que suas terras fossem medidas é relevante para ilustrar o custo envolvido na demarcação de uma sesmaria, e igualmente importante para explicar o impedimento de parte da população que não poderia arcar com o ônus da demarcação, sendo assim impedida, na prática, de receber o documento oficial ou de ter acesso à terra. Mas não se deve descartar também a possibilidade de que alguns não estava prevista cobrança nenhuma, à exceção do dízimo. Entretanto, muitos sesmeiros que pagaram pelo foro, passaram a defender a ideia de que, ao pagar o foro, estariam isentos da necessidade da obrigatoriedade do cultivo. Por isso, afirma-se que houve mudança no entendimento dos direitos de propriedade. 32. CARTA régia (cópia) do rei [D. Pedro II] a Fernão Martins Mascarenhas de Lencastro [governador da capitania de Pernambuco] ordenando a continuidade da cobrança dos foros às pessoas que receberam sesmarias, 28 de setembro de 1700. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 19, Doc. 1845. 105 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 quisessem de fato pagar, preferindo empregar o dinheiro em algo que considerassem mais útil, ou se negassem a isso por acreditar ser um abuso por parte da Coroa. O desembargador João de Puga de Vasconcelos procedeu à diligência, juntamente com o escrivão das sesmarias de Pernambuco, Damazo Saraiva de Araújo, e mais alguns oficiais. Não se tem a data do início dessa diligência, mas seu relatório final é de 12 de janeiro de 1706. Ao final de sua jornada, havia examinado por volta de 44 léguas, cerca de 290 quilômetros, correspondentes a 63 sesmeiros38. A realização da diligência revelou-se bastante árdua para essa autoridade colonial, tanto que no próprio ano de 1706, em 30 de agosto, o desembargador escreveu ao Conselho Ultramarino solicitando que não mais fosse nomeado para tal tarefa, principalmente por haver falta de pessoal na Relação da Bahia, onde pretendia voltar a servir. Entre as várias justificativas por ele apresentadas constava a questão da distância, já que, em lugar de percorrer as supostas 14 léguas como se pensava inicialmente, andara muito mais para verificar os títulos possuídos pelos sesmeiros e confirmar se as sesmarias estavam ou não cultivadas. Alegava ele, principalmente, que o trabalho era áspero, oferecendo perigos diante dos vários achaques sofridos devido a acusações de que teria enriquecido nas jornadas ao interior. Finalizava sua carta queixando-se do clima e de que tinha cinco filhos de pouca idade que ficaram em Salvador. O Conselho considerou suas razões e o mandou servir novamente na Relação da Bahia39. A partir da mencionada alegação de enriquecimento pessoal, pode-se perceber a reação dos moradores à obrigatoriedade do pagamento pela medição da terra ou mesmo ao valor que lhe era atribuído, por eles considerado inaceitável. Nesse conjunto de documentos, não há registro do valor recebido pelo magistrado; tampouco se esse montante correspondia a uma porcentagem sobre o arrecadado40. Mas em outro registro faz-se referência a isso. Como João de Puga de Vasconcelos atuava como juiz de fora de Olinda, recebia 150 mil réis por esse cargo, além de uma propina que equivalia a 88 mil réis, e de emolumentos por diligências, cerca de 22 mil réis, o que lhe rendeu anualmente, por volta de 1705, cerca de 260 mil réis. Portanto, acredita-se que esses 22 mil réis é que corresponderiam aos seus ganhos nas medições de terra. Pode parecer pouco no 33. CARTA régia (cópia) do rei [D. Pedro II] a Fernão Martins Mascarenhas de Lencastro [governador da capitania de Pernambuco] ordenando a continuidade da cobrança dos foros às pessoas que receberam sesmarias, 28 de setembro de 1700. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 19, Doc. 1845. 34. A obrigação de mostrar títulos alcançou praticamente todas as capitanias (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais), apesar de a ordem régia sobre o foro legislar somente sobre as Capitanias do Norte. AHU (Lisboa) – Códice 263, fl. 196; AHU – Códice 224, fl. 96v; e AHU, Códice 224, fl. 273. 35.CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o procedimento do desembargador João de Puga e Vasconcelos no tombamento das sesmarias e datas de terras da capitania de Pernambuco, 4 de novembro de 1706. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 22, Doc. 2027. 37. Além de ter sido desembargador da Relação da Bahia entre 1696 e 1710, atuou como ouvidor-geral em Angola, provedor da Fazenda também em Angola e finalmente desembargador extravagante da Relação do Porto. 38. CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o procedimento do desembargador João de Puga e Vasconcelos no tombamento das sesmarias e datas de terras da capitania de Pernambuco, 4 de novembro de 1706. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 22, Doc. 2027. 106 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 conjunto dos ganhos do magistrado, mas para os sesmeiros obrigados a pagar não agradava nem um pouco41. No contexto de conquista do território, em que se acentua o enfrentamento com os indígenas, após a expulsão dos holandeses, muitos conquistadores passaram a ocupar cada vez mais o interior das Capitanias do Norte, derivando a necessidade de verificação dessas novas possessões. Sob essa singular condição é que vários sesmeiros foram agraciados com extensas terras, o que culminaria com as reclamações que chegaram ao Reino. Segundo Yamê Paiva, a ouvidoria da Paraíba foi criada em 1687 e tinha como jurisdição, além da própria capitania da Paraíba, as capitanias de Itamaracá, Rio Grande e Siará Grande (PAIVA, 2015). Cristovão Soares Reimão foi nomeado como ouvidor da Comarca da Paraíba. No desempenho dessa função, fez diversas diligências pelo interior das referidas capitanias (DIAS, 2012)42.Desde a fiscalização de festas que deveriam ser realizadas pelas câmaras até a questão da ocupação das terras, Reimão atuou por diversos anos, primeiramente como ouvidor, por cerca de seis anos, e posteriormente fazendo parte de uma comissão especial que deveria verificar as sesmarias no interior dessas capitanias, na qualidade de juiz de sesmarias. Ainda como ouvidor, Cristovão Soares Reimão teve papel importante no processo de concretização da ocupação das terras nos sertões das Capitanias do Norte do Estado do Brasil. Quando o capitão-mor Bernardo Vieira de Melo assumiu o governo da capitania do Rio Grande, a chamada Guerra dos Bárbaros estava em pleno apogeu, com batalhas que provocaram grande mortandade dos índios, mas também dos conquistadores, culminando em uma luta pelo poder entre as diversas tropas e moradores (PUNTONI, 2002; PIRES, 1990; SILVA, 2015; DIAS, 2015). O governador-geral acabou por ordenar o envio de um Terço dos Paulistas para a região, o que contribuiria para aumentar a tensão local (SILVA, 2015; ALVEAL & SILVA, 2012, p. 235249). No processo de ocupação dos sertões do Rio Grande, a região do Assu era estratégica pelo fato de ser a área em que havia grande concentração de aldeias ou assentamentos de diferentes grupos indígenas, genericamente chamados de tapuias, uma vez que o rio Assu tornava-se fonte de água permanente, o que causou também o interesse dos conquistadores em se estabelecer na região. Entretanto, nesse processo de conquista e ocupação, Bernardo Vieira de Melo intentou instalar um presídio na região do Assu. Não fica claro o porquê do envolvimento de Cristovão Soares Reimão, como ouvidor, na doação da sesmaria das terras onde se conservaria o presídio; afinal, o envolvimento do ouvidor no sistema sesmarial ocorria apenas depois da concessão. A medição a ser feita no momento da doação envolveria apenas o provedor. O ouvidor era chamado 38. CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o procedimento do desembargador João de Puga e Vasconcelos no tombamento das sesmarias e datas de terras da capitania de Pernambuco, 4 de novembro de 1706. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 22, Doc. 2027. 39. Idem. 107 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 quando houvesse problemas posteriores. Mas no códice 256, depositado no Arquivo Histórico Ultramarino, existe um documento no qual se registra que Cristovão Soares Reimão teria enviado carta ao rei, em 28 de abril de 1696, perguntando “sobre a forma que deveria ter a data de sesmaria de terras do Assu para a conservação do presídio43”. Segundo Tyego Silva, o presídio seria construído no ano seguinte (SILVA, 2015, p. 81-82). O rei não questionou sobre a dúvida do ouvidor, apenas solicitou um parecer do provedor, cerca de quatro meses após, em 22 de agosto de 1696. Não se tem maiores informações sobre a sesmaria do presídio. Mas com relação às diferenças das atuações entre ouvidores e provedores, acredita-se que, por estar ainda na fase de reordenamento e enquadramento do sistema sesmarial que estava ocorrendo nessa década de 1690, não estava clara a delimitação de funções, o que seria aperfeiçoado na década seguinte, como se observará adiante. Na documentação relativa à questão de terras, existente no Arquivo Histórico Ultramarino, percebe-se que havia dúvidas entre os provedores e os ouvidores das localidades quanto à atuação de cada um no tocante às sesmarias; mas, a partir de 1701, essa dúvida parece dirimida para o rei e para o Conselho Ultramarino, pois passaram a diferenciar a atuação do provedor e do ouvidor. Enquanto o provedor estava envolvido, a rigor, no momento da concessão, uma vez que era ele quem devia dar o aval ao capitão-mor permitindo esse feito, após verificação da terra e do cabedal do suplicante, o ouvidor era demandado somente quando houvesse problemas após a concessão, sobretudo questões que envolvessem litígios entre vizinhos, não resolvidos pelos juízes ordinários, como embaraços na documentação jurídica dos títulos, cumprimento das exigências ou contestação de limites44. Como mencionado, esses registros não existem/sobreviveram para as Capitanias do Norte, o que permitiria observar os problemas oriundos da demarcação de terras. Mas existem vários documentos que mostram as incertezas dos oficiais da Coroa sobre as questões das sesmarias. O papel das autoridades, entretanto, era zelar pelo bem da república, em nome do rei. Nesse sentido, em 1697, tanto o ouvidor, Cristovão Soares Reimão, quanto o provedor do Rio Grande (do Norte), Manuel Tavares Guerreiro, informaram ao rei sobre terras extensas, dadas a pessoas que assistiam na Bahia, Pernambuco e Rio de São Francisco, com 15, 20 e até 30 léguas e que não eram cultivadas. A reclamação justificava-se pelas sentidas dificuldades impostas aos responsáveis pela Fazenda Real que não podiam recolher os dízimos45. A carta escrita por Soares Reimão, em que trata dessa ocorrência, é bastante próxima à ordem régia que viria a delimitar finalmente a extensão das sesmarias (ordem régia de 27 de dezembro de 1697). Não se acredita que essa carta tenha influenciado diretamente na outorga dessa ordem régia, mas, como já 40. Idem. 41. AHU (Lisboa), Códice 265, fl. 192. Outro desembargador, José de Lima Castro, atuando como juiz de terras, reclamava de seus ordenados. AHU (Lisboa), Códice 258, fl. 317. 42. Segundo Patrícia Dias, Cristóvão Soares Reimão nasceu no Reino e obteve seu diploma em Coimbra. Nesse artigo, a autora Patrícia Dias fez uma análise da atuação de Reimão nessas várias capitanias. 108 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 existiam reclamações sobre o tamanho das sesmarias concedidas pelas autoridades no Brasil, o conjunto das reclamações teria contribuído para a emissão da medida e principalmente para a cobrança do foro régio no tocante às medições que seriam feitas no início do século XVIII. Em resposta à carta de Soares Reimão, o rei mandou o governador-geral, Dom João de Lencastre, pôr editais nesses lugares para que os sesmeiros demarcassem, medissem e povoassem as terras em um ano. As que ficassem devolutas, deveriam ser repartidas entre os moradores da capitania. O rei ainda mandava seguir a “lei da igualdade da distribuição”; portanto, a ideia era a de que os que não morassem efetivamente nas capitanias ou que não cultivassem não deveriam ser priorizados na distribuição das terras, mas sim os moradores locais46. Aliás, ser morador da capitania era considerada uma das exigências, desde os tempos das capitanias donatárias (ALVEAL, 2007). Também Bernardo Vieira de Melo, capitão-mor do Rio Grande, à época, reclamou, em 1698, sobre a ausência de pessoas que requeriam sesmarias na capitania, mas que não as cultivavam por morarem distante. O rei, então, escreveu a João de Lencastre, governador-geral, autorizando-o a nomear mais ouvidores nos “distritos de Pernambuco” para verificar a situação47. Portanto, as autoridades envolvidas em promover a formação e consolidação da sociedade colonial atuavam em conjunto, a exemplo do que faziam o ouvidor, o governador-geral, o provedor e o capitão-mor/governador. No ano seguinte, em 19 de dezembro de 1699, o rei mandou o governador-geral, João de Lencastre, fazer diligência no Rio Grande (do Norte) e em Sergipe sobre as sesmarias consideradas extensas48. Parecem ser duas capitanias que preocupavam as autoridades e que havia um esforço em aumentar a colonização ali, pois a Coroa ordenou a criação de seis vilas em cada capitania, sendo o capitão-mor de Sergipe bem-sucedido (CAMPOS & VIANNA, 1891), enquanto o do Rio Grande apenas conseguiu fazer um aldeamento novo com os Paiacu (LOPES, 2010). Cristóvão Soares Reimão foi pressionado para fazer diligência no Assu e no Jaguaribe49 em 1702. Em tal diligência, deveriam ser citados todos os hereos para apresentarem os documentos de suas doações. O primeiro decênio do setecentos marcou, portanto, um período de tentativa, por parte das autoridades coloniais, de verificar a questão das sesmarias, por ordem direta da Coroa50 (ALVEAL, 2015). Era esclarecido ainda que caso houvesse apelação e agravo, que fossem remetidos os autos à Relação. As vistorias nos lugares de contenda, a serem realizadas pelos oficiais, deveriam ser pagas pelas partes. O provedor também foi mencionado por apoiar a reclamação da câmara da cidade do Natal e entender a necessidade de exame das sesmarias e de seus títulos. O provedor à época, Manuel da Silva Vieira, entretanto, estava interessado nos dízimos, situação que mudaria com o 43. AHU (Lisboa), códice 256, fl. 217. 44. AHU (Lisboa). Códice 257, fl. 77v e 80. 45. Carta escrita em 13 de dezembro de 1697. AHU (Lisboa), Códice 246. Fls. 55v-56. 109 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 provedor seguinte, que se chocaria com as ações de Cristovão Soares Reimão51. O fato de o provedor considerar a importância das demarcações como averiguadora das sesmarias, no sentido de impulsionar a economia, evidencia-se em sua preocupação na coleta de dízimos, que eram arrecadados com base na produção e criação. Assim sendo, fazia-se necessário que as terras estivessem sendo ocupadas com alguma atividade econômica. Cristóvão Soares Reimão teria escrito ao rei em 1703 relatando algumas dúvidas sobre as “medições e datas de terras que se [achavam] no distrito da capitania do Rio Grande”. Tanto as terras que excediam a taxa52 e estavam por povoar quanto as que ainda estivessem por povoar (que não poderiam exceder a taxa) deveriam ser consideradas devolutas e ser solicitadas ao capitãomor para, posteriormente, serem confirmadas. As terras que estivessem povoadas, mas excedessem as taxas, ficariam sujeitas a ser consideradas devolutas, e a parte excendente deveria ser solicitada em novo requerimento ou petição de sesmaria pelos antigos sesmeiros. A razão seria a de que, uma vez povoadas, não haveria sentido em dar a outros. Assim ditava o documento: “a taxa é só uma data e quem tiver povoado uma não lhe é proibido haver outra e povoando-a no termo da lei de sorte que o fim da lei é povoar as terras incultas e despovoadas e pelo que toca a medição53”. Portanto, não se proibia expressamente a posse de várias sesmarias desde que elas não ultrapassassem a taxa e que fossem produtivas. Em trabalho inédito, Patrícia de Oliveira Dias analisou a diferença de atuação de Cristovão Soares Reimão nas capitanias do Rio Grande e do Ceará. Enquanto no caso do Ceará, Reimão teria feito vista grossa para o tamanho das sesmarias, no Rio Grande, o ouvidor teria obrigado os sesmeiros que tinham sesmarias superiores à taxa, a solicitarem novas possessões com a parte excedente (DIAS, 2011, p. 36; RICARTE, 2016)). Talvez uma das razões que induziram Reimão a atuar de forma diferente no Siará tenha sido o fato de ser ameaçado, e mesmo impedido de realizar a demarcação de algumas áreas54 (DIAS, 2011, p. 51). Em relação ao Rio Grande, a autora analisou os casos de irregularidades encontradas pelo ouvidor. Seriam quatro: 1) sesmarias que possuíam léguas a menos do que o estipulado na carta; 2) sesmarias que não foram povoadas no tempo determinado pela Coroa; 3) sesmeiros com informação equivocada sobre seu local de origem, possuindo sesmarias na capitania; 4) sesmarias com léguas acima do que era permitido pela ordem régia de 1697 (DIAS, 2011). Percebe-se, pelos problemas elencados, que o ouvidor estava, de fato, tentando cumprir as determinações das ordens régias produzidas na década de 1690. Além disso, muitas terras foram 46. AHU, Códice 246. Fls. 55v-56. 47. A carta do rei é datada de 15 de janeiro de 1698. AHU (Lisboa), Códice 246. Fls. 59-59v. Existe uma nova carta a Lencastre sobre a mesma queixa de Bernardo Vieira de Melo, de 10/10/1698. Códice 246. Fls. 71. O termo distritos de Pernambuco mostra como, apesar de o Rio Grande fazer parte da Comarca da Paraíba, havia um entendimento de uma certa centralidade da capitania de Pernambuco sobre as Capitanias do Norte, ou seja, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Siará Grande. 48. AHU, Códice 246. Fls. 106. 49. AHU, Códice 257. Fls. 81. 50. AHU, Códice 256. Fls. 164-164v. 110 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 consideradas devolutas, devido às incertezas com a guerra e a fuga de alguns moradores. Os camarários da cidade do Natal, em 1705, reclamaram ao rei dos grandes custos que os moradores estavam tendo diante das ações de medição e demarcação do desembargador, reclamação que se assemelha à queixa feita por João Puga de Vasconcelos ao ser acusado de enriquecimento ilícito55. A mesma resposta dada à câmara foi enviada diretamente a Cristóvão Soares Reimão; no entanto, bem mais completa. O rei questionava o “estranho procedimento tirando-as aos beneméritos filhos da terra para as dares aos estranhos”56. E ainda ordenava que se declarasse quanto Cristóvão Soares Reimão levava de salário, bem como quanto levavam os oficiais que o auxiliavam. Os hereos que tivessem terras dentro da taxa estariam obrigados apenas a medir o tamanho; já aqueles que ultrapassassem deveriam obrigar-se a demarcar entre si, com a incumbência de pedir outro título para o excedente57, o que de fato aconteceu, como demonstrou Patrícia Dias (DIAS, 2011). Em 1706, o provedor do Rio Grande, José Barbosa Leal, acusava Cristóvão Soares Reimão de usurpar a jurisdição dele, revivendo os conflitos jurisdicionais existentes entre ouvidores e provedores no tocante às sesmarias. Mas o rei lhe escreveu para informar sobre as diferenças de jurisdição. Assim, Cristóvão Soares Reimão, como desembargador, foi mandado em uma Comissão Especial e não como ouvidor-geral da Paraíba. A Comissão Especial tinha a responsabilidade de fazer as demarcações do sertão58. Em sendo dessa forma, acredita-se que essa data marca a passagem do cargo de Reimão de ouvidor para juiz de sesmarias especificamente (RICARTE, 2016). Passados alguns anos, o provedor, José Barbosa Leal59, ainda reclamava, em carta de 21 de janeiro de 1712, que Cristóvão Soares Reimão, encarregado do tombo das terras do sertão, onde se encontravam possuidores sem demarcação nem confirmação, não estaria fazendo seu trabalho. Afirmava também que os editais não teriam sido cumpridos. O fato mais agravante é que Cristóvão Soares Reimão teria ido para a Paraíba. Diante das acusações de Leal, o rei ordenou a Cristóvão Soares Reimão que desse conta do estado das diligências60. Infelizmente, não foi encontrado mais nenhum documento referente a essa questão. Sabe-se, porém, que Cristovão Soares Reimão ainda atuava nos sertões do Rio Grande e Ceará, por volta 1715-1716, pois se tem conhecimento de uma carta régia em resposta a um pedido seu para que fossem reduzidas as pensões das sesmarias impostas aos povoadores daqueles sertões “para se poderem conservar os missionários das missões dos mesmos distritos”61. Isso revela a preocupação por parte do desembargador no sentido de que a redução das pensões possibilitasse a permanência dos missionários, que eram, decerto, muito importantes para o processo de integração dos índios à sociedade colonial em formação. 51. AHU, Códice 256. Fls. 164-164v. 52. O termo taxa, aqui utilizado, é o que aparece no documento; no caso, refere-se ao tamanho que a sesmaria deveria ter, de três léguas de comprimento por uma de largura. 53. AHU, Códice 157. Fl. 128. 111 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 Constatou-se que a atuação do referido desembargador durou mais de uma década, como juiz de sesmarias (duas décadas, caso se considere sua atuação como ouvidor da Comarca da Paraíba). A variada correspondência trocada entre os oficiais e o rei, por meio do seu Conselho Ultramarino, revela as dificuldades e tentativas de Reimão em efetivar as ordens régias, sem deixar de se considerar a realidade colonial. Só não se dispõe de estudos que possam mostrar as relações mais próximas que Reimão teria tido nessas capitanias, mas é certo que ele recebeu dois chãos de terras na cidade da Paraíba; uma delas com a justificativa de que serviria para colocar seus escravos. Assim, como um membro atuante da elite da colônia, também foi proprietário de escravos. Em contrapartida, não se tem registro de sesmarias doadas ao desembargador. Segundo Patrícia Dias, Cristovão Soares Reimão foi preso, em 1719, por ter desacatado o ouvidor à época, Francisco Pereira, e retornou ao Reino para ser julgado, não se sabendo mais nada sobre ele (DIAS, 2011, p. 40-41). O sistema de sesmarias nas Capitanias do Norte do Estado do Brasil enfrentou outros problemas, como o da jurisdição responsável por passar as cartas de concessão. Cabe lembrar que apenas a Capitania de Pernambuco tinha governador, estando as capitanias adjacentes submetidas ao seu Governo no século XVIII (com exceção da Paraíba, que somente em 1755 passou a ser considerada anexa), embora fossem comandadas por capitães-mores que ora não tinham o direito de conceder cartas de sesmarias, ora o tinham, desde que as concessões viessem a ser reconfirmadas pelo Governo de Pernambuco ou da Bahia, por terem governador, e, posteriormente, pela Coroa em Lisboa. Contudo, nos anos de 1712 e 1713, o Governador de Pernambuco, Felix José Machado, trocou correspondência com o reino a fim de saber quem deveria ser responsável pela concessão de cartas de sesmarias naquelas capitanias anexas. A autoridade colonial registrava que os capitães-mores do Ceará e Rio Grande estavam emitindo provisões de ofícios e de alguns postos, bem como cartas de sesmarias, sem terem a devida jurisdição, segundo seus regimentos, cabendo-lhes tão-somente prestar informação sobre as pessoas aptas a merecer tais nomeações e mercês, competindo somente ao governador, como seu superior, concedê-las.62 Para manter a observância das ordens reais, Felix José Machado fez registrar, nos livros de ambas as capitanias, a resolução real. O rei agradeceu ao governador por informá-lo que a Fazenda Real estava tendo prejuízo diante de atuações como a dos capitães-mores do Rio Grande e Ceará, confirmando sua subordinação ao governador de Pernambuco, e finalizou sua carta ordenando que os capitães-mores se abstivessem de tal abuso63. Ademais, Félix José Machado emitiu duas portarias, ambas em 1715, uma para os oficiais da Fazenda e outra apenas para o provedor. O governador questionava o descumprimento do pagamento do foro e se, de fato, as terras que estavam sendo concedidas serviam aos interesses 54. A autora mostra as dificuldades que o ouvidor enfrentou no Ceará com sesmeiros e o capitão-mor da capitania. 55. AHU, Códice 257, fl. 185. 56. AHU, Códice 257. fl. 185v. 57. AHU, Códice 257. fl. 185v. 112 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 reais64 (RICARTE, 2016, p. 90). Ao longo do século XVIII, a situação mudou com as ordens régias de 14 de dezembro de 1746, 7 de janeiro de 1752 e 22 de março de 1766, em que se confirmava que não cabia mais aos capitães-mores do Rio Grande submeterem-se à jurisdição do governador da Capitania de Pernambuco65. Varnhagen já registrava que, em 1721, os capitães-mores passaram a ter maior importância, principalmente nas vilas e freguesias onde atuavam (VARNHAGEN, 1981, p. 333334) . De certa forma, na primeira metade do século XVIII, os capitães-mores do Rio Grande e do Ceará concederam centenas de cartas de sesmarias que contribuiriam para a colonização66 (FONSECA, 2018). Não foi somente nas áreas onde passou a existir a cobrança de foro sobre a terra que diligências para medição foram realizadas. Também na Bahia passou-se a executar a medição de terras. Em um primeiro momento, em 1703, o próprio Senado da Bahia solicitou a medição de suas terras, visando saber quais seriam elas exatamente, além de verificar aquelas que estavam sendo ocupadas por posseiros67. O nomeado para a tarefa foi o desembargador José da Costa Correa, que, tal como nos casos antes mencionados, teria sua remuneração suspensa uma vez que esta seria paga com a própria tarefa de passar as cartas de sesmarias no momento em que a Câmara procedesse à redistribuição. O ministro seria acompanhado de escrivão, medidor, piloto e ajudante da Coroa68. Esse é o primeiro documento que faz referência ao posto de piloto na América portuguesa, e ao qual se conseguiu ter acesso nesta pesquisa. Cumprindo sua função, o piloto trazia uma corda a ser utilizada para as medições, tomando ainda acidentes naturais ou algumas construções, em casos de medição em áreas urbanas, como marcos delimitatórios. Anteriormente, sobretudo nas vilas, o mestre de campo era o responsável pela medição nas áreas urbanas (ABREU, 2005). Nesse sentido, os primeiros anos do século XVIII, ainda no reinado de Dom Pedro II, evidenciam a tentativa efetivada pela Coroa de realizar processos de demarcação das sesmarias. Após esse procedimento de grande vulto, há registros de atos de demarcação e cobrança de foro nas Capitanias do Norte do Estado do Brasil somente 30 anos depois. Em 1739, o Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, queixava-se ao rei da desordem na 58. AHU, Códice 257. Fls. 187. 59. Interessante o fato de que o provedor José Barbosa Leal tivesse terras também: ver na Plataforma SILB – RN0049; RN0050, assim, poderia haver choque de interesses nas medidas realizadas por Cristovão Soares Reimão. SILB-Sesmarias do Império lusobrasileiro disponível em www.cchla.ufrn.br/silb. Acesso em 20 de fevereiro de 2019. 60. AHU, Códice 266. Fls. 14v. 61. AHU, Códice 258. Fls.102v. 62. Carta de 9 de julho de 1713, disponível em: CARTA (1ª via) do [governador da capitania de Pernambuco] Félix José Machado [de Mendonça Eça Castro e Vasconcelos] ao rei [D. João V], 9 de setembro de 1713. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 25, Doc. 2304. 63. Idem. 113 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 cobrança do foro anual69. Ele já havia informado ao rei, anteriormente, tanto sobre as irregularidades da cobrança da Real Fazenda quanto sobre os descuidos de almoxarifes e, principalmente, sobre a cobrança dos foros das sesmarias. Alegava que se cobrava foro apenas das sesmarias próximas a Recife, ou seja, aquelas que deveriam pagar seis mil réis por légua, estando a uma distância máxima de 30 léguas da nova vila. As do sertão, entretanto, que deveriam ser taxadas em quatro mil réis por légua, não estavam sendo cobradas (RICARTE, 2016, p. 99). Cobrar foro das que estavam ao redor de Recife era mais viável. Nas diligências ordenadas pelo governador Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, descobriu-se que a Fazenda Real estava tendo um enorme prejuízo. Meticulosamente, o governador apresentou todos os cálculos; denunciou que os capitães-mores da capitania do Ceará não estavam cobrando foro e, oferecendo números e operações matemáticas, alertou o rei de que, desde o ano de 1699, início da cobrança de foro, haviam sido concedidas 923 sesmarias em um total de 4.069 léguas, o que significava um prejuízo à Fazenda Real de cerca de 16:276$000 réis por ano. Com base nesse cálculo, o governador de Pernambuco acreditava que as sesmarias deveriam ser registradas com urgência na Secretaria da Provedoria da capitania de Pernambuco, além de demarcadas e registradas em livros de suas capitanias, para que, ao serem confirmadas pelo governo de Pernambuco, fosse possível a cobrança do foro devido70. Já que a capitania do Ceará encontrava-se sob jurisdição do governador de Pernambuco, este enviou, em 1738, ordem ao capitão-mor do Ceará, Domingos Simões Jordão, determinando a imediata cobrança do foro. Porém, a despeito da ordem, foram passadas posteriormente 40 novas datas de sesmarias. Escrevendo ao rei, mais uma vez, Henrique Luís Pereira Freire de Andrada pediu castigo exemplar ao capitão-mor. A alegação, para tal requerimento, era a seguinte: por “faltar as ordens de Vossa Majestade, e a minha, e que ao menos seja obrigado a pagar da sua fazenda tudo que a de Vossa Majestade tem perdido por haver dado estas últimas datas depois de não poder alegar ignorância alguma que o releve de culpa”71. O governador de Pernambuco, contudo, reconhecia que a situação econômica da região 64. PORTARIA para os oficiais da fazenda declararem uma dúvida que há nas sesmarias. Olinda, 25 de fevereiro de 1715. In: Biblioteca Nacional de Lisboa. Coleção Pombalina – PBA 115 – Livro dos Assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se escreveu em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado (1712-1715), fl. 358; SEGUNDA portaria ao provedor da fazenda sobre as declarações que devem fazer nas cartas de sesmarias. Olinda, 09 de abril de 1715. In: Biblioteca Nacional de Lisboa. Coleção Pombalina – PBA 115 – Livro dos Assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se escreveu em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado (1712-1715), fl. 360. 65. PROVISÃO (cópia) do rei [D. João V] ordenando que se conservem os corpos da Cavalaria da Ordenança, e que os postos, ofícios e datas de sesmarias, no Ceará e Rio Grande, não devem ser providos pelos capitães-mores, sem a obrigação de pedirem confirmação. 17 de agosto de 1740. AHU – Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 56, Doc 4832. 66. Recente estudo de Marcos Arthur Vianna Fonseca discute a questão dos conflitos de jurisdição envolvendo o capitão-mor do Rio Grande e o governador de Pernambuco. 67. Existem diversos documentos que mostram medições sendo feitas em outros lugares além das Capitanias do Norte e da própria Bahia: AHU, Códice 97, fl. 287v – 288; AHU (Lisboa), Códice 241, fl. 321; AHU, Códice 242, fl. 20 – 20v; entre muitos outros. 114 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 era a pior possível diante de seu estado de pobreza e informava ao rei que os moradores encontravam-se praticamente impossibilitados de pagar o foro, dificultando a ação dos provedores e promovendo, assim, a “desordem” na colônia. Alertava ainda que, caso os próprios moradores quisessem vender as terras, não haveria quem as comprasse por falta de meios financeiros diante das dificuldades de recursos. Mas a sua preocupação centrava-se nas terras não ocupadas. A solução apresentada por esta autoridade foi a de lançar editais ao som de caixas72, junto a todas as freguesias, para que as pessoas providas de sesmarias ou quaisquer terras e ainda engenhos apresentassem os títulos diante do ouvidor da capitania no prazo de dois anos. Caso não o fizessem, tais terras seriam consideradas devolutas – na acepção original, devolvidas ao rei. Após o ouvidor examinar e emitir seu parecer ao governador, finalmente seriam concedidas as cartas de confirmação pelo Governo de Pernambuco, mediante imposição do pagamento do foro anual à provedoria da capitania onde estivessem situadas. Ao apresentar soluções, o governador mostrava que as autoridades coloniais não eram apáticas e passava a responsabilidade do provedor para o ouvidor73. Seguia-se, ainda, o princípio de que as sesmarias concedidas deveriam ser cultivadas em três anos, como no regimento, demonstrando que se havia povoado as terras, e que, nos dois anos seguintes, os sesmeiros seriam obrigados a mostrar a confirmação real. As sesmarias que não tivessem sido povoadas nem confirmadas dentro de cinco anos tornar-se-iam devolutas. As cartas concedidas pelos capitães-mores das capitanias adjacentes deveriam ser registradas na Secretaria da Provedoria de Pernambuco, pagando-se por esse registro, e as já passadas deveriam pagar ao menos uma taxa para os oficiais (ALVEAL, 2007). Contudo, o Conselho Ultramarino, em setembro do mesmo ano de 1739, descartou o parecer do governador, afirmando que as imposições de foro não deviam ser executadas, uma vez que a carta de 20 de janeiro de 1699, estabelecendo a cobrança de foro, não estava compreendida no Regimento Geral do governo do Brasil, dado a Tomé de Souza, além de fugir das concepções 64. PORTARIA para os oficiais da fazenda declararem uma dúvida que há nas sesmarias. Olinda, 25 de fevereiro de 1715. In: Biblioteca Nacional de Lisboa. Coleção Pombalina – PBA 115 – Livro dos Assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se escreveu em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado (1712-1715), fl. 358; SEGUNDA portaria ao provedor da fazenda sobre as declarações que devem fazer nas cartas de sesmarias. Olinda, 09 de abril de 1715. In: Biblioteca Nacional de Lisboa. Coleção Pombalina – PBA 115 – Livro dos Assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se escreveu em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado (1712-1715), fl. 360. 65. PROVISÃO (cópia) do rei [D. João V] ordenando que se conservem os corpos da Cavalaria da Ordenança, e que os postos, ofícios e datas de sesmarias, no Ceará e Rio Grande, não devem ser providos pelos capitães-mores, sem a obrigação de pedirem confirmação. 17 de agosto de 1740. AHU – Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 56, Doc 4832. 66. Recente estudo de Marcos Arthur Vianna Fonseca discute a questão dos conflitos de jurisdição envolvendo o capitão-mor do Rio Grande e o governador de Pernambuco. 67. Existem diversos documentos que mostram medições sendo feitas em outros lugares além das Capitanias do Norte e da própria Bahia: AHU, Códice 97, fl. 287v – 288; AHU (Lisboa), Códice 241, fl. 321; AHU, Códice 242, fl. 20 – 20v; entre muitos outros. 115 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 de povoação formuladas no tempo do rei D. João III. Tampouco estariam contempladas na Ordenação do Reino que dispunha em favor da cultura, e por “razão da validade pública se reprova todo o foro ou tributo que se impuser de novo nas sesmarias, e pondo se este, seja nulo e de nenhum efeito, ficando a sesmaria em seu vigor, e sem a tal obrigação”74. Assim, o Conselho Ultramarino recuperava as condições originais do sistema sesmarial baseadas no aproveitamento da terra (RICARTE, 2016, p. 99). O Conselho ainda considerava que as despesas realizadas para manter as sesmarias e criar o gado eram extremamente altas, já que era comum que o gado morresse, tornando-se intolerável um novo tributo. Como se pode constatar, o próprio Conselho Ultramarino considerava as despesas altas para os sesmeiros e reiterava a informação das dificuldades econômicas dos sesmeiros da região (RICARTE, 2016, p. 99). Foi a primeira vez que o Conselho Ultramarino descartou a cobrança de foro, embora em nenhum momento a Coroa tenha revogado a provisão de 1699, o que continuaria a ser como um problema para as autoridades coloniais que tentavam seguir determinações anteriores. Dessa forma, apesar de não revogado, o foro não foi cobrado por alguns anos, até que novamente outro governador trouxesse à tona a provisão de 1699 e levantasse os mesmos problemas. Interessante notar que, ao negar a provisão de 1699, o Conselho enfatizava que a legislação sesmarial se limitava às Ordenações e ao regimento, reforçando a noção do cultivo como princípio75. A prática de não se cobrar foro desagradava a algumas autoridades, que insistiam na necessidade de cumprir a legislação. Em 1741, o governador de Pernambuco escrevia ao secretário de estado de Marinha e Ultramar, Antonio Guedes Pereira, reclamando do fato de os sesmeiros não pagarem foros, e também de não estar sendo imposta a obrigação de povoarem as terras, já que sempre se esperava o perdão da “real piedade” para quem não tivesse pagado o foro76. Considerações finais 72. Em geral, esses editais eram anunciados ao “som de caixas”, o que significa que uma autoridade colonial juntamente com outro funcionário, este de posse de algum instrumento como um tambor, anunciavam, em voz alta, a temática do edital. O alcance provavelmente era mínimo, já que se restringia principalmente aos núcleos urbanos. 73. CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II sobre se encarregar ao desembargador José de Costa Correia a diligência de examinar as datas e confirmações das sesmarias de terras da capitania da Bahia. AHU – Papéis Avulsos, Bahia, Cx. 4, Doc. 56. 74. CARTA do [governador da capitania de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao rei [D. João V]. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 55, Doc 4769. 75. Isso é interessante, pois parece até que o Conselho Ultramarino não sabia que existia essa prática e quando “descobriu” a tratou como algo não oficial, já que não estava no regimento. Pode-se até refletir um pouco sobre como (de um governante para o outro [de Pedro II para João V] ou entre os membros do conselho) a percepção da administração das posses ultramarinas se modificava de forma significativa. 76. OFÍCIO do [governador da capitania de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Antônio Guedes Pereira. 29 de agosto de 1741. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 57, Doc 4899. 116 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 A multiplicidade de agentes e agências envolvidos na concessão, regulação e validação de sesmarias – como governadores, provedores, capitães-mores, almoxarifes e escrivães, além do Conselho Ultramarino e das provedorias locais – contribuiu para a deflagração de inúmeros conflitos de interesses, já que a própria concessão de mercês estabelecia relações interpessoais e uma camuflada troca de conveniências, em um jogo político, que, muitas vezes, se explicitava abertamente. Os conflitos envolviam hierarquias diferentes, desde agentes localizados na Corte e na colônia até autoridades coloniais localizadas nos principais núcleos urbanos ou mesmo em localidades distantes do litoral. O período de 1690, década na qual várias ordens régias tentavam preencher lacunas ou mesmo complementar a legislação sesmarial, assistiu ao início de vários processos de demarcação, derivados da necessidade da cobrança do foro nas Capitanias do Norte do Estado do Brasil. Essas ordens régias, e a tentativa de sua aplicação, evidenciam as transformações jurídicas ocorridas na legislação sesmarial, sobretudo no período de Dom Pedro II de Portugal, e as consequências dessas mudanças. Apesar de haver estudos mostrando como a legislação durante o período pombalino teria acarretado uma centralização política, a análise proposta evidenciou, no tocante à questão da terra, que houve tentativas de um maior controle sobre o acesso à terra, a partir de 1690, que prosseguiram no período joanino. Ao focalizar a questão dos tributos incidentes sobre o sistema sesmarial – relativos à concessão, demarcação e confirmação de terra –, verificou-se que todas as etapas envolviam o pagamento de quantias que assegurassem o “direito” ao cumprimento da legislação, como é o caso do registro na Chancelaria, podendo ser este considerado como empecilho a seu próprio cumprimento, no sentido de que as exigências burocráticas do processo eram onerosas e trabalhosas – caso da demarcação mas também do registro. Para as Capitanias do Norte, tal quadro agravar-se-ia ainda mais com a instituição da cobrança de foro real euma maior tentativa de controle régio. Esses aspectos aqui tratados mostram a burocracia para legalizar uma doação 68. CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II sobre a carta dos oficiais da Câmara da Bahia em que estes pedem provisão para que o governador-geral do Brasil, Rodrigo da Costa, nomeie um ministro da Relação para fazer a medição das terras que, por sesmaria, pertencem ao Senado. 7 de fevereiro de 1704. AHU –Papéis Avulsos, Bahia, Cx 4, Doc 51; CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II sobre se encarregar ao desembargador José de Costa Correia a diligência de examinar as datas e confirmações das sesmarias de terras da capitania da Bahia. 5 de março de 1704. AHU –Papéis Avulsos, Bahia, Cx 4, Doc 56. 69. CARTA do [governador da capitania de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao rei [D. João V]. 12 de dezembro de 1739. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 55, Doc 4769. 70. CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II sobre se encarregar ao desembargador José de Costa Correia a diligência de examinar as datas e confirmações das sesmarias de terras da capitania da Bahia. AHU – Papéis Avulsos, Bahia, Cx. 4, Doc. 56. 71. O governador Henrique Luís Pereira Freire de Andrada acusava também o desembargador Cristovão Soares Reimão, o mesmo que tinha feito a diligência na Paraíba, Rio Grande e Ceará, de não ter registrado as ordens no Livro da Fazenda, confrontando-o. Dizia ainda que não havia sido possível averiguar o procedimento da cobrança de foro na Capitania do Rio Grande. CARTA do [governador da capitania de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao rei [D. João V]. AHU –Papéis Avulsos, Pernambuco, Cx 55, Doc 4769. 117 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 14, n. 2, mai./ago. 2019 de sesmaria, além do custo financeiro, que os sesmeiros enfrentavam, reforçando a convicção de que obter uma sesmaria e “mantê-la” regularizada representava investimentos que somente poucos puderam e quiseram fazer. REFERÊNCIAS ABREU, Maurício de. Reencontrando a antiga cidade de São Sebastião: mapas conjeturais do Rio de Janeiro do século XVI. 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