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DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99954 PENSANDO COM SABA MAHMOOD: APRESENTAÇÃO THINKING WITH SABA MAHMOOD: A PRESENTATION Michael Allan Bruno Reinhardt1 INTRODUÇÃO: SOBRE AMOR E TRABALHO Em 28 e 29 de março de 2017, acadêmicos de diversas parte do mundo se reuniram no Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, Berkeley, para refletir sobre alguns conceitos-chave dos escritos de Saba Mahmood. O objetivo não era simplesmente responder ao seu trabalho, mas engajar-se e pensar através dele, e assim conectar diferentes gerações de estudantes que aprenderam com Saba ao longo de seus anos de pesquisa e docência. De Politics of Piety a Religious Difference in a Secular Age, Saba forjou métodos que tocaram o nervo da análise da política, da história, da religião, do gênero, e da sexualidade. Ela produziu modelos — em sua produção acadêmica, assim como em seu ensino — comprometidos com questões candentes para as sensibilidades políticas de nosso tempo e demonstrou a importância profunda do conhecimento histórico, cultural e linguístico. Em seus escritos, conceito teóricos emergiram da análise crítica de disciplinas e práticas situadas no tempo e no espaço, sejam eles os movimentos sociais do Egito dos anos 1990 ou as tradições jurídicas Otomanas. O amplo apelo de seus seminários derivava de sua atenção a campos contemporâneos de investigação e da abordagem crítica que ela 1 Michael Allan é docente do departamento de Literatura Comparativa da Universidade do Oregon, Estados Unidos. E-mail: mallan@uoregon.edu. Bruno Reinhardt é docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil. E-mail: bmnreinhardt@gmail.com. Ambos são organizadores do dossiê. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019 138 Michael Allan, Bruno Reinhardt oferecia, nos desafiando em sala de aula e em conversações pessoais sobre nossos trabalhos. Em cursos cujos tópicos se estendiam de “Liberalismo e Secularidade” a “Políticas da Liberdade Religiosa”, de “Diferença pós-colonial na Era Secular” a “Antropologia da Violência e da Esperança”, Saba nos encorajava a pensar para além das intuições do senso comum e a questionar os protocolos que asseguram nosso pertencimento a imaginários políticos específicos. Apesar das diferentes direções para as quais fomos levados, cada um de nós parece ter internalizado muitos dos compromissos duradouros que Saba nos ajudou a cultivar. Como transparece em alguns dos comentários que seguem, Saba tinha um estilo próprio de relacionar-se com seus estudantes, uma pedagogia aparentemente contraditória, que aliava crítica e paixão em doses igualmente intensas. A crítica convencionalmente implica em distanciamento reflexivo, na submissão das ideias a um frio teste de coerência, um bombardeamento impessoal dos argumentos em seus fundamentos históricos, etnográficos e lógicos, representando talvez o momento mais hierárquico e tenso da relação entre professor e aprendiz. Por sua vez, a paixão caminha na direção contrária, dissolvendo tal hierarquia e produzindo uma identificação absoluta entre aqueles que amam o conhecimento mais do que a si mesmos, e que nesse amor encontram sua vocação e sua política. A veia crítica rigorosa e amorosa de Saba nos legou não apenas conhecimento, mas também um modo de aprender a aprender em que distanciamento reflexivo e aproximação passional não apenas se complementam, mas também sanam suas deficiências. Considerando a centralidade do tema da pedagogia e da exemplaridade para a antropologia de Saba, pode-se dizer que aqui não apenas professor e aprendiz, mas também vida e obra se encontraram. É interessante recordar que, quando Michael Allan e Judith Butler inicialmente a abordaram com a ideia de reunir diferentes gerações de seus estudantes, Saba rejeitou qualquer possível celebração de seu trabalho. Ela queria explicitamente evitar um festschrift, uma comemoração estática de sua obra, ao invés de um engajamento com a disposição crítica que tanto valorizava. Mesmo quando o nosso planejamento avançava, seu temor sobre Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019 PENSANDO COM SABA MAHMOOD: APRESENTAÇÃO 139 esse evento permanecia, e ela nos encorajava a imaginar outros formatos de interação para além de uma conferência convencional. Saba sempre valorizou as possibilidades que emergem do engajamento criativo e das interações que surgem em torno da leitura e da reposta coletiva a textos. Abraçamos suas preocupações e começamos a especular sobre formatos que nos permitiriam evitar o show de autopromoção das apresentações acadêmicas, em que um apresentador após o outro publiciza projetos separados. Por fim, Saba estava convencida de que o evento seria menos uma olhada retrospectiva sobre seu trabalho acadêmico e mais um tributo prospectivo para as múltiplas direções tomadas por seus estudantes. E assim foi e acadêmicos do campo da religião, da política, do gênero, da literatura, da performance e do direito vieram de diversas partes do globo para pensar em conjunto sobre a sobrevida das contribuições críticas de Saba. Durante dois dias em março, reavivamos o estilo de debate e conversação que tanto viemos a valorizar nos seminários de Saba. Tínhamos em mente um formato que sublinhava a inspiração de sua obra para um amplo campo de disciplinas acadêmicas, geralmente tomando o secularismo e a secularidade como um ponto de inflexão para o entendimento crítico da política, da sociedade e da cultura. Ao invés de termos indivíduos focando em seu próprios trabalhos, dividimos os participantes em grupos reunidos em torno de palavras-chave, que orientam a totalidade da obra de Saba. A finalidade era facilitar o tipo de pensamento coletivo que seus seminários inspiravam e a atenção que Saba dedicava a conectar estudantes de diversas gerações, que atenderam seus cursos em Chicago, Harvard e Berkeley. Como verão a seguir, dividimos os participantes em torno de cinco palavras-chave: religião e política; minorias; encorporação; ética e hermenêutica. Cada um dos grupos temáticos se reuniu por duas horas, como uma oportunidade para dialogar sobre a carreira do conceito que lhe foi atribuído, tanto em seus trabalhos pessoais quanto no de Saba, e passamos o tempo restante juntos em uma conversa coletiva facilitada por cada um desses grupos. Esse dossiê representa apenas uma amostra deste evento original e reflete o impulso crítico das conversações que travamos. Os vários ensaios Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019 140 Michael Allan, Bruno Reinhardt curtos aqui selecionados visam forjar caminhos e antecipar direções para investigações futuras, e atestam para um presente de despedida que Saba nos deixou: um conjunto de amizades e de conexões intelectuais. Se, como acadêmica, Saba forneceu modelos e métodos através das páginas de seus escritos, então, como professora, ela nos ofereceu algo além: uma promessa para o trabalho continuar através das amizades que ela fez possível e a inspiração que legou para gerações de estudantes. Seja ou não intencional, esse evento serviu o propósito de conectar muitos de nós, que aprendemos e nos beneficiamos tão ricamente com Saba. E a nossa esperança é que os ensaios aqui compilados joguem luz tanto sobre suas contribuições passadas quanto sobre as direções futuras que seu trabalho possibilitou. Um dos exemplos que testemunha para o potencial destas contribuições é o ensaio de Judith Butler, posteriormente adicionado a este dossiê e traduzido por Letícia Cesarino. Nele, Butler dialoga de maneira criativa com as teses de Saba sobre secularismo, religião e família no Egito tendo em vista refletir sobre um problema atual e candente: a popularização global do que chama de “ideologia anti-gênero”. Seria negligente ignorar as circunstâncias que cercaram este evento. Era sabido, na época de nosso encontro, que os dias de Saba estavam contados e ela estava consciente de que provavelmente não teria outra ocasião de nos rever pessoalmente. Sendo assim, no último dia do evento, depois da última conversa em torno das palavras-chave, Saba falou durante uma hora, de forma a dar fechamento às discussões que antecederam. O que poderia ter sido uma resposta acadêmica assumiu um tom notadamente distinto. Ela leu em voz alta uma narrativa em que refletia e rememorava sua conexão com cada um de nós individualmente, e terminou, como frequentemente fazia, com um poema de Faiz Ahmad Faiz, “Ku’ch Ishaq Ki’ya Ku’ch Kaam Ki’ya”. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019 141 PENSANDO COM SABA MAHMOOD: APRESENTAÇÃO Those were very fortunate people, Aquelas eram pessoas bem afortunadas, Who considered Love an obligation, Que consideravam o Amor uma obrigação, Or they just loved their task, Ou eles apenas amavam a sua missão, I remained busy all my life, Já eu, permaneci ocupado por toda Loved a little, worked a little, minha vida, Amei um pouco, trabalhei um pouco, Sometimes love was a snag in the way Algumas vezes o amor foi um obstáculo of my work, para o meu trabalho, While sometimes duty didn’t allow me Enquanto em outras, o dever não to love with passion, me deixou amar com paixão, Ultimately I got upset of the situation, Por fim, eu me cansei daquela situação, And left both my love and my work E deixei tanto meu amor quanto incomplete. meu trabalho incompletos. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99955 OBITUÁRIO: SABA MAHMOOD — UM TRABALHO PIONEIRO NA BATALHA DAS IDEIAS1 OBITUARY: SABA MAHMOOD — PIONEERING WORK IN THE BATTLE OF IDEAS Judith Butler2 Nascida em Quetta, Paquistão, em 1962, Saba Mahmood imigrou para os Estados Unidos em 1981 para estudar arquitetura e planejamento urbano na Universidade de Washington, em Seattle. Ela recebeu seu Ph.D. em antropologia da Universidade de Stanford, em 1998, e ensinou na Universidade de Chicago antes de se transferir para a Universidade da Califórnia, Berkeley, em 2004, onde ofereceu seu último seminário em 2017. Professora Mahmood fez contribuições inovadoras para debates contemporâneos sobre o secularismo, propondo novos modos de se entender a religião na vida pública e contestando concepções dominantes sobre a religião e o secular. Diante das vozes estridentes, que se apressavam a denunciar as sociedades muçulmanas no contexto pós 11 de setembro, ela trouxe uma compreensão mais nuançada e educada acerca do Islã para dentro de debates travados nos campos das teorias feministas, da ética e da política. Suas publicações e apresentações reverberaram através das Humanidades e das Ciências Sociais, moldando de forma profunda uma nova geração de acadêmicos interessados em uma abordagem mais reflexiva e crítica acerca da religião na modernidade. 1 2 Tradução por Bruno Reinhardt. Judith Butler é filosofa e teórica do gênero. Seu trabalho tem influenciado a filosofia política, a ética e a terceira onda do feminismo e da teoria literária. Desde 1993, ela ensina na Universidade da Califórnia, Berkeley, onde é professora no Departamento de Literatura Comparativa e no Departamento de Teoria Crítica. E-mail: jpbutler@berkeley.edu. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 143-146, ago./dez. 2019 144 Judith Butler Como pesquisadora e professora, ela incorporava e era guiada por fortes princípios morais e políticos, oferecendo análises agudas sobre o poder colonial e capitalista através de sua abordagem para o secularismo, e formulou novos modos de se entender temas como o feminismo, a subjetividade relacional, a liberdade religiosa, a injúria, os direitos das minorias religiosas, e as legislações seculares e religiosas sobre a família e a sexualidade. Na companhia dos antropólogos Talal Asad e Charles Hirschkind, professora Mahmood mostrou que o secularismo é uma formação política complexa, que produz diferenças entre as tradições religiosas que ele mesmo visa regular. Em suas palavras, “o secularismo político é o poder soberano do Estado moderno de reorganizar traços substantivos da vida religiosa, estipulando o que a religião é ou deve ser, pautando seu conteúdo próprio, e disseminando subjetividades, enquadramentos éticos e práticas cotidianas concomitantes” (Mahmood, 2016, p. 3). O secularismo nunca escapa às sua próprias histórias religiosas, nem adquire autonomia com relação às formações históricas que ele pretende regular. De fato, a distinção entre público e privado, central para a razão secular, funda-se sobre uma ênfase cristã moderna na devoção privada. Esse enquadramento religioso cristão, focado na crença, contrasta fortemente com tradições como o Islã, que enfatizam o papel das práticas corporais para a vida religiosa. Como resultado, ela argumenta, as epistemologias seculares não podem capturar como o Islã articula valores religiosos, interpretando erroneamente tanto o sujeito islâmico quanto os significados públicos de suas práticas. No campo da teoria feminista, Mahmood desafiou suas leitoras a entender que as mulheres muçulmanas devotas que estudou no Cairo não eram sujeitos irrefletidamente obedientes, mas que de fato se engajavam de forma ativa com uma hermenêutica corânica específica, em escolas por elas geridas, cultivando práticas religiosas como formas de conduta ética. Desafiando visões sobre a liberdade subjetiva defendidas pela filosofia moral Ocidental, ela propõe um argumento corajoso e desafiador: para se entender a agência feminina no Islã devemos conceber um sujeito moldado Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 143-146, ago./dez. 2019 OBITUÁRIO: SABA MAHMOOD — UM TRABALHO PIONEIRO... 145 por sua relação com as representações textuais e imagísticas do divino. As mulheres que abraçam práticas desse tipo, ela argumentou, estão se dedicando a um projeto de cultivo de si. Em seu último livro, ela estudou a discriminação contra cristãos ortodoxos Coptas no regime secular do Egito contemporâneo. Contra a visão que afirma que as diferenças tribais e religiosas seriam evidência de um processo incompleto de secularização, ela mostrou como as diferenças e conflitos religiosos foram exacerbados por regimes seculares de poder. Longe de realizar ideais de igualdade cívica e política, o Estado secular facilitou desigualdades e violências religiosas. Professora Mahmood foi autora de Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report (Princeton University Press, 2015) e de Politics of Piety: the Islamic Revival and the Feminist Subject (Princeton University Press, 2005), que ganhou o prestigioso Victoria Schuck Award, da Associação Americana de Ciências Políticas3. Seu trabalho foi traduzido para o árabe, francês, persa, português, espanhol, turco e polonês. Professora Mahmood foi também recipiente de várias honrarias e prêmios, incluindo uma Axel Springer Fellowship, da Academia Americana em Berlim, e prêmios da Centre for Advanced Study in the Behavioural Sciences, da Universidade de Stanford, e do Humanities Research Institute, da Universidade da Califórnia. Professora Mahmood foi uma pesquisadora brilhante, uma estimada colega, e uma professora e orientadora dedicada. Além de sua paixão política e análises refinadas, ela era grande apreciadora das belezas naturais, da poesia de Ghalib, do prazer de cozinhar e compartilhar excelente comida. Ela cultivava com enorme e alegre atenção suas relações com parentes e amigos. Ela treinou seus estudantes com cuidado e intensidade notáveis, demandando seu melhor trabalho, ouvindo, respondendo com enorme generosidade, pensando de forma viva e solicitando que os outros fizessem o mesmo. Em seus meses finais, ela reafirmava os valores do pensamento livre e do amor, 3 Nota dos editores: Religious Difference ganhou o 2016 Clifford Geertz Prize in the Anthropology of Religion, da Associação Americana de Antropologia. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 143-146, ago./dez. 2019 146 Judith Butler tendo deixado para trás um vibrante legado que persistirá e florescerá entre todos aqueles cujas existências foram tocadas por sua vida e obra. Ela deixa seu marido, Charles Hirschkind, seu filho, Nameer Hirschkind, e seus irmãos Tariq Mahmood e Khalid Mahmood, que vivem e trabalham no Paquistão. REFERÊNCIAS MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report. Princeton: Princeton University Press, 2016. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 143-146, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99956 RELIGIÃO E POLÍTICA Noah Salomon1, 2 Se há alguma posição política normativa que fundamenta este livro, ela seria apelar para que — meus leitores e eu mesma — embarquemos em uma investigação em que não se assuma que as posições políticas que defendemos serão vindicadas ou que serão a base para nossa analise teórica, mas que mantenhamos aberta a possibilidade de endereçar à política uma série de questões que pareciam asseguradas antes de adentrarmos nesta investigação. (Mahmood, 2005, p. 39). Apesar de eu ter lido essas linhas muitas vezes enquanto trabalhava como assistente de pesquisa durante a produção de Politics of Piety, eu não sabia quão essencial elas se tornariam para mim quando cheguei a um momento de crise. Eu fui ao Sudão para estudar o chamado Estado Islâmico. Mas quando lá cheguei, eu não consegui encontrá-lo nos lugares onde esperava. O Sudão havia passado por um famoso golpe islamista em 1989, chamado por seus apoiadores de “A Revolução da Salvação Nacional”. No entanto, em 2005, quando cheguei ao Sudão, as instituições daquele Estado estavam sendo reescritas de modo a conformá-lo às demandas de um acordo de paz prestes a ser assinado, que demandava que este Estado absorvesse os princípios do multiculturalismo, logo que reconhecesse as grandes parcelas não-islâmicas da população do país como autores de seu futuro político. Ao mesmo tempo, a agenda que o Estado havia implementado no período de islamismo institucionalizado estava presente em toda parte, nas atividades tanto daqueles que o abraçaram quanto daqueles que, ao criticá-lo, respondiam mesmo assim às muitas questões que ele havia posto. A infraestrutura já 1 2 É professor de Religião e diretor do Centro de Estudos do Oriente Médio do Carleton College, EUA. E-mail: nsalomon@carleton.edu. Tradução por Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 147-150, ago./dez. 2019 148 Noah Salomon havia sido construída e o tráfico fluía sobre ela ativamente. Sua manutenção de fato também acontecia, através de uma série de projetos menos públicos. Minha própria noção do Estado e de onde ele estava localizado havia sido profundamente desestabilizada pela situação em curso. Baseando-me em narrativas tradicionais sobre o sofrimento do Sudão, eu tinha imaginado o projeto de um Estado Islâmico que projetava seu poder de cima para baixo sobre um público. O que eu encontrei, pelo contrário, era um público e um Estado que eram co-constitutivos (Salomon, 2016). O Estado não era o Golias distante que eu esperava que fosse, mas uma série de composições [assemblages] extremamente cotidianas. Com o Estado desmembrado, para onde eu teria que olhar de modo a encontrar a política? Esse problema era agravado pelo fato de alguns dos meus interlocutores engajados no projeto de expandir, retrabalhar ou contestar aquele Estado rejeitarem o termo “política” (siyasa) como representativo daquilo que eles faziam. Ao insistir em seu apoliticismo (“não estou fazendo siyasa”) ao mesmo tempo em que opinavam e interviam nos temas mais “políticos” do momento (“Eu não me silenciarei”), eles portanto desestabilizavam o monopólio que o Estado Sudanês pretendia estabelecer sobre a governança moderna da vida, um monopólio desde sempre construído em bases fracas, já que fundava sua legitimidade no Islã, uma tradição representada por múltiplas vozes, que pretendiam falar em seu nome. Esses interlocutores sugeriam um campo de ação que era a um só tempo político e difícil de capturar através de abordagens disponíveis para o estudo da política islâmica, devedoras que eram de categorias sobre o estado-nação pós-colonial às quais eles recusavam a ser subsumidos. Para mim, o conceito de “política da devoção” [politics of piety] era uma forma de se pensar através deste atoleiro. Discutindo as atividades do movimento feminino das mesquitas no Egito, Mahmood escreve que “raramente elas engajam em instituições e práticas comumente associadas com o campo da política, tal como participar do processo eleitoral, endereçar reivindicações ao Estado ou usar o sistema judicial para expandir o Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 147-150, ago./dez. 2019 RELIGIÃO E POLÍTICA 149 lugar da religião na vida pública” (Mahmood, 2005, p. 35). Mesmo assim, Mahmood nos conta que ignorar o caráter político deste movimento […] é um erro político e analítico crasso… porque o poder transformador de movimentos como este é imenso e, em muitos casos, excede aquele de grupos políticos convencionais. A eficácia política destes grupos é, eu sugeriria, uma função de sua plataforma no campo ético — suas estratégias de cultivo de si, através das quais uma conexão encorporada [embodied] com formas historicamente específicas de verdade são forjadas. (Mahmood, 2005, p. 35). Ao mesmo tempo, Mahmood nos lembra que “as estruturas modernas de governança [...] proveram as condições necessárias para a emergência e o florescimento deste movimento devocional no Egito” (2005, p. 35), ou seja, que a política da devoção tem uma história específica profundamente entrelaçada com a emergência tanto do Estado moderno quanto de outras, menos institucionalizadas, “estruturas de governança secular” (p. 44). De fato, é justamente por essas estruturas também insistirem em modos particulares de encorporação e formas de verdade historicamente específicas (mesmo que apresentadas como universais), que o movimento feminino das mesquitas adentra o político através de seu projeto de fomentar outros sujeitos, sujeitos outros. Apesar dessas estruturas não serem um objeto primário de atenção para Mahmood, elas permanecem um pano de fundo essencial para se entender a valência política do movimento que ela analisa (e.g. p. 74-78). Assim, a política da devoção parece ser predicada na devoção assim como projetada pela política. O que acontece com a política da devoção em um sistema em que o secularismo não é uma força contra a qual esses movimentos se posicionam? Essa é a situação que encontrei no Sudão durante os anos de governo islamista, onde a conversa se dava em um enquadramento tido como interno ao pensamento islâmico, e que entendia o Estado ele mesmo (ao menos em sua potencialidade) como uma categoria autóctone. Enquanto a teoria liberal pode ser criticada por ignorar a importância do ético para o político, Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 147-150, ago./dez. 2019 150 Noah Salomon regimes de diversas cores — dos islamistas do Sudão aos nossos Trumpistas, e muitos outros entre esses dois — têm reconhecido o entrelaçamento entre ambos, focando no treinamento dos “modos viscerais de avaliação” (Connolly, 1999 apud Mahmood, 2005, p. 34), que são essenciais para a formação dos sujeitos políticos. Os grupos com os quais eu trabalhei visavam avançar os limites dessa política ancorada na tradição islâmica mesmo para além do que o contexto sudanês permitia. A sua política se perguntava não somente o que é a boa vida, mas também o que é a boa morte (husn al-khatima). Não apenas como podemos exercitar a liberdade individual, mas “qual tipo de política é desejável e viável em uma tradição discursiva que abraça as convenções como [...] necessárias à realização do Self ” (Mahmood, 2005, p. 149). O trabalho de Mahmood nos ajuda a ver o peso político de tais questões, e a ver aqueles que as colocam não como abjetos clamando por esclarecimento, nem como meras curiosidades, mas como interlocutores, expandindo nossos horizontes políticos e desestabilizando o que pensávamos ser a verdade. REFERÊNCIAS MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject. Princeton: Princeton University Press, 2005. SALOMON, Noah. For Love of the Prophet: an Ethnography of Sudan’s Islamic State. Princeton: Princeton University Press, 2016. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 147-150, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99957 RELIGIÃO E POLÍTICA Milad Odabaei1, 2 Gostaria de usar essa oportunidade para sublinhar a atenção ao tempo e à história que fundamentam a contribuição de Saba para o estudo da relação entre religião e política. Para começar, “religião” e “politica” no trabalho de Saba não são conceitos genéricos e pré-fabricados, que podem facilmente ser transportados entre diferentes geografias e temporalidades. Eles são conceitos históricos. Eles emergem dentro de um processo histórico particular e seu uso conceitual relaciona-se ao próprio desdobramento temporal deste processo. Em outras palavras, concepções de religião ou política têm passados particulares e pertencem a futuros particulares. Enquanto tal, eles emergem atrelados a práticas e performances, formas de razoabilidade, habituação e encorporação [embodiment] que simultaneamente materializam o seu processo histórico subjacente e o levam adiante no tempo. O trabalho de Saba no campo da teoria crítica nos convida a interrogar os conceitos dominantes de religião e de política que herdamos e a explorar suas limitações presentes e possibilidades futuras. Por sua vez, seu trabalho no campo da antropologia nos convida a mover na direção contrária: a navegar etnograficamente processo históricos em curso com a finalidade de explorar concepções menos familiares de religião e política, que podem abrir futuros diferentes daqueles (condenados) que herdamos. O modo com que o tempo e a história são enfatizados pelo trabalho de Saba também é registrado pela centralidade do conceito de “tradição”. Através de um engajamento com a obra de Alasdair MacIntyre (2001) e Talal Asad (1986), o conceito de tradição dá especificidade e substância para a “religião” e a “política” ao entrelaçar suas dimensões corpóreas, práticas e temporais. 1 2 É pesquisador pós-doc Andrew W. Mellon no Departamento de Antropologia da Universidade de McGill, Canadá. E-mail: milad.odabaei@mcgill.ca. Tradução por Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 151-154, ago./dez. 2019 152 Milad Odabaei Tradições políticas e religiosas mantêm-se vivas através de sensibilidades encorporadas e atualizações de convenções. Elas são renovadas através da temporalidade rítmica da repetição e reinterpretadas e renegociadas diante de circunstâncias em mutação. Talvez o aspecto mais importante do conceito de tradição no trabalho de Saba seja seu modo de fazer valer os domínios extra-jurídicos da historicidade e da socialidade sobre concepções jurídicas seculares de política e religião. Em outras palavras, seu trabalho defende uma compreensão ampla de política e de religião que articula diversas formas de lei (reveladas, instituídas, etc.) às pré-condições históricas e sociais que possibilitam sua adesão. O trabalho de Saba deixou uma segunda marca no estudo da religião e da política, também devedora de sua atenção para a história: a qualidade relacional desses conceitos. Seu engajamento histórico com o liberalismo e com o secularismo, para citar algumas instâncias, elabora sobre essas tradições políticas tendo em vista a longue durée do desenvolvimento da Europa e do Cristianismo. Saba sublinha, por exemplo, a significância do processo de secularização na Europa para a elaboração da política do secularismo e da concepção de “religião” constituída em meio a esse processo. Ela torna legível as afinidades entre liberalismo e Protestantismo, que proveem o primeiro de eficácia histórica e potência. Em uma direção contrária, Saba investigou etnograficamente o reavivamento islâmico no Egito de modo a provincializar as políticas emancipatórias liberais e de esquerda, e trouxe à luz as energias históricas e o substrato epistemológico particulares que as sustentam. Ao oscilar entre a interrogação da dívida da política liberal e de esquerda com a hegemonia europeia e a interrogação da política islâmica contemporânea, o trabalho de Saba aponta ainda para um outro modo de se atentar para a história: a simultaneidade. Sua crítica dos conceitos de religião e política, sua ênfase permanente nos legados destrutivos e excludentes do passado e do presente do colonialismo e do imperialismo, sua análise do encolhimento do político no Oriente Médio e seu exame das minorias religiosas sujeitas à lógica do secularismo, são todas predicadas na atenção Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 151-154, ago./dez. 2019 RELIGIÃO E POLÍTICA 153 à simultaneidade dos processos temporais e das tradições, assim como nas assimetrias e desentendimentos entre estes. No espaço que me resta, gostaria de elaborar sobre uma das possibilidades abertas pela atenção de Saba ao problema da simultaneidade e das tradições discordantes. Eu desenvolvo essa possibilidade nos termos de minha própria pesquisa, situada no Irã, de modo a mudar o foco da relação entre o Islã como uma “religião” minoritária e o desenvolvimento de longo prazo do liberalismo na Europa, para uma situação histórica em que o Islã é uma tradição dominante tanto em seus registros corpóreos e rituais quanto em suas extensões legais e intelectuais. Apesar do modo de investigação de Politics of Piety (Mahmood, 2005) ser centrado no reavivamento Islâmico no Egito e nos atentar para os limites da política liberal, este livro provê insights que nos ajudam a pensar a história do Irã e do Oriente Médio. Faz isso porque a política liberal e de esquerda não é imanente aos desenvolvimento dessas regiões e ocupa o terreno da história ao lado de tradições que têm outros ritmos e fluxos. O trabalho de Saba nos convida a considerar a natureza das circunstâncias históricas de um lugar como o Irã, em que os enquadramentos discursivos e historiográfico que tornam eventos e a própria história legíveis, logo, que condicionam possibilidades sociais e políticas, têm a sua gênese no desenvolvimento histórico da Europa. Que tipo de mundo é o Irã, que, apesar de não-europeu, (também) fala através dos idiomas europeus da religião e da política? Quais são as suas possibilidades para a crítica e o cultivo de si? Quais são suas coordenadas espaciais e temporais, seu passado, presente e futuro? Meu trabalho aborda essas questões através de um estudo histórico e etnográfico sobre a tradução de textos de teoria social europeia para o farsi no Irã pós-revolucionário, em que a tradução tem emergido como uma prática central entre oficiais do Estado, seminaristas Xiitas, acadêmicos, ativistas, e jovens de classe média proficientes em inglês, enquanto esperam emigrar para o Ocidente (Odabaei, 2018). Apesar de atento para as questões da história e da simultaneidade assim como abordadas no trabalho de Saba, meu trabalho muda o locus da in-traduzibilidade da historiografia política europeia para o Irã. Interrogo os problemas da religião e da política como Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 151-154, ago./dez. 2019 154 Milad Odabaei parte de uma trajetória que, apesar de entrelaçada com desenvolvimentos europeus, não corre paralela a estes, logo não pode ser subsumida pela historiografia europeia, mesmo as de teor mais crítico. Esta pesquisa desenvolve uma potencialidade do trabalho de Saba que abre espaço para pensar as especificidades e qualidades disjuntivas das histórias não-europeias em um mundo de hegemonia europeia. Em um momento de encolhimento do político no Oriente Médio, minha esperança é responder de maneira fértil o convite de Saba a explorarmos as histórias do presente, a nos atentarmos aos seus registros de in-traduzibilidade e suas possibilidades restritivas, de modo que sejamos de fato capazes de pensar a política e a religião, ao invés de simplesmente reagir a elas. REFERÊNCIAS ASAD, Talal. The Idea of an Anthropology of Islam. Washington, DC: Georgetown University, 1986. (Occasional Papers Series). MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Bauru: EDUSC, 2001. MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject. Princeton: Princeton University Press, 2005. ODABAEI, Milad. Giving Words: Translation and History in Modern Iran. 2018. Thesis (Ph.D. in Anthropology) – University of California, Berkeley, 2018. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 151-154, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99959 MINORIAS Kabir Tambar1, 2 O que seria uma antropologia das minorias políticas? Há certamente muitas formas de se endereçar este problema em termos de método, mas em Religious Difference in a Secular Age, de Saba Mahmood, encontramos um esforço sistemático para historicizar as próprias condições de possibilidade desta questão. A perspectiva de Mahmood é genealógica. Ela se pergunta não apenas quando a categoria “minoria” emergiu, mas também de que forma tal emergência imbuiu esse conceito com um conjunto específico de ansiedades históricas. Ela se baseia em diversos componentes desta genealogia no Oriente Médio: formas institucionalizadas de hierarquia inter-religiosa, tratados de paz, contextos distintos de “soberania diferencial” e assimetrias geopolíticas gestadas no século passado. Ao especificar esta história, o objetivo de Mahmood é analisar uma tensão irresoluta localizada no coração do conceito de minoria: por um lado, uma minoria deveria ser um parceiro igual à maioria no processo de construção da nação; por outro, sua diferença (religiosa, racial, étnica) representa uma ameaça incipiente à identidade da nação, que é assentada nas normas religiosas, linguísticas e culturais da maioria. (Mahmood, 2016, p. 32). Se o discurso sobre a minoria visaria a garantir a igualdade, ele também constitui a minoria enquanto uma fonte de ameaça e um objeto de suspeita. O conceito de minoria, assim como ele emerge no século XX, é emblemático da tensão familiar entre igualdade formal e desigualdade substantiva, e 1 2 É professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Stanford, EUA. E-mail: ktambar@stanford.edu. Tradução por Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019 156 Kabir Tambar Mahmood analisa esse ponto exaustivamente. Essas tensões entre lei e justiça também contribuem para aquilo que podemos chamar de o problema das fundações da política moderna. Esforços para promover a proteção jurídica das minorias tendem a trabalhar sobre a assunção de que a minoria pode ser reconhecida e que seu direitos podem ser assegurados. Mas tratamos aqui de qual Estado e de quais leis? É sugestivo que os cristãos coptas no Egito do início do século XX recusavam-se a ser interpelados como uma minoria nacional. Neste contexto, intelectuais coptas avançaram uma leitura astuta da política imperial em jogo sob tal designação. Ao invés de se colocarem como uma população sob a proteção da lei Britânica (logo, como uma justificativa para o controle Britânico sobre a região), muitos líderes coptas insistiram na primazia de sua afiliação nacional egípcia. O que a categoria de minoria ameaçava era a própria “identidade da nação”. A noção de minoria política parece oscilar entre dois registros. Uma minoria pode ser engajada como parte de uma luta por direitos contra várias formas de discriminação estrutural. No entanto, esta formulação pressupõe uma contextualização política particular. O que de fato frequentemente se torna objeto de contestação (no caso copta, por exemplo, mas também em outros casos) é a própria validade daquela contextualização política. Mahmood demonstra que os debates no Egito do início do século XX implicavam uma interrogação reflexiva sobre o próprio enquadramento do político: são os coptas uma minoria no Egito sob o mandato Britânico ou são eles apenas mais um elemento da nação egípcia lutando por sua soberania contra o poder imperial? Sob certo ângulo, a noção de minoria política parece se referir à dimensão restrita — às vezes mesmo restritiva — da política dentro de determinado Estado, uma preocupação para estudos altamente especializados. Sob um segundo ângulo — aquele que o livro de Mahmood desenvolve — podemos pensar sobre a política da minoria como apontando para as lutas que politizam as próprias condições do político. O que talvez salte mais ao olhos nos debates do início do século XX descritos por Mahmood é que os Coptas se recusam a ser classificados Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019 MINORIAS 157 como minorias e recusam a compreensão de suas próprias atividades como uma luta por direitos minoritários. A noção de minoria não opera neste contexto como uma categoria positiva, que descreve uma população empírica. Ela funciona, neste exemplo, como um espectro a ser rejeitado. É possível que uma antropologia da política das minorias, tendo começado com a genealogia desta categoria, precise então teorizar as várias táticas de sua rejeição. As recusas em abraçar a categoria de minoria pode assumir inúmeras e diferentes formas, dirigidas para uma variedade de fins. Elas não são sempre animadas pelo espírito da resistência anticolonial. A categoria pode ser recusada simplesmente como um modo de evitar o estigma associado à classificação. Se ela é tática, logo não será nem uniforme em termos das motivações que a animam, nem homogênea em termos dos fins que a guiam e dos efeitos que produz. Em minha própria pesquisa na Turquia (Tambar, 2014), impressionou-me a frequência dessas recusas — tanto da parte de comunidade que tinham sido formalmente designadas como “minorias” quanto das que nunca assim o foram. Na Turquia, as comunidades que tendem a ser reconhecidas como “minorias” são comunidades não-Muçulmanas: Armênios, Ortodoxo Gregos e Judeus. Há outros grupos, que têm lutado por direitos acordados às minorias — direitos relativos à linguagem e religião — mas que insistem em não ser classificados sob tal acunha. Atores políticos curdos e alevitas têm persistentemente repudiado a classificação de suas comunidades como “minorias”. Em diversas ocasiões, nos últimos 15 anos, agências da União Europeia destacaram que os problemas políticos associados às minorias alevitas e curdas seriam importantes bloqueios à aceitação da Turquia por este bloco. Mas, muito comumente, os membros destas comunidades têm respondido declarando que, longe de minorias, eles seriam “elementos fundacionais” (asli unsur) do Estado Turco. É importante destacar que há um equação aqui entre recusar o status de minoria e proclamar o status de ser fundacional. Essas asserções deixam claro que a designação de minoria não é apenas um mecanismo para se Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019 158 Kabir Tambar obter certos direitos e recursos. Não é apenas um meio para um fim. Ou melhor, se ela é um meio político, esses grupos têm que avaliar as possíveis consequências e custos de aceitá-la: que eles poderiam cair na mesma categoria que os armênios; que eles poderiam reforçar suspeições existentes de que essas comunidades seriam uma ameaça à identidade nacional; que eles poderiam estar abrindo mão de conexões territoriais e de pertencimento, já que a categoria de minoria é contaminada pelo sentido de estrangeiridade. No entanto, há ainda uma terceira alternativa aqui, que vai além de simplesmente abraçar ou recusar o status de minoria. Essa alternativa coloca um enorme desafio para o tipo de política da identidade geralmente associada às lutas das minorias. Estou pensando nos esforços de certos grupos curdos ao longo da última década para se aliarem aos armênios ou, ao menos, a uma certa memória apagada do genocídio armênio na Turquia. Dois exemplos ajudam a elaborar esse ponto. Primeiro: uma organização majoritariamente curda de mães de desaparecidos — que normalmente se reúne para lembrar daqueles que foram presos e eliminados pelas forças de segurança nos anos 1990 — começaram a organizar vigílias para os armênios que passaram por processo similar em 1915 (o que historiadores veem como um prelúdio ao genocídio). Nessas vigílias, membros do grupo referem-se à violência perpetrada contra os armênios como um precedente à violência vivida pelos curdos civis nos últimos 30 anos. Elas reconhecem o papel que alguns grupos curdos tiveram no genocídio que se inicia em 1915 e reivindicam responsabilidade pelos armênios da mesma forma que o fazem com relação aos seus próprios filhos desaparecidos. O segundo exemplo: certas cidades de maioria curda, governadas por prefeitos associados ao partido pró-curdo, têm tentado reavivar a história e a memória do passado armênio: restaurando igrejas, usando múltiplas línguas na sinalização urbana (Curdo, Armênio, Assírio), e interpelando os Armênios a retornarem a essas cidades. Em alguns caso, líderes municipais têm se referido a esses projetos através do termo “multiculturalismo”. Deve- Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019 MINORIAS 159 ríamos ter o cuidado de distinguir esses esforços das formas mais familiares assumidas pela política multicultural pelo mundo, em que o Estado, agindo em nome da maioria, estende tolerância à minoria (logo, agindo como um “benfeitor”, assevera a assimetria que afirma estar superando). Esses esforços municipais não acontecem em nome de uma maioria turca, e eles operam conscientemente em contravenção ao projeto de pluralismo avançado pelo Estado. Não me é claro o que essa política emergente irá produzir e eu acho que seria apressado delinear seus efeitos cedo demais. Talvez, para nosso presente propósito, seja suficiente dizer que essa estratégia nos permite adicionar mais um elemento à antropologia da política das minorias. Ao lado de uma genealogia do conceito e de uma etnografia de sua recusa, podemos também estudar a repolitização deste termo em atos de solidariedade. Com esses atos de solidariedade, a preocupação com as fundações permanece, mas ela é fundamentalmente alterada. Ao invés de afirmar serem um elemento fundacional, os curdos estão se aliando com aqueles cuja morte e apagamento foram fundacionais para a formação do estado-nação. Sou relutante em conceber esses esforços como o de duas minorias trabalhando juntas. Numa primeira instância, os curdos não têm sido definidos como minorias do mesmo modo que os armênios, e a abordagem genealógica insistiria em levar a sério essa diferença de categorização. De fato, o que é especialmente interessante aqui é que os curdos estão se posicionando ao lado de uma minoria primordial [ur-minority], logo as implicações deste movimento devem ser exploradas cuidadosamente. Numa segunda instância — talvez a mais importante — o enquadramento destes grupos enquanto minorias pressupõe que o estado-nação seria o contexto relevante e que a maioria turca seria o destinatário relevante. Mas é precisamente essa contextualização política que está sendo colocada em cheque. O que está em jogo neste ato particular de solidariedade é o enquadramento controversamente reflexivo do contexto político através de formas que não assumem que a maioria nacional seria o destinatário e que o Estado seria o contexto de sua arbitração. Como exatamente essas práticas de solidariedade precipitam um projeto político positivo permanece um problema ainda a ser estudado. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019 160 Kabir Tambar REFERÊNCIAS MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report. Princeton: Princeton University Press, 2016. TAMBAR, Kabir. The Reckoning of Pluralism: Political Belonging and the Demands of History in Turkey. Stanford: Stanford University Press, 2014. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99960 MINORIAS Mayanthi Fernando1, 2 Relendo Religious Difference in a Secular Age, não pude deixar de notar as similaridades entre a posição dos Cristão coptas no Egito, descrita por Mahmood, e a dos muçulmanos franceses na França, sobre os quais eu escrevi (Fernando, 2014). O desafio que os coptas egípcios encaram — “como forjar um futuro político que aplaine as desigualdades do passado sem reificar a sua diferença com relação à maioria muçulmana” (Mahmood, 2016, p. 73) — é paralelo àquele dos muçulmanos franceses: […] como agir como cidadão dentro de um arranjo político ancorado em um universalismo abstrato quando se é constantemente reduzido à sua diferença encorporada [embodied]; como responder enquanto alvo óbvio de discriminação anti-muçulmana sem reforçar a sua diferença comunal; e como interferir enquanto muçulmano e cidadão quando a particularidade do primeiro contra -efetua a universalidade do segundo. (Fernando, 2014, p. 10). Esse desafio emerge, como escreve Mahmood, de […] uma tensão irresoluta localizada no coração do conceito de minoria: por um lado, uma minoria deveria ser um parceiro igual à maioria no processo de construção da nação; por outro, sua diferença (religiosa, racial, étnica) representa uma ameaça incipiente à identidade da nação, que é assentada nas normas religiosas, linguísticas e culturais da maioria. (Mahmood, 2016, p. 32). Uma forma possível de se administrar essa tensão irresoluta, eu propus, é problematizar a estabilidade ontológica da minoria como sendo desde 1 2 É professora do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, EUA. E-mail: mfernan3@ucsc.edu. Tradução de Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019 162 Mayanthi Fernando sempre uma forma de diferença. O reavivamento islâmico francês e o ativismo muçulmano francês são geralmente entendidos entre círculos acadêmicos e políticos como demandas por reconhecimento de, ou direito à, diferença muçulmana. No entanto, muitos dos meus interlocutores muçulmanos franceses rejeitam esse enquadramento, ninguém de modo mais incisivo que Farid Abdelkrim, um experiente ativista. “Slogans como direito à diferença”, ele declarou, […] contribuem para a ideia de que nós ainda não somos inteiramente franceses. Nós ainda somos separados. Ao invés de sermos cidadão plenos (citoyens à part entière), nós somos inteiramente apartados (entièrement à part) […]. Eu não quero o direito à diferença. Eu quero o direito à indiferença! Isso quer dizer, eu não quero ninguém prestando atenção em mim. Eu quero ser esquecido. Com a indiferença, Abdelkrim rejeita tanto o paradigma republicano — que vê a prática pública do Islã como uma asserção inaceitável de diferença comunal que contravém o universalismo moral e político da República — quanto o chamado mais ostensivamente tolerante para se acomodar à “diferença muçulmana” de uma série de intelectuais públicos influenciados pela abordagem seminal de Charles Taylor (1994) para a política do reconhecimento. Recusando a política da integração republicana, que demanda que os muçulmanos restrinjam sua religiosidade à esfera privada e se comportem como cidadão abstratos e des-encorporados [disembodied] na esfera pública, Abdelkrim e outros muçulmanos franceses afirmam seu direito de praticar o Islã no privado e no público, e que a sua “muçulmanidade” [Musliness] permeie as suas vidas privadas, públicas e políticas. Mas eles recusam igualmente um paradigma que reconhece a sua “muçulmanidade” como uma forma de diferença da nação. Eles reclamam, em outras palavras, por indiferença à sua “muçulmanidade” — convencionalmente entendida como a sua diferença — logo que não seja nem abstraída nem sobre-determinada, que ela se torne nem invisível nem hipervisível. Franceses muçulmanos argumentam que eles não são diferentes, mas sim franceses. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019 MINORIAS 163 Ao fazer isso, eles se esforçam por reimaginar a França como uma entidade heterógena, onde modos de vida não dominantes poderiam florescer sem serem classificados como essencialmente diferentes, e como uma comunidade política que poderia acomodar — mesmo que de maneira agonística — formas de vida ética e política não apenas múltiplas, mas eventualmente incomensuráveis. E, de forma interessante, ao imaginar a República desta forma, explodem-na em várias seções de diferenças igualmente diferentes (ou identidades) que fundamentalmente desfazem a configuração existente sobre o que é identidade (francês) e diferença (muçulmano), centro e periferia, maioria e minoria. Ao recusar a priori maioria e minoria, a comunidade política que muitos muçulmanos contemplam também recusa, quase que por definição, qualquer formação política unificada ou estável. Alianças são sempre ad hoc. Elas não duram. Porque, então, a política do reconhecimento emergiu de maneira tão dominante como o modo mais comum tanto de se interpretar quanto de se adjudicar as reivindicações de sujeitos não-normativos (ou minorias)? Religious Difference in a Secular Age nos oferece duas razões interconectadas: as aspirações por igualdade da parte das minorias (o que Lauren Berlant [2011] chamaria de um tipo de otimismo cruel) e o investimento do Estado em assegurar a sua soberania. Como escreve Mahmood: As minorias frequentemente contestam as práticas discriminatórias da lei secular através dos mesmos instrumentos legais que consagram os privilégios majoritários. Essa constante oscilação — a possibilidade de preconceito e igualdade — é altamente generativa no sentido de manter a promessa da neutralidade secular viva. (Mahmood, 2016, p. 176). Esta “ambiguidade genuína” (Mahmood, 2016, p. 176) ou “indeterminação” (Agrama, 2012) parece ser integral ao princípio de soberania do Estado: as minorias conclamam o Estado para compensar seu não reconhecimento e, ao fazê-lo, permitem a ele afirmar sua neutralidade e reforçar sua soberania. Logo, a soberania, Mahmood argumenta, é chave para a questões Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019 164 Mayanthi Fernando dos direitos das minorias e direitos religiosos, tendo se tornado “a condição inelutável de nossa imaginação política” (2016, p. 87). Com relação à política do reconhecimento, diversos acadêmicos têm observado que ela assegura a posição de poder daquele que reconhece e reifica a organização estrutural da maioria e da minoria. O Estado e/ou a maioria normativa outorgam o reconhecimento às minorias e permitem a chamada diferença existir e talvez até florescer, enquanto reafirma a sua própria posição de fonte central de autoridade e árbitro neutro das dinâmica de conflito (Brown, 2006; Markell, 2003). De fato, como demonstra Patchen Markell, a estrutura profundamente não-recíproca que sustenta a política do reconhecimento ecoa a dialética do senhor e do escravo de Hegel e sua relação de auto-certeza (ou identidade) através do reconhecimento. Markell aponta que a realização da auto-certeza e a aquisição da soberania são assentadas na subordinação de um outro e que “a subordinação é uma possibilidade persistente nas relações de reconhecimento” (2003, p. 119). Ao mesmo tempo, eu me pergunto se esta estrutura de soberania estatal, baseada como é na adjudicação de demandas minoritárias (por igualdade, por reconhecimento), poderia também ser uma condição de possibilidade para a desestabilização da própria soberania estatal e mesmo a geração de um novo arranjo político. Taylor reverte a parábola de Hegel, de modo que a entidade subordinada (configurada em minoria) é a que sempre necessita do reconhecimento da entidade poderosa (a maioria ou o Estado). No entanto, na história original de Hegel é o mestre que necessita do reconhecimento do subordinado para se realizar, não o escravo. Eu me pergunto se a insistência de que são as minorias que precisam de reconhecimento é, de alguma forma, um deslocamento de outra necessidade de reconhecimento, uma que não pode ser reconhecida, pois isso — assim como no caso do Senhor em Hegel — minaria a estabilidade e a soberania do segundo (de fato, do original) reclamante, que seja, da maioria dominante e do Estado. O que eu quero dizer é que, se o Estado assegura sua soberania e seu poder ao reconhecer minorias subordinadas, é que ele também necessita daquele modo de retificação. Ele depende do reconhecimento das minorias de modo a garantir Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019 MINORIAS 165 a sua soberania. Poderíamos então entender a demanda de Abdelkrim pelo direito à indiferença de outra forma, não apenas como indiferença do Estado, mas também indiferença ao Estado? Isso nos leva de volta a Politics of Piety (2005), onde Mahmood argumenta que enquanto o movimento feminino das mesquitas no Egito é largamente indiferente ao Estado e à política no sentido convencional — tal indiferença é profundamente perturbadora para o Estado (esse é um dos motivos, ela argumenta, que o movimento é de fato político, já que é um desafio implícito ao Estado). O que seria a indiferença ao Estado no caso de Muçulmanos franceses, Egípcio coptas ou outras minorias? Ela pareceria com a visão política talvez utópica, que eu esbocei anteriormente, de uma entidade heterógena e agonística de diferenças transversais? Há um modo de se alcançar a igualdade religiosa (e outras formas de igualdade) sem engajar com o Estado? A visão política oferecida por muçulmanos franceses como Abdelkrim ressoa com as possibilidades de igualdade sem a agência do Estado na direção da qual Mahmood gesticula no final de Religious Difference in a Secular Age (2016), onde ela distingue entre igualdade religiosa enquanto um “mandato do Estado moderno” e uma aspiração da vida cotidiana para comunidades como os coptas e os bahá’ís (p. 211)? Ela conclui este livro perguntando se “a ideia de igualdade entre as fés pode requerer não a suspensão [bracketing] das diferenças religiosas, mas a sua tematização ética como um risco necessário quando os recursos políticos e conceituais do Estado se provam inadequados ao desafio que este ideal coloca diante de nós” (Mahmood, 2016, p. 213). Ou será que a indiferença ao Estado implica em abandonar o ideal mesmo da igualdade religiosa, acompanhado por um refúgio na vida comunal e uma recusa em engajar-se com a política liberal-secular convencional — não apenas suas implicações práticas (i.e. engajamento com o Estado), mas também seus ideais? Estou pensando em Aissam Ait-Yahya, um francês muçulmano sobre o qual escreve Nadia Fadil (2014). De acordo com Ait-Yahya, o secularismo não é neutro, mas tem uma história cristã específica, logo ele se baseia em e reproduz um sujeito política e ontologicamente particular. Ele é portanto crítico da democracia e aconselha os muçulmanos da Europa a se absterem Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019 166 Mayanthi Fernando de votar e de participar do processo político. De acordo com Fadil, ele vê o voto não como uma ação cívica sem consequências para a fé de quem a exercita, mas como uma prática encorporara [embodied] que, quando repetida, sedimenta-se em uma orientação afetiva e subjetiva. “O principal objetivo de Ait-Yahya”, explica Fadil (2014, p. 8), “é desafiar a assunção comum (entre muçulmanos), de que o secularismo pode ser considerado um princípio universal adaptável a qualquer realidade social e tradição religiosa”. Em outras palavras, diferente de Abdelkrim, Ait-Yahya não vê futuro político para os muçulmanos na Europa, ao menos através da participação em qualquer sistema político existente. O que é particularmente notável é que ele chega a essa conclusão através de um entendimento da Europa familiar à maioria dos aqui presentes, um que destaca “a centralidade fundamental das normas, valores e sensibilidades cristãs [...] para as concepções do que significa ser secular” (Mahmood, 2016, p. 8). O que devem fazer as minorias religiosas neste caso? Como aponta Mahmood, nenhum dos conceitos fundamentais que estruturam a liberdade religiosa — o forum internum e a ordem pública — protegem as minorias religiosas na Europa. O primeiro por se baseado em uma concepção protestante da religião-enquanto-crença. O segundo por ser baseado em normas majoritárias. Será que Ait-Yahya tem razão? Ou existem outros modos de se buscar a justiça (apesar de não necessariamente a igualdade) para as minorias, que dispense as restrições estruturais do secularismo? REFERÊNCIAS AGRAMA, Hussein Ali. Questioning Secularism: Islam, Sovereignty, and the Rule of Law in Modern Egypt. Chicago: University of Chicago Press, 2012. BERLANT, Lauren. Cruel Optimism. Durham: Duke University Press, 2011. BROWN, Wendy. Regulating Aversion: Tolerance in the Age of Identity and Empire. Princeton: Princeton University Press, 2006. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019 167 MINORIAS FADIL, Nadia. Asserting State Sovereignty: the Face Veil Ban in Belgium. In: BREMS, Eva (ed.). The Experiences of Face Veil Wearers in Europe and the Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p. 251-262. FERNANDO, Mayanthi. The Republic Unsettled: Muslim French and the Contradictions of Secularism. Durham: Duke University Press, 2014. MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject. Princeton: Princeton University Press, 2005. MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report. Princeton: Princeton University Press, 2016. MARKELL, Patchen. Bound by Recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: GUTMANN, Amy (ed.). Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994. p. 25-73. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99961 ENCORPORAÇÃO Lucinda Ramberg1, 2 Inspirando-me no modelo oferecido por Eve Sedgwick (1990), proponho quatro axiomas: AXIOMA 1: OS CORPOS IMPORTAM/MATERIALIZAM [MATTER] Tomar como axiomático que os corpos importam é apontar para a sua materialidade teimosa (corpos como matéria), assim como para sua força no mundo (corpos se projetam). Corpos não simplesmente expressam, representam, ou simbolizam formas de significado e poder que jazem em outro lugar. Formas de significado e poder existem no mundo enquanto corpos; ou, formas de significado e poder são encorporadas [embodied]. Nós trabalhamos no mundo em, através de e com corpos — os nossos e os de outros. No trabalho de Saba sobre gênero e devoção no Egito, ela explora esse axioma com relação ao lugar do corpo no cultivo ético de si: “[Na] injunção sobre o uso feminino do véu (há) toda uma conceptualização sobre o papel do corpo na produção do sujeito em que o comportamento externo do corpo constitui-se tanto na potencialidade quanto no meio através dos quais uma interioridade é realizada” (Mahmood, 2001, p. 214). Teorizar esta conceptualização implica em repensar a “relação entre o desejo e a produção de si, a performance e a constituição do sujeito, a ação moral e a encorporação nos debates feministas” (Mahmood, 2001, p. 203), assim como reestabelecer “a relação encorporada com o mundo e consigo” como um aspecto “daquilo 1 2 É professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Cornell, EUA. E-mail: ler35@cornell.edu. Tradução por Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 169-175, ago./dez. 2019 170 Lucinda Ramberg que chamamos de política” (p. 224). A atenção crítica a debates sobre o véu lança luz sobre o lugar do corpo na formação do sujeito, assim como sobre a constituição do político. Colocando esse ponto de maneira diferente, o político é feito de, por e através de corpos. Mechas embaraçadas de cabelo me levaram a pensar como o corpo das mulheres atualiza a política e materializa mundos (Ramberg, 2014). Especificamente, as mechas de cabelo usadas por mulheres extáticas casadas com uma deusa indiana ambivalente que elas incorporam, cujas aflições elas tentam sanar e cujas bênçãos elas dispersam. As esposas de Yellamma são mulheres sexualmente ativas e “solteiras” amplamente reconhecidas na Índia como prostitutas exploradas sexualmente por uma falsa religião que se busca reformar. Nos templos de Yellamma, que se espalham pelo platô de Deccan, devadasis podem ser vistas usando jade, mechas pesadas de cabelo que a deusa ofertou a quem escolheu incorporar. Jade são ungidas com cúrcuma e cultuadas como a deusa ela mesma. Agentes de reforma cortam jade e distribuem frascos de shampoo. Campanhas reformistas se apresentam como projetos de higiene e mobilidade social, projetos que visam liberar essas mulheres de suas falsas crenças. Essas campanhas não entendem a si mesmas como interessadas em reconstruir corpos à luz de um tipo normativo. Elas cortam jade para provar que jade não importa [matter]. Considerem a linguagem utilizada por um panfleto distribuído por esses agentes reformistas no principal templo de Yellamma: “Milhares de pessoas tiveram seus cabelos embaraçados e sujos limpos e agora vivem uma vida feliz. Isso é evidência de que a aparência de jade ou cabelo embaraçado não se deve à Deusa.” De acordo com essa formulação, cabelos embaraçados não são matéria que se projeta [matter forth] como a Deusa, mas apenas sujeira insignificante. No entanto, mesmo que os reformistas enquadrem jade como algo imaterial, suas campanhas reconhecem a sua força e se apropriam dela como um meio eficaz de refazer os corpos das mulheres Yellamman. Cortar jade é desincorporar a Deusa dos corpos dessas mulheres. Esse corte as restitui como mulheres ordinárias, disponíveis para domesticação. Ele restitui a Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 169-175, ago./dez. 2019 ENCORPORAÇÃO 171 deusa em uma divindade amena, que exige apenas uma adoração interna, do “coração”, e o Estado como uma autoridade legítima na proteção das mulheres contra a exploração e a superstição. Como bem entendem esses reformistas, refazer o corpo é um modo efetivo de reformulação do mundo. AXIOMA 2: TEORIAS TÊM CORPOS Teóricos têm corpos, apesar de muitos negarem esse fato. Todo trabalho intelectual é encorporado. Ele procede através de corpos, os nossos e os de outros, que reproduzem as condições que fazem nosso trabalho possível. Essas condições não são meramente intelectuais. O trabalho reprodutivo de quem fez o seu pensamento e a sua escrita possível hoje? Quem lavou as roupas que você vestiu hoje de manhã, preparou o seu café da manhã, ou varreu os corredores que você cruzou no trabalho hoje? Enquanto eu rascunho esse ensaio, descansando minhas pernas de meia-idade em uma cadeira localizada no pátio de uma casa de três quartos que é meu lar em Bangalore, nesse momento, Sumitra, uma viúva mãe de dois filhos, lava meus pratos e varre meu chão. Seu corpo suplementa essa escrita. Essa suplementação descreve relações desiguais de casta, classe, gênero, geopolítica, nação, raça e sexualidade subscritas por histórias e futuros de violência. Futuros sobre e contra os quais eu tento ensinar e escrever enquanto eu reproduzo algumas de suas condições no presente. Algumas, não outras; a minha falta de um marido é mais escandalosa que a de Sumitra. Outros corpos suplementam essa escrita. Estou pensando no trabalho encorporado de Michael Allan, o organizador do simpósio que ocasionou este ensaio, e em Saba, é claro. Não é apenas o pensamento de Saba que tornou o meu possível, mas também a sua corporalidade. Pensamos com e através do corpo, como seu trabalho nos lembra. Ela toma seu próprio corpo como um ponto de partida em Politics of Piety. Mesmo reconhecendo a repugnância que, em suas palavras, “frequentemente brotava de mim” (Mahmood, 2005, p. 37), contra práticas que pareciam circunscrever e subordinar as mulheres na Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 169-175, ago./dez. 2019 172 Lucinda Ramberg sociedade egípcia, ela se virou da denúncia para uma investigação cuidadosa sobre a educação dos afetos e os cultivos corporais. Ao revelar a sua própria repugnância, ela expõe a epistemologia da agência feminina que anula a possibilidade de que, ao praticar a modéstia, mulheres devotas poderiam estar ativa e significativamente exercitando a sua capacidade de autocultivo. Quando começamos a olhar para os corpos em nossas teorias, nós os encontramos em toda parte. Eles descentram o autor e desvelam a teoria como um efeito de redes de relações encorporadas. AXIOMA 3: CORPOS DIFEREM UNS DOS OUTROS Se teorias têm corpos, eles estão necessariamente localizados no tempo e no espaço e permeados por relações de poder. Ou seja, corpos são diferentemente carregados de significado, dotados de força, e implicados na teoria. Sumitra já me ajudou a estabelecer este ponto. Seu corpo suplementa a presente escrita, mas ela dificilmente será vista como uma teórica. Isso me leva à questão ética sobre como ser responsabilizada por distribuições desniveladas de reconhecimento e recursos. Saba nos ensina que uma resposta para este dilema é atentarmo-nos para a questão da diferença não apenas como um problema de desigualdade e injustiça a ser resolvido, mas também como um recurso epistemológico para a crítica. Ela se vira para as diferenças que ela encontra entre a sua própria sensibilidade e aquela das muçulmanas devotas e as usa como um recurso para reteorizar a agência religiosa e de gênero, e assim desvelar as pressuposições seculares que condicionam o pensamento feminista liberal. Esse impulso duplo, que articula crítica e reparação, também informa meu trabalho sobre a política da sexualidade com relação ao estigma de casta (Ramberg, 2017). Por um lado, na condução cotidiana de minha pesquisa — o modo com que eu como, sento, falo, e ando com meus interlocutores — eu trabalho de modo a intencionalmente desestabilizar os protocolos “castistas” de interação. Por outro, ao traçar o processo através do qual alguns corpos vieram a carregar a repugnância dos outros como uma propriedade de sua Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 169-175, ago./dez. 2019 ENCORPORAÇÃO 173 própria carne (intocabilidade), eu redefino o estigma como um atributo do corpo das castas superiores. Ou seja, eu interrogo a diferença de casta como um recurso para a reformulação do estigma enquanto modo de relação. AXIOMA 4: RELIGIÃO E SECULARISMO SÃO ENCORPORADOS Ser religioso é abraçar e/ou ser submetido a uma educação em afeto, sensibilidade e conduta. As pedagogias religiosas do corpo podem ser explícitas ou implícitas, mas elas estão sempre presentes. Como um modo de governo e uma filosofia política, o secularismo parece se fundamentar na negação do corpo. No entanto, como Talal Asad nos ensinou, a secularidade, enquanto um habitus ou sensibilidade, necessariamente precede projetos conscientes de secularização política. Os corpos importam [matter] tanto em projetos seculares quanto em religiosos. Saba expõe o lugar crítico da sexualidade e do gênero, logo, do corpo, na constituição do secularismo político em seu livro Religious Difference. Como ela destaca, a família raramente é vista pelos estudiosos do secularismo como “uma unidade necessária do secularismo político” (Mahmood, 2016, p. 147). Como ela detalha, a guinada da autoridade religiosa para além dos assuntos civis e públicos para o espaço reconstruído da família e das relações sexuais através dos regimes da “lei de família” teve impactos poderosos nas relações de gênero. Como em outros contextos pós-coloniais em que operam sistemas duais separados entre leis de família e leis civis, a questão da disposição da capacidade sexual das mulheres estabelece um abismo entre seus direitos enquanto indivíduos perante o Estado e seus direitos enquanto membros das comunidades que trabalham para manter costumes com relação ao casamento e a propriedade tidos como particulares a determinada comunidade. Isso significa que as possibilidades da governança secular do Estado e da autoridade religiosa comunitária são ambas entrelaçadas com a questão do status e da conduta sexual da mulher. Tanto as formas seculares Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 169-175, ago./dez. 2019 174 Lucinda Ramberg quanto as religiosas de autoridade se apropriam do corpo feminino como um espaço para se atualizarem e exibirem sua legitimidade. O argumento de Saba é um importante corretivo para abordagens para o secularismo que o tomam como uma força desprovida de sangue, e problematiza a assunção de que o secularismo político garantiria equidade para mulheres, logo que seu avanço corresponderia necessariamente a uma maior liberdade das mulheres com relação aos limites impostos pela religião patriarcal. Sua visão me ajudou a diagnosticar a criminalização dos ritos das mulheres Yellamma. Secularismo, sexualidade autoautorizada e libertação das mulheres de costumes repressores são equacionados de um modo particular na Índia pós-colonial. Assim como o chamado feminista para restringir o uso do véu em locais públicos na França, esforços para erradicar a dedicação de mulheres para Yellamma implica em uma série de assunções: a sexualidade deve ser própria ao indivíduo, escolhida e expressada livremente; a pessoalidade deve ser autopossuída e insubmissa ao costume, à comunidade ou à religião; e cabe ao secularismo político assegurar e garantir essas liberdades. Reformistas criticam os modos com que Yellamma se apropria das mulheres que ela escolhe para representá-la no mundo como um uso impróprio do corpo sob o disfarce ilegítimo da religião. Mas eles não estão menos investidos no corpo, em colocá-lo em uso. Se a religiosidade pública e a sexualidade dessas mulheres fossem erradicadas, elas emergiriam como sujeitos próprios de um estado-nação legítimo. Em outras palavras, os corpos fazem a soberania, secular, assim como religiosa. REFERÊNCIAS MAHMOOD, Saba. Feminist Theory, Embodiment, and the Docile Agent: Some Reflections on the Egyptian Islamic Revival. Cultural Anthropology, Arlington, v. 16, n. 2, p. 202-236, 2001. MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject. Princeton: Princeton University Press, 2005. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 169-175, ago./dez. 2019 175 ENCORPORAÇÃO MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report. Princeton: Princeton University Press, 2016. RAMBERG, Lucinda. Given to the Goddess: South Indian Devadasis and the Sexuality of Religion. Durham: Duke University Press, 2014. RAMBERG, Lucinda. Who and What is Sex for? Notes on Theogamy and the Sexuality of Religion. History of the Present, Champaign, IL, v. 7, n. 2, p. 175-196, 2017. SEDGWICK, Eve. Epistemology of the Closet. Berkeley: University of California Press, 1990. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 169-175, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99962 ENCORPORAÇÃO Nadia Fadil 1, 2 Em seu trabalho, Saba Mahmood atenta-se consistentemente para a importância da encorporação [embodiment] e do afeto para a vida social. Este é o caso tanto de seu trabalho inicial, que foca em práticas cultivo de si (como elaborado no já clássico Politics of Piety), assim como em seu interesse mais recente pelo problema da injúria moral, ou como controvérsias particulares — as revoltas populares islâmicas em torno dos cartuns dinamarqueses ou a revolta dos Coptas no Egito contra o romance Azazeel — ignoram os vínculos particulares (schesis) que conectam os sujeitos a imaginários religiosos que permanecem intraduzíveis quando submetidos aos protocolos disponíveis para a deliberação pública (Mahmood, neste volume). No que segue, gostaria de refletir brevemente sobre algumas premissas aludidas por Mahmood, mais particularmente a sua atenção para o que chama de “relações vivas” (neste volume). Meu interesse por essa questão é derivado de observações sobre como a subjetividade ética de meus interlocutores — pessoas de origem Islâmica que poderiam ser rotuladas como “liberais”, “modernos” ou “seculares” — não é predicada apenas em operações discursivas e corpóreas de formação subjetiva, mas também condicionada por uma forma de relacionalidade igualmente visceral. Essa perspectiva, que visa entender como formas igualitárias de vida são também informadas por modos de pertencimento (a uma comunidade ou, nesse caso, a uma tradição) obviamente não é novo, e tem estado no coração de projetos nas ciências sociais interessados em compreender o Self como mediado pela presença de outros “significantes” (Cooley, 1902) ou outros “constitutivos” (Hall, 1996). No entanto, o interesse etnográfico cuidadoso 1 2 É professora do departamento de Antropologia e do Centro de Pesquisa em Interculturalidade, Migração e Minorias da Universidade Católica de Leuven, Bélgica. E-mail: nadia.fadil@kuleuven.be. Tradução por Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019 178 Nadia Fadil pelos componentes viscerais do “social”, assim como apresentado pelo trabalho de Mahmood sobre as injúrias morais, permanece largamente inexplorado. Me baseando nestes insights, meu interesse corrente está em como a constituição de uma subjetividade Muçulmana seria condicionada não apenas por um engajamento consciente e explicito com uma tradição discursiva (Asad, 1986), mas também em como esse relação com o Islã é mediada por uma série de vínculos viscerais, operações corpóreas que são in/conscientemente performadas. Eu considero esses vínculos importantes não apenas para aqueles que ativamente se inscrevem em uma tradição (i.e. Muçulmanos devotos), mas também para aqueles que (ocasionalmente) adotam uma posição de não-conformidade. Esses atores estão no centro de minha pesquisa etnográfica atual. De modo a explorar esta interrogação teórica, eu gostaria de mergulhar nos mundos e experiências de uma de minhas interlocutoras — uma mulher que chamarei de Zakia. Conheci Zakia durante o trabalho de campo de minha tese de doutorado. Zakia estava, naquele momento, envolvida com o movimento Présence Mulsumane. O movimento funcionava como uma das redes mais organizadas e estruturadas de Bruxelas e reunia uma variedade de ativistas interessados em colocar as questões da “cidadania” e da “espiritualidade” no coração de seus engajamentos comunitários. Fundada no fim dos anos 1990, com uma filiação pronunciada com as redes da Irmandade Muçulmana (apesar da maioria dos membros não pertencer a esta organização), e organizada em torno de figuras-chave como Tariq Ramadan e Hassan Iquioussen, o movimento Présence Mulsumane mobiliza centenas de ativistas no espaço europeu francófono através de reuniões regulares e momentos formais e informais de troca. Zakia tem sido um membro ativo desta rede por vários anos. Quando perguntada se ela aceitaria ser entrevistada para o meu projeto, ela prontamente aceitou. Nossa entrevista aconteceu em sua casa. Era um apartamento pequeno e aconchegante, que imediatamente me colocou em um estado de ânimo acolhedor por causa da luz de velas e do cheiro relaxante dos incensos que preenchia o espaço. Quando eu notei isso e mencionei o quão relaxada estava, ela explicou que tinha trabalhado conscientemente para criar aquela atmosfera em seu apartamento, porque a sua casa representava Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019 ENCORPORAÇÃO 179 um refúgio, onde ela podia desafogar e de fato “sentir-se em casa”, física e espiritualmente. Ela era bastante atraída pelo budismo e essa busca espiritual por orientações alternativas também se refletia em sua relação com o islã. Em diversas ocasiões, Zakia descreveu a si mesma como uma “ovelha desgarrada”, que estava desesperadamente em busca por algum tipo de orientação espiritual que ela não mais encontrava em sua comunidade. Isso tinha a ver, entre outras coisas, com uma série de interrogações fundamentais sobre a tradição islâmica, uma delas incidindo sobre o princípio da revelação do Corão. Tendo sido treinada em linguística, Zakia não poderia aceitar a visão dominante que o Corão figuraria como uma emanação direta das palavras de Deus — uma ideia geralmente aceita pela maioria dos muçulmanos e considerada um dos princípios basilares da tradição islâmica. Na passagem que segue, ela esclarece o dilema em que se encontrava: Eu acredito que uma Mensagem foi enviada, e que ela era inicialmente oral... Mas para mim é inconcebível que um texto que atravessou tantos séculos permaneça intacto [...]. Eu respeito o Corão, e estou certa de que Deus enviou uma mensagem. Mas a Bíblia, a Bíblia nós também questionamos [sua autenticidade — NF]. Porque esse não seria o caso com o Corão? Porque há um verso que o afirma intocado? Eu acredito que é a versão que temos disponível que permanece intocada. Que Deus me perdoe se eu estiver enganada. Eu falo apenas com a minha alma e a minha consciência e acho que... Se eu estou errada, eu peço a Deus que me guie. Que ele me guie. Eu não quero influenciar ninguém, e eu espero que eu não a tenha ofendido com essa palavras hoje. Então... voilà. Alguns aspectos podem ser destacados da narrativa de Zakia, elementos sobre os quais eu gostaria de brevemente refletir ao comentar sobre meu interesse na questão da encorporação e no trabalho de Saba Mahmood. O primeiro deles está na observação de que a relação de Zakia com a tradição o islâmica é condicionada e marcada por um engajamento com o texto que vai além da bifurcação entre intelecto e corpo, já que implica essas duas dimensões. A ideologia semiótica proposta por Zakia (Keane, 2007), que não concebe o Corão como a palavra de Deus, mas como um texto históDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019 180 Nadia Fadil rico, não foi fruto de um mero exercício intelectual, já que está imbricada em um “lar” afetivo. O trabalho de gradualmente alçar esse entendimento do Corão não a deixou incólume. Ele implicou a totalidade de sua pessoa. Essa observação foi comum à maioria das minhas interlocutoras, que enquadravam a “descoberta” desta abordagem hermenêutica alternativa como um “choque”, assim como a “descoberta” de que a prescrição do véu não era de fato verdadeira como um momento de “confusão emocional”, levando-as ao que chamo em outra ocasião de um sentimento de marginalidade e isolamento epistemológico (Fadil, 2011). Os debates hermenêuticos sobre fontes religiosas e práticas eram portanto mediados por uma série de emaranhamentos afetivos que pareciam escapar ao modelo diligente e consistente das práticas de cultivo de si descritas por Mahmood (2005), mas que mesmo assim iluminavam como esses debates exegéticos se desenrolavam sobre camadas afetivas profundamente sedimentadas (Hirschkind, 2006). Segundo, em duas ocasiões durante nossa entrevista, Zakia usa a metáfora da “ovelha desgarrada” para se autocaracterizar. Esta metáfora advém da famosa parábola bíblica do “Bom Pastor”, em que Jesus fala para seus seguidores sobre as características da boa liderança moral. A tarefa pastoral de guiar os cristãos para uma direção correta, salvá-los quando eles erram e manter o rebanho unido está no coração desta narrativa. Essa convergência entre cuidado coletivo e individual inspirou Foucault e outros a refletir sobre como o poder pastoral é condicionado por uma lógica simultaneamente individualizante e totalizante (omnes et singulatim). No entanto, enquanto a narrativa dominante sobre o autoconhecimento liberal tende a se basear em um entendimento do sujeito [Self] construído em oposição a um “outro”, a narrativa de Zakia parece ser mais ambivalente a esse respeito. Observamos em seu caso um sentimento de exasperação moral, que reflete um profundo isolamento (i.e. estar sozinha em seus questionamentos). Esse esforço solitário tem sido central para tratados filosóficos Ocidentais do século XIX e início do século XX (Kierkegaard, Nietzsche, Sartre), que refletem sobre como a existência enquanto sujeitos autônomos é igualmente condicionada por um Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019 ENCORPORAÇÃO 181 sentimento profundo de desconexão. Zakia parece refletir sobre esse tipo de trabalho emocional, que subjaze à constituição individualista do sujeito. Mas há algo a mais. Em suas últimas frases, nós testemunhamos que, para Zakia, viver como uma muçulmana também significa viver em conexão com outros (ou um tipo particular de outro) e de assim beneficiar-se de algum tipo de liderança moral. Suas palavras logo também podem ser lidas como uma prática confessional, em que ela não apenas expressa suas dúvidas, mas que igualmente pede a Deus para guiá-la (Hollywood, 2004). Essa imbricação profunda com os outros torna-se particularmente reveladora em suas últimas frases, em que Zaria pede a mim — Nadia, a pesquisadora — que não se ofenda com suas palavras. Apesar de a entrevista ter sido claramente colocada como um contexto de pesquisa (fiz o máximo para colocar-me de maneira mais neutra possível), eu ainda fui percebida e interpelada como uma muçulmana. Esse ato parece transformar o que parecia, à primeira vista, uma empreendimento acadêmico e “profissional” em um testemunho pessoal através do qual eu, uma pesquisadora muçulmana, tornava-me uma testemunha e talvez mesmo uma aliada em sua trajetória, o que a fez desculpar-se por suas palavras, caso elas houvessem me ofendido. Dois elementos devem ser destacados aqui. O primeiro é o corpo da pesquisadora e o modo com que nós aparecemos não como sujeitos “neutros”, mas como sujeitos encorporados. Essa questão tem emergido frequentemente em minha pesquisa, já que tenho sido frequentemente guiada por meus interlocutores a domínios de sua vida privada que eles, em outro caso, considerariam “pecaminosos”. Sempre me sinto desconfortável quando pergunto a eles sobre suas vidas sexuais ou se eles consomem álcool. Ao fazer isso, estou de fato questionando publicamente práticas que não apenas pertencem ao domínio privado (referido pelo termo êmico hchouma), mas que também têm uma existência legítima enquanto práticas sociais justamente por não existirem discursivamente. Muito das práticas não-conformistas de meus interlocutores (ou para manter o léxico teológico: práticas pecaminosas) não eram necessariamente naturalizadas enquanto “práticas seculares”, mas permaneciam geralmente no domínio do não-discursivo. Alguns de meus Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019 182 Nadia Fadil informantes tiveram relações sexuais fora do casamento e ocasionalmente beberam álcool, etc. Mas essas práticas não eram necessariamente entendidas como significativas para a sua autoconstituição como muçulmanos (nem necessariamente resultavam em dilemas morais). Aqueles que, por outro lado, consideravam essas práticas significativas, tornavam-nas significantes de uma posição subjetiva distinta — ou seja, aquela do ser “secular” ou “liberal”. É claro que, ao tentar circunscrever verbalmente as suas interrogações epistemológicas, Zakia estava igualmente posicionando-se — logo, constituindo-se — discursivamente. Vimos acima como esse não é um processo absolutamente claro – não apenas por causa de seu sentimento de isolamento, mas também porque ela parece temer os efeitos performativos de suas palavras em minha própria subjetividade ética. Isso me leva a meu segundo ponto: a sensibilidade de meus interlocutores sobre como as suas orientações pessoais poderiam ressoar ou se relacionar com a avaliação de outros, algo que considero próximo ao que Mahmood alude quando descreve a relação particular que vincula os muçulmanos devotos ao profeta (schesis). Muitos dos meus informantes de fato se posicionavam de maneira prudente quando expressavam suas dúvidas sobre a tradição. Outros preferiam mantê-las para si mesmo, especialmente em frente a seus pais. Para um outro tipo de interlocutor, por sua vez, o ato de explicitamente “perturbar” os afetos cercantes (algo que estaria no coração da norma do “sair do armário”) era essencial para a sua autocompreensão. Sua capacidade de existir era condicionada pela habilidade de performar uma conduta potencialmente ofensiva (em outras palavras: eu existo porque eu ofendo). Ao traçar essas várias trajetórias éticas, meu interesse é entender como a subjetividade muçulmana de meus interlocutores é mediada por uma série de práticas de cultivo de si e “relações vivas”. REFERÊNCIAS ASAD, Talal. The Idea of an Anthropology of Islam. Washington: Georgetown University, 1986. (Occasional Papers Series). Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019 183 ENCORPORAÇÃO COOLEY, Charles. Human Nature and the Social Order. New York: Scribner’s, 1902. FADIL, Nadia. Not-/Unveiling as an Ethical Practice. Feminist Review, London, v. 98, n. 1, p. 83-109, 2011. HALL, Stuart. Introduction: Who Needs Identity? In: HALL, Stuart; DUGAY, Paul (ed.). Questions of Cultural Identity. London: Sage, 1996. p. 1-17. HIRSCHKIND, Charles. The Ethical Soundscape: Cassette Sermons and Islamic Counterpublics. New York: Columbia University Press, 2006. HOLLYWOOD, Amy. Gender, Agency, and the Divine in Religious Historiography. The Journal of Religion, Chicago, v. 84, p. 514-528, 2004. KEANE, Webb. Christian Moderns: Freedom and Fetish in the Mission Encounter. Berkeley: University of California Press, 2007. MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject. Princeton: Princeton University Press, 2005. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99964 ÉTICA Jean-Michel Landry1, 2 Os escritos de Saba Mahmood sobre a ética (Mahmood, 2001, 2005) são frequentemente discutidos sob a rubrica de “ética da virtude” e associados à teorização singular de Michel Foucault sobre este tema. Politics of Piety (2005) é largamente reconhecido como um marco da chamada “virada ética” na antropologia e um texto essencial para a compreensão antropológica das práticas de subjetivação que fazem a vida ética possível. Essa visão de fato captura importantes aspectos da abordagem de Mahmood para a ética, mas também ignora uma série de outras dimensões de sua obra, que foram determinantes para a minha pesquisa etnográfica (Landry, 2016) entre seminaristas libaneses xiitas. Durante minha pesquisa de campo, acompanhei as aulas e outras práticas pedagógicas que permitem jovens muçulmanos xiitas se constituírem como agentes humanos de uma figura mística chamada “O Imã Escondido”. Enquanto os sunitas usam o termo imã para descrever líderes litúrgicos, os xiitas reservam esse termo para os descendentes de Muhammad, escolhidos por Deus para guiar os fiéis. Eles também asseguram que o último membro desta linhagem sagrada ocultou-se (ghayba) em 874 DC e permanece escondido dos olhos dos vivos desde então. Ao longo dos últimos séculos tornou-se um consenso entre os xiitas que clérigos bem treinados podem se tornar representantes (na’ib) do Imã Escondido. Muçulmanos devotos consultam estes clérigos para saber como obedecer a lei da sharia em circunstâncias contemporâneas. É correto investir em Bitcoins? A tecnologia de DNA pode determinar a filiação de uma criança? O aborto é lícito? Clérigos xiitas 1 2 É professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Carleton, Canadá. E-mail: jeanmichel.landry@carleton.ca. Tradução por Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019 186 Jean-Michel Landry respondem estas questões desvelando as opiniões dessa figura escondida que habita nosso meio. Xiitas devotos que buscam tornar-se autorizados para falar em nome do Imã devem se matricular em seminários (hawza, plural: hawzat), onde eles devem aprender a decifrar o corpus que agrega as revelações de Deus a Muhammad (o Corão) e narrativas de como o profeta, sua filha mais nova e os imãs encorporaram [embodied] essas revelações. O currículo das Hawzat começa com classes de gramática, retórica e lógica. Seminaristas recém-chegados também são treinados em jurisprudência islâmica (fiqh) e hermenêutica corânica (tafsir). Os mais avançados aprendem a confrontar questões ético-jurídicas ao interpretar o corpus islâmico, eventualmente também dialogando com a teoria social moderna (e.g., Durkheim, Marx). Ser reconhecido como um fiel representante do Imã Escondido, no entanto, demanda muito mais do que domínio da jurisprudência da sharia e da lógica aristotélica. Esse status também demanda mais do que a habilidade de articular regras e conselhos baseados nos textos sagrados do islã. Clérigos em busca de uma voz autorizada — e eventualmente de seguidores — devem forjar a si mesmo enquanto exemplares merecedores de uma emulação sem reservas (taqlid). Seminários xiitas oferecem classes de ética (akhlaq), que ajudam os estudantes a cultivar um caráter exemplar e comportamentos inspiradores. Aqueles que atendem e oferecem essas aulas, no entanto, destacam que uma parte significativa deste trabalho também envolve emular a conduta de figuras reverenciadas (ex. o profeta, os imãs) através de interações diárias como vizinhos, amigos e estranhos. Logo me tornei intrigado por esse tipo particular de práticas. Quais são elas? Como seminaristas aprendem a sua performance? O que emergia dessas conversas com o estudantes não era exatamente uma narrativa sobre a formação do Self, mas um sentimento de que o trabalho ético que eles realizavam era dirigido por — e não poderia ser separado de — preocupações sobre a condição moral da comunidade. Ao discutir suas estratégias de cultivo de si, por exemplo, seminaristas frequentemente sublinhavam a Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019 ÉTICA 187 urgência de se contrapor ao ethos consumista que permeia o ambiente xiita desde o fim da guerra civil libanesa. Outros insistiam que desigualdade social e corrupção perduram por detrás da fachada de símbolos religiosos pela qual as vizinhanças xiitas do Líbano são hoje conhecidas. Gradualmente se tornou claro para mim que o projeto de cultivo de si de meus colegas de classe era indissociável de um projeto muito mais amplo que visava cultivar um ambiente mais pio e justo. Essas conversas, assim como as minhas experiências nas aulas de hawza me forçaram a pensar sobre a relação (talvez a sinergia) entre cultivo de si e transformação social. Podemos caracterizar esses dois esforços como éticos? Se não, por quê? Perseguir essas questões me colocou à contrapelo da literatura antropológica recente sobre a ética (ou “a nova antropologia da ética”), que tende a dar prioridade ao primeiro esforço em detrimento do segundo. Muitos protagonistas da chamada virada ética de fato conceituam a ética como um assunto largamente privado, que começa e termina no Self: ela é um processo de auto-bricolagem (Rabinow, 1997), uma arte de si (Connolly, 1999) ou uma forma de auto-invenção (Deleuze, 1990; Massumi, 2002). Até mesmo Foucault, com quem o trabalho de Mahmood é associado, frequentemente descreve o Self humano como objeto e sítio da ação moral (Foucault, 1997). Infelizmente, essas abordagens deixam pouco espaço para se pensar sobre as dimensões coletivas da ética ou sobre como o cultivo de si se articula com aspirações sociopolíticas mais amplas. Quando comecei a compartilhar essas reflexões em diferentes ambientes acadêmicos, eu era frequentemente questionado se o meu argumento era dirigido — conscientemente ou não — contra o trabalho de minha orientadora, Saba Mahmood. Essa questão a princípio me pegava desprevenido: nem eu nem a própria Saba tínhamos entendido minha abordagem para a ética como um contraponto ao seu trabalho. Justamente o contrário: ao trabalhar de maneira próxima a ela, eu vim a perceber que a sua teorização da ética (diferente de muitas outras) recusava-se a tomar o Self como o horizonte último da ética. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019 188 Jean-Michel Landry Em Politics of Piety, ela de fato faz uma série de importantes comentários sobre a noção do Self e seu significado para uma antropologia da ética. Quando lidos de perto, no entanto, esses comentários mostram que a ética para ela envolve muito mais do que processos centrados no Self per se. No fim do primeiro capítulo, Mahmood relembra seus leitores que as práticas éticas de cultivo de si que ela analise não são orientadas pelas escolhas individuais. Seus interlocutores do movimento da’wa não criam a si mesmos, eles intencionalmente se submetem a algo maior e mais antigo do que eles mesmos, ou seja, a uma tradição compartilhada. O Self portanto não é produto da criatividade e deliberação dos sujeitos, mas sim “um produto das tradições discursivas historicamente contingentes nas quais ele está localizado” (Mahmood, 2005, p. 32). Mas há ainda outras formas através das quais as práticas éticas viajam para além dos confins do Self. Algumas páginas abaixo, Mahmood esclarece que “a eficácia política [dos movimentos islâmicos] é uma função do trabalho que eles realizam no campo ético” (Mahmood, 2005, p. 35), para mais tarde afirmar que os programas de cultivo de si que ela analisa são “uma condição necessária” (Mahmood, 2005, p. 152) para a agência política destes movimentos. Tomadas em conjunto, essas passagens sugerem que as práticas éticas frequentemente excedem os limites do Self: elas alimentam projetos e reforçam a eficácia política dos movimentos religiosos que Mahmood analisa. Em outras palavras, o cultivo de capacidades éticas (como a modéstia e a honestidade) tem importantes repercussões políticas; elas ajudam a “criar uma nova ordem social e moral” (Mahmood, 2005, p. 193). Apesar de Politics of Piety deixar em aberto a questão de como a ética deve de fato se relacionar com a política, somos continuamente lembrados da sinergia existente entre os dois domínios. Qualquer conversa sobre a antropologia da ética de Saba Mahmood hoje tenderá a orbitar sobre as noções de cultivo de si, virtudes individuais, subjetivação e conceitos afins, que ela compartilha com outros acadêmicos Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019 ÉTICA 189 do campo. Mas acredito que o modo mais frutífero de explorar as questões que seu trabalho suscita seria colocar essas questões à luz do problema da apreensão do “ético em termos do político, e vice-versa” (Mahmood, 2005, p. 194). Reter essa continuidade entre a política e a ética pode de fato nos ajudar a entender melhor a última frase de seu último livro, Religious Difference in a Secular Age (2016). Ali ela escreve que “a ideia de igualdade entre as fés pode requerer não a suspensão [bracketing] das diferenças religiosas, mas a sua tematização ética” (Mahmood, 2016, p. 213, grifo da autora). REFERÊNCIAS CONNOLLY, William. Why I Am Not a Secularist. Minneapolis: Minnesota University Press, 1999. DELEUZE, Gilles. Negotiations, 1972–1990. New York: Columbia University Press, 1990. FOUCAULT, Michel. The Ethics of the Concern for Self as a Practice of Freedom. In: RABINOW, Paul (ed.). Ethics, Subjectivity and Truth. New York: New Press, 1997. p. 281-301. LANDRY, Jean-Michel. The Practice of Shi‘i Jurisprudence in Contemporary Lebanon. 2016. Thesis (Ph.D. in Anthropology) – University of California, Berkeley, 2016. MAHMOOD, Saba. Feminist Theory, Embodiment, and the Docile Agent: Some Reflections on the Egyptian Islamic Revival. Cultural Anthropology, Arlington, v. 16, n. 2, p. 202-236, 2001. MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject. Princeton: Princeton University Press, 2005. MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report. Princeton: Princeton University Press, 2016. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019 190 Jean-Michel Landry MASSUMI, Brian. Parables from the Virtual: Movement, Affect, Sensation. Durham: Duke University Press, 2002. RABINOW, Paul. Introduction: the History of Systems of Thought. In: FOUCAULT, Michel. Ethics: Subjectivity and Truth. New York: The New Press, 1997. p. XI-XLII. (The Essential Works of Michel Foucault 1954– 1984, v. 1). Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99965 ÉTICA Mareike Winchell 1, 2 Seja enquanto caminhávamos pelos bosques perfumados de eucalipto de Wildcat Canyon ou navegávamos a multidão de estudantes que cruzavam a avenida Shattuck em Berkeley, minha amiga e mentora Saba Mahmood sempre demandou o máximo de mim. Ela demandava clareza de argumento e uma habilidade resoluta de encarar incertezas e expor minha ideias e intenções. Em retorno, ela me ensinou como sentar diante de um problema etnográfico, habitá-lo, dar-lhe seu devido respeito enquanto uma formação histórica e cultural distinta. Nesse curto ensaio, reflito sobre um problema empírico e um conceito normativo central para o trabalho de Saba, assim como para o meu: a desigualdade. Ecoando as intensidades corporais através das quais nossas conversas frequentemente se desenrolavam, Saba me ensinou a abordar esse problema não apenas através de ideais jurídicos e passados legislativos, mas também de texturas, afetos e práticas cotidianas. Afinal de contas, Saba nunca permitiu aos conceitos o privilégio de existir em um mundo sem limites, desprovido das vulnerabilidades que caracterizam a vida próxima às superfícies da terra. Tratar conceitos como materializações instáveis é particularmente importante para os antropólogos preocupados com as questões éticas e políticas da desigualdade — seja nas tradições religiosas, nas relações de gênero, ou nas estruturas racializadas de marginalidade e risco. Em seu primeiro livro, Politics of Piety: the Islamic Revival and the Feminist Subject (2005), Mahmood nos apresenta os casos de Sana e Nadia. Cada uma delas, Mahmood nos mostra, está lutando com questões sobre a desigualdade de gênero com relação a seus maridos e a categorias patriarcais mais amplas relativas à autoridade religiosa. Enquanto Sana abraça uma 1 2 É professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, EUA. E-mail: mareike@uchicago.edu. Tradução por Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 192 Mareike Winchell nova linguagem, a da autoestima, de modo a dar sentido à sua condição de marginalidade, Nadia se apega à prática de sabr, a virtude islâmica da persistência, enquanto um modelo para se viver e habitar a sua marginalidade. No entanto, Mahmood argumenta que […] o exercício de sabr não impediu Nadia de embarcar em projetos de reforma social, não menos que as práticas de autoestima mobilizadas por Sana. Não se deve, portanto, extrair correlações pouco fundamentadas entre uma orientação secular e a habilidade de transformar condições de injustiça social. (Mahmood, 2005, p. 174). Enquanto nenhuma das mulheres foi completamente capaz de “levar a cabo o projeto de reformar a situação opressiva em que elas foram forçadas a participar” (Mahmood, 2005, p. 174), cada uma delas trouxe recursos éticos distintos para habitar aquela situação. Apesar de não necessariamente transformativos, Mahmood mesmo assim insiste que Nadia e Sana revelam “dois modos distintos de se engajar com a questão da injustiça social, um assentado em uma tradição que viemos a valorizar, a outra em uma tradição não-liberal, que está sendo ressuscitada pelo movimento religioso com o qual trabalhei” (Mahmood, 2005, p. 174). O argumento é de uma simplicidade quase enganosa. Ao insistir que os engajamentos com a injustiça sejam desagregados do domínio mais legível e familiar da mudança através das reformas do Estado, Mahmood expande dramaticamente os contornos do que os acadêmicos normalmente entendem como ética, por um lado, e engajamento político com a justiça, por outro. Nenhuma dos dois, ela demonstra, deveriam ser predicados na transformação social enquanto capacidade ou fim. Mahmood retorna à questão da igualdade no prefácio de seu segundo livro: Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report (2016). Nessa ocasião, ela se pergunta sobre “o ideal da igualdade religiosa” e “sua significância enquanto um mandato jurídico, mais do que uma aspiração humana, que caracteriza nosso imaginário secular moderno” (Mahmood, 2016, p. 28). Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 ÉTICA 193 Insistindo, mais uma vez, que a igualdade mediada pelo Estado e pelo direito deveria ser distinguida da igualdade enquanto “aspiração”, ela argumenta que cada uma delas requer “diferentes tipos de ação social” (Mahmood, 2016, p. 28). Porque o secularismo “reduz o ideal da igualdade religiosa a uma política dos direitos e do reconhecimento, ele privilegia a agência do Estado” (Mahmood, 2016, p. 28). Por outro lado, no epílogo, ela conclui o livro desafiando nossa “incapacidade coletiva de imaginar uma política que não trate o Estado como o árbitro das relações maioria-minoria” (Mahmood, 2016, p. 213). Dada essa condição, “o ideal da igualdade inter-religiosa” requer que nós não nos intimidemos com as diferenças (e desigualdades) religiosa, mas que nós as tematizemos eticamente, em particular porque os recursos do Estado têm se provado inadequados para se resolver as disparidades existentes. Pelo contrário, o livro mostra como abordagens institucionais para a igualdade religiosa no Oriente Médio, assim como em outros lugares, tem servido para “hierarquizar as diferenças religiosas, consagrar normas religiosas e culturais majoritárias enquanto lei e identidade nacional, e permitir que as desigualdades religiosas floresçam na sociedade enquanto as proclama apolíticas” (Mahmood, 2016, p. 212). Ao assegurar a igualdade formal, abordagens jurídicas não apenas não resolvem, mas podem até asseverar e criar novas divisões e desigualdades entre sujeitos e grupos religiosos. Uma das contribuições-chave de Mahmood, que atravessa esses textos, refere-se à sua problematização de nossas convenções sobre a desigualdade. A desigualdade tende a ser enquadrada como perversão ou variância de uma igualdade apriorística de outro modo natural — uma premissa devedora das filosofias dos direitos naturais do século XVII. Em contraposição, Mahmood pergunta-se sobre as possibilidades que emergem da tematização da desigualdade enquanto um traço constitutivo dos mundos sociais, algo que não pode ser simplesmente obliterado pelas promessa de igualdade jurídica ou pelo horizonte de premissas do humanismo universalista. Muitos trabalhos recentes em antropologia se alinham com o chamado de Mahmood para uma atenção renovada para a desigualdade. Ao invés de ver a desigualdade como uma aberração, esses trabalhos a abordam com Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 194 Mareike Winchell uma característica constitutiva da vida cotidiana, endereçada por diferentes tradições jurídicas, culturais e religiosas de modos divergentes3. Empregando os termos de Mahmood, esses trabalhos tematizam a diferença enquanto algo constitutivo às práticas éticas através das quais as pessoas habitam a injustiça, seja em termos de desigualdades constitutivas entre sujeitos, seja em termos de desigualdades institucionais atreladas a modos liberais-jurídicos ou não-liberais de se engajar e dar sentido ao risco. Meu trabalho coloca esse corpus antropológico recente sobre a desigualdade em diálogo com pesquisas sobre os múltiplos sentidos do dinheiro e da riqueza na América do Sul e explora os modos com que falantes de Quéchua e Espanhol da região boliviana de Ayopaya imaginam, habitam e endereçam a desigualdade (Winchell, 2017). Enquanto a história de servidão agrária em Ayopaya perdura em estruturas racializadas contemporâneas de disparidade, argumento que ela também fornece idiomas particulares de obrigação que os falante de Quéchua dessas aldeias mobilizam de modo a desafiar o comportamento das novas elites, ligadas à extração do ouro. Contrária a narrativas mais pessimistas sobre o capitalismo tardio como um movimento de inexorável abandono, particularmente para as populações indígenas, eu me pergunto sobre a longevidade da obrigação e exploro as suas possibilidades como prática de reivindicação (e como uma heurística acadêmica), que trabalha para expor — e contestar — a recusa ética em que a troca “livre” se fundamenta. Desse modo, as práticas de reivindicação dos habitantes de Ayopayan emergem como fontes de insight para possibilidades mais amplas de se pensar a obrigação como uma orientação ética para a desigualdade, ou seja, enquanto uma analítica que insiste na riqueza como relação. 3 A literatura sobre desigualdade é robusta. Por abordagens etnográficas do engajamento ético com esses problemas, veja-se em particular Bornstein (2012); Duggan (2004); Englund (2011); Ferguson (2013); Green (2005); Guyer (2012); Leinaweaver (2008); Muehlebach (2012); Piliavksy (2014); Ramberg (2014). Por tratamentos clássicos sobre a desigualdade e a hierarquia, veja-se Dumont (1966); Mauss (2016); e Marx (1972). Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 ÉTICA 195 Essa abordagem avança a preocupação duradoura de Mahmood com os recursos éticos divergentes com que as pessoas vivem a desigualdade. Assim como ela, eu insisto que nossos recursos para se pensar a desigualdade são empobrecidos quando presumimos uma igualdade “natural” e então, quando não a encontramos, recorremos ao Estado para restaurar ou retornar aquilo que nunca deveria ter sido violado. Ao invés disso, eu foco em como as pessoas habitam a injustiça social quando não são capazes de realizar projetos reformistas de transformação de suas circunstancias e condições de vida. Eu entendo que Mahmood insiste que levemos a sério as práticas éticas de habitação, mesmo quando elas divergem de nossa preocupação valorosa com a reforma social via projetos seculares liberais orientados para a justiça enquanto ente jurídico. Na minha pesquisa, tenho destacado os modos complexos com que práticas de patronagem e reciprocidade conectadas ao modelo da hacienda moldam relações contemporâneas entre as elites espano falantes e aldeãos falantes de Quéchua na região mineradora de Ayopaya, Bolívia. Durante meu trabalho de campo entre 2010 e 2012, e em novas viagens de pesquisa em 2015 e 2017, aprendi sobre a importância do sistema de haciendas da região não apenas como um referente histórico, mas também como uma dobradiça relacional que ocupa o centro de uma complexa rede de reciprocidade e ajuda. Redes de ajuda eram comuns durante a era das haciendas e elementos delas se mantiveram primordiais no tempo em que conduzi minha pesquisa de campo. Por exemplo, os parentes de certos proprietários de terras proviam aldeões falantes de Quéchua com ajuda em transporte, roupa e comida, remédios, assim como dinheiro para se pagar educação, batismos, casamentos, ou funerais. Ao mesmo tempo, aldeões também retrabalhavam criticamente e estendiam idiomas de patronagem para contestar os novos arranjos sociais relativos à economia do ouro na região. Apesar da abolição legal da instituição da hacienda em 1953 e a mudança subsequente para o trabalho assalariado, na Bolívia, a abolição da hacienda não resultou na dissolução absoluta de relações “verticais” em um individualismo suposta- Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 196 Mareike Winchell mente atomizado e livre. No entanto, ao invés de execrar a existência desses vínculos patrimoniais, minha abordagem explora os modos criativos com que os aldeões articulam estes idiomas existentes para desafiar tendências individualistas de uma nova e mais ostensivamente “livre” economia de extração aurífera. Respondendo a essas demandas, eu procuro reestabelecer a obrigação não apenas como uma base para reivindicações populares na Bolívia mas também como uma heurística acadêmica para escavar as bases relacionais que a troca “livre” pretende negar. Essa mobilização popular ativa de redes patrimoniais históricas problematiza narrativas sobre o patrimonialismo latino-americano como um resquício colonial que constrange a agência nativa. Acadêmicos tendem a ver a patronagem como uma subsistente “força de hábito” (Pilavsky, 2014). Na América Latina, acadêmicos têm tendido a localizar a agência social não na patronagem, mas na habilidade de abandonar laços patrimoniais, associada a uma “consciência desenvolvida”, capaz de refletir sobre sua própria condição na estrutura de classes. Essa posição nega a possibilidade de que os vínculos entre elites e trabalhadores possam ser mais do que acidentes históricos ou sintomas de manipulação. De forma contrária, minha pesquisa mostra como meus interlocutores de fato retrabalham tradições herdadas de trocas assimétricas de modo a produzir uma crítica política e econômica do presente, incluindo o uso de ideais baseados nas hacienda relativos à obrigação das elites, tendo em vista desestabilizar as economias regionais do ouro (Winchell, 2017). A extensão criativa dos idiomas morais da hacienda para os novos proprietários de minas destaca como as instituições “paternalistas” herdadas operam não apenas como um limite para a agência camponesa, mas também como um mediador para reivindicações e críticas. Enquanto as demandas patrimoniais são geralmente posicionadas à contrapelo dos ideais liberais de igualdade e autonomia, elas no entanto reclamam atenção neste caso não como bloqueios a uma história política progressiva, mas também como atos desde sempre políticos. Ao insistir que o status deve ser ligado a formas de responsabilização, esses aldeões bolivianos (assim como em outros lugares) rejeitam a valorização da acumulação Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 ÉTICA 197 abstrata da qual depende o trabalho “livre”. Tais práticas demonstram que as relações de abandono que podem parecer evidentes para os acadêmicos não são vividas enquanto tal em qualquer parte. Atenção para a força contínua de demandas baseadas na patronagem problematiza visões teleológicas sobre o capitalismo enquanto deslocamento cronológico de relações realmente existentes de obrigação e seu acoplamento em relações atomizadas de alienação. Da mesma forma, ela interrompe narrativas seculares sobre a necessidade da governança liberal como um meio de se adjudicar a diferença religiosa e cultural. Seguindo Mahmood, podemos nos perguntar sobre quais tipos de ação política essas tendências descritivas permitem e ocluem. Levar a sério as práticas de troca assimétrica e suas reivindicações em funcionamento em Ayopaya requer que os acadêmicos abordem a justiça não apenas como igualdade formal a ser realizada por reformas jurídicas, mas também como uma aspiração que guia práticas existentes e modos de habitar a marginalidade. Recompor a justiça dessa forma revela um modo de se entender a desigualdade menos como uma aberração legal e mais como uma propriedade relacional constitutiva dos mundos contemporâneos. Aqui, assim como em outros lugares, sou devedora da insistência de Saba em aprender com a materialização incerta dos conceitos: as hierarquias existentes que interrompem as fantasias da “igualdade” enquanto um conceito universal e transhistórico. Em um nível mais pessoal, essa materialização desestabiliza a ilusão confortável de nossa inocência com relação à desigualdade e as demandas éticas que ela nos coloca no presente, demandas das quais ninguém está inteiramente isento. REFERÊNCIAS BORNSTEIN, Erica. Disquieting Gifts: Humanitarianism in New Delhi. Stanford: Stanford University Press, 2012. DUGGAN, Lisa. The Twilight of Equality? Neoliberalism, Cultural Politics, and the Attack on Democracy. Boston: Beacon Press, 2004. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 198 Mareike Winchell DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: the Caste System and Its Implications. Chicago: University of Chicago Press, 1966. ENGLUND, Harri. Human Rights and African Airwaves: Mediating Inequality on the Chichewa Radio. Bloomington: Indiana University Press, 2011. FERGUSON, James. Declarations of Dependence: Labour, Personhood, and Welfare in Southern Africa. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 19, n. 2, p. 223-242, 2013. GREEN, Maia. Discourses on Inequality: Poverty, Public Bads, and Entrenching Witchcraft in Post-Adjustment Tanzania. Anthropological Theory, Dorchester, v. 5, n. 3, p. 247-266, 2005. GUYER, Jane. 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Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 199 ÉTICA RAMBERG, Lucinda. Given to the Goddess: South Indian Devadasis and the Sexuality of Religion. Durham: Duke University Press, 2014. WINCHELL, Mareike. Economies of Obligation: Patronage as Relational Wealth in Bolivian Gold Mining. HAU: Journal of Ethnographic Theory, Chicago, v. 7, n. 3, p. 1-25, 2017. Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019 DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99966 HERMENÊUTICA Bruno Reinhardt1, 2 O status da hermenêutica na obra de Saba Mahmood ganha em clareza quando colocado em contraponto com a antropologia interpretativa de Clifford Geertz. Geertz nos ensinou que os antropólogos traduzem textos culturais ao interpretarem como outros interpretam, de maneira recursiva e simétrica. Nada mais distinto que a abordagem proposta por Mahmood, que de certa forma liberta a hermenêutica nativa da hermenêutica antropológica, e produz conhecimento através da fricção e da incompatibilidade, mais do que da traduzibilidade entre esses dois estilos de leitura3. A história profunda da antropologia interpretativa remete ao Romantismo Alemão, Schleiermacher, Dilthey e Ricoeur, e ao processo sócio-histórico de abstração das chamadas “hermenêuticas técnicas” — ferramentas exegéticas mobilizadas pela Teologia e pelo Direito — em uma “hermenêutica geral”, método de análise tido como típico das ciências sociais e das humanidades. Em um ensaio estratégico, Ricoeur problematiza o que considera o apego último de Dilthey à hermenêutica técnica: a distinção entre Auslegung (exegese textual) e Verstehen (compreensão) e argumenta que […] se há problemas específicos que são suscitados pela interpretação de textos porque eles são textos e não linguagem falada, e se esses problemas são aquilo que constitui a hermenêutica, então as ciências sociais podem ser consideradas hermenêuticas i) contanto que seu objeto demonstre algumas das propriedades constitutivas de um texto enquanto texto, e ii) contanto que 1 2 3 É professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: bmnreinhardt@gmail.com. Tradução por Bruno Reinhardt. Sobre o tema da traduzibilidade no encontro antropológico, veja-se Asad (1986a). Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201-209, ago./dez. 2019 202 Bruno Reinhardt a sua metodologia desenvolva procedimentos da mesma ordem que aqueles da Auslegung ou interpretação textual. (Ricoeur, 1971, p. 532). Como podemos imaginar, sua resposta para ambas condições é afirmativa, e o modelo de Geertz da cultura-como-texto elabora sobre tal axioma. Geertz também compartilha com Ricoeur uma forte aversão ao que considera a natureza impessoal e ahistórica do estruturalismo e seu foco em sistemas de símbolos auto-referenciais, vendo na hermenêutica geral uma alternativa para se resgatar o lugar da subjetividade e da atividade história de significação na antropologia simbólica. A antropologia interpretativa de Geertz viveu seu ápice nos anos 1970 e 80, e foi ofuscada desde então por uma série de concepções alternativas acerca do objeto e da atividade antropológicos: de Roy Wagner e seu pioneiro A Invenção da Cultura, passando pelo textualismo pós-moderno (uma radicalização das próprias pressuposições de Geertz) à provincialização do chamado “grande divisor” entre Natureza e Cultura proposta por Bruno Latour. No entanto, considero encontrar-se na obra de Talal Asad a desconstrução mais sistemática dos protocolos da antropologia interpretativa. Como sabemos, a antropologia da religião e do secularismo de Saba Mahmood representa uma contribuição crucial no interior desta linhagem acadêmica. A crítica de Asad à antropologia interpretativa tem duas dimensões. Primeiramente, Asad oferece uma genealogia cuidadosa do próprio processo de secularização através do qual a Hermenêutica é extraída da teologia e abstraída em um método científico neutro que unificaria as humanidades. Segundo, Asad fornece uma abordagem mais imanente acerca da relação entre textualidade e historicidade religiosas, tendo o Islã como parceiro privilegiado. Essas duas questões são fortemente interdependentes, considerando que, para Asad, a chamada “religião vivida” seria inevitavelmente entrelaçada com a pulsão secular de defini-la e regulá-la (Asad, 1993, 2003). Em um ensaio influente, Asad (1983) demonstra que a definição de religião promovida por Geertz, a de um sistema cultural orientado para o problema do significado, seria uma atualização epistemológica pouco refleDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201-209, ago./dez. 2019 HERMENÊUTICA 203 xiva do processo sociopolítico de longo prazo através do qual a categoria universal de religião teria sido construída ao longo da formação do estado-nação secular na Europa e da sua expansão via imperialismo. Ao privilegiar a “crença” e o “significado” imateriais, Geertz reencena a seu próprio modo o recalque protestante das condições disciplinares através das quais essas forças de fato emergem na prática. De maneira geral, Asad problematiza a estabilidade dos textos culturais na antropologia interpretativa ao propor um foco alternativo nas técnicas de subjetivação [ensoulment] e encorporação [embodiment]. Ele se pergunta: “Quais são as condições através das quais os símbolos religiosos podem de fato produzir disposições religiosas? Ou, como o não-crente colocaria: como o poder (religioso) cria a verdade (religiosa)?” (Asad, 1993, p. 33). Tais questões o levam a mover-se da análise de sistemas simbólicos e rituais para um estudo mais aprofundado sobre a pedagogia religiosa ou a aquisição de competências encorporadas [embodied]: “Será que o conceito de treinamento religioso é inteiramente vazio?” (Asad, 1993, p. 55). Enquanto a abordagem hermenêutica de Geertz privilegia o ato de ler símbolos como um diacrítico da vida religiosa (talvez da vida cultural em geral, já que religião e cultura para Geertz são quase sinônimos), Asad recua e questiona-se sobre as práticas e sensibilidades autorizadas que tornariam tais símbolos legíveis. Esse processo nos levaria a avaliar se o adjetivo “simbólico” seria de fato adequado ou não às realidades subjetivas e objetivas gestadas por essas práticas e sob qual ponto de vista4. Outro ensaio que merece ser destacado é The Idea of an Anthropology of Islam (Asad, 1986b), onde a questão do texto e da textualidade aparecem de maneira mais convencional, referindo-se à literatura sagrada e autorizada do Islã. Nessa ocasião, Asad argumenta: “Se alguém quer escrever uma antropologia do Islã, deve começar, assim como o fazem os muçulmanos, 4 A bibliografia sobre a variedade histórica e etnográfica da leitura enquanto técnica corporal, modo de subjetivação e gênero interpretativo é longa. Destacaria respectivamente Manguel (1997) e Boyarin (1993). Veja-se Asad (2003) e Allan (2013, 2016) sobre como o processo de secularização implica na conversão de historicidades não-seculares em “literatura”. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201-209, ago./dez. 2019 204 Bruno Reinhardt do conceito de uma tradição discursiva que inclui e se relaciona com os textos fundamentais do Corão e das Hadith.” (Asad, 1986b, p. 15). A textualidade do Islã é considerada por Asad uma parte intrínseca da historicidade desta tradição — o modo com que os muçulmanos concebem e articulam passado, presente e futuro — ambos sendo cultivados através de uma preocupação específica com a “performance apta” (Asad, 1986b, p. 15), o que inclui a busca por significado lado a lado com posturas, pronúncias do Árabe clássico, memorização, aspectos poéticos da recitação, o cultivo de modos somáticos-afetivos de atenção e a produção de paralelismos entre texto e vida5. A leitura de textos, neste caso, não é simplesmente uma busca por interpretações historicamente ostensivas, sob a ótica secular. A leitura é uma competência ética adquirida e um esforço vitalício por coordenar temporalidades e princípios textuais com modos de agir, sentir, viver e ser. É desse esforço que o objeto “Islã” emerge e se diversifica no tempo e no espaço, logo ignorar esse processo só pode levar antropólogos a posições ou essencialistas ou nominalistas sobre como defini-lo. Politics of Piety, a etnografia de Saba Mahmood sobre o movimento feminino das mesquitas no Egito (da’wa), é um livro de enorme fôlego e criatividade, que articula de forma inovadora uma grande variedade de temas, como refletido nas quase 6000 citações endereçadas a ele no momento em que reviso esse texto. No que tange o problema da hermenêutica, Mahmood torna o modelo de Asad mais etnograficamente situado e conceitualmente preciso. Diante da proliferação de literaturas pedagógicas Islâmica no Egito contemporâneo (gêneros como as fatwa populares e manuais de fiqh) e a participação mais ativa das mulheres em sua produção, transmissão e consumo, Mahmood opta por contrastar o modelo interpretativo do sujeito religioso que lê símbolos em busca por significados com o modelo da habilitação ética, preferindo compará-lo a uma pianista “que submete-se ao, às vezes doloroso, regime de práticas disciplinares, assim como às estruturas 5 Veja-se Hirschkind (2006) por uma abordagem seminal para os entrelaçamentos entre esta tradição textual e processos de midiatização no Egito contemporâneo. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201-209, ago./dez. 2019 HERMENÊUTICA 205 hierárquicas do aprendizado prático [apprenticeship], em vistas de adquirir tal habilidade” (Mahmood, 2005, p. 29). Textos sagrados, glosas autorizadas e manuais que regulam a vida cotidiana provêm modelos normativos exemplares para uma série de exercícios ético-espirituais que textualizam corpos e corporificam textos, processo que frequentemente engloba outros artefatos materiais, como o véu. Mahmood aborda essa relação em termos de “citacionalidade”, adaptando a um contexto islâmico o argumento de Judith Butler (1999) sobre a normatividade do gênero: “a iterabilidade da performatividade já é uma teoria da agência” (Butler, 1999, p. xxiv). Tal abordagem transcende debates estéreis sobre se essa modalidade de leitura seria “literalista” ou “simbólica” ao examinar práticas religiosas como formas generativas de sincronizar temporalidades sagradas e seculares. Mahmood demonstra que, ao interpretarem como outros interpretam, antropólogos não operam em uma meta-escala neutra, já que o ato de interpretação ele mesmo varia quando embutido em regimes de prática e sensibilidades islâmicas ou seculares. A traduzibilidade entre esses regimes é fundamentalmente uma questão de poder, como explora Mahmood em seu engajamento posterior com controvérsias, como as polêmicas em torno das representações satíricas do profeta Muhammad na Dinamarca (Mahmood, 2009, neste volume) e do romance Azazeel no Egito (Mahmood, 2013), quando objetos e narrativas se movem entre domínios religiosos e seculares ao evocar tanto os seus entrelaçamentos quanto as suas fricções inevitáveis na modernidade. O trabalho de Mahmood foi de grande inspiração para o desenvolvimento de minha tese de doutorado sobre a pedagogia e política do treinamento pastoral entre Pentecostais em Gana (Reinhardt, 2013). Eu me tornei particularmente interessado em expandir seu modelo de habilitação ética para além da questão do cultivo de si, de modo a englobar o que Alasdair MacIntyre (1999) chama de “redes de florescimento”. No meu caso, isso implicava em considerar o millieu da habilitação pentecostal, comunidades hierárquicas de prática formadas por conversos novatos e experientes, através das quais o ofício do pastor é transmitido neste país, incluindo contextos institucionalizados, Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201-209, ago./dez. 2019 206 Bruno Reinhardt como “Escolas Bíblicas” ou Seminários Pentecostais, onde fiz a maior parte do meu campo. A dinâmica dessas redes formais e informais ressoava fortemente com que Jean Lave (2011), em seus estudos sobre o aprendizado da alfaiataria na Libéria, chama de “participação legítima periférica”, uma forma de transmissão baseada sobretudo em formas controladas e hierárquicas de fazer coletivo. Ao examinar a dinâmica de transmissão nesses seminários não pude deixar de notar que meus interlocutores também tendiam a insuflá-la com a historicidade bíblica, seguindo um padrão hermenêutico bem similar ao que Hans Frei (1974) chama de “figuração”, um regime interpretativo e semiótico dominante antes do criticismo bíblico ganhar força na Europa do século XVIII, submeter a autoridade desta narrativa à História secular e assim propiciar a Hermenêutica geral (Reinhardt, 2014, 2016). De acordo com Frei, três aspectos principais caracterizam a leitura figural. Primeiro, as narrativas bíblicas descreviam ocorrências históricas, logo o texto não provia “evidências” para eventos que se desenrolavam em uma temporalidade não bíblica (o que Benjamin chama de o “tempo vazio e homogêneo” da História secular). O texto fazia o que chamamos de “sentido literal” dentro de uma historicidade em que Deus tinha um papel definitivo. Segundo, a história bíblica era cumulativa, o que colocava o problema da unidade de uma cânone altamente fragmentado. Essa tensão era endereçada ao se fazer personagens, eventos, e profecias do Velho Testamento “figuras” de suas versões posteriores. O sentido figural era portanto uma extensão ou realização do sentido literal e não o seu oposto, como no caso do sentido “simbólico”. Isso se reflete no terceiro aspecto: a figuração também extravasava as fronteiras do texto ao assistir o leitor a “incorporar o pensamento, a experiência e a realidade extra-bíblica ao único mundo detalhado e tornado acessível através da narrativa bíblica, não o contrário” (Frei, 1974, p. 3). Uma figura bíblica portanto não é uma metáfora, mas um evento histórico que antecipa outros eventos históricos ao desvelar um padrão de iterabilidade divino. Entre meus interlocutores — pastores neófitos e seus mestres — notei uma tendência particular a sincronizar a historicidade bíblica e o processo Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201-209, ago./dez. 2019 HERMENÊUTICA 207 pedagógico em que participavam através de uma figuração de relações, o que chamo de imitatio relationes, em contraposição ao modelo da imitatio Christi (Reinhardt, 2016, p. 57). Para eles, ser um bom aprendiz de pastor era imitar não apenas Paulo, Moisés e Elias, mas sobretudo imitar relações bíblicas de discipulado, como Paulo-Timóteo, Moisés-Josué, Elias-Eliseu. Esse processo particular de citacionalidade não apenas delineava como a autoridade deveria ser exercitada durante o aprendizado, mas também incutia a transmissão religiosa como uma série de potencialidades carismáticas, baseadas no axioma biblicamente fundamentado de que “o Espírito Santo trabalha através das relações”. Meu interesse particular com esse mergulho imanente na hermenêutica do discipulado pentecostal foi explorar a especificidade teopolítica do poder pentecostal em África. Tal projeto me levou à noção de “poder apostólico”: centrípeto, como a autoridade carismática em Weber, e centrífugo, como o poder pastoral em Foucault. Destaco como uma abordagem teopolítica para essas igrejas problematiza as opções disponíveis na vasta literatura sobre o tema, que tendem a caracterizá-las ora como “democráticas”, já que fortemente baseadas na participação e no empoderamento horizontal, ora como “patrimoniais”, já que baseadas em líderes carismáticos fortes e verticais. Meu trabalho expande para o caso do pentecostalismo africano o projeto comparativo de Mahmood de uma antropologia do “sujeito das normas” (Mahmood, 2005, p. 22). Como na inspiradora obra de Saba, esse processo implica em encontrar o político em lugares não usuais ao começar a pensá-lo assim como o fazem nossos interlocutores, o que inevitavelmente inclui o problema da hermenêutica religiosa. REFERÊNCIAS ALLAN, Michael. In the Shadow of World Literature. Princeton: Princeton University Press, 2016. ALLAN, Michael. Reading Secularism: Religion, Literature, Aesthetics. Comparative Literature, Durham, v. 65, n. 3, p. 257-264, Summer 2013. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201-209, ago./dez. 2019 208 Bruno Reinhardt ASAD, Talal. Anthropological Conceptions of Religion: Reflections on Geertz. Man, London, v. 18, n. 2, p. 237-259, 1983. ASAD, Talal. Formations of the Secular: Christianity, Islam, Modernity. Stanford: Stanford University Press, 2003. ASAD, Talal. Genealogies of Religion: Discipline and Reasons of Power in Christianity and Islam. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1993. ASAD, Talal. 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Ela continua sublinhando seu compromisso com um tipo particular de investigação: […] [A]o analisar o problema da política, devemos começar com questões fundamentais sobre a relação conceitual entre corpo, Self e agência moral enquanto constituídos por diferentes posições culturais e políticas, e não apegar-se a nenhum modelo particular como axiomático, como tende a ser o caso nas narrativas progressistas. (Mahmood, 2001, p. 223). Muito poderia ser dito sobre a sobrevida desta passagem em sua crítica subsequente ao feminismo politicamente prescritivo em Politics of Piety (Mahmood, 2005, p. 10, 36, 39, 153, 195, 197), suas reflexões sobre as polêmicas em torno dos cartuns dinamarqueses em “Religious Reason and Secular Affect” (Mahmood, 2009, neste volume) ou sua leitura do romance histórico Azazeel em Religious Difference in a Secular Age (2016). No entanto, eu começo com essa passagem anterior para sublinhar as ressonâncias do que Mahmood descrevia como sua “abordagem hermenêutica”. Dos vários eixos críticos que compõem a sua obra — subjetividade, gênero, encorporação, ou religião — hermenêutica tem uma aparição mais discreta, apesar de 1 2 É professor do Departamento de Literatura Comparativa da Universidade do Oregon, EUA. E-mail: mallan@uoregon.edu. Tradução por Bruno Reinhardt. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019 212 Michael Allan persistente. Os compromissos duradouros de Mahmood enquanto acadêmica são ancorados menos em uma visão prescritiva sobre como o mundo deve ser (narrativas progressistas) do que em um engajamento analítico com o problema de como as sensibilidades são formadas (hermenêutica). Como, então, deveríamos ler, interpretar ou entender o uso que Mahmood faz do termo hermenêutica? Um antropólogo toma esse termo de modo diferente que um teólogo, um literário, um historiador? Essas questões têm peso importante para mim. Enquanto professor de Literatura Comparativa, eu admito que a hermenêutica crítica de Mahmood tem informado e inspirado a forma com que leio (Allan, 2013, 2016). Seus seminários expandiam a hermenêutica para além da linhagem de Schleiermacher, Gadamer e Ricoeur, de modo a englobar preocupações com disciplinas corporais, sensibilidades e disposições. E dada a extensão com que meu próprio campo se ancora em observações textuais, eu aprendi ricamente com a ênfase de Mahmood na leitura como uma prática encorporada [embodied]: uma conexão íntima entre o cultivo de sensibilidades, de um lado, e uma ideologia textual, por outro. De acordo com o uso de Mahmood, a hermenêutica não é uma questão de leitura, no sentido estrito, referindo-se mais às sensibilidades que inflectem a atitude crítica. De fato, pode-se dizer que o sítio interpretativo primário na obra de Mahmood é menos o texto (seja ele Azazeel ou os cartuns dinamarqueses, por exemplo) do que as condições de sua recepção, os termos das respostas, os enquadramentos rivais de inteligibilidade que evocam. Pode-se ver que o engajamento minucioso de Mahmood com o corpo (situações, sensibilidades e condições) e a mente (interpretação, respostas, crítica) tem implicações especialmente agudas para o modo com que concebemos o pensamento, a interpretação e, em última instância, a própria hermenêutica. A teoria literária tem há muito tempo se inspirado na antropologia e eu suponho que o mesmo possa ser dito ao contrário. A versão de Stephen Greenblatt para o novo historicismo se baseia em Clifford Geertz, e o Writing Culture, de James Clifford, visa absorver os debates da teoria literária correntes em sua época. Como uma prática de leitura inspirada em Mahmood se Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019 HERMENÊUTICA 213 pareceria? Quais implicações sua análise hermenêutica teria para os estudos literários e culturais? Para começar, eu vejo o trabalho de Mahmood como uma guinada crítica da análise textual representacional (do tipo avançada por Edward Said e Timothy Mitchell) para uma consideração da análise ética (que ecoa o trabalho de Talal Asad). Assim como Asad, Mahmood empurra a hermenêutica para além da textualidade, interpretação, ou representação de modo a considerar as práticas e disciplinas que fazem possível um certo tipo de relação para com os textos e o significado. Podemos pensar na crítica de Asad (1983) à antropologia da religião de Geertz — esse ensaio basilar para os seminários de Mahmood. Enquanto Geertz endereça o papel dos símbolos em contextos religiosos como um sistema cultural, Asad endereça as práticas através das quais estes símbolos se tornam simbólicos. Com a sua ênfase em “como disciplinas sociais produzem e autorizam conhecimentos” (Asad, 1983, p. 252), Asad questiona a formação de categorias e as contingências do modelo semiótico de interpretação. Mesmo na introdução de Formations of the Secular, em que engaja com termos-chave dos estudos literários clássicos (símbolo, mito, alegoria), Asad o faz através de uma abordagem antropológica crítica das disciplinas e práticas através das quais certos pensamentos se fazem possíveis. Já na passagem anteriormente citada de Mahmood, “hermenêutica” aparece de maneira inseparável de “análise”, e seu engajamento analítico já é ele mesmo compromissado com uma abordagem hermenêutica. Sua dívida com a teoria da prática é clara. Seu ensaio Secularism, Hermeneutics and Empire (Mahmood, 2006) e suas reflexões sobre Azazeel são dois exemplos bastante explícitos deste engajamento com a leitura, a interpretação e a ideologia textual. De forma intrigante, no entanto, é seu artigo “Religious Reason and Secular Affect” que me vem à mente pelos insights que oferece ao emaranhamento entre leitura, interpretação e ética. Como em muitos de seus artigos, este ensaio começa destacando a distinção entre “polêmica estridente” e “vozes mais reflexivas” (Mahmood, 2009, p. 833) de modo a reenquadrar os termos em que o escândalo dos cartuns dinamarqueses deve ser entendido. O ensaio apresenta uma antropologia predicada não na Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019 214 Michael Allan distinção entre “aqui” e “alhures”, mas em distinções analíticas entre respostas estridentes e reflexivas, leituras boas e descuidadas. O que eu admiro neste ensaio é sua capacidade de isolar e descrever os limites de uma compreensão mimética dos cartuns. Por um lado, Mahmood provincializa pressuposições sobre a função mimética dos textos e, por outro, ela considera ideologias textuais alternativas — neste caso ancoradas em uma atenção à schesis (que ela lê contra a mimesis). Ao levar a sério o papel do profeta Muhammad como um modelo encorporado de/para a virtude, ela expande a conversa para muito além do problema da representação boa ou má, liberdade de expressão ou blasfêmia. A análise de Mahmood e seu interesse duradouro nos debates históricos em torno da schesis a levam a examinar as sensibilidades que informam a experiência do encontro estético. Definir o que é um cartum, a arte, a religião ou a literatura assim se torna inseparável de debates sobre como eles vêm a se realizar e relacionar. E esse processo é predicado criticamente nas sensibilidades que subjazem ao tipo de leitura em jogo. Parte da riqueza das discussões hermenêuticas (em oposição a formulações generalizadas sobre a leitura) é que a hermenêutica demanda um engajamento com tradições interpretativas. Se a riqueza da abordagem de Mahmood está em como ela situa práticas no tempo e no espaço, então podemos especular sobre as implicações mais amplas de seu trabalho para uma compreensão da leitura. É possível pensar comparativamente sobre práticas hermenêuticas? Existiria algo como uma hermenêutica comparativa? Ou seja, poderia o termo “hermenêutica” englobar tradições interpretativas bíblicas, védicas, talmúdicas ou corânicas, por exemplo? Em caso positivo, a partir de qual posição poder-se-ia comparar tradições interpretativas? Há uma tendência dentre os acadêmicos de meu campo a conectar modos literários de leitura à hermenêutica bíblica e o alto criticismo alemão. Eu valorizo a riqueza desses argumentos sobre a inter-relação entre tradições bíblicas e seculares, mas me pergunto sobre suas implicações sobre tradições (sejam elas literárias ou religiosas) que fogem ao alcance do cristianismo. Se adotamos a linguagem da hermenêutica, não arriscamos a nos encasular em um mundo em que toda prática de leitura seria um desenvolvimento Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019 HERMENÊUTICA 215 inerente da exegese bíblica? Colocando de forma simples: será que toda leitura literária seria necessariamente protestante? Será que haveria um fora para a ideologia textual da leitura literária? Quando coloco essas questões, já antecipo as várias maneiras que o trabalho de Mahmood já nos provê com algumas respostas. Formalmente, poderíamos encontrar ecos de uma resposta nos modos com que ela endereça o secularismo como um desenvolvimento do cristianismo. Mas eu sou atraído a considerar traços do trabalho de Mahmood pertinentes para entender a declaração de Asad de que o secular constituiria uma forma de mediação transcendente (Asad, 2003, p. 5). Se até aqui eu sublinhei a hermenêutica no nível da interpretação prática conectada historicamente à análise textual, então sou igualmente atraído pelo modo com que o trabalho de Mahmood também se esforça para pensar para além de modelos linguística ou textualmente determinados, ou seja, o que seu trabalho oferece para expandir o conceito de mediação. Haveria uma hermenêutica para as mídia? De que maneira as práticas não textuais complicam as tradições interpretativas? Em um momento em que minha pesquisa se expande da literatura para explorar a fase inicial da história do cinema no Oriente Médio e no Norte da África, eu continuo a aprender ricamente com as reflexões de Mahmood. Sua atenção para as sensibilidades que informam a inteligibilidade social dos textos no tempo no espaço é essencial, permitindo uma virada crítica da reverência às fontes textuais para os termos em que elas são constituídas. Sou imensamente grato por essa lição sobre como ler e sou igualmente grato por reencontrar recursos para se pensar os limites da textualidade mais uma vez em seu trabalho. Essa, poder-se-ia dizer, é outra implicação ressonante de sua abordagem hermenêutica e a disciplina generativa que ela oferece. REFERÊNCIAS ALLAN, Michael. In the Shadow of World Literature. Princeton: Princeton University Press, 2016. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019 216 Michael Allan ALLAN, Michael. Reading Secularism: Religion, Literature, Aesthetics. Comparative Literature, Durham, v. 65, n. 3, p. 257-264, Summer 2013. ASAD, Talal. Anthropological Conceptions of Religion: Reflections on Geertz. Man, London, v. 18, n. 2, p. 237-259, 1983. ASAD, Talal. 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Recebido em: 28/10/2019 Aprovado em: 28/10/2019 Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019 ARTIGOS DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99586 IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR DE SABA MAHMOOD1 Judith Butler2 Resumo: Neste artigo, Butler retoma o argumento de Mahmood sobre secularismo, direito de família e desigualdade de gênero no Egito para compreender a “ideologia de antigênero” nos Estados Unidos e alhures. Ao invés de vê-la como ressurgência de um fenômeno pré-moderno, Butler sugere que pode ser melhor entendida como uma reação à recente incursão de movimentos sociais na última jurisdição da religião no contexto do Estado secular: a esfera privada da família. Palavras-chave: Ideologia de Gênero; Secularismo; Direito de Família. ANTI-GENDER IDEOLOGY AND MAHMOOD’S CRITIQUE OF THE SECULAR AGE Abstract: In this paper, Butler engages with Mahmood’s argument about secularism, family law and gender inequality in Egypt, in order to make sense of “anti-gender ideology” in the U.S. and elsewhere. Instead of seeing the latter as the resurgence of a pre-modern phenomenon, Butler suggests that it might be best understood as a reaction to the recent incursion of social movements into religion’s last jurisdiction in the secular state: the private sphere of family law. Keywords: Gender Ideology; Secularism; Family Law. 1 2 Traduzido por Letícia Cesarino, a partir de “Anti-Gender Ideology and Mahmood’s Critique of the Secular Age”. No original, a expressão “anti-gender ideology” aparece com o prefixo “anti” associado ora ao termo “gênero”, ora a “ideologia”. Mantivemos a ambivalência na tradução, de acordo com o contexto. Judith Butler é filósofa e teórica do gênero. Seu trabalho tem influenciado a filosofia política, a ética e a terceira onda do feminismo e da teoria literária. Desde 1993, ela ensina na Universidade da Califórnia, Berkeley, onde é professora no Departamento de Literatura Comparada e no Departamento de Teoria Crítica. E-mail: jpbutler@berkeley.edu. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 220 Judith Butler Em Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report, Saba Mahmood dedica um capítulo ao tema “Secularismo, direito de família e desigualdade de gênero”. Sua discussão ataca a suposição comum de que o direito de família seria governado por autoridade ou códigos religiosos – algo pré-moderno, que persiste na modernidade enquanto uma sobrevivência. Ela argumenta que essa visão, historicamente desinformada, desconsidera que, quando o direito de família é relegado ao domínio privado da religião, a própria religião é transformada em uma questão privada, e casamento e divórcio tornam-se objetos não apenas da religião, mas da lei religiosa em particular. Ainda que uma religião tradicionalmente lidasse com questões relativas a casamento e família através de meios não-legais (costumes, normas, consulta a autoridades religiosas), em condições seculares ela se torna um sistema ou autoridade legal concorrente. A perspectiva que vê no direito de família de base religiosa uma sobrevivência pré-moderna é portanto incapaz de explicar o modo como o estado secular estabeleceu o direito de família como traço definidor da própria religião – o que corrobora o modo como o secularismo redefine a religião e suas preocupações essenciais. Convenções e normas envolvendo a vida familiar só são entendidas como “legais” quando o direito secular se diferencia da lei religiosa, e, no mesmo movimento, define a jurisdição adequada desta última. Mahmood considera casos de conversão e divórcio no direito de família cristão copta no Egito moderno – ou melhor, as tensas negociações e conflitos abertos entre autoridades da Igreja e do Estado, onde estas últimas pretendem defender uma hegemonia presumidamente muçulmana. Seu argumento avança por várias etapas, e conclui sugerindo que “secularismo é uma modalidade compartilhada de estruturação político-legal que atravessa o divisor Ocidente e não-Ocidente” (Mahmood, 2016, p. 147). Com efeito, no mesmo capítulo, Mahmood havia feito referência ao trabalho de Janet Halley e Kerry Rittich (Halley; Rittich, 2010), que argumentam que o direito de família só emerge como esfera legal autônoma no século dezoito. Contra uma forma de liberalismo político que prioriza o individualismo e a racionalidade autointeressada no campo dos mercados e contratos, a Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR... 221 “família” vai se tornando a esfera na qual são prescritos e regulados laços de afeto, condições de coabitação e casamento, e regras relativas a trocas sexuais. É portanto como consequência do direito de família que a família passa a ser aceita como lócus do cuidado, da reprodução e da moralidade sexual (Mahmood, 2016, p. 120). Em outras palavras, o investimento afetivo na família é resultado do direito de família, isto é, da “modalidade secular de estruturação político-legal” (Mahmood, 2016, p. 147) produzida no curso do desenvolvimento do direito de família. Embora esse processo venha acontecendo no Egito moderno e em muitos outros países e regiões sujeitos a poderes seculares, ele não vem acompanhado de uma compreensão da sua operação global; pelo contrário, tem alimentado formas de nacionalismo. No argumento de Mahmood, “supõe-se que o direito de família ... emana de, e expressa, ‘o espírito do povo’” (Mahmood, 2016, p. 120). Seguindo Halley e Rittich (2010), ela aponta que o direito de família é visto como representando e preservando aquilo que é tradicional, autêntico, mas também um espírito nacional – quando não um nacionalismo explícito. Contra a visão de que o direito de família preserva esses valores nativistas, Mahmood argumenta que esses valores são retroativamente delegados à família através do direito de família. O caráter “arcaico” ou “primordial” desses valores é, na realidade, produzido pelo secularismo moderno, embora pareçam preceder a modernidade. A própria anterioridade temporal é estabelecida por poderes seculares – um ponto corroborado pelo fato de que, antes do século dezoito, o próprio direito de família era inexistente. Mesmo a proibição copta do divórcio é um fenômeno moderno, vista a longa história de permissibilidade do divórcio dentro da tradição copta – ou seja, antes da obrigação de que problemas maritais passassem a ser resolvidos por meio de um aparato legal específico, que teve que ser produzido para tal. No que segue, proponho reconstruir o argumento de Mahmood de modo a lançar luz no movimento contemporâneo de oposição à “ideologia de gênero”. A ideia da ideologia de gênero emergiu nos anos noventa, quando o Pontifício Conselho para a Família alertou contra a noção de Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 222 Judith Butler “gênero” enquanto ameaça à família e à autoridade bíblica. A ideia de gênero como construção social desencadeou a crença de que indivíduos podiam escolher seu próprio gênero, ou viver sem os constrangimentos do casamento e da heterossexualidade. Na Argentina, Joseph Scala publicou um livro atacando a “ideologia de gênero” que foi amplamente distribuído por igrejas evangélicas. Ele alertou para o caráter agressivo e destrutivo do conceito, sugerindo que “gênero” seria contrário tanto à religião quanto à ciência. Nos anos que se seguiram, gênero se tornou uma questão saliente em eleições no Brasil, Costa Rica, Colômbia, França, Suíça, Alemanha e, mais recentemente, intensamente disputada na Hungria (onde os estudos de gênero foram abolidos) e nos Bálcãs. Em todos esses contextos, gênero é entendido enquanto uma “ideologia” singular que refuta a realidade da diferença sexual e busca se apropriar do poder divino de criação para aqueles que desejam criar seus próprios gêneros. Na Alemanha, a ideologia de gênero – ou, de fato, os estudos de gênero – são frequentemente caracterizados como totalitários. No Brasil, a ideia da nação, e a própria masculinidade, são vistas como ameaçadas pela “ideologia de gênero”. Parece não haver interesse algum pelo que de fato ocorre no complexo e conflituoso campo de estudos de gênero e sexualidade. Ele é unificado como um tipo de fantasma, que serve para justificar o fato de que praticamente ninguém lê os textos produzidos pelo campo, ou mesmo considera seus argumentos. Na Suíça, fui abordada por uma mulher que disse que rezava por mim, e quando eu perguntei por que, ela explicou que gênero era “diabólico”, e que ela esperava que eu encontrasse redenção por minha responsabilidade em difundir o termo, ou a teoria, ou o fantasma. Quando lhe perguntei se ela havia lido meu trabalho, ela exclamou que jamais leria livro algum sobre gênero! O furor começou alguns anos atrás, quando o Pontifício Conselho para a Família, então dirigido por Joseph Ratzinger, alertou que teóricos de gênero estavam colocando a família em risco ao questionar a noção de que papéis sociais apropriadamente cristãos podiam ser derivados do sexo biológico. Era da natureza do sexo feminino realizar trabalho doméstico, e Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR... 223 do masculino, exercer atividades na vida pública. A integridade da família, entendida como cristã e natural, estava sendo ameaçada pela ideologia de gênero. Os argumentos utilizados eram marcadamente pré-feministas – o que talvez ajude a explicar por que a primeira objeção da Igreja Católica ao conceito de “gênero” foi considerada esdrúxula, ou mesmo risível, para feministas que, naquele momento, não anteciparam as implicações daquela oposição. Ratzinger externou sua preocupação na Conferência de Beijing sobre as Mulheres de 1995, e novamente em 2004, enquanto diretor do Pontifício Conselho para a Família, em uma Carta aos Bispos, onde destacou o potencial do “gênero” para destruir valores femininos importantes para a Igreja, assim como a distinção natural entre os dois sexos (Vatican, 2004). Enquanto Papa Bento XVI ele foi além, alegando, em 2012, que essas “ideologias” negavam a “dualidade pré-ordenada entre homem e mulher”, e portanto “a família” enquanto “realidade estabelecida pela criação.” Porque homens e mulheres foram criados por Deus, continuou ele, aqueles que buscam criar a si mesmos negam o poder criativo de Deus, e são movidos por crenças ateias. Em 2016, mesmo o Papa Francisco, que ocasionalmente apresenta visões progressistas, continuou na linha do seu antecessor: “Estamos vivendo um momento de aniquilação do homem como imagem de Deus”. Ele incluiu especificamente como uma das vias deste ataque a “[ideologia de] gênero”, e se mostrou claramente contrariado ao afirmar que “Hoje crianças – crianças! – são ensinadas na escola que todos podem escolher seu sexo ... Isso [sic] terrível!”. Ele então acenou positivamente para Bento XVI, alegando que “Deus criou homem e mulher; Deus criou o mundo de uma certa forma ... e nós estamos fazendo o oposto”. Essa perspectiva faz crer que os humanos teriam se apropriado do poder criativo de Deus. Papa Francisco foi ainda além, ao sugerir que proponentes do gênero seriam os mesmos que apoiam ou utilizam armas nucleares, e que seu alvo seria, em última instância, a própria criação. Isso sugere que, o que quer que seja o gênero, ele carrega enorme poder destrutivo nas mentes de seus opositores – com efeito, uma capacidade destrutiva terrível e inimaginável. É representado como uma força demoníaca de destruição, contraposta aos poderes criativos Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 224 Judith Butler de Deus. Essa é uma das razões pelas quais o gênero é entendido como um exercício de poderes demoníacos: uma “ideologia diabólica”. Talvez tenha sido o apoio papal que, em 2015 e 2016, encorajou bispos em todo o mundo a ampliar a campanha contra a ideologia de gênero em um projeto internacional, que atravessasse hemisférios, afetasse eleições na Colômbia, México e Costa Rica, e, mais recentemente, desempenhasse um papel importante na eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. Seu discurso de posse em janeiro deste ano incluiu um compromisso pela erradicação da “ideologia de gênero nas escolas”, jurando resistir à “submissão ideológica”. Uma vez eleito, tem buscado abolir a educação sexual nas escolas, substituindo-a por um currículo que reforce a ideia da diferença binária de gênero. Em outubro de 2018, a Hungria não apenas retirou estudos de gênero da lista de programas de mestrado credenciados, como forçou a Universidade Centro-Europeia, reconhecida por seu programa internacional em gênero, a mudar-se para Viena. Na França, uma batalha legal pelo casamento gay vencida em 2013 sofreu um contragolpe no ano seguinte. Um currículo proeminente na França chamado “ABC da igualdade” oferecia aos estudantes um modo de pensar a diferença entre sexo biológico e gênero cultural, e foi descontinuado após fortes acusações públicas de que a teoria de gênero estava sendo ensinada em escolas primárias. O Papa Francisco se encontrou com um dos organizadores do esforço pela eliminação do programa. Argentina, o país de origem do Papa, é o país com leis mais progressistas no campo da liberdade de gênero, ao permitir que qualquer um mude de gênero sem autorização médica. Em 2014, em reação à Lei da Identidade de Gênero aprovada em 2012, La ideología de género foi publicado por Jorge Scala e começou a circular entre comunidades cristãs, tanto católicas quanto evangélicas, na Argentina e, após traduzida, também no Brasil. Na região espanhola da Andaluzia, o partido ultraconservador Vox solicitou ao partido de centro-direita Ciudadanos que combatesse o que chamavam de “jihadismo de gênero”. Eles se opunham ao foco em homens que cometiam violência contra mulheres e pessoas trans, Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR... 225 convocando uma oposição à violência “intra-familiar” no lugar da violência de gênero, sob a alegação de que homens também podem ser vítimas. A plataforma da aliança anti-ideologia de gênero entre evangélicos e católicos de direita é clara: eles se opõem ao feminismo, aos direitos LGBTQI, especialmente ao casamento gay e ao direito médico e legal de pessoas trans, mães solteiras, pais e mães gays, entre outros. Minha sugestão é que, na medida em que as políticas econômicas neoliberais devastaram a vida laboral e a perspectiva de futuro de muitas pessoas que hoje enfrentam trabalho contingente e dívidas impagáveis, a virada contra o “gênero” emergiu como um modo de defender um sentido tradicional de posição e privilégio. Também traça uma linha entre público e privado, protegendo a família e seu privilégio patriarcal do mercado, onde a humilhação e a prescindibilidade tornaram-se a norma. O investimento tanto nacionalista quanto tradicionalista na proibição do casamento gay, de famílias gays e lésbicas e seus direitos a adoção, de direitos de trans e travestis, da adoção por parte de mães e pais solteiros e seu acesso a tecnologias reprodutivas, na desigualdade de gênero, assim como no próprio conceito de “gênero” é efeito de uma defesa, por vezes violenta, da família heteronormativa enquanto última barreira contra a devastação das forças de mercado. O movimento anti-ideologia de gênero cresceu na esteira da promulgação de leis sobre o casamento gay, alegando que a religião deveria ser o árbitro de arranjos maritais, e que a família heterossexual com seus papéis distintos, naturais e hierárquicos para mulheres e homens estaria sendo minada pela legislação “progressista”. Opor-se a, ou reverter, tendências inclusivas no direito de família, ou demandar novas leis proibindo formas de procriação ou adoção fora da família tradicional, assim como mudança do gênero designado ao nascer ou a afirmação de igualdade entre homens e mulheres – tudo trabalha para o mesmo fim. Embora seja normalmente presumido que avanços nos movimentos por direitos LGBTQ dependem da intensificação do secularismo, eu sugiro que o secularismo é ao menos parcialmente responsável pela intensificação da forma-família como foco de conflito legal e moral. Entretanto, para avançar esse argumento, devemos estabelecer (a) como a Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 226 Judith Butler família tem se tornado foco de investimentos nacionalistas e nativistas tão intensos; e (b) como o secularismo tem estruturado o campo deste debate, distribuindo a intensidade de seus investimentos em formas sexuais e de gênero naturais ou normativas. Talvez pareça um salto grande dos dilemas legais do divórcio copta para o movimento anti-ideologia de gênero. Lembremos, todavia, que os efeitos da secularização da forma-família têm, para Mahmood, um caráter global, atravessando o divisor entre Oriente e Ocidente. Se eles também atravessam o divisor entre Norte e Sul é outra questão, visto que os ideólogos do antigênero no Brasil e na América Latina tendem a alegar que “gênero” é uma importação dos Estados Unidos e do Norte global. Mahmood argumenta que os grandes conflitos entre muçulmanos e cristãos coptas nas últimas décadas têm, em larga medida, girado em torno de quando e como o divórcio torna-se possível. Diversos casos bem difundidos seguem a mesma linha: uma mulher copta desaparece ou deixa sua família, presume-se que ela tenha se convertido ao Islã, e que tal conversão tenha sido forçada. Quando homens ou mulheres convertem-se ao Islã para poderem se divorciar e casar novamente, sempre são levantadas questões sobre se eles ou elas o fizeram de forma voluntária. Visto que o divórcio está proibido no Cristianismo copta há mais de trinta anos, o único modo de alguns deixarem uma situação marital indesejada é mudar de religião, e assim recair sob uma jurisdição de família diferente: no caso da adjudicação contemporânea do divórcio, o Islã é mais liberal que a religião copta. A conversão ao Islã tornou-se uma forma de exercer uma opção sexual ou marital que seria de outro modo impossível. É significativo que, se um homem copta converte para o Islã, ele pode permanecer casado com sua esposa copta, mas uma mulher que converte para casar-se novamente terá ambos seus casamentos – o anterior e o prospectivo – anulados pelas autoridades copta e muçulmana (Mahmood, 2016, p. 113). Ela não pode utilizar a conversão para exercer uma nova opção sexual ou marital. Não obstante, essa proibição codifica uma fantasia recorrente de que nenhuma mulher poderia, ou iria, escolher se converter, e que qualquer conversão Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR... 227 que eventualmente ocorra seria portanto forçada. A mulher é entendida pelos representantes coptas como carente de desejo ou vontade sexual, sem preferências próprias de companheiros ou parceiros maritais, e simplesmente sujeita a manipulação e coerção por uma comunidade muçulmana ardilosa e nefasta. Com efeito, a proliferação de “estórias de abdução cotas”, em que mulheres coptas são recrutadas, sofrem lavagem cerebral e são fisicamente coagidas a converter ao Islã, é testemunho da noção de que as mulheres não iriam – não poderiam – exercer sua própria agência sexual ao abandonar uma religião que não lhes permite deixar o casamento ou casar-se novamente. Contra aqueles que veem conflitos entre coptas e muçulmanos como um antagonismo tribal arcaico, Mahmood deixa claro que foi o Estado secular que produziu tais conflitos. Estados seculares têm buscado relegar a religião à esfera privada. Até certo ponto, questões envolvendo moralidade, a forma da família e seus conflitos, desenvolvimento de gênero e educação sexual foram designadas para a esfera privada. Como efeito, cada vez que leis favorecendo diversidade de gênero, protegendo orientações sexuais ou expandindo as fronteiras da família, do casamento ou da adoção penetram na esfera pública, aparecem objeções religiosas. Essas objeções atacam temas específicos, mas também se contrapõem como um todo ao fato de essas questões estarem sendo definidas fora do domínio religioso. Sob o regime secular, esse domínio é considerado privado, separado da esfera pública e de suas leis universalistas, e controlado pela religião. Para Mahmood, os conflitos entre religiões frequentemente se dão em torno de questões como gênero, sexualidade, formas de família, adoção e divórcio precisamente porque o Estado secular relegou ou designou tais questões para a religião e moralidade privada. Estas nem sempre foram a marca das religiões, mas acabaram tornando-se como resultado dos poderes delimitadores do Estado secular. No Egito, por exemplo, onde o direito de família opera em paralelo à lei civil comum, o Islã é visto exclusivamente como jurisdição do direito de família religioso. A ideia de um direito de família religioso reestrutura o significado e o funcionamento da religião muçulmana, e é, na visão de Mahmood (2016, p. 115), uma “invenção moderna”. Em suas palavras, Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 228 Judith Butler o secularismo moderno associou perniciosamente questões religiosas, sexuais e domésticas quando a família se tornou o lugar central para a reprodução da moralidade e da identidade religiosas, exacerbando padrões preexistentes de hierarquia religiosa e de gênero (Mahmood, 2016, p. 115). Não apenas a religião ficou encarregada de regular a moralidade sexual, conflitos de família e significados de diferença sexual, como foi privada de qualquer participação no domínio público, incluindo na vida civil e na esfera da ética pública como um todo. Não havia lei separada na Shari’a antes do Estado secular estabelecer uma jurisdição religiosa sobre assuntos de família. Da mesma forma, não havia proibição copta do divórcio antes da emergência do direito de família copta, precisamente porque não havia direito de família até que os direitos público e privado fossem separados, e a religião, relegada a este último. A própria distinção entre privado e público emerge a partir dos poderes da autoridade secular de fazer e reforçar essa distinção. Do ponto de vista da autoridade propriamente religiosa, não há referência a essa genealogia dos poderes do Estado secular de designar e restringir sua ação à esfera privada, definida primariamente pela família e seu mandato moral de reproduzir sua própria estrutura enquanto uma forma social natural e normativa. Essa designação foi, em larga medida, aceita, assim como a tarefa de regular a vida sexual, os laços de intimidade, as condições de casamento e divórcio em um domínio próprio. A forma da família não é, em si, contingente, e nem as regras que governam casamento e divórcio, e que decidem quem tem o direito de se casar, se divorciar e se reproduzir. Não estou tão certa quanto Mahmood de que secularismo seja o nome para uma modalidade de poder que produz todos esses fenômenos. Minha impressão é que diversos poderes convergem neste ponto. Noto, por exemplo, que a distinção entre os domínios público e privado é uma característica central das sociedades capitalistas, assume uma forma específica sob o neoliberalismo, e que modos antigos e novos de produzir desigualdade de gênero têm vidas históricas desde a época clássica até o presente que ultrapassam ou Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR... 229 embaraçam a distinção entre o secular e o religioso. Não obstante, Mahmood é persuasiva ao argumentar que o secularismo assegura um domínio privado para a religião, e, ao fazê-lo, orquestra uma convergência significativa entre autoridade religiosa e política familiar, sexual e hierarquias de gênero. Ceder controle sobre questões envolvendo família, casamento e sexualidade é, para muitas autoridades religiosas na era secular, perder o único tipo de autoridade que ainda detêm. É possível vê-lo no movimento contra a chamada “ideologia de gênero”. As acusações feitas em nome de evangélicos e católicos de direita contra o conceito de gênero presumem que “sexo” seja uma categoria adequada para descrever as distinções naturais, dadas por Deus, entre homens e mulheres, que a hierarquia entre elas também deriva da natureza e da autoridade bíblica, que qualquer orientação sexual que não se conforme com o mandato da heterossexualidade dentro do casamento é uma afronta às leis naturais, e que qualquer um que assuma um gênero legal que desvie daquele designado ao nascer comete uma monstruosidade. É tentador alegar que o problema é precisamente a religião. Afinal, esses polemistas se fundamentam em textos religiosos, e se opõem a potenciais emancipatórios liberados pelo processo de secularização. Mas por outro lado, categorias como “sexo” raramente aparecem na Bíblia, e é possível selecionar passagens com um número razoável de referências ambíguas a afeição queer que trariam problemas para seus defensores contemporâneos.3 De fato, muitos dos argumentos utilizados por aqueles que se opõem ao gênero são enfaticamente modernos, orquestrados dentro de debates seculares, e movidos pela revolta reacionária contra o deslocamento da autoridade religiosa sobre o que eu chamaria de questões de gênero e sexualidade na sociedade civil – tanto suas leis quanto as formas de reconhecimento que se tornaram mais comuns nos últimos anos. A parte do argumento de Mahmood que pode ser transposta do modo mais produtivo para o atual cenário de ataques ao “gênero” por cristãos de direita tem a ver com a inversão da sequência temporal. É possível dizer, por 3 Ver, por exemplo, Case (2011, 2016), Dunning (2019) e Penner (2010). Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 230 Judith Butler exemplo, que a proibição do divórcio é a essência da religião copta, ou que a família está no coração do Islã – mas ambas as alegações só tornaram-se possíveis em períodos históricos que são distintivamente modernos e seculares. Em outras palavras, essas “essências” foram estabelecidas; elas não estavam já dadas, na história de cada uma dessas tradições religiosas. Elas não estão na origem dessas religiões, e, não obstante, do ponto de vista presente, são tratadas como se sempre estivessem. Nesse sentido, são instaladas retrospectivamente enquanto origens fictícias. Da mesma forma, a ideia de que o sexo determina o papel da pessoa na sociedade, na família e em arranjos sexuais dificilmente pode ser encontrada na tradição cristã. Toda a ideia do propósito “teleológico” do sexo manifestado em arranjos familiares e sociais específicos só se tornou possível uma vez concluída a sua redução ao “sexo biológico”. Afirmar que “no começo, havia o sexo” apaga toda genealogia dessa categoria na sexologia, assim como suas contestações na biologia, sociologia, neurociências, genética, e no Comitê Olímpico Internacional. Com efeito, o sexo natural foi retrospectivamente instalado enquanto um dado biológico, e a redução da vida corporificada aos “sexos” foi produzida através de processos históricos específicos dentro da modernidade. Uma origem torna-se um efeito plausível de um discurso que busca apagar a gênese daquele discurso para afirmar sua autoridade inconteste. A linguagem das orientações sexuais “não-naturais” é semelhante: não há histórico da noção de “orientação sexual” antes do século dezenove, e tampouco da formação de um sujeito entendido como tendo uma orientação desse tipo. O mesmo poderia ser dito da “família”, como já foi demonstrado por muitos historiadores e antropólogos. Mas talvez a crítica mais relevante venha sendo feita pela literatura feminista sobre neoliberalismo, em autoras como Melinda Cooper e Bethaney Moreton. De formas diferentes, ambas argumentam que a retirada do apoio estatal às famílias, às crianças dependentes e a serviços sociais deslocou a função de apoio básico para as famílias. Esta seria uma razão para a reabilitação ferrenha da família tradicional no exato momento em que sua estabilidade financeira tem sido gravemente comprometida. A autoridade Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR... 231 das igrejas evangélicas tem se insinuado não apenas para botar ordem moral na família – sem a qual a economia não poderia funcionar – mas para apoiar e aliviar a economia de livre mercado. Não posso ir mais a fundo aqui na complexa aliança entre a proliferação dos evangélicos e o suporte à economia do laissez faire em sua forma neoliberal, mas Moreton (2009) argumentou que mulheres brancas cristãs – a força motriz do movimento evangélico nos Estados Unidos – entendem com clareza que “valores familiares são um elemento indispensável à economia global de serviços, e não um obstáculo” (5). Com efeito, as igrejas evangélicas são parte da livre iniciativa – ou, como diriam alguns, da iniciativa cristã –, e essa convergência é frequentemente colocada como única alternativa ao socialismo ou comunismo, ou às elites acadêmicas. Daí a centralidade do Walmart como “multinacional populista”. Assim como valores familiares são indispensáveis à sustentação da economia de serviços, já que apenas o trabalho livre da família pode tornar minimamente suportável seus termos econômicos, redes de bem-estar baseados na fé são indispensáveis para a retração do Estado do seu papel de prestador de serviços sociais aos necessitados. Na medida em que o Estado se afasta de ideais básicos de democracia social, o domínio privado da família e da religião assume um papel cada vez mais central no funcionamento econômico e político da sociedade. A precariedade crescente dos trabalhadores sob o neoliberalismo, e a depreciação da renda doméstica que a acompanha, impõem à família a tarefa de encontrar suas próprias soluções. E a resposta à precariedade parece assumir a forma de uma renovação da autoridade patriarcal, tanto na família quanto na igreja. A ameaça passa então a ser identificada não com os processos de precarização neoliberais, mas com os movimentos culturais e sociais que buscam descentrar ou dissolver essa autoridade. Seria fácil sugerir que a oposição ao “gênero” é um deslocamento sintomático de uma ansiedade produzida pelo neoliberalismo. Pode ser que formas de patriarcalismo que buscam defender o poder patriarcal no interior da família e do Estado (assim como no mundo do trabalho) sejam uma resposta à “emasculação” do trabalhador. Mas há outra dimensão que é mais preocupante: um Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 232 Judith Butler exercício da liberdade que não é constrangido pela liberdade de mercado e sua dependência ideológica na noção de liberdade pessoal. Além disso, em formas neoliberais tradicionais, a liberdade de mercado não se estendia a questões de moralidade pessoal, embora avançasse múltiplas suposições sobre a importância da disciplina do trabalhador e da gestão do dia de trabalho. O propósito secular de relegar a família ao domínio da religião parece ter preenchido uma lacuna aberta pela auto-circunscrição neoliberal. A emergência de uma “liberdade” aparentemente secular dentro da esfera privada, tipificada pelo “gênero”, opera então conjuntamente com a forma de neoliberalismo que restringe a liberdade (assim como a democracia) à liberdade de mercado. Seria esperado que as autoridades cristãs se opusessem à saturação da racionalidade neoliberal na vida privada (Brown, 2015, p. 30-31), e identificassem movimentos por maior liberdade de expressão de gênero como manifestações de uma “liberdade pessoal” pressuposta tanto pelo liberalismo quanto pelo neoliberalismo; porém, algo diferente parece estar acontecendo. Movimentos sociais são mais que uma coleção de indivíduos, e o conceito de liberdade social avançado por esses movimentos aparece como uma intervenção colonizadora por parte do secularismo e do ateísmo. Curiosamente, a autoridade sobre a família alocada pelo secularismo à religião promove hoje uma oposição ao secularismo em nome daquela mesma autoridade. A liberdade à qual as autoridades cristãs se opõem é a da “construção social” e da “liberdade para criar” – uma prerrogativa que, aparentemente, pertence exclusivamente à divindade, e não a coletivos sociais que buscam transformar pressupostos sobre gênero, sexualidade e família. A ideologia de antigênero difunde fantasias públicas, no Brasil e em outros lugares, de que professores de educação sexual, guiados pelo “gênero”, estariam ensinando estudantes a se masturbar, ou a como se tornarem “homossexuais”. Partindo da perspectiva de Mahmood, podemos nos perguntar se essas acusações infundadas, como as estórias de sedução coptas, não seriam fantasmas políticos reveladores de um profundo receio de perder a jurisdição sobre tais questões. Num contexto em que a autoridade patriarcal na família e na igreja emerge como “resposta” aos efeitos precários da financeirização Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR... 233 global, o argumento de Mahmood assume uma especificidade histórica aguda. Os exemplos citados pretendem alertar a comunidade cristã para as incursões da cultura pública no domínio da família, isto é, no domínio próprio da Igreja. Se essa Igreja é evangélica ou católica importa menos que o fato de a Igreja ter aceitado sua circunscrição, pelos poderes liberais, à esfera privada, e, junto com ela, sua autoridade moral e jurisprudencial sobre questões de família, casamento, sexualidade e gênero (Scott, 2017, p. 3-15, 30-59, 156-184). A oposição aos direitos legais e movimentos sociais feministas e LGBTQI, à adoção fora do casamento ou ao acesso a tecnologias reprodutivas independente do status marital, baseia-se numa forte aversão aos novos movimentos sociais e culturais que têm buscado reconhecimento, mas também à incursão desses movimentos em seus domínios. Tanto o trabalho não-pago da mulher no núcleo doméstico quanto a garantia da reprodução de filhos são questionados por movimentos sociais que demandam igualdade para o trabalho da mulher, e que não presumem o tipo de arranjo sexual de que os filhos farão parte. Entretanto, a autoridade sobre o domínio da família foi circunscrita precisamente pelos poderes seculares que buscaram, inicialmente, restringir as reivindicações universais de igualdade e liberdade a sujeitos de direitos homens, brancos e proprietários. Ao mesmo tempo, permitiram que desigualdades e constrangimentos persistissem como prerrogativa da esfera privada – uma esfera de prerrogativas heteronormativas, patriarcais e racistas. A mesma divisão secular que delimitou a esfera de direitos possíveis enquanto esfera pública permitiu a preservação e reprodução de desigualdades radicais na esfera privada – desigualdades estas que a religião agora perpetua em nome de uma lei natural. Deste modo, a defesa da família enquanto província da religião busca afastar ou abafar críticas de injustiça econômica e restrição de liberdades sociais produzidas por perspectivas feministas e LGBTQI. O fato de o secularismo ter buscado construir suas noções de direitos públicos alocando a família na esfera da religião não apenas manteve as mulheres em condições de desigualdade ou destituição econômica, constrangidas dentro de casamentos heteronormativos, como também estabeleceu a religião como Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019 234 Judith Butler autoridade punitiva em detrimento de muitas outras possibilidades culturais e sociais – incluindo aquelas compatíveis com um socialismo democrático em que lutas LGBTQI não pareçam “secundárias”. A oposição à “ideologia” de gênero teme especialmente as expressões de liberdade e igualdade social que comprometeriam o patriarcalismo e o controle que garante à religião seu último bastião de poder em regimes seculares. A resposta adequada seria aliar a crítica do secularismo a uma visão radical de liberdade e igualdade social, e nós então veríamos a religião assumir relações diferentes com o “gênero” e com os movimentos sociais para os quais ela oferece um atalho no discurso contemporâneo. REFERÊNCIAS BROWN, Wendy. Undoing the Demos, Neoliberalism’s Stealth Revolution. Cambridge, MA: Zone Books, 2015. CASE, Mary Anne. After Gender the Destruction of Man? The Vatican’s Nightmare Vision of the “Gender Agenda” for the Law. Pace Law Review, New York, v. 31, n. 3, p. 802-817, 2011. CASE, Mary Anne. The Role of the Popes in the Invention of Complementarity and the Vatican’s Anathematization of Gender. Chicago: University of Chicago, 2016. (Public Law & Legal Theory Working Papers, 565). DUNNING, Benjamin (org.). The Oxford Handbook on New Testament, Gender, and Sexuality. Oxford: Oxford University Press, 2019. HALLEY, Janet; RITTICH, Kerry. 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