DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.100023
O TEMPO DA CRÍTICA
Eduardo Dullo1
Resumo: O presente comentário ao texto de Saba Mahmood visa trazer para a
discussão a proposta teórica da autora (e também de Talal Asad) que dá sustentação
para a formulação da crítica antropológica. Para tanto, tratarei sua abordagem
antropológica da secularidade a partir de dois pares de conceitos: tradição e
sensibilidade, e tradução e impasse/incomensurabilidade. Terminarei apontando
como a proposta teórica de Mahmood (em sua formulação crítica) está em linha
de continuidade com a tradição antropológica, e que a sua contemporaneidade
deve-se a tensionar as sensibilidade atuais.
Palavras-chave: Saba Mahmood; Talal Asad; Teoria Antropológica; Crítica; Secular.
CRITIQUE’S TIME
Abstract: This commentary to Saba Mahmood’s text aims to discuss how the author’s
(and Talal Asad’s) theoretical position offer a basis for a properly anthropological
critique. To accomplish this goal I highlight the two pair of concepts used in analysing
secularity: tradition and sensibility, and translation and incommensurability/impasse.
The conclusion will suggest that Mahmood’s theoretical proposal (in its critical
aspect) is both a continuity of anthropological tradition and an innovation of it,
this last aspect due to the tensions provoked in current sensibilities.
Keywords: Saba Mahmood; Talal Asad; Anthropological Theory; Critique; Secular.
A nossa capacidade de pensar fora deste conjunto de limitações requer necessariamente o trabalho de crítica, um trabalho que não se assenta nas suas
pretensões putativas de superioridade moral ou epistemológica, mas na sua
1
Professor do Departamento de Antropologia e do PPGAS da UFRGS, Brasil. Editor da
revista Debates do NER. E-mail: eduardo.dullo@ufrgs.br.
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capacidade de reconhecer e paroquializar seus próprios compromissos afetivos
que contribuem para o problema de várias formas. (Mahmood, neste volume).
O artigo de Saba Mahmood, publicado inicialmente no volume 35,
número 4, da Critical Inquiry de 2009 promoveu uma reflexão sobre o debate
e o embate que se seguiu à publicação das ilustrações em revistas dinamarquesas. Esta reflexão afetou muitos campos e aspectos, como os demais
comentários (sobre Islã, mulheres, raça, injúrias e linguagem) publicados
neste número da Debates do NER permitem entrever, mas não apenas estes.
Desejo neste texto tecer alguns comentários sobre uma questão que não foi
objeto de escrutínio público e que é bastante relevante tanto para a Teoria
Antropológica quanto para a relação com que os intelectuais e acadêmicos se
colocam na cena pública, isto é, a proposta da autora de revisitar a discussão
acerca da crítica e atrelar esta com a tradição antropológica. Ao discutir em
seu artigo a crítica não mais no singular, mas no plural, Mahmood nos leva
a considerar que existem distintas práticas críticas, cada uma possivelmente
atrelada a uma tradição e a um estilo de pensamento. Qual seriam, portanto,
as práticas críticas próprias da tradição antropológica? E de que maneira o
artigo de Mahmood nos permite repensar o que é a antropologia contemporânea se ela se quiser crítica?
Este foco na crítica foi a motivação para um evento (e sua publicação em
livro, em 2009) posterior à publicação do artigo aqui finamente traduzido.
O volume Is critique secular? Blasphemy, injury and free speech é resultado
de um evento organizado por Wendy Brown com a participação de duas
falas: o artigo de Mahmood e o artigo de Talal Asad Free speech, blasphemy,
and secular criticism; ao que se seguiu um diálogo por meio da resposta de
Judith Butler, The sensibility of critique: response to Asad and Mahmood e da
tréplica de Asad e Mahmood. Podemos dizer que, juntamente com o único
artigo de Mahmood já traduzido para o português (pela revista Etnográfica em 2006), em ambos o diálogo com Butler se faz presente e a própria
influência da posição antropológica de Asad e Mahmood em Butler é visível
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em inúmeros textos, incluindo o artigo inédito de Butler que publicamos
neste presente volume da revista Debates do NER.
O que faz Mahmood neste artigo? Com quais materiais e dados ela
trabalha para produzir uma reflexão antropológica? O que a torna imersa
em uma tradição antropológica consolidada e, ao mesmo tempo, inovadora
e contemporânea?
Para além da merecida homenagem que prestamos neste número da
Revista, a tradução deste artigo de Mahmood se deve a sua proximidade com
temas e tensões presentes no cenário brasileiro atual. Isto ocorre menos pelo
seu foco no Islã e na dinâmica migratória (ainda que a vinda de imigrantes
muçulmanos africanos para o Brasil tenha aumentado significativamente
nos últimos tempos) e mais ao dedicar-se a repensar antropologicamente o
mundo secular — na continuidade do trabalho de Asad (2003). Para tanto,
a autora recorta um acontecimento específico de intensa controvérsia: a
publicação de ilustrações que representam o profeta Maomé de uma maneira
que gera reações negativas por parte dos muçulmanos. Temos acompanhado,
no Brasil, uma série de eventos que são aproximáveis desta problemática:
sejam eles a censura de exposições de arte e de vídeos em canais no YouTube,
sejam eles disputas políticas entre religiosos cristãos e posições consideradas
não-religiosas ou próprias da laicidade do Estado brasileiro. O crescimento
dos evangélicos, na sociedade e nos cargos representativos no Estado, tem
gerado situações de embate cada vez mais frequentes e visivelmente públicos.
Nessa direção, pesquisadores brasileiros têm se voltado para estes eventos a
partir, sobretudo, do conceito de controvérsia (Giumbelli, 2014; Montero,
2015).
No entanto, a proposta de Mahmood, diferentemente das brasileiras,
não formula um conceito analítico de controvérsia. Montero (2015) expõe
em sua introdução à coletânea (resultado de um projeto coletivo de pesquisa
sobre controvérsias públicas), e em meu capítulo (Dullo, 2015) também
enfatizo a distinção entre (1) o acontecimento de discordância que gera um
embate e (2) a tarefa de pesquisa e análise, a qual envolve uma reflexão sobre
quais dados precisam ser levantados e as maneiras pelas quais as posições
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são tratadas. Um dos aspectos cruciais nesta diferença analítica, influenciada
pela abordagem pragmatista francesa e, sobretudo, por trabalhos de Luc
Boltanski, é o cuidado com a posição político-moral do pesquisador ao lidar
com um acontecimento que envolve a disputa política de sentidos e significados. Como escrever, falar, em suma, tornar pública a reflexão sem que
isto seja uma simplória tomada de posição naquela disputa, mascarada de
reflexão acadêmica? Como não se tornar uma simples parte nas controvérsias,
dizendo que o lado A ou B está errado, mas produzir uma reflexão que nos
permita compreender a situação? Não se trata de sugerir uma impossível
(e/ou indesejável) neutralidade, mas de valorizar o trabalho intelectual e
acadêmico da pesquisa e da análise, a partir da qual posições embasadas
poderão ser tomadas por qualquer um dos muitos lados das disputas.
Já defendi anteriormente (Dullo, 2016) que determinados recortes de
pesquisa são mais interessantes do que outros, pois nos obrigam a repensar
nossas práticas intelectuais e os efeitos políticos delas derivados. A análise de
controvérsias, como foi feita pelos autores acima mencionados, nos convida
a isto pelo simples fato de ser a análise de uma relação. Não se trata de um
recorte no qual o pesquisador vá descrever um determinado ponto de vista,
demonstrando compreensivamente, de perto e de dentro, o que pensam
aquelas pessoas. Por melhor que este trabalho possa ser feito, tal recorte não
tem como foco a relação de dissenso (variando em seu grau de conflito) entre
múltiplos pontos de vista — incluindo aí o do pesquisador, que aparece
como sujeito num plano de imanência e não como um observador externo
e transcendente. Por isso sugeri (Dullo, 2016) que o trabalho da crítica é
com frequência dirigido àqueles sujeitos sociais com os quais o pesquisador
está em discordância política e/ou moral. O pesquisador critica, portanto,
aqueles que não é epistemologicamente capaz de levar a sério. Em contrapartida, tornou-se uma dificuldade para a Antropologia contemporânea
assumir uma postura crítica com aqueles que ela busca “levar a sério”. Eis
uma das muitas questões que o texto de Mahmood nos convida a pensar:
qual a posição de uma antropologia que se pretende crítica?
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ANTROPOLOGIA DO SECULAR/ISMO
Ao deslocar o eixo de uma alteridade radical para uma antropologia
at home, temos visto nas últimas três décadas um aumento significativo de
pesquisas que se voltam para aspectos considerados “centrais” da experiência
e forma de vida dos países Euro-americanos. Isto inclui, por exemplo, o
Estado e o mundo jurídico; a ciência e a tecnologia; e por fim, o secular. Este
último aspecto é concebido por Asad como uma episteme e, portanto, como
englobante aos exemplos anteriores do Direito e da Ciência. Ao distinguir
conceitualmente secular, secularismo e secularidade (ver Dullo, 2012), os
domínios da pesquisa são também mais ou menos elásticos. Uma antropologia do secularismo volta-se, prioritariamente, para as maneiras pelas quais
são atualizados os projetos e práticas político-ideológicas de sustentação da
secularidade e da episteme secular, ao passo que uma pesquisa sobre esta
episteme pode ocorrer tendo como objeto a Ciência ou o Direito ao travar
relações com seu Outro constitutivo, a Religião. A proposta de Mahmood é,
assim, caudatária da proposta de Asad ao não tomar nenhum destes termos
como previamente e substancialmente determinados: são conceitos relacionais e produzidos discursiva e historicamente a partir de relações de poder
e efeitos de verdade. Para investigar o secular/ismo, sugeriu Asad (2003),
devemos proceder por desvios e de maneiras indiretas, isto é, fazendo uso
das alteridades que circundam esta centralidade da experiência Euro-americana at home. A dificuldade de encarar diretamente esta centralidade fica
evidente na pergunta do título do artigo de Charles Hirschkind (2017):
Existe um corpo secular? O que faz Mahmood, portanto, é lançar mão de
dois pares de conceitos que a permitem estruturar a argumentação. Por um
lado, os conceitos de tradição e sensibilidade. Por outro, os de tradução e
incomensurabilidade/impasse.
Em um texto publicado em 2015 na mesma Critical Inquiry (posterior ao
texto de Mahmood, portanto), Talal Asad (2017) revisou seu entendimento
e abordagem de alguns conceitos, entre eles o de tradição. Proveniente da
tradição britânica e marcado por um diálogo com autores franceses como
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Dumont, Bourdieu e Foucault, Asad não faz uso do conceito antropológico
de Cultura. Diferentemente de Bourdieu, que formulou detalhadamente
o que entendia por habitus, campo e capital (entre outros conceitos), Asad
apenas tardiamente apresentou a maneira pela qual fez sua abordagem.
Entre seus alunos e colegas, entretanto, estas ideias circulavam em aulas e
diálogos, razão pela qual tanto o texto de Hirschkind acima citado quanto
os de Mahmood, são caudatários dessa abordagem. Partindo de um diálogo
com MacIntyre, Asad2 afirma que utilizou o conceito de duas maneiras em
seus trabalhos:
[P]rimeiramente, como um espaço teórico para levantar questões sobre a
autoridade, o tempo, o uso da linguagem e a corporização; e, em segundo
lugar, como um arranjo empírico no qual a materialidade e a discursividade
estão conectadas por meio das particularidades da vida quotidiana. (Asad,
2017, p. 347-348).
O central para Asad é, assim como na proposta de Bourdieu, rejeitar as
dualidades que estruturaram o conhecimento social até meados do século
XX, isto é, entre representações e práticas, entre subjetivo e objetivo, entre
reprodução e mudança. Assim, o conceito de “tradição enfatiza a aprendizagem crítica corporizada, ao invés da teorização abstrata”, de forma que
ele utiliza o conceito “para falar tanto do uso da linguagem herdada quanto
da aquisição de capacidades incorporadas pela repetição” (Asad, 2017, p. 348).
Esta ênfase em uma aprendizagem crítica corporizada difere de muitas abordagens sobre cultura na medida em que tanto o corpo quanto a crítica são
percebidas como constitutivas dessas experiências de vir a ser. Como consequência, ninguém está enclausurado, fechado ou limitado (bounded) em
sua Cultura, mas as pessoas podem aprender, participar, criticar, rejeitar e
deixar uma tradição (inclusive a antropológica). Como ele reforça, “existem
diferentes formas de estar articulado à e desarticulado da tradição”, pois “o
2
Este comentário é propositalmente breve, tendo em vista a redação em curso de um
texto específico sobre Talal Asad.
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que é aprendido não é uma doutrina (regras), mas um modo de ser” (Asad,
2017, p. 349). Tanto para Asad quanto para Hirschkind e Mahmood, o
conceito de tradição enceta a preocupação com o sensório e com um modo
de ser, isto é, uma forma de vida corpórea, reunida na ideia de sensibilidade.
Porém, a sensibilidade adquire contornos específicos em cada um deles e,
no caso de Mahmood, vemos no artigo aqui traduzido como esta ligação é
fortemente estabelecida com a linguagem por meio da abordagem da ideologia linguística (ver texto de Daniel Silva, neste volume). A sensibilidade é
não apenas um modo de ser individual, mas uma participação na tradição,
marcando um processo coletivo no qual as pessoas percebem o mundo de
uma determinada maneira. Não se trata de uma (des)conexão entre símbolos,
ícones, corpos e suas subjetividades, mas da observação de que cada tradição
não apenas (des)vincula de uma forma diferente cada uma destas noções,
como neste mesmo processo pode atrelar sentidos completamente distintos a
cada uma delas. É por isto que Asad propõe, tal como faz Mahmood (2009,
neste volume) uma abordagem que faça o contraste e a comparação de tais
feixes de relações internos a cada tradição, partindo ao mesmo tempo (e
com isso rejeitando a dualidade) da sensibilidade tanto no nível sensório
corporal (como em sua análise sobre a tortura e a crueldade, Asad, 2011)
quanto no nível da linguagem escrita e formulada em leis, códigos e livros
(sobretudo os sagrados para cada tradição como o Al Corão, os Padres da
Igreja [Santo Agostinho], e decisões jurídicas).
Este contraste e comparação de duas (ou mais) tradições a partir do seu
feixe de relações e da rede de conceitos na qual se estruturam permitiu que
tanto Asad quanto Mahmood opusessem a tradição liberal secular à tradição
islâmica. A controvérsia que Mahmood analisa neste artigo, portanto, é
resultado deste entrar em relação das duas tradições em suas diferenças constitutivas — o que, por sua vez, traz à tona o dissenso e o conflito estabelecido
por este mal entendido entre as sensibilidades próprias de cada tradição. A
questão de fundo é a mesma que estruturou a tradição britânica da qual Asad
(ver 1986) é fruto: a da tradução entre diferentes modos de pensar (modes of
thought). Para Asad e Mahmood, entretanto, esta tradução ocorre entre modos
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de pensar e de sentir, ou melhor na intraduzibilidade imediata das tradições e
suas sensibilidades. Esta dificuldade de tradução ocorre aqui não mais entre um
antropólogo britânico e os nativos das colônias, mas numa relação triangular:
entre antropólogos não-europeus (ambos ligados ao Paquistão), cidadãos
de democracias liberais seculares euro-americanas e a tradição islâmica (seja
interna a estes países, seja na figura de imigrantes). O contraponto entre a
tradição liberal secular e a tradição islâmica enceta a incomensurabilidade da
tradução. O que faz a pesquisadora é compreender que as partes do conflito
não se compreendem3 e traçar as razões para este impasse.
O TEMPO DA CRÍTICA
O artigo de Mahmood apresenta uma potente digressão sobre a crítica
no espaço destinado às Conclusões. Quero chamar atenção para este fato
por considerar que suas conclusões são justamente sobre a difícil tarefa da
crítica por parte do pesquisador que encara um impasse ou uma situação de
incomensurabilidade na tradução entre diferentes sensibilidades e tradições.
Considero, também, que suas conclusões chamam atenção para uma multiplicação da crítica — não mais singular, restrita à tradição do Esclarecimento
moderno europeu, mas abrindo para a possibilidade de pensarmos distintas
práticas críticas, internas à cada tradição e condizente com distintos estilos
de pensamento.
Koselleck (1999) já havia feito a história do desenvolvimento do conceito
de crítica na modernidade européia apontando para como esta “arte de julgar”
consistiu desde o início em “levar a cabo uma distinção” (p. 93). A trajetória
deste conceito é marcada pela autoconfiança da “razão” na busca pela verdade
bem como pela sua suposta condição apolítica, na qual coloca-se acima dos
partidos. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, mostra-nos Koselleck (1999),
3
A proximidade desta problemática com o trabalho de Sahlins (1990) e Viveiros de
Castro (2019) não é mera coincidência. Infelizmente não será possível explorar aqui
importantes diferenças entre eles.
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o desenvolvimento deste sentido de crítica se fez por meio de uma visão de
mundo dualista, que opunha inicialmente razão e revelação e, posteriormente, ampliou-se para Estado e Igreja e política e religião, de tal modo que
religião e revelação não tem nada em comum com a razão. Desse modo, Bayle
traçou uma delimitação que facilitou à época seguinte submeter a religião e a
revelação à crítica e, em seguinte, passar à crítica da existência das igrejas em
geral. Por um lado, a atividade judicativa da razão repousava nessa delimitação
da religião; por outro, traçava essa distinção para criticar a própria religião.
(Koselleck, 1999, p. 98).
Separada entre um julgamento no interior do sujeito, no âmbito privado,
em Bayle a crítica ainda delimitava um campo próprio, apolítico, o da moral,
contrapondo-se à religião. É assim que Mahmood nos leva a questionar:
Na medida em que a tradição da teoria crítica está impregnada de uma
suspeita, se não de rejeição, dos compromissos metafísicos e epistemológicos
da religião, cabe-nos pensar “criticamente” sobre esta rejeição: como é que a
epistemologia e a crítica estão relacionadas dentro desta tradição? Será que
tradições distintas de crítica requerem uma epistemologia particular e um
pressuposto ontológico do sujeito? (Mahmood, neste volume).
Em compensação, neste momento inicial a crítica ainda se submetia
ao Estado. Esta posição mudou com os Iluministas, e, em particular, com
Voltaire, quando ela se amplia para tornar-se uma crítica política inclusive
ao Estado, ainda que se pretenda acima das disputas partidárias pela sua
característica crucial de busca da verdade:
[O]s prós e contras da crítica, que conduzia um processo apolítico no seio da
república das letras, tornaram-se, efetivamente, um processo entre o reino da
crítica e a autoridade do Estado. Neste processo, os críticos eram ao mesmo
tempo os acusadores, a mais alta instância de julgamento e uma das partes.
(Koselleck, 1999, p. 101).
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O trabalho de Mahmood, na medida em que explicita que o conflito não
ocorre entre uma sociedade (Euro-americana) que detém a verdade racional
(secular) e uma população religiosa (muçulmana) que não compreende a
liberdade de expressão e o caráter de sátira contida nas ilustrações, mas
reformula criticamente esta controvérsia como a falta de compreensão mútua
entre duas tradições com ideologias linguísticas próprias, ela paroquializa a
tradição liberal, moderna e secular Euro-americana dominante como uma
tradição de crítica dentre outras, expondo suas contradições internas. Por
exemplo, a própria aporia de uma crítica política que se pretende apolítica
e reivindica para si mesma o papel de acusadora, juíza e parte do processo
político. O mais curioso, podemos dizer, é que Mahmood faz este movimento reivindicando para a Antropologia (e para si) uma atitude crítica. É
importante enfatizar o uma atitude crítica para explicitar que a Antropologia pretende-se em um lugar distinto da tradição crítica Euro-americana
traçada por Koselleck. Porém, antes de chegarmos neste ponto, é necessário
compreender a proposta de uma atitude crítica e como ela pode ser concebida como uma prática da virtude, isto é, como parte das práticas éticas de
cultivo de si (Mahmood, neste volume).
Este movimento, sugiro, é caudatário da proposta de Foucault sobre “o
que é a crítica?”, na qual ele define a crítica como uma atitude que estabelece
“uma certa relação com o que existe, com o que se conhece, com o que se faz,
uma relação para com a sociedade, para com a cultura, para com os outros
também”, de maneira que “a crítica existe somente em relação a outra coisa
que ela mesma: é instrumento, meio para um devir ou uma verdade que ela
não saberá nem será, ela é um olhar sobre um domínio que quer policiar e
não é capaz de fazer a lei” (Foucault, 2000, p. 170). Assim, a atitude crítica
é uma relação que se coloca como instrumento para policiar um domínio no
qual não se pode fazer a Lei, isto é, o domínio das normas (e, por conseguinte,
da moral, como havia pontuado Koselleck). Não é por menos que o texto
de Mahmood dedica-se tanto às injúrias morais quanto ao jurídico-legal,
pois permite demonstrar como as relações de poder se jogam em ambos os
domínios e entre os domínios, seja como crítica racional seja como legalidade
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democrática da maioria (daí suas incursões sobre a questão da maioria e
minoria). Parte do exercício de poder se faz justamente no silenciamento
desta dimensão das normas em detrimento da Lei como o único domínio a
ser observado, ou seja, o exercício de poder da tradição dominante consiste,
também, em silenciar as críticas que são levantadas contra ele:
Para qualquer pessoa interessada em promover uma melhor compreensão
no espectro de diferença religiosa, seria importante recorrer não à lei, mas à
textura espessa e às tradições de normas éticas e intersubjetivas que proveem
o substrato para os argumentos legais (consagrados na linguagem da ordem
pública). Neste ensaio, sugeri várias razões pelas quais a ideia de injúria
moral que analisei permaneceu invisível e inaudível no debate público sobre
os cartuns dinamarqueses, centrais entre elas a incapacidade de tradução
através de diferentes normas semióticas e éticas [...]. Em última análise, eu
diria que o futuro da minoria muçulmana na Europa depende não tanto de
como a lei pode ser expandida para acomodar suas preocupações, mas de uma
transformação mais ampla nas sensibilidades culturais e éticas da maioria da
população judaico-cristã, que sustentam a lei. (Mahmood, neste volume).
Ao pontuar que a “ancoragem histórica” da crítica Europeia se fez
“historicamente bíblica”, “essencialmente jurídica” e na crítica à autoridade
em nome da verdade, Foucault afirma que “o foco da crítica é essencialmente
o grupo de relações que amarram um ao outro, ou uns aos outros, o poder,
a verdade e o sujeito” (Foucault, 2000, p. 173). O que fez Mahmood em
seu artigo a não ser questionar as limitações que a tradição secular liberal
Euro-americana impôs a este “grupo de relações”?
Reconhecendo a historicidade deste grupo de relações e sua particularidade por meio do contraste com a tradição islâmica, Mahmood fez, também,
uma demonstração da falsa oposição entre assimilação e marginalização
dos muçulmanos em sociedades europeias como as únicas alternativas existentes. Estruturar o campo de possíveis do sujeito é uma das definições que
Foucault (1995) ofereceu para as relações de poder. É crucial para Foucault
(e, penso, para Mahmood) que a crítica seja o olhar relacional sobre um
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outro (que tem a capacidade de fazer aquela Lei), de maneira que a relação
de poder se faz presente, por este lado, como a “arte da não-servidão voluntária, da indocilidade refletida” (Foucault, 2000, p. 172), isto é, como um
contraponto histórico (interno do Esclarecimento europeu) ao processo
de governamentalização da vida. Assim, a crítica aparece como a atitude
daquele que afirma querer “não ser governado dessa forma e a esse preço”
(Foucault, 2000, p. 172), seja essa a atitude das reações muçulmanas a partir
de outro grupo de relações entre o poder a verdade e o sujeito, seja a atitude
da antropóloga que se recusa a aceitar as limitações e opções colocadas para
os muçulmanos (assimilação ou marginalização), demonstrando a ausência
no debate público “[d]a questão da traduzibilidade de práticas e normas
através de diferenças semióticas e éticas” (Mahmood, neste volume). É hora
de retomarmos o trecho utilizado como epígrafe:
A nossa capacidade de pensar fora deste conjunto de limitações requer necessariamente o trabalho de crítica, um trabalho que não se assenta nas suas
pretensões putativas de superioridade moral ou epistemológica, mas na sua
capacidade de reconhecer e paroquializar seus próprios compromissos afetivos
que contribuem para o problema de várias formas. (Mahmood, neste volume).
Mahmood procede um ataque em duas frentes complementares: por
um lado, ela questiona o “não-pensamento em nome do normativo” (Butler,
2015); por outro lado, ela não assume a posição crítica em sua aporia de
apolítica que julga politicamente os demais. A crítica que Mahmood reivindica é própria de uma terceira tradição, a tradição antropológica, sobretudo
em sua vertente pós-colonial, objetivando questionar a universalidade dos
pressupostos epistemológicos Ocidentais e paroquializar seus compromissos
afetivos. O primeiro ataque sugere que “para aqueles de nós interessados em
outras formas de compreender o problema, talvez seja necessário repensar as
estruturas avaliativas envolvidas em tais impasses” (Mahmood, neste volume),
ou seja, cabe à análise perceber que “o enquadramento binário pressupõe
saber tudo o que se precisa saber antes de qualquer investigação efetiva sobre
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essa realidade cultural complexa” (Butler, 2015, p. 206). A atitude crítica
entendida como prática ética do cultivo de si, ou, como colocou Foucault,
é uma virtude do pensamento e da recusa de ser governado por enquadramentos previamente estabelecidos sem que o sujeito exerça o imperativo
de ousar conhecer. Manter-se sob este governo é,
pois, de uma forma de não pensamento, ratificada por um modelo restritivamente normativo, um modelo que necessita de um mapa de realidade capaz
de assegurar um julgamento mesmo que esse mapa seja evidentemente falso.
Na verdade, é uma forma de julgamento que falsifica o mundo com o propósito de reforçar o próprio julgamento moral como sinal de certo privilégio e
de certa ‘perspicácia’ culturais, uma maneira de manter as hordas a distância.
(Butler, 2015, p. 206-207).
O segundo ataque segue desse colocar-se em relação distanciada com
o enquadramento normativo, de olhar ao mesmo tempo de dentro (para
compreender) e de fora (para situá-lo historicamente). É ao colocar-se nesta
relação que reside a atitude crítica, mas a particularidade a ser ressaltada
aqui é como a tradição antropológica nos permite fazer tal movimento.
Mencionei no início que Mahmood (e outros, no Brasil) tem focado nas
controvérsias envolvendo religião e pressupostos seculares. Este foco tem
o mérito de evidenciar a relação entre sujeitos distintos, e o conflito e/ou
desentendimento de seus pressupostos. Porém, quem faz isso é um terceiro,
que também se coloca em relação. A antropóloga, em sua atitude crítica, é
aquela que se coloca propositadamente numa relação de exterioridade com
ambos, ou melhor, coloca-se em relação com a relação estabelecida entre
ambos. Sua empatia e sua crítica é direcionada às duas tradições, suspendendo
temporariamente a ação política com o objetivo de, primeiro, compreender.
É a tradição antropológica da tradução entre diferentes sujeitos que
reaparece aqui transformada: não mais o antropólogo branco euro-americano
secular observando o nativo religioso e/ou mágico das colônias e traduzindo-o para seus pares; é agora uma antropóloga que explicita o impasse e a
incomensurabilidade que dificulta a tradução entre o sujeito secular liberal
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e o sujeito religioso muçulmano, uma antropologia que é eminentemente
comparativa: ela compara “conceitos (representações) entranhados em sociedades diferencialmente localizadas no tempo e no espaço” (Asad, 2003, p. 17,
tradução nossa) ou, quem sabe, compara diferentes ontologias, explicitando
o grupo de relações entre o sujeito, a verdade e o poder. É por isso que o
central no trecho de Asad é sua continuação: “O importante nesta análise
comparativa não é sua origem (ocidental ou não ocidental), mas as formas
de vida que os articulam e os poderes que são permitidos ou impedidos por
eles.” (Asad, 2003, p. 17, tradução nossa). Se, como colocou Viveiros de
Castro (2019, p. 250, grifo do autor), “[c]ontrolar esta comparação tradutiva
entre antropologias é precisamente no que consiste a arte da antropologia”,
o artigo de Mahmood é, ao mesmo tempo, clássico e inovador desta arte
da antropologia.
O último parágrafo de seu texto, por fim, remete tanto para uma defesa
da vida intelectual universitária (que se faz cada vez mais necessária no nosso
momento histórico) quanto para um alargamento disciplinar (veja, por
exemplo, Robbins, 2006) e de diálogo entre tradições (por exemplo, Furani,
2019). Infelizmente ela não estará por aqui para continuar este caminho.
Cabe a nós pensarmos nas rotas e nas maneiras que desenvolveremos de
cultivar esta virtude.
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Recebido em: 29/10/2019
Aprovado em: 29/10/2019
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DOSSIÊ TEMÁTICO