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Página |1 Direitos dos Animais Carlos Naconecy, Filósofo, Oxford Centre for Animal Ethics ____________________________________________________________ Publicado em “Dicionário de Cultura de Paz”, Editora CRV: Curitiba, 2021 ____________________________________________________________ INTRODUÇÃO A questão animal é uma das grandes questões éticas do momento. Possivelmente nenhuma outra se compare a ela em magnitude e urgência. A causa animal se distingue de outras agendas humanitárias e pautas pacifistas por aspectos cruciais: as vítimas são completamente vulneráveis e incapazes de falar para se defender da insensibilidade e da ganância humana. Enquanto que mulheres acusam o sexismo e os negros denunciam o racismo, a causa animal depende da voz de seres humanos, que não irão se beneficiar diretamente dela. Além disso, essas vítimas silenciosas são mortas aos bilhões diariamente. Em um sentido, a expressão “direitos dos animais” se refere ao movimento de libertação/defesa dos animais frente ao mal provocado pelas mãos humanas.1 Tal movimento abriga duas correntes, a saber, a que pleiteia (1) a abolição da crueldade no trato dos animais e (2) a abolição do uso de animais como mero recurso humano. Em outro sentido, a expressão se refere à reflexão sobre a ética do tratamento dos animais por parte dos humanos – na forma reduzida, “ética animal”. Tal reflexão (que não necessariamente pressupõe uma matriz filosófica deontológica2) gravita em torno de um problema ainda aberto e vivo para a Filosofia. 1 Para fins da presente exposição, não é crucial a questão demarcatória das propriedades moralmente relevantes ao longo da escala zoológica (e.g., autoconsciência, consciência ou senciência), ou seja, quais espécies de animais satisfazem exatamente as condições para receber proteção moral. Assim, onde aqui se lê “animais”, entenda-se “todos, muitos ou alguns animais”. 2 Nem todos os princípios morais precisam ser justificados por direitos morais: a teoria de direitos é apenas uma perspectiva dentre outras no cardápio normativo da defesa animal. O debate filosófico sobre se os animais têm direitos morais e, caso tenham, sobre os fundamentos de tais direitos tem uma extensão e profundidade tais que extrapolariam o espaço aqui disponível. De qualquer modo, na teorização filosófica em ética aplicada, dizer que um animal tem direitos significa, grosso modo, dizer que (1) o animal não deve, prima facie, ser prejudicado, independentemente do benefício disso para outros, (2) se/dado que humanos devem ser protegidos por direitos, então os animais também, ou (3) os interesses do animal devem ser levados em conta nas nossas decisões éticas. Página |2 A defesa filosófica dos animais não é algo recente na história das ideias. No Ocidente, suas raízes remontam aos filósofos gregos e romanos da Antiguidade, desde o século VI a.C., dentre eles Porfírio e Plutarco destacadamente. Consta que o primeiro a usar o termo direitos em relação aos animais foi Thomas Tryron em 1688. O primeiro ensaio filosófico sobre direitos dos animais surgiu no final do séc. XIX, de autoria de Henry Salt. As primeiras entidades de proteção animal foram criadas nos anos 1820 no Ocidente. O início dos encontros acadêmicos e das publicações filosóficas contemporâneas em ética animal data dos meados dos anos 1970, tendo ganhado tração após o livro de Peter Singer, Libertação Animal, obra que inflamou o movimento mundialmente. Nas últimas décadas, tem-se demonstrado que os seres humanos têm muito mais semelhanças com os animais do que a sociedade está disposta a admitir, incluindo filósofos e cientistas. Essa nova compreensão dos animais nos obriga a um repensar ético profundo e tem implicações inescapáveis no campo social, legal, cultural, político e religioso. Se, no século XIX, a preocupação era quase que exclusivamente quanto à crueldade no trato com os animais, atualmente se discute se os animais teriam direito a não ser propriedade humana ou mesmo direitos reprodutivos (“pets”) e territoriais (animais selvagens). Permanece, contudo, a tarefa de mostrar à sociedade que a riqueza da senciência, consciência e emoção animal não é encontrada apenas nos cães e gatos (com os quais escolhemos ter uma relação quase-humana no Ocidente, na qual esses animais detêm um status análogo ao das crianças ou de membros honorários da nossa comunidade moral). Cabe ao ativismo, seja ele acadêmico ou de ONGs, mostrar que animais de panela, criados nas fazendas ou retirados dos oceanos, são igualmente respeitáveis pelas mesmas razões. OS ARGUMENTOS EM ÉTICA ANIMAL Vejamos, a seguir, os principais conceitos e argumentos na defesa moral dos animais avançados no debate contemporâneo. Para tanto, tomaremos o problema ético de comer carne como tema, ainda que a mesma conceituação valha para outras formas de exploração animal. 1. Morte desnecessária O mal de matar parece tão evidente que dispensaria explicações filosóficas. Morrer é simplesmente ruim para aquele que morre. Matar um animal constitui um ato de violência e isso é simplesmente antiético – a menos que haja uma razão suficientemente forte para tal, o que não é o caso, porque a saúde humana e os prazeres do paladar humano não resultam ameaçados por uma dieta vegetariana. Página |3 2. Sofrimento desnecessário É errado causar sofrimento a uma criatura se isso não produzir algum bem maior. E a satisfação temporária do nosso paladar e do nosso estômago não compensa moralmente o gigantesco sofrimento dos animais criados para serem comidos. 3. Interesse É um dado de realidade que as vidas dos animais podem (do ponto de vista deles mesmos) ir melhor ou pior. E é do interesse de qualquer animal que sua vida vá melhor do que pior. Logo, também é do interesse de qualquer animal tudo aquilo que o beneficia. Em termos morais, interesses vitais (animais) têm prioridade sobre interesses não vitais (humanos). Interesses vitais correspondem às necessidades que devem ser atendidas a fim de que uma criatura tenha uma vida decente ou minimamente gratificante. Isso envolve nutrição, integridade física, segurança corporal, saúde, repouso, abrigo, etc. Interesses não vitais, por sua vez, dizem respeito àquelas condições de vida que não são necessárias para uma vida minimamente boa, ainda que isso aumente o bem-estar do indivíduo - tais como ter acesso a uma casa maior e desfrutar de um churrasco. Comer carne é, em princípio, imoral porque envolve um interesse humano que não é vital, embora sacrifique os interesses mais básicos dos animais, uma vez que eles são aprisionados, mutilados, maltratados e mortos para que possam ser comidos. 4. Subjetividade e Autonomia Animais têm a experiência (subjetiva) da sua própria vida. Um animal não é como qualquer outro tipo de objeto, inteiramente dependente de influências externas. Ele age no mundo, a partir de um "ponto de vista", formando assim uma biografia. Um animal é um sujeito de uma vida, vida essa que pode ser melhor ou pior para o próprio animal. Sua vida importa para ele mesmo. Na medida em que o animal valoriza sua própria vida, ele carrega em si um valor objetivo (que independe da sua utilidade para nós). E, devido ao princípio de transitividade de valoração, temos uma obrigação moral de levar essa vida em conta. Além disso, os animais também conduzem (autonomamente) a sua própria vida. Um animal é autônomo no sentido de que ele tem suas preferências e também a habilidade de empreender ações com a finalidade de satisfazê-las. Não é necessário que ele formule, para si mesmo, alguma razão para isso. Basta que essa ação inicie espontaneamente e seja autodirigida. Desse modo, os animais escolhem, buscam e priorizam certas coisas em vez de outras. Em suma, para um animal, sua vida tem valor por si mesma e, do ponto de vista do próprio animal, certas coisas são melhores e assim mais desejáveis que outras. Essa axiologia e normatividade autônomas importa em termos morais. A partir daí, temos: Página |4 (a) Subjetividade e autonomia animal como fundamento da sua dignidade. (b) Dever humano de respeitar as implicações práticas da subjetividade e da autonomia animal. (c) Animais têm direitos, e isso significa inverter o ônus da justificação: cabe àqueles que atentam contra os animais justificar isso (em vez daqueles que querem protegêlos). Supõe-se, neste sentido, um paralelismo com os direitos humanos: moral e legalmente, não se deve matar, ferir ou aprisionar pessoas, a menos que se deem determinadas condições específicas, a saber, em defesa própria, em estado de necessidade, em atendimento ao interesse da própria vítima, quando a segurança de outros indivíduos é ameaçada, ou algo equivalente. Ora, o mesmo deve valer para os animais: não se deve aprisioná-los, machucá-los ou matá-los – a menos que se apliquem essas mesmas condições de exceção, sendo que o ônus da prova a respeito dessas condições cabe a quem alega a sua existência. 5. Vulnerabilidade Animais – como as crianças – são indefesos. Eles estão submetidos à nossa vontade e ao nosso poder, ainda que não apresentem nenhuma ameaça à vida humana. Nós não apenas decidimos trazê-los à vida, mas também decidimos como eles irão vivê-la. E é imoral tirar vantagem da fragilidade de um indivíduo a fim de atender os interesses de outros indivíduos. A vulnerabilidade dos animais (de criação) é tratada como uma oportunidade (dietética) para nós: matamos, restringimos a liberdade, violamos a integridade física e impedimos o comportamento típico de uma criatura mais vulnerável que nós apenas porque isso nos é vantajoso. 6. Virtude A atitude vegetariana é virtuosa porque consumir carne (a) revela insensibilidade e indiferença quanto à miséria animal; (b) significa ser cúmplice do mal feito aos animais e, ao participar ainda que passivamente desse mal, uma pessoa contamina seu caráter; (c) implica beneficiar-se do mal feito aos animais, mesmo que a pessoa não tenha contribuído concretamente na produção dele; (d) por fim, uma pessoa minimamente decente toma medidas para ajudar na redução da quantidade de sofrimento e mortes desnecessárias no mundo. A QUESTÃO VEGETARIANA A origem, natureza e escala da violência importam. Se, do ponto de vista da ética aplicada, a questão animal salta aos olhos pela sua urgência, a fortiori a questão vegetariana, devido à dupla gravidade moral dada por (1) a magnitude numérica gigantesca dos animais agredidos e (2) a futilidade das razões dessa agressão. Página |5 A maioria das pessoas come animais por mero hábito, sem refletir se isso é correto ou não, e, quando o faz, o estomago simplesmente fala mais alto do que a razão. Isso exige um certo exorcismo moral e intelectual para afastar uma realidade tão injusta. O resultado disso são, por dia, 200 milhões de animais terrestres com suas gargantas cortadas em todo o mundo. Se incluirmos as criaturas marinhas, são cerca de 3 bilhões de vidas destruídas a cada 24 horas, um número que paralisa nossa imaginação.3 A fim de se tornar nossa comida, os animais levam uma vida curta e miserável: eles são separados dos seus pais ao nascerem, vivem encarcerados em gaiolas e são degolados ainda jovens. Os prazeres do paladar e da culinária não constituem razões suficientemente fortes para justificar todo esse martírio. Se o conceito de cultura de paz tem como raiz filosófica a eliminação ou, pelo menos, a redução da violência desnecessária no nosso planeta, estamos diante de um dos maiores abismos a serem transpostos na história moral humana. E, como diz Edgar Kupfer-Koberwitz, enquanto estivermos machucando e matando animais, estaremos também praticando violência contra seres humanos. BIBLIOGRAFIA BEAUCHAMP, T.L.; FREY, R.G. (Eds.). The Oxford Handbook of Animal Ethics. Oxford: Oxford University Press, 2011; BEKOFF, M. (Ed.). Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare. Westport: Greenwood Press, 1998; LINZEY, A. (Ed.). The Global Guide to Animal Protection. Urbana: University of Illimois Press, 2013; LINZEY, A. Why Animal Suffering Matters: philosophy, theology, and practical ethics. Oxford; Oxford University Press, 2009; NACONECY, C. Ética & Animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006; ROLSTON III, H. Environmental Ethics: duties to and value in the natural world. Philadelphia: Temple University Press, 1988; SINGER, P. Libertação Animal. Porto Alegre: Lugano, 2004. 3 https://sentientmedia.org/how-many-animals-are-killed-for-food-every-day.