© 2020 EDUNILA – Editora Universitária
Catalogação na Publicação (CIP)
P832
Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo/ Andréia
Moassab (Org.); Leo Name (Org.). Foz do Iguaçu: EDUNILA, 2020.
372 p.: il.
ISBN: 978-65-86342-09-3
1. Arquitetura. 2. Urbanismo. 3. Educação superior. 4. Práticas educacionais. I. Moassab, Andréia. II. Name, Leo. III. Título.
CDU 72:378
Ficha Catalográfica elaborada por Leonel Gandi dos Santos CRB11/753
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. É proibida
a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização prévia, por escrito, da editora.
Direitos adquiridos pela EDUNILA – Editora Universitária.
EDUNILA – Editora Universitária
Av. Tancredo Neves, 6731 – Bloco 4
Caixa Postal 2044
Foz do Iguaçu – PR – Brasil
CEP 85867-970
Fones: +55 (45) 3522-9832 | 3522-9843 | 3522-9836
editora@unila.edu.br
www.unila.edu.br/editora
Editora associada à
Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo
CAPÍTULO 18
░
░
░
░
POR UM ENSINO DE PAISAGISMO CRÍTICO
E EMANCIPATÓRIO NA AMÉRICA LATINA:
UM DEBATE SOBRE TIPOS E PAISAGENS
DOMINANTES E SUBALTERNOS1
Leo Name e Andréia Moassab
Este texto dá continuidade a outros capítulos deste livro, os quais debatem vários
aspectos do CAU UNILA, propondo uma revisão crítica do ensino de paisagismo
nos cursos de arquitetura e urbanismo no país, em diálogo com a missão da UNILA
em “promover, por intermédio do conhecimento e da cultura, a cooperação e o intercâmbio solidários com os demais países da América Latina” (UNILA, 2014a) e com o
pensamento decolonial2. No contexto de uma produção do conhecimento no seio da
UNILA, é tarefa apontar a continuidade do eurocentrismo nas ciências – particularmente as sociais –, desenvolver uma episteme do Sul como base para o fazer científico
na UNILA. Diversos e diversas docentes do curso de arquitetura e urbanismo têm
feito esforços nessa direção. Vimos adicionar, aos demais temas já tratados, as especificidades, questões de partida e desafios no que tange ao ensino de paisagismo.
Sabe-se que escolas tradicionais de ensino de arquitetura, no Brasil, pouco debatem a produção arquitetônica do continente. Ao passo que nas grades curriculares do
país contemplam-se as arquiteturas grega e romana, as cidades medievais com suas
grandes catedrais e outros referenciais arquitetônicos europeus, mantêm-se ignorados exemplos latino-americanos: tanto referenciais históricos, como Chan-Chan, no
Peru, um dos maiores exemplares de arquitetura de terra e organização urbana dos
séculos X ao XV, quanto os referenciais tectônicos, como as construções indígenas,
que passam ao largo do curriculum nacional. O ensino de arquitetura e urbanismo e,
por consequência, de paisagismo, ainda que indiretamente, vem contribuindo para a
subalternização de alguns saberes construtivos, compreendendo sob a égide da alteridade as paisagens resultantes de tempos históricos ou racionalidades não modernos.
Quais as consequências desta formação que distancia o futuro arquiteto de práticas que ou jamais serão parte de seu repertório ou serão deliberadamente desvalorizadas
336
1
Artigo originalmente apresentado no 12º Encontro de Ensino de Paisagismo em Escolas de Arquitetura e
Urbanismo do Brasil, no ano de 2014, na cidade de Vitória, Espírito Santo.
2
Ver: “O Projeto Pedagógico do CAU UNILA, a América Latina e o século XXI” (capítulo 1); “Os Desafios de Introduzir
as Categorias Gênero e Raça no Ensino de Arquitetura e Urbanismo” (capítulo 10); “Decolonizando o Ensino
de Estruturas em Arquitetura: uma Proposta a Partir da Experiência na UNILA” (capítulo 14); e “Ensino de
Arquitetura e Trabalho Livre: a Experiência Didática das Disciplinas de Canteiro Experimental da UNILA”
(capítulo 16).
Paisagens e paisagismos críticos
enquanto tal? O texto subsequente refletirá, em caráter inicial, sobre um ensino de
paisagismo que se integre à perspectiva latino-americanista da UNILA: valorizadora
do subcontinente e suas paisagens, capaz de realizar intercâmbios culturais e propiciar
a emancipação e o empoderamento de pobres ou subalternizados.
DEBATE: TIPOS E PAISAGENS DOMINANTES
E SUBALTERNOS
O estudo da paisagem é presente em diversas disciplinas e, dada a extrema polissemia
em torno do termo, promove muitas discussões – particularmente na geografia, que a
tem como conceito-chave (HOLZER, 1999; NAME, 2010). Por essa vultosa literatura,
pode-se concluir que a paisagem não é meramente um dado objetivo da realidade: é
tanto traço da natureza quanto objeto da cultura. É uma construção social que dota de
maior inteligibilidade a produção, a representação, a experiência sensorial do espaço
e as filiações territoriais identitárias. Deriva, contudo, de uma racionalidade europeia,
extremamente ocularcêntrica e gestada no cerne da Modernidade: a ideia de paisagem,
como atualmente a compreendemos, foi resultado do progresso técnico renascentista,
o cartográfico em particular; do alargamento dos horizontes consecutivos às grandes
navegações e aos processos do colonialismo e do imperialismo; do projeto, positivista
e totalizante, de classificação da natureza que, conduzido por ciências como a história
natural, anulou tanto as formas de saber campesinas europeias quanto as indígenas
nas Américas (RONAI, 1976; PRATT, 1999; MIGNOLO, 1995). Por esta leitura estetizante, exotizante e excludente, o espaço
torna-se cena, percebida de um ponto de vista privilegiado […]. As contradições entre natureza e sociedade, entre modos de produção, entre aparelhos
de Estado, entre classes, são cobertas por uma ilusão de harmonia. Há na
valorização estética da paisagem uma ocultação das contradições em que o
espaço é a base. Há na contemplação, no deleite e no gozo da paisagem uma
participação, uma aceitação, uma conivência com o ordenamento espacial.
Esse vínculo está de mãos dadas com uma repulsão, um esvaziamento das
relações sociais: os homens não fazem parte da paisagem, ou, se fazem, são
um acessório ou um intruso (Assim, para o fotógrafo, o indígena faz parte da
paisagem, mas o turista é estrangeiro). É assim que a paisagem funciona como
um anestésico (RONAI, 1976, p. 127, tradução nossa, grifo no original).
O ensino de projeto de paisagismo não está livre desta concepção hegemônica
de paisagem, discernente de outras cosmologias (BERQUE, 1994; MIGNOLO, 2000).
Por isso, suas teorias e práticas projetivas, ainda muito pautadas por discussões sobre
morfologias e tipologias, apresentadas sob o viés falso da neutralidade científica,
merecem ser debatidas por meio de um prisma crítico que desvele sua elaboração
eurocêntrica.
337
Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo
Na geografia, a discussão morfológica da paisagem foi de grande destaque. Noções
de forma (resumo dos diversos elementos em conexão em determinada área geográfica) e de fisionomia (expressão da singularidade de cada localização) eram acionadas
nas monografias regionais, de modo a se validar a ideia de que a cada “gênero de
vida” (relação que um grupo social traça com seu meio físico, mediada pelas técnicas) corresponderia a localização e paisagem específicas (VIDAL DE LA BLACHE,
1954). Diante de tamanha diversidade, autores como Sauer (2007) e Troll (2007), por
exemplo, advogaram em prol de uma análise “mais objetiva” das paisagens, por meio
de tipos sintéticos, as “paisagens-tipo”. Elas derivariam de uma classificação resultante
da contínua comparação de traços e características: por exemplo, da hidrologia (rios,
aluviões, mares etc.); dos biomas (tundra, taiga, savana, floresta pluvial etc.); dos ecossistemas (brejo, pântano, pradaria etc.).
Na arquitetura e no urbanismo, estudos de tipologia constituem um método de
análise que investiga os componentes físico-espaciais e socioculturais (uso, apropriação e ocupação) da forma edificada e como ela varia em função do tempo
(CERVELATTI; SCANNAVINI; ANGELIS, 1981; BUTINA, 1987). Tipologia arquitetônica e morfologia urbana são, então, noções profundamente relacionadas, uma vez
que o conjunto urbano e a paisagem resultante são diretamente configurados pelas
tipologias das edificações. Para a escola italiana de arquitetura, o tipo e a tipologia são
elementos fundamentais, cuja composição e forma de agrupamento geram bairros
e cidades (ROSSI, 1995). Na perspectiva histórica, estes elementos materializariam
uma memória coletiva: os tipos seriam soluções “consagradas”, inerentes ao imaginário, referência inexorável para o exercício projetivo e condição do significado em
arquitetura (COLQUHOUN, 2006). Por sua vez, Argan (2006), a despeito de também
considerar os tipos “elementos originais” da configuração formal, estrutural e decorativa, inferidos a uma cultura particular, não os considera entidades fixas, mas variáveis
ao longo do tempo. Os autores elencados – todos europeus, diga-se – convergem ao
menos em um ponto: tipo e tipologia possuem relação, afinal, com sistemas de classificação e com repertórios preexistentes.
Cumpre esclarecer, entretanto, que sistemas e repertórios não são instituídos por
uma neutralidade objetiva; são geo-historicamente determinados, traduzem seletividades do olhar e, por isso, são potencialmente limitadores da prática projetiva. Assim,
o estudo dos diversos signos que constituem a composição dos edifícios (disposição
das unidades de habitações e circulações, função, material construtivo) ou das regras
inerentes à composição urbanística (forma e disposição dos edifícios e dos quarteirões, por exemplo), influentes na produção e na valoração de paisagens, deve levar em
conta que:
■ a classificação de paisagens tem pressupostos etnocêntricos que condicionam o
olhar, dotando algumas delas de significação moral, tornando-as distintas do que
previamente é concebido como “normal”;
■ a repetição e a consagração de determinadas soluções e linguagens arquitetônicas
foram condicionadas pela reinvenção renascentista da arquitetura greco-romana
como “arquitetura clássica”, influenciando a produção posterior e sua valoração
(SUMMERSON, 1994);
338
Paisagens e paisagismos críticos
■
■
a difusão de linguagens arquitetônicas se deu pari passu com os processos de conquista territorial de fins do século XV em diante, que, nas Américas, incluíram a
destruição de sítios, a obliteração de saberes construtivos e a eliminação ou ressignificação violenta de concepções do espaço-tempo – em particular, simbologias da
arquitetura e da paisagem (GRUZINSKI, 1991, 2006; MIGNOLO, 2000);
os discursos referentes à edificação e à paisagem não são indiferentes às instituições que conformam cada sociedade: são dispositivos de produção de verdades (MOASSAB, 2013b); e, uma vez que o espaço é uma categoria política
(FOUCAULT, 1988), a sua produção é prática de poder, da escala da casa e do lote
à cidade e à paisagem.
Se a paisagem é uma gramática que estrutura e é estruturada pela produção
simbólica dominante, com sua organização, manutenção e transformação baseadas em pressupostos ideológicos, os quais produzem sentido (COSGROVE, 1998b;
DUNCAN, 1990), os tipos consagrados no exercício projetivo em arquitetura, urbanismo e paisagismo são veículos do eurocentrismo e da ideologia excludente da
Modernidade, auxiliando na instituição de “paisagens dominantes” (COSGROVE,
1998a). E, mais amplamente, as ciências da paisagem e o paisagismo tendem a tornarse parte da chamada “geopolítica do conhecimento” (MIGNOLO, 2002), uma estratégia eurocêntrica de produção de saberes concebidos e utilizados para descartar outras
formas de saber (de racionalidade não moderna): por exemplo, as cosmologias dos
povos africanos e dos indígenas, sua arquitetura e seus modos de habitar.
Dito de outra forma, uma miríade de materiais, técnicas construtivas e outras relações com a paisagem estão sendo efetivamente desperdiçadas, caracterizando o que
Boaventura de Sousa Santos (2006; 2007) denomina “desperdício de experiências”. A
reversão deste quadro pressupõe, necessariamente,
um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante pelo menos durante os últimos duzentos anos,
todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas
que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito (SANTOS, 2006, p. 94).
Numa cultura arquitetônica de sobrevalorização do concreto, é evidente que correm o risco de desaparecer as ocas indígenas, as casas quilombolas, as palafitas e flutuantes ribeirinhos, as vilas de pescadores, as casas caiçaras e todo o vasto leque de
tipologias construtivas que configuram diversas paisagens latino-americanas.
339
Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo
DIRETRIZES PARA UM ENSINO DE PAISAGISMO
CRÍTICO E EMANCIPATÓRIO
Inserido numa universidade pública brasileira com o objetivo da integração continental, o CAU UNILA está estruturado para a formação de profissionais aptos a dar
respostas para uma produção habitacional de qualidade em contextos de limitações
econômicas ou de recursos materiais, o que guiará o ensino, a pesquisa e a extensão.
Neste cenário, como deve ser a atuação profissional em termos de intervenção na
paisagem? É com o ensejo de vislumbrar a potência do paisagismo como possibilidade
de emancipação que se torna fulcral analisá-lo numa perspectiva crítica à modernidade, da qual as ciências são parte indiscernível. Derivam desse entendimento as principais questões a serem tomadas em conta para um ensino de paisagismo libertário,
descritas subsequentemente.
O assentamento informal como paisagem possível
Dada a enorme parcela da população mundial a viver precariamente, que pode chegar,
na América Latina, a um terço de seus habitantes (MENEGA, 2009), os chamados
“bairros marginais” não são, portanto, exceção no espaço urbano. Não obstante, denominadas rotineiramente de “favelas”, essas paisagens são tratadas como fora da norma
e do “normal” pela teoria urbana, pela prática projetiva e pelo Estado, que exigem sua
modificação ou extirpação.
No imaginário global, contraditoriamente, vêm se convertendo em “paisagens-tipo”, com vistas à apropriação mercadológica e por meio de ao menos dois movimentos. O primeiro diz respeito à sua estetização como referência tipológica de estabelecimentos comerciais, interessados em proporcionar experiências de alteridade a
seus visitantes: têm como base a morfologia da autoconstrução de casas de padrões
diversos, coladas umas nas outras e em meio a ruas estreitas, sinuosas e escuras a
formar cruzamentos aleatórios, eventualmente praças – uma descrição, aliás, muito
semelhante à das cidades medievais europeias ou das cidades latino-americanas com
traçado colonial preservado (GOMES, 2002, p. 73). O segundo se dá por intervenções para a espetacularização, tornando-as cartões postais da pobreza turística: este
é o caso da implantação de teleféricos nas comunas de Medelín, na Colômbia, ou nos
Morros do Alemão e da Providência, no Rio de Janeiro (FREIRE-MEDEIROS, 2009b,
2013; FREIRE-MEDEIROS; NAME, 2017).
Considerar os assentamentos informais como paisagens possíveis, de linguagens e
racionalidades morfologicamente instituídas não só por uma, mas por múltiplas tipologias, é tarefa do ensino de paisagismo; que, nesse sentido, pode estimular o proveito
de suas características positivas como elemento projetivo: relações de vizinhança,
escala acolhedora, vistas inesperadas, valorização do percurso, mutabilidade constante da paisagem e a diversidade e copresença de usos e sociabilidades em espaços
singulares – como no caso da laje (FREIRE-MEDEIROS, 2009a).
340
Paisagens e paisagismos críticos
Revisão crítica à monumentalização e à patrimonialização da
paisagem
Na América Latina, os quadrantes centrais de inúmeras cidades foram destinados às
estruturas de poder, erguendo-se fóruns, igrejas, prefeituras, cadeias e fortificações
que, mantidas no presente, perpetuam a narração do processo de conquista. É o caso
de cidades de colonização espanhola como Cusco e Cidade do México, cujos sítios
originais foram destruídos para dar lugar a praças centrais com arquitetura expressiva
da violência imposta aos territórios. Já cidades como Buenos Aires, Manaus e Rio de
Janeiro tiveram na sua belle époque a produção de paisagens urbanas que aspiravam
ideais de modernidade a partir da incorporação de tipologias arquitetônicas do ecletismo europeu. E, no Brasil, dos quase mil bens arquitetônicos protegidos pelo Estado
Nacional, quase a metade refere-se a estruturas religiosas de matriz católica. Outros
20% dizem respeito a edifícios e infraestruturas administrativo-institucionais, especialmente do período colonial (MOASSAB, 2013b).
Não são raros, na prática projetiva de paisagismo, a incorporação do método da
visão serial com vistas à valorização de visadas (CULLEN, 1996) e o enquadramento
de elementos arquitetônicos por massa arbustiva, que tendem a direcionar o olhar
do observador justamente para estes monumentos. Todavia o ensino de paisagismo
pode evitar o reforço desta monumentalização da paisagem. Assim, não reforçaria,
também, certa valorização do patrimônio construído que difunde ideais de nação que
mantêm invisibilizadas matrizes arquitetônicas não europeias como referencial válido
da memória da paisagem construída.
Paisagismo como narração
O paisagismo torna-se auxiliar da monumentalização perversa na medida em que
meramente elenca e enquadra cenas urbanas para surpreender o olhar de um observador em determinados pontos de um trajeto específico. Apoia-se, assim, no entendimento hegemônico da paisagem como suporte físico e visual para o deleite sensorial.
O enquadramento é selecionado por critérios igualmente hegemônicos, a respeito do
que deve ou não ser visualmente valorizado ou até não convém integrar à paisagem.
Nesse contexto, as realidades conformadas pelas formas sociais desta inexistência são
obstáculos em relação às realidades que contam como importantes, sejam elas
realidades científicas, avançadas, superiores, globais ou produtivas. São, pois,
partes desqualificadas de totalidades homogéneas que, como tal, apenas confirmam o que existe e tal como existe. São o que existe sob formas irreversivelmente desqualificadas de existir (SANTOS, 2006, p. 104).
Necessário apontar, então, o quanto são ignoradas antigas culturas indo-americanas, mantidas no presente como herança, que possuíam cosmologias dinâmicas, valorizadoras da dimensão temporal da experiência humana, e que eram pouco ou nada
341
Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo
ocularcêntricas (MIGNOLO, 2000). Ademais, grupos sociais subalternizados acreditam haver em suas localidades patrimônio a ser protegido, seja material ou imaterial,
o qual órgãos oficiais raramente têm reconhecido (MOASSAB, 2013b).
O paisagismo, destarte, exerce importante papel se apresentado por projeto
que valorize o tempo, o percurso e a deambulação como insumos à criação coletiva (DOBRY-PRONSATO, 2006). Com efetiva participação comunitária, há como
se compor micronarrativas do espaço-tempo, não oficiais, a serem dadas a ler pelos
diversos usuários do território: em torno de símbolos locais, da memória impressa
em rugosidades, de objetos considerados sagrados, de tudo que se julgar destaque nas
práticas cotidianas. Se a paisagem é um conjunto de textos, a atividade projetiva a ela
inscrita pode exigir a missão de produzir outras gramáticas.
Paisagismo como justiça ambiental e ressignificação de
espaços livres
O ensino e a prática projetiva em paisagismo podem incorporar o debate da justiça ambiental, que revela a distribuição desigual tanto dos riscos ambientais quanto
das funções ecossistêmicas por diferentes estratos sociais (ACSELRAD; MELLO;
BEZERRA, 2009). Nas cidades latino-americanas, a exposição a eventos naturais
extremos ou em decorrência de alocação de atividades tóxicas tem relação direta com
a segmentação socioespacial: a periferia junto a áreas de risco ou desprovidas de serviços urbanos e amenidades ambientais usualmente é o local de moradia dos mais
pobres e dos não brancos (NAME; BUENO, 2013). Além disso, o “apartheid residencial” (GOULD, 2004) naturaliza os espaços de lazer, prática esportiva ou contemplação como de utilização quase exclusiva de brancos das classes média e alta, uma das
faces do que para muitos se chama “racismo ambiental” (HERCULANO; PACHECO,
2006).
Trata-se de cenário que dota o paisagista de ao menos quatro importantes papéis.
Primeiro: exigir políticas públicas para a ampliação de espaços de lazer e amenização
ambiental em territórios racial ou socialmente segregados. Segundo: incorporar, em
seus projetos, as formas de sociabilidade destes grupos, ressignificando tipologias e
usos. Terceiro: compreender que, em áreas segregadas, a produção de espaços livres
públicos possibilita a expressão de culturas marginalizadas em outros espaços, amplia
as possibilidades de exercício político e corrobora para a configuração de centralidades. Finalmente: comungar o desenho projetivo com a ecologia de paisagens, a agroecologia (agricultura familiar social e ambientalmente justa) e a infraestruturação da
paisagem (contenções de encostas, reservação ou microdrenagem de águas pluviais
etc.), com vistas à regeneração ambiental e à distribuição de funções ecossistêmicas
concomitantes à contenção de riscos (MASCARÓ, 2008; DEMANTOVA, 2011).
O paisagismo, assim, torna-se veículo do direito à cidade, no que lhe tangem a
inclusão social e a equidade ambiental.
342
Estratégias para o ensino de projeto
Ressignificação da vegetação nativa
Não há dúvidas de que o uso de vegetação nativa é cada vez mais pressuposto em
projetos paisagísticos, particularmente no Brasil, onde a arborização para amenização
climática é historicamente recorrente e onde têm sido reforçadas as posições em favor
da inserção de espécies do bioma local com vistas à conectividade ambiental. Todavia,
de forma cada vez mais indiscriminada, a orlas, resorts e todo tipo de áreas turísticas
vêm se adicionando fileiras e mais fileiras de palmeiras que, mesmo quando nativas,
provocam homogeneização da paisagem.
Mais que isso, trata-se de exemplo de desenho da paisagem que atende às demandas do imaginário eurocêntrico sobre os Trópicos. Geo-historicamente construída, a
ideia dos Trópicos se apresenta por discursos sobre paisagens de natureza ao mesmo
tempo exuberante e débil e converte a imensa zona equatorial do planeta em região
moral, que é cultural e ambientalmente distinta à normalidade percebida nas terras
temperadas (ARNOLD, 2000; LIVINGSTONE, 2000).
Bromélias, palmeiras e vitórias-régias, além de bananeiras e abacaxizeiros, compõem repertório que converte a tropicalidade em exotismo, aplana diferentes espaços
pela via da alteridade e atualiza premissas do jardim eclético ao transformar paisagens
em cenários. E se, por certo, há grande variedade de biomas na América Latina, há
também sua associação, no exercício projetivo, a elementos estereotípicos: o cacto a
referenciar o deserto mexicano ou a caatinga brasileira, por exemplo.
Importante lembrar, também, que nem todas as espécies nativas matam a fome
de quem a tem (DOBRY-PRONSATO, 2006). Em contextos de pobreza, a inserção
de árvores frutíferas, tubérculos e leguminosas, mesmo quando espécies exóticas, é
importante medida de um paisagismo que promova acesso a uma função ecossistêmica muitas vezes posta em plano secundário: a subsistência de populações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Julga-se que as reflexões ora apresentadas fomentam um projeto de ensino emancipatório de paisagismo, devido a se livrarem de condicionantes de ordem geo-histórica,
as quais têm efeitos bastante concretos sobre as paisagens latino-americanas e seus
usuários: homogeneização de linguagens e repertórios, monumentalização, espetacularização e invisibilização de cosmologias e racionalidades construtivas apartadas da
matriz de pensamento europeu.
A despeito da abordagem crítica, espera-se ter sido possível notar que não foi
ignorada a produção acadêmica sobre paisagem e paisagismo, já posta por diversas disciplinas. Buscou-se, ao contrário, uma postura de “pensamento de fronteira”
(MIGNOLO, 2000), fazendo o duplo exercício de, por um lado, traduzir esta literatura e demais saberes consagrados para o contexto da América Latina e, por outro,
de conjugar de forma não hierárquica tais saberes com outros saberes, comumente
343
Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo
desprezados, de modo a possibilitarem conhecimentos que transcendam preceitos e
preconceitos estabelecidos.
Tal debate, no entanto, necessariamente deve ser compreendido como mero
esboço inicial de ideias para a implantação do ensino de paisagismo no contexto do
CAU UNILA, não como uma teorização acabada e com a pretensão, universalista, de
ser regra ou modelo – o que, inclusive, pretende-se evitar.
344
Paisagens e paisagismos críticos
REFERÊNCIAS
ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. A.; BEZERRA, G. N. O que é justiça ambiental. Rio de
Janeiro: Garamond, 2009.
ARGAN, G. C. Sobre a tipologia em arquitetura. In: NESBITT, K. (org.). Uma nova
agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 268-273.
ARNOLD, D. La naturaleza como problema histórico. México: FCE, 2000.
BERQUE, A. Paysage, milieu, histoire. In: BERQUE, A. (org.). Cinq propositions pour
une théorie du paysage. Seyssel: Champ Vallon, 1994. p. 11-29.
BRASIL. Lei n° 12.189, de 12 de janeiro de 2010. Dispõe sobre a criação da Universidade
Federal da Integração Latino-Americana – UNILA e dá outras providências. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília-DF, p. 1, 13 jan. 2010.
BUTINA, G. The use of urban history in the design of local urban areas. Urban Design
Quaterly, Londres, n. 25, p. 7-8, 1987.
CERVELATTI P. L.; SCANNAVINI, R.; ANGELIS, C. La nouvelle culture urbaine.
Paris: Le Seuil, 1981.
COLQUHOUN, A. Tipologia e metodologia de projeto. In: NESBITT, K. (org.). Uma
nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 274-283.
COSGROVE, D. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo das paisagens
humanas. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. (org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 1998a. p. 92-123.
COSGROVE, D. Em direção de uma geografia cultural radical: problemas da teoria.
Espaço e cultura, Rio de Janeiro, n. 5, p. 5-29, 1998b.
CULLEN, G. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 1996.
DEMANTOVA, G. C. Redes técnicas e serviços ambientais. São Paulo: Annablume,
2011.
DOBRY-PRONSATO, S. A. Arquitetura e paisagem: projeto participativo e criação
coletiva. São Paulo: Annablume, 2006.
DUNCAN, J. The city as text. Cambridge: The Cambridge University Press, 1990.
345
Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo
DUSSEL, E. Filosofía de la liberación. México: FCE, 2011.
ESCOBAR, A. La invención del Tercer Mundo. Bogotá: Editorial Norma, 1998.
ESCOBAR, A. El final del salvaje. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e
Historia, 1999.
FREIRE-MEDEIROS, B. Gringo na laje. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009a.
FREIRE-MEDEIROS, B. The favela and its touristic transits. Geoforum, Amsterdã, v.
40, n. 4, p. 580-588, 2009b.
FREIRE-MEDEIROS, B. Touring poverty. Abingdon: Routledge, 2013.
FREIRE-MEDEIROS, B.; NAME, L. Does the future of the favela fit in an aerial cable
car? Examining tourism mobilities and urban inequalities through a decolonial lens.
Canadian Journal of Latin American and Caribbean Studies, Kelowna, v. 42, n. 1, p.
1-16, 2017.
FOUCAULT, M. Sobre a geografia. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1988. p. 153-165.
GOMES, P. C. C. A condição urbana. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.
GOULD, K. A. Classe social, justiça ambiental e conflito político. In: ACSELRAD,
H.; HERCULANO, S.; PACHECO, J. P. (org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 69-80.
GRUZINSKI, S. La colonización de lo imaginario. México: FCE, 1991.
GRUZINSKI, S. A guerra das imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
HERCULANO, S.; PACHECO, T. (org.). Racismo ambiental. Rio de Janeiro: FASE,
2006.
HOLZER, W. Paisagem, imaginário, identidade: alternativas para o estudo geográfico.
In: CORRÊA, R. L.; ROSENDHAL, Z. (org.). Manifestações da cultura no espaço. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 149-168.
LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
LIVINGSTONE, D. N. Tropical hermeneutics: fragments for a historical narrative.
Singapore Journal of Tropical Geography, Abingdon, v. 21, n. 1, p. 92-98, 2000.
346
Paisagens e paisagismos críticos
MASCARÓ, J. L. (org.). Infraestrutura da paisagem. Porto Alegre: Maisquatro, 2008.
MENEGA, E. Crise urbana na atualidade: indagações a partir do fenômeno da
concentração espacial dos pobres em assentamentos ilegais. Cadernos da América
Latina, Buenos Aires, v. XI, p. 93-104, 2009. Encarte.
MIGNOLO, W. D. The darker side of the Renaissance. Michigan: University of Michigan
Press, 1995.
MIGNOLO, W. D. Local histories/global designs. Princeton: Princeton University
Press, 2000.
MIGNOLO, W. D. Geopolitcs of knowledge and the colonial difference. The South
Atrantic Quaterly, Durham, v. 101, n. 1, p. 57-96, 2002.
MIGNOLO, W. D. La idea de América Latina. Barcelona: Gedisa Editorial, 2007.
MIGNOLO, W. D.; ESCOBAR, A. (org.). Globalization and decolonial option.
Abingdon: Routledge, 2010.
MOASSAB, A. Por um ensino insurgente fincado no seu tempo/espaço: o projeto
pedagógico do CAU UNILA, a América Latina e o século XXI. In: ENCONTRO
NACIONAL SOBRE ENSINO DE ARQUITETURA E URBANISMO, 32., 2013,
Goiânia. Anais […]. Goiânia: ABEA, 2013a.
MOASSAB, A. O patrimônio arquitetônico no século XXI: para além da preservação
uníssona e do fetiche do objeto. SURES, Foz do Iguaçu, n. 2, p. 23-39, 2013b.
NAME, L. O conceito de paisagem na geografia e sua relação com o conceito de
cultura. GeoTextos, Salvador, v. 6, n. 2, p. 163-186, 2010.
NAME, L.; BUENO, L. M. M. Contradição nas cidades brasileiras: “ambientalização”
do discurso do planejamento com permanência dos riscos. In: LOURENÇO, L. F.;
MATEUS, M. A. (org.). Riscos naturais, antrópicos e mistos. Coimbra: Universidade de
Coimbra, 2013. p. 727-739.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Report of the Special Rapporteur
on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living.
United Nations, 2005. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/
GEN/G05/117/55/PDF/G0511755.pdf?OpenElement. Acesso em: 13 set. 2012.
PRATT, M. L. Os olhos do Império. Bauru: EDUSC, 1999.
RONAI, M. Paysages. Hérodote, Paris, v. 1, p. 125-159, 1976.
347
Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo
ROSSI, A. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
SANTOS, B. S. A gramática do tempo. São Paulo: Cortez, 2006.
SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2007.
SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora
Cortez, 2010.
SAUER, C. O. The morphology of landscape. In: WIENS, J. A. et al. (org.). Foundation
papers in landscape ecology. Nova York: Columbia University Press, 2007. p. 36-70.
SUMMERSON, J. A linguagem clássica da arquitetura. São Paulo: Martins Fontes,
1994.
TODOROV, T. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
TROLL, C. The geographic landscape and its investigation. In: WIENS, J. A. et al.
(org.). Foundation papers in landscape ecology. Nova York: Columbia University Press,
2007. p. 71-101.
UNIÃO INTERNACIONAL DE ARQUITETOS (UIA); ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO).
Carta para a formação dos arquitetos. Tóquio: UIA, 2011.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA (UNILA).
Projeto pedagógico: ciclo comum de estudos. Foz do Iguaçu: UNILA, 2013.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA (UNILA).
Descrição do curso de arquitetura e urbanismo. Foz do Iguaçu: UNILA, 2014a.
Disponível em: www.unila.edu.br. Acesso em: 22 abr. 2014.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA (UNILA).
Proposta pedagógica. Foz do Iguaçu: UNILA, 2014b. Disponível em: www.unila.edu.br.
Acesso em: 22 abr. 2014.
VIDAL DE LA BLACHE, P. Princípios de geografia humana. Lisboa: Edições Cosmos,
1954.
348