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LÍNGUA E LINGUÍST ICA Por uma Pragmática menor: tensões entre linguagem, corPo e Política Dina Maria Martins Ferreira* Jony Kellson de Castro Silva** Resumo: Pretendemos pensar em uma pragmática menor a partir da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, principalmente em sua obra Mil platôs. Para tanto, articulamos os conceitos de palavras de ordem, como atos de fala atribuí­ dos a corpos; de Corpo sem Órgãos enquanto criação de corpo à disciplina do organismo; e de máquina de guerra como uma gramática de revide. Assim, ex­ perimentamos o traço do conceito #SexoÁgil que se faz devir­mulher como po­ lítica de uma pragmática menor, desterritorializando processos de subjetivação ancorados em identidades de gênero. Com isso, problematizamos uma pragmá­ tica menor como uma política minoritária, que pode potencializar um fazer pesquisa em pragmática linguística. Palavras-chave: Palavras de Ordem. Corpo sem Órgãos. Devir­Mulher. INTRODUÇÃO ■ linguagem e o social são abordados como uma relação imanente, co­ mo uma forma de vida – levar isso a sério acarreta um posicionamen­ to político para a Pragmática e, por que não, para a Linguística. Ou seja, a linguagem é uma questão de política, antes de ser linguística (DELEU­ ZE; GUATTARI, 2011b); e a língua é uma “pura” invenção (RAJAGOPALAN, 2014). Pensamos a língua como variação contínua, como um rizoma em vez de uma árvore, pois o rizoma como planta é meio, não tem início nem fim, é acen­ trado (DELEUZE; GUATTARI, 2011a). Compreendendo­a, dessa maneira, pos­ sibilitamo­nos entender a língua “como trama instável de fluxos que só ganha * A Universidade Estadual do Ceará (Uece) – Fortaleza – CE – Brasil e Paris V- Sorbonne – França. E-mail: dinaferreira@terra.com.br ** Universidade Estadual do Ceará (Uece) – Fortaleza – CE – Brasil. E-mail: jonykellson@yahoo.com.br 194 POR UMA PRAGMÁTICA MENOR: TENSÕES ENTRE LINGUAGEM, CORPO E POLÍTICA LÍNGUA E LINGUÍST ICA vida quando as pessoas e suas subjetividades e histórias são consideradas nas práticas sociais múltiplas e situadas de construção de significado em que atu­ am” (MOITA LOPES, 2013, p. 104). Assim, uma pragmática menor é uma pragmática enquanto uma política da língua, que leva em conta o estar fora em relação à língua, fazendo, então, com que haja variação contínua da língua e criação de forma de vida. Porém, como pensar numa relação entre linguagem, corpo e política por uma pragmática menor? Este artigo tem como objetivo pensar nessa relação a partir da filosofia pós­ ­estruturalista e/ou da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2011a, 2011b, 2011c, 2012a, 2012b, 2012c), principalmente em sua obra Mil platôs. Para tanto, articulamos: os conceitos de palavras de ordem, como atos de fala imanentes atribuídos a corpos; de Corpo sem Órgãos como criação de corpo frente à disciplinarização do organismo; e de máquina de guerra como uma gra­ mática de revide, para pensarmos o caráter político dessa relação. Com essa articulação, traçamos o devir­mulher do conceito #SexoÁgil1, enquanto exemplo – melhor, potencializador – de uma política descolonial que vai de encontro à subjetivação, às identidades de gênero, satisfazendo­se de uma pragmática me­ nor como política da língua. LINGUAGEM: UMA QUESTÃO DE POLÍTICA O conceito de palavras de ordem encontra­se presente no texto “20 de no­ vembro de 1923 – Postulados da Linguística”, que compreende um platô do livro Mil platôs, de Deleuze e Guattari (2011b). Em uma entrevista posterior à publi­ cação desse livro, Deleuze (2013) diz que três temas foram necessários ser abor­ dados naquela obra, no que diz respeito à linguagem e/ou à linguística: 1. as palavras de ordem; 2. o discurso indireto; e 3. a variação contínua. Esses três temas, ao dialogarem entre si, marcam, de certo modo, um posicionamento pragmático para a linguística. Aqui, detemo­nos sobre as palavras de ordem que, possivelmente, ecoam os outros dois temas. Deleuze e Guattari (2011b) definem a linguagem como um conjunto de pala­ vras de ordem. Essa definição não significa que a palavra de ordem aponta para o que é a linguagem ou para uma origem da linguagem – algo não linguístico que determine algo linguístico. Nada disso, a linguagem não tem uma origem. Não podemos sair da linguagem, porque uma palavra de ordem devém outra palavra de ordem, como um dialogismo: um dizer que vem de outro dizer. Então, a pala­ vra de ordem vem delinear uma função coextensiva à linguagem, uma função­ ­linguagem. Ela é uma unidade elementar do enunciado, uma vez que todos os tipos de enunciados são palavras de ordem. Indo de encontro às posturas na linguística que definem a linguagem, em algum momento, pelo seu caráter informativo ou comunicativo, o conceito de palavra de ordem nos diz que a linguagem “não é mesmo feita para que se acre­ dite nela, mas para obedecer e fazer obedecer” (DELEUZE; GUATTARI, 2011b, p. 12). A informação, no caso, é apenas um mínimo necessário para a emissão de comandos. Todavia, o que qualifica uma palavra de ordem como enunciação de um comando não é sua forma explícita, como se percebe nos enunciados 1 #SexoÁgil, revista fundada por Karina Buhr (feminista, cantora, compositora, percussionista) em 2014 e composta por textos e ilustrações. Dados mais desenvolvidos no último item deste artigo. TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 195 DINA MARIA MARTINS FERREIRA E JONY KELLSON DE CASTRO SILVA LÍNGUA E LINGUÍST ICA imperativos, mas os atos implícitos que expressam ações quando uma palavra de ordem é enunciada. Dessa maneira, há uma relação de imanência entre uma palavra ou qualquer enunciado, com atos de fala, com pressupostos implícitos na palavra de ordem. Esses atos de fala têm a característica de serem incorpóreos, potencializando sen­ tidos quando são expressos. Em relação a uma proposição, o sentido é o expresso da proposição, o acontecimento, o puro devir; e é o incorpóreo, por não se confun­ dir com a proposição nem com o objeto ou estado de coisas que estaria no mundo designados por esta, ou com a representação ou com os conceitos perpetuados pela proposição. Temos, enfim, uma teoria do sentido, em Deleuze (2011b). O sentido é o atributo da coisa ou do estado de coisas, como um verbo. Como atributo de um estado de coisas, não quer dizer seu estado físico, mas, o que se diz de um estado de coisas. Trata­se de um estado de coisas ainda que não deva ser tomado na acepção tractariana de Wittgenstein (1968), em que se pressupõe uma relação lógica entre linguagem e mundo, uma ontologia fixa em que a lin­ guagem pode representar logicamente. Deleuze (2011b) dá razão ao filósofo aus­ tríaco quando este define, no segundo momento de sua filosofia, o sentido pelo uso, ocorrendo por um jogo de linguagem (Cf. WITTGENSTEIN, 1999). Afirmar que o sentido é o expresso, ou que está no uso, é uma posição prag­ mática a toda uma dimensão logicista ou semântica da linguagem. Assim, para Deleuze (2011b), o sentido não é um ser nem qualifica um ser, é um extrasser. Por advir quando expresso e por se portar como um extrasser, temos as suas duas faces: uma voltada para a expressão e a outra, para um estado de coisas; desse modo, o sentido está no meio. Articulando a linguagem ao tempo, o senti­ do passa a ser a priori em relação à significação, já que numa tradição lógica e de filosofia da linguagem viria a posteriori, quando o significante não conseguis­ se resolver os paradoxos colocados pela linguagem. Regressando às palavras de ordem, dizemos que estas expressam atos de fala incorpóreos, a partir da relação com uma palavra ou com qualquer enuncia­ do. Esses atos são atribuídos a corpos, como variáveis de agenciamentos coleti­ vos de enunciação que, relacionados de um determinado modo, reúnem­se em um regime de signos, conformando uma máquina semiótica. Os corpos, por sua vez, formam um regime de corpos, ou um agenciamento maquínico. Um agen­ ciamento, então, constitui­se dessa inseparabilidade entre linguagem e corpo; por um lado, ele é coletivo de enunciação e, por outro, maquínico do desejo. Não há um agenciamento coletivo de enunciação se ele não for, também, um agen­ ciamento maquínico. O caráter das palavras de ordem de enunciar comando nos faz lembrar do pensamento de Austin (1990) e de sua chamada teoria dos atos de fala. Deleuze e Guattari (2011b) até mesmo fazem menção à elaboração do ilocucionário e do perlocucionário de Austin, ao indicarem, de forma indireta, que todos os atos de fala são performativos. Resumidamente, duas consequências disso: a primeira consiste em pensar as outras dimensões da linguagem a partir da pragmática; e a segunda, uma agenda política para a linguagem a partir da pragmática. No entanto, Deleuze e Guattari (2011b) pensam a linguagem e a questão do sentido a partir de outras perspectivas filosóficas, diferentes das de Austin (1990). A concepção deleuziana do sentido advém de uma filosofia da linguagem estoica e não da lógica aristotélica, como boa parte da filosofia analítica e da fi­ losofia da linguagem origina­se. Dessa forma, o performativo ao ser explicado 196 TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 POR UMA PRAGMÁTICA MENOR: TENSÕES ENTRE LINGUAGEM, CORPO E POLÍTICA LÍNGUA E LINGUÍST ICA pelo ilocutório, constituindo este os pressupostos implícitos ou não discursivos, “as palavras de ordem ou os agenciamentos de enunciação em uma sociedade dada [...] designam essa relação instantânea dos enunciados com as transfor­ mações incorpóreas ou atributos não corpóreos que eles expressam” (DELEUZE; GUATTARI, 2011b, p. 20). Não há ato mais performativo do que outro. Atos incorpóreos se atribuem a corpos, a partir da “instantaneidade da palavra de ordem, sua imediatidade, [que] lhe confere uma potência de variação em relação aos corpos aos quais se atribui a transformação” (DELEUZE; GUATTARI, 2011b, p. 23). O sentido de corpo é o mais abrangente possível, desde corpos morais a corpos propria­ mente como compreendemos. Palavras de ordem, exprimindo incorporeamen­ te atos de fala a corpos, uma vez afetados, podem encerrar dois tons: de mor­ te ou de fuga. O tom de morte acontece quando há uma parada, quando o corpo aceita o veredito de uma palavra de ordem, segmentando­se, organizan­ do­se; e o tom de fuga, quando o corpo não foge à palavra de ordem, e, sim, age e cria, ao recebê­la. Daí podermos dizer que a linguagem tem esse duplo – (re)territorialização e desterritorialização –, que, antes de ser uma questão de linguística, é uma ques­ tão de política: quando a linguagem dá ordem à vida. Para a criação de novas formas de vida, é necessário extrair das paradas de ordem as passagens de fuga. E condizendo a movimentos de desterritorialização, as linhas de fuga são cria­ ções de mundo, devires. Sendo assim, temos a linguagem enquanto devir ao invés de representação. Com isso, percebemos a palavra de ordem efetuando um agenciamento cole­ tivo de enunciação e maquínico do desejo, composto de duas faces: uma voltada para um plano de organização e desenvolvimento, e a outra, para um plano de composição e criação – dois planos de vida, ou dois usos diferentes de um plano. Todo agenciamento se faz de linguagem e de corpo que, quando voltada sua face para um plano de composição, potencializa criação de ambos. Contudo, a lin­ guagem não se encontra numa relação de correspondência e representação com o corpo nem vice­versa; entre ambos, existe apenas uma relação distributiva, por uma pressuposição recíproca. Se a linguagem é devir, todo devir é perspectivismo. De um ponto de vista epistemológico, não se compartilha de uma concepção relativista e, muito me­ nos, de uma concepção essencialista, acerca da relação entre linguagem e mun­ do. O perspectivismo é criação de mundo, mas um mundo que somente é (ou melhor, devém) mundo a partir de uma perspectiva – o que não é uma versão de mundo de um mundo que existe (Cf. DELEUZE, 1991) –, derivando de uma re­ lação de pontos de vista, de devires. UM CORPO QUE SE CONECTA Um estrato que também nos “amarra”, segundo Deleuze e Guattari (2012a), é o organismo. A princípio, falamos (in)diretamente sobre os dois outros estra­ tos, a significação e a subjetivação, que podem ser compreendidos enquanto territórios, que politicamente tendem a impedir processos de desterritorialização propiciados por linhas de fuga em determinados agenciamentos. A filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari se detém, principalmente, sobre esses três gran­ TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 197 DINA MARIA MARTINS FERREIRA E JONY KELLSON DE CASTRO SILVA LÍNGUA E LINGUÍST ICA des estratos, em sua obra Mil platôs. Ou seja, detém­se acerca de como esses estratos comportam um movimento interior que remete a um plano de organiza­ ção e desenvolvimento (um plano de transcendência); e sobre como esses estra­ tos são segmentados a partir de um outro plano, quando bloqueado suas linhas de fuga, um plano de composição (um plano de imanência), que se faz exterior por fluxos e conexões. Fazer os agenciamentos voltarem sua face para o plano de composição é po­ tencializar forças de criação, indo de encontro aos estratos organismo, subjeti­ vação e significação: para a subjetivação, as singularidades e hecceidades; para a significação, o sentido enquanto expresso; e para o organismo, o Corpo sem Órgãos. Nesse momento, queremos nos compor com um pensamento sobre o corpo que não diz respeito ao organismo, nem a um Eu nem a um Outro, e sim a um corpo povoado por intensidades e não por extensões enquanto segmentos – segmentos disciplinares em torno da sexualidade, por exemplo. O Corpo sem Órgãos (CsO) se contrapõe ao organismo, seu inimigo. É um corpo, um corpo com órgãos, no entanto, com órgãos que não pressupõem um organismo como um regime, uma estratificação, em torno de suas funções. “O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe for­ mas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 24). Assim, sobre ele vão se formar ainda a significação e a subjetivação, a significância e o sujeito. Satisfazendo­se do plano de composição, o CsO propicia: uma desarticulação do organismo, abrindo o corpo a novas conexões que lhe potencializam; uma experimentação em vez de uma intepretação, que é própria ao regime da signifi­ cação, do significante; e uma dessubjetivação, contrapondo a existência de um sujeito de enunciação (o Ser) rebatendo­se em um sujeito de enunciado (o Sujei­ to). Portanto, temos um corpo que se conecta, e não se conjuga, heterogeneizan­ do­se a cada conexão com outro elemento – um corpo, linguístico ou não linguís­ tico, humano ou não humano. É um corpo rizomático, que privilegia a multiplicação de sentidos pela expe­ rimentação e o devir como singularidade ou hecceidade – subjetivação sem su­ jeito – que arrasta o sujeito a uma zona de indiscernibilidade, de involução cria­ dora e contemporânea. Mas pode ser enganoso e muito perigoso pensar apenas nesse movimento de desterritorialização absoluta, que se deixa ir pelas linhas de fuga. Deleuze e Guattari (2012a) nos dizem que o CsO oscila entre os dois planos, entre o plano de organização e o plano de composição, e que é necessário, em alguns momen­ tos, guardar um pouco de organismo, assim como significação e subjetivação, por questões políticas – um exemplo, citemos os movimentos atuais de políticas de gênero, que problematizam o caráter social da noção de gênero e de sexuali­ dade. O que também pode ser muito perigoso, por outro lado, quando tais polí­ ticas tendem a estancar a diferença enquanto processo contínuo de criação po­ sitiva de vida, ao caírem na esfera da identidade. Oscilar entre os dois planos é considerar que o CsO é desterritorialização, ao mesmo tempo que opera uma reterritorialização, em que a terra deixa de ser território para fazer­se solo ou suporte, onde quem habita é um nômade e não, o migrante. Este último vai de um ponto fixo a outro ponto, por caminhos feitos; e aquele define os pontos no trajeto, podendo ser desterritorializados a qualquer 198 TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 POR UMA PRAGMÁTICA MENOR: TENSÕES ENTRE LINGUAGEM, CORPO E POLÍTICA LÍNGUA E LINGUÍST ICA momento. Partindo disso, o corpo possui uma latitude e uma longitude, os dois elementos de uma cartografia: a latitude, que se constitui por afetos e intensi­ dades, aumentando graus de potência, de devir; e a longitude, por uma compo­ sição de elementos extensivos, marcada por relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão. Em nível de corpo e linguagem, o corpo mantém relações de elementos exten­ sivos, como os órgãos, tanto internamente como externamente; e essas relações sentem efeitos de outros elementos, intensivos, quando da presença de um cor­ po sobre outro corpo, aumentando ou não a sua capacidade de agir. Esses ele­ mentos são os afetos que Deleuze (2011a), em certo momento, qualifica como signos – que traduzimos aqui como a capacidade da linguagem de agir no (e com o) corpo, desterritorializando­o. Afetos, de affectus, conceito advindo da filosofia de Baruch Spinoza (1632­1677) (DELEUZE, 2012) diz respeito a um modo de pensamento não representativo, diferente da ideia que se faz como modo repre­ sentativo; e afecção, de affectio, diz respeito a um tipo de ideia que determina um afeto, porém, um modo de pensar inadequado que representa uma afecção do corpo, ou seja, a mistura de um corpo com outro corpo e/ou a marca ou pre­ sença de um corpo sobre outro corpo, isto é, o efeito. Há afetos tristes e afetos alegres. No encontro, onde se dão as ideias-afecções, um corpo pode afetar outro de maneira triste ou alegre, como diminuição ou aumento da potência de agir, de existir. Ousemos pensar no afeto triste como política da palavra de ordem que exprime um tom de morte, e alegre, o afeto que potencializa o tom de fuga da palavra de ordem. Ou melhor, trata­se de uma política e uma experimentação, corpus e socius; de um exercício, de uma práti­ ca, de um limite enquanto potência de diferença. Então, como desarticular os estratos? Como construir para si um Corpo sem Órgãos? Karina Buhr2 (2015b, p. 190), potencializadora do #SexoÁgil enquanto um de­ vir­mulher, sobre o qual nos dedicaremos mais à frente, aponta­nos uma saída: Da primeira vez chorei da segunda vez chorou da terceira comprei: um globo terrestre uma escada e um vibrador. Pode ser triste ou feliz o fim do amor. Trata­se de uma saída em relação a abrir o corpo a conexões, em que sua unidade ontológica é apenas a de uma multiplicidade, que não prevê um Uno nem um Múltiplo. Uma corporeidade vaga, que foge à coisidade sensível, forma­ da e percebida – ao corpo, como de costume e cartesianamente o entendemos –, e à essencialidade formal inteligível, ao que é o corpo. Desse modo, é uma cor­ poreidade enquanto acontecimentos­afetos, da ordem do desejo – não, o psica­ nalítico (Cf. DELEUZE; GUATTARI, 2011c) – como produção de realidade social, um corpo que se processualiza a partir de singularidades, devires. 2 Karina Buhr, cantora e compositora começou na música em 1992 nos maracatus Piaba de Ouro e Estrela Brilhante do Recife. Foram inúmeras as participações em trilhas sonoras de filmes, peças de teatro e dança. Em 2014, lançou a versão anual da revista Sexo Ágil, com seus textos e ilustrações. Disponível em: <issu.com/karinabuhr/docs/sexo_agil_01> e em: <www.karinabuhr. com.br/blogs>. Acesso em: 14 fev. 2016. TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 199 DINA MARIA MARTINS FERREIRA E JONY KELLSON DE CASTRO SILVA LÍNGUA E LINGUÍST ICA UMA GRAMÁTICA DE REVIDE? Quando falamos em organismo, remetemos a um regime de corpos, configu­ rado por um agenciamento que pressupõe uma máquina abstrata. A respeito de máquina abstrata, podemos traduzi­la como uma gramática de uma forma de vida. Assim, uma máquina abstrata nada mais é do que uma gramática. Concei­ tos de gramática e de forma de vida que nos levam à concepção wittgensteiniana da linguagem, em que o sentido advém de determinados jogos de linguagem, diretamente ligado ao uso (WITTGENSTEIN, 1999). No uso, o sentido faz parte de uma forma de vida, de um jogo de linguagem, que se constitui social, político, histórico e cultural – sua gramática. Considerando isso, o organismo provém, enquanto estrato para com o corpo, uma máquina abstrata que opera por seg­ mentações, regimes, hierarquias e binaridades. Deleuze e Guattari (2012c) de­ nominam essa máquina abstrata de dois tipos, que podem ser complementares: máquinas abstratas de estratificação e máquinas abstratas sobrecodificadoras ou axiomáticas. Mas o que lhes efetuam? Agenciamentos concretos. Aparelhos de captura ou de Estado são os agenciamentos que operam seg­ mentações ao corpo, impondo um organismo. A ciência pode ser um aparelho de estado, por exemplo, a medicina, o discurso médico em torno da sexualidade. Dessa forma, o Estado se faz e se mantém, não por apresentar um chefe que o governe, mas, sim, pelos órgãos e dispositivos de poder que o mantém como plano de organização e desenvolvimento, com suas linhas de segmentaridade – a ciência, nessa direção, é um órgão de poder, uma dita ciência maior. Como vimos anteriormente, o que vem contrapor o organismo é o Corpo sem Órgãos, quando um agenciamento volta sua face para um plano de composição, que se potencializa por conexões, intensidades e velocidades. O agenciamento, ao se voltar para esse plano, presta­se, então, como uma máquina de guerra. A máquina de guerra é mais próxima de uma máquina abstrata imanente, não estrati­ ficada, de uma forma de vida que privilegia os processos em vez dos produtos. Em termos de gramática, entendemos que a máquina de guerra é uma gramática de revide contra o Estado e seus aparelhos. Tem como uma de suas ca­ racterísticas principais o fora, a exterioridade como multiplicidade imanente que lhe impulsiona contra a interioridade que satisfaz uma máquina abstrata e os aparelhos de Estado. Segundo Deleuze e Guattari (2012c), a interioridade se apresenta a partir de uma dupla articulação entre Um­Dois: o déspota e o legis­ lador, o ceifeiro e o organizador. Essa dupla articulação distribui as binaridades, como homem/mulher, adulto/criança, sexo/gênero, heterossexual/homosse­ xual e outras tantas mais no nível dos corpos, através de aparelhos de estado. Baseando­se em um modelo de pensamento que toma a existência de um Universal como política – a representação –, a dupla articulação também se faz presente na linguagem, nos moldes de língua/fala, competência/desempenho, sujeito do enunciado/sujeito de enunciação etc. Formada por um imperium (o Todo, o Ser) e por uma república dos espíritos livres (o Sujeito), a dupla articula­ ção sanciona o Estado. Temos um modelo moderno colonial do pensamento. Uma política descolonial é a do pensamento enquanto máquina de guerra, devir, exterioridade. “Todo o pensamento é um devir, um duplo devir, em vez de ser o atributo de um Sujeito e a representação de um Todo” (DELEUZE; GUAT­ TARI, 2012c, p. 53). Nesse sentido, a sexualidade e, por que não, as identidades 200 TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 POR UMA PRAGMÁTICA MENOR: TENSÕES ENTRE LINGUAGEM, CORPO E POLÍTICA LÍNGUA E LINGUÍST ICA de gênero ou identidades sexuais, não conseguem se manter por binaridades, mesmo apostando em formas bissexuadas, porque aí lhe atravessam n sexuali­ dades, traçadas por um devir. O devir faz, por exemplo, um homem devir­mu­ lher. Devir que não quer dizer imitar, assemelhar­se, tornar­se, ou identificar­ ­se. O devir é um bloco de sensações que arrasta os pares mantidos por um aparelho de estado para uma zona de vizinhança e indiscernibilidade, sem que o maior e o menor, nesses pares, não sejam desterritorializados. Nessa zona de vizinhança e indiscernibilidade, há graus ou traços de inten­ sidade e expressão que aumentam ou diminuem a capacidade do corpo de me­ tamorfosear­se, construindo um plano de composição conectado ao exterior, ao fora, que lhe põe em funcionamento. Esses graus ou traços, como dissemos, são os afetos, que potencializam o corpo, valendo­se como as armas da máquina de guerra contra os aparelhos de Estado. Por isso, uma máquina de guerra é uma gramática de revide, e os afetos, as armas. Os afetos seriam devires que consti­ tuem a linguagem, uma vez que, de acordo com Deleuze (2011a), os afetos são signos, em que um signo é sempre um efeito de outro signo; e a afecção seria a presença de um signo no corpo. Tal presença, quando aumenta a capacidade de o corpo agir contra as segmentações – o organismo –, comporta­se como criação de vida, o segundo tom da palavra de ordem, o tom de fuga. O signo, entretanto, também pode se comportar como uma ferramenta. Se agir como tal, faz parte de um aparelho de Estado, próprio a um regime de signos, um regime significante. Portanto, a depender do agenciamento, um signo varia de sen­ tido: no agenciamento máquina de guerra, seu sentido é projetivo como uma arma, e no aparelho de Estado, introjetivo ou introceptivo como uma ferramenta. As armas e as ferramentas também se diferem em relação a seus modelos de ação. Se uma ação encontra­se no nível do trabalho, pressupõe um modelo hi­ lemórfico – uma ferramenta trabalha uma forma sobre uma matéria –, operando cortes como o aparelho de Estado, de modo a vencer ou utilizar resistências; de maneira inversa, se a ação é livre, a matéria deixa­se compor por singularidades ou hecceidades e por traços de intensidade e expressão, uma matéria­fluxo, em que a “arma se encontra diante de revides, a evitar ou a inventar” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 78, grifo nosso). As diferenças entre armas e ferramentas devem­se aos agenciamentos dos quais são consequências. Com armas, o devir­mulher se faz como uma máquina de guerra, indo de encontro às binaridades acerca da sexualidade e das ques­ tões de identidade de gênero, como movimento molecular, de criação de mundo. Não há devir sem criação de mundo, pois somente se é máquina de guerra quan­ do se cria outra coisa ao mesmo tempo – um devir todo mundo. Logo, a máquina de guerra não tem como objeto a guerra, mas, sim, o traçado das linhas de fuga criadoras contra a axiomática do Estado com seus aparelhos de captura. #SEXOÁGIL: UM DEVIR-MULHER O que chamamos de #SexoÁgil, até o momento, refere­se a um conceito em produção3. O símbolo # junto a uma ou mais palavras, ou em um enunciado, compõem uma hashtag, que hoje nas redes sociais “faz da vida e da história as 3 O conceito compõe uma cartografia atualmente em construção no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PosLA) da Universidade Estadual do Ceará (Uece). TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 201 DINA MARIA MARTINS FERREIRA E JONY KELLSON DE CASTRO SILVA LÍNGUA E LINGUÍST ICA condutoras do tempo real, ao não pararalisar o tempo, mas apropriar­se dele e reterritorializá­lo” (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 188). Essa reterritorialização acontece com uma narrativa coordenadora de uma determinada ação coletiva, em fluxo. Desse modo, a hashtag se faz como uma palavra de ordem, constituin­ do­se de atos de fala atribuídos a corpos, uma variação de um agenciamento. Sintetizando, compreendemos a hashtag em questão como um conceito em produção e também como uma palavra de ordem, impulsionados por um agencia­ mento – agenciamento que não tem apenas o #SexoÁgil como uma palavra de ordem, mas tantas outras que podem ser mapeadas. Sendo assim, cartografamos a produção desse conceito a partir de algumas palavras de ordem que, como va­ riações de um agenciamento, o colocam em funcionamento. No entanto, qual narrativa coordenadora de uma ação coletiva #SexoÁgil efetua, enquanto conceito e palavra de ordem? A ação narrativa diz respeito à revista ou fanzine Sexo Ágil, produzida pela artista brasileira Karina Buhr e por amigos(as) da artista. A cada oito de março, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher, é publicada nas redes sociais uma nova edição da revista ou fanzine Sexo Ágil. Isso acontece desde 2012. Textos, imagens, fotografias e desenhos são arranja­ dos para juntos produzirem sentidos em torno de uma subjetivação, uma iden­ tidade feminina. Porém, não é uma comemoração ao dia internacional da mu­ lher, como se pode imaginar. É uma ação que contraria, até mesmo, a existência de tal comemoração, como o #PegaNoMeuOitoDeMarço – uma hashtag que se faz como palavra de ordem nesse dia, nas redes sociais, principalmente no Twitter. Uma palavra de ordem que potencializa um devir-mulher frente a uma subje­ tivação comemorada, traçando uma zona de intensidade enquanto política de uma linha de fuga minoritária, uma nova forma de vida. Devir­mulher que não significa tornar­se mulher, pois quando se “torna”, encontramo­nos no âmbito da identidade do gênero. Nesse caso, o devir é uma antimemória, uma antirepre­ sentação (DELEUZE; GUATTARI, 2012b): Sexo Ágil grita aqui então pelo direito dos pais de filhas meninas pequenas as levarem pra fazer cocô num banheiro masculino, sem a pequena ser amaldiçoada, xingada, ou estuprada, nem o pai ridicularizado, ameaçado, acusado de pedofilia ou preso. Sem o pai precisar pedir pra uma desconhecida, no banheiro feminino ao lado, levar sua filha pequena pra fazer cocô. Direitos básicos de um cidadão (BUHR, 2014, p. 16). Territórios significantes, organizados e subjetivados são desterritorializados por um processo que privilegia o sentido, a criação de corpo e as singularidades, como podemos perceber na citação anterior, que compôs a edição 2014 de Sexo Ágil. Pa­ ra tanto, articulando o conceito de palavras de ordem, como atos de fala imanentes atribuídos a corpos e como variações de agenciamentos, mapeamos (in)tensões existentes entre linguagem, corpo e política na produção do conceito #SexoÁgil. Derivando da filosofia de Deleuze e Guattari (2012b), o conceito devir­mulher funciona como uma política minoritária, contrapondo­se tanto a uma maioria quanto a uma minoria política. O homem, o heterossexual, o branco, o europeu, por exemplo, exercem políticas majoritárias, na direção de que o outro se define a partir dele, que é o padrão. A minoria, por sua vez, diz respeito ao que é colo­ cado como posição inferior ao padrão, como a mulher, o homossexual, o negro, o latino. Entretanto, o devir não é uma política de minoria, pois, se fosse, estaria envolvido por uma representação. 202 TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 POR UMA PRAGMÁTICA MENOR: TENSÕES ENTRE LINGUAGEM, CORPO E POLÍTICA LÍNGUA E LINGUÍST ICA O devir compõe­se de um duplo movimento, que se faz necessário para estar minoritário: 1. “um movimento pelo qual um termo (o sujeito) se subtrai à maio­ ria, e outro pelo qual um termo (o termo medium ou o agente) sai da minoria” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 93); 2. movimento que a mulher tem de devir­ ­mulher, quando a minoria deixa de ser um conjunto definível em relação à maioria. Além disso, quando uma mulher devém mulher, aquela devém na me­ dida em que o sentido de devir­mulher também devém. Ocorre daí uma multi­ plicação de sentidos acerca do que é estar mulher, uma mobilidade de sentidos jamais em equilíbrio. Nessa perspectiva, um homem pode devir­mulher, como #SexoÁgil experimenta e propõe em: Vamos falar de direitos dos homens? Pelo direito deles pequenos brincarem de boneca e de cozinha, pelo fim da nóia deles quando gostam de uma roupa e perguntam “essa blusa é meio gay?”. Pelo direito dos homens terem banheiros públicos mais humanos, menos baias de cavalos, sem precisar mostrar o pau pra todos os outros e que esses banheiros tenham também fraldários, assim como os das mulheres. Pelo direito deles de cuidarem dos filhos (BUHR, 2014, p. 15). Dessa maneira, devir­mulher não se posiciona como uma política de identida­ de de gênero, porque este tende a bloquear os processos de variação contínua. Não é uma política de semelhança, nem de imitação, nem de identificação; é uma pos­ tura descolonial acerca da subjetivação ancorada em sujeitos definíveis por orga­ nização e segmentação, quando a subjetivação é um estrato. Ao estrato da subje­ tivação, Karina Buhr (2015a, p. 53, grifo nosso) experimenta um devir-papangu: Um dos dias mais inteiros de minha vida foi nesse Carnaval, fantasiada de Papangu, pelas ladeiras de Olinda. [...] Lá ia eu andando, pulando, correndo, sem ninguém saber que eu era uma mulher, logo, ninguém preocupado em reger meus movimentos, com a roupa frouxa do monstrinho e a máscara que cobre a cabeça e o cabelo e que nem sua mãe consegue te reconhecer dentro dela, a um palmo do nariz. É isso, um dos dias mais intensos da minha vida foi quando passei pelas ruas sem ser mulher diante de olhos violentos. Guattari e Rolnik (1996) nos dizem que a única subjetivação possível é a ca­ pitalística, pois é próprio do capital, como mais­valia de poder, bloquear os pro­ cessos de devir e transformá­los em produtos, moldando­os em identidades. A mídia, a escola, a família e outros jogos de linguagem, por assim dizer, são dis­ positivos de poder ou agenciamentos que capturam o devir. A esses aparelhos de captura, como o dia internacional da mulher, e agenciamentos como máquinas de guerra se voltam contra, potencializando devir. Seria o agenciamento revista Sexo Ágil, enquanto máquina de guerra, com suas palavras de ordem performa­ tizando armas de revide frente a regimes de significação, de disciplinarização do corpo e de subjetivação. O #SexoÁgil, como conceito que traça um devir­mulher, parece se colocar em movimento a partir de agenciamentos como máquinas de guerra, já que “os con­ TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 203 DINA MARIA MARTINS FERREIRA E JONY KELLSON DE CASTRO SILVA LÍNGUA E LINGUÍST ICA ceitos são agenciamentos concretos como configurações de uma máquina” (DE­ LEUZE; GUATTARI, 2010, p. 46). Podemos dizer que a revista é uma das entra­ das que compõe o mapa conceitual de #SexoÁgil, e a artista Karina Buhr apenas um anômalo que devém mulher, que tangencia esse processo. Diferente do anormal, o anômalo não pressupõe um padrão, um normal em contraposição; ele é composto apenas de devires, afetos, funcionando como uma borda e ocupando uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade. Karina Buhr é cantora, compositora, percussionista, escritora, poeta e desenhista, enquanto identidade. No entanto, como anômalo, potencia­ lizou no mês de setembro de 2015 uma ação­arte­manifesto intitulada Selváticas4. O fotógrafo Beto Figueiroa e a jornalista Aline Feitosa, na cidade do Recife, lançaram um ensaio fotográfico protagonizado por 14 mulheres, entre elas Ka­ rina, como uma máquina de guerra contra o aparelho de captura Facebook que, dias antes, havia censurado na rede social a capa do novo disco da cantora em que ela posa sem blusa, com os seios expostos na foto. No ensaio, as 14 mulhe­ res também estão sem blusa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Um agenciamento se compõe de dois eixos, um horizontal e um vertical: no primeiro, constitui­se de expressão e conteúdo, ou seja, um agenciamento cole­ tivo de enunciação e maquínico do desejo; no segundo, faz­se de lados territo­ riais e de pontas de desterritorialização. Uma micropolítica se vale do devir, da potência das pontas de desterritorialização do agenciamento, que são linhas de fuga aos territórios fixos de subjetivação, organismo e significação – quando o agenciamento vira sua face para um plano de organização e desenvolvimento. Com as palavras de ordem e seus tons de morte e de fuga, jamais podemos sair do âmbito da linguagem. Exprimem um caráter social para a enunciação, em que uma palavra de ordem devém outra palavra de ordem, caracterizando­se co­ mo uma perspectiva dialógica da linguagem – inclusive, Deleuze e Guattari (2011b) referenciam Bakhtin e Voloshínov (2010), ao discorrerem sobre o discur­ so indireto como determinação “primeira” para a origem da linguagem, para a enunciação social e coletiva do agenciamento. Nesse sentido, a palavra de ordem, como variação de um agenciamento, desestabiliza a ideia de sujeito como um ser individual, autônomo e consciente. Na verdade, nem sujeito, porque o agencia­ mento é coletivo – um coletivo não quantificável, um discurso indireto livre. Karina Buhr (2014, 2015a, 2015b), como anômalo, posiciona­se com um li­ vro de poemas, chamado Desperdiçando rima; com sua coluna mensal, na Revista da Cultura; com seus dois blogs, Romântico Defeituoso e Pane no Pântano; com suas músicas e letras em seus três discos lançados até o momento, em carreira solo; com blogueiras feministas no Twitter; com textos no Facebook; e por aí – com o fora –, com muitas outras entradas por vir, engendradas por co­ nexões, compondo uma gramática de revide. Diante disso, podemos traçar um devir­mulher na produção do conceito #SexoÁgil, enquanto uma relação entre linguagem, corpo e política, a partir de uma pragmática menor; e assim, ao ex­ 4 204 A ação-arte-manifesto pode ser conferida em: <http://www.betofigueiroa.com.br/ensaios/ver/5/selvaticas>. Acesso em: 13 fev.2016. TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 POR UMA PRAGMÁTICA MENOR: TENSÕES ENTRE LINGUAGEM, CORPO E POLÍTICA LÍNGUA E LINGUÍST ICA perimentar tal pragmática, problematiza­se de que maneira esta, como política minoritária, pode potencializar um fazer pesquisa em pragmática linguística. TOWARD A MINOR PRAGMATICS: TENSIONS BETWEEN LANGUAGE, BODY AND POLITICS Abstract: We intend to think a minor pragmatics based on the Gilles Deleuze and Félix Guattari’s philosophy, mainly in your book A Thousand Plateaus. For this, we connect the concepts of order­words, as speech acts assigned the bodies; of Body without Organs as creation of body against the discipline of organism; and of war machine as a grammar of counterattack. Therefore, we experiment the trace of the concept #SexoÁgil that itself makes becoming­woman as politics of a minor pragmatics, that deterritorializes processes of subjectification rooted in gender identities. With that, we problematize a minor pragmatics as a minorita­ rian politics, that can potentizes a doing research in linguistic pragmatics. Keywords: Order­Words. Body without Organs. Becoming­Woman. REFERÊNCIAS AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médi­ cas, 1990. BAKHTIN, M. M.; VOLOSHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. BUHR, K. Vamo falar de direitos dos homens? Sexo Ágil, n. 3, p. 15­16, 2014. BUHR, K. Alegria alegoria. Revista da Cultura, ed. 92, p. 53, mar. 2015a. BUHR, K. Desperdiçando rima. Rio de Janeiro: Fábrica231, 2015b. DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991. DELEUZE, G. Crítica e clínica. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011a. DELEUZE, G. 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TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 194­206, jan./abr. 2017 http://dx.doi.org/10.5935/1980­6914/letras.v19n1p194­206 205 DINA MARIA MARTINS FERREIRA E JONY KELLSON DE CASTRO SILVA LÍNGUA E LINGUÍST ICA DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012b. v. 4. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012c. v. 5. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópo­ lis: Vozes, 1996. MALINI, F.; ANTOUN, H. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013. MOITA LOPES, L. P. Como e por que teorizar o português: recurso comunicati­ vo em sociedades porosas e em tempos híbridos de globalização cultural. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). O português no século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. p. 101­119. RAJAGOPALAN, K. 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