Constelações culturais no Museu Virtual da Infância
Ana Beatriz Bahia
Universidade Federal de Santa Catarina, Museu da Infância
Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC
Palavras-chave: Infância; Museu Virtual; banco de dados.
A comunicação versa sobre os subsídios teóricos e metodológicos do Museu Virtual da Infância,
uma das ações do Museu da Infância (coordenado pelo Dr. Celdon Fritzen/UNESC, apoio GEDEST),
instituição que visa coletar, documentar, preservar e disseminar a produção científica e artístico-cultural
DA, SOBRE e PARA a infância, assim como, fornecer subsídios para os processos e as pesquisas que
abordam ou tangenciam a Infância. Parte-se de três pressupostos básicos: a) as crianças são sujeitos
implicados em um contexto espaço-temporal, que possuem modos singulares de vivenciar e significar o
mundo, de se apropriar e produzir cultura (Philippe Ariés; Walter Benjamin); b) os museus se consolidam
enquanto instituição social pela qualidade da comunicação que estabelece com seus públicos (HooperGreenhill); c) a extensão virtual de uma instituição não se efetiva apenas pela digitalização de dados,
exige a releitura dos seus objetivos com a Cibercultura e a elaboração de ações apropriadas ao
Ciberespaço (Pierre Lévy). Para tanto, usa-se o modelo de museu virtual proposto por Bart Marable,
estruturado em três camadas de acesso à informação (pesquisa, exposição e experiência) que oferecem
aos visitantes múltiplos modos de visualização e de interação com uma mesma base de dados. A camada
de pesquisa, primeira etapa de desenvolvimento (financiado pelo CNPq, sob coordenação da Dra. Ma.
Isabel Leite), voltado aos pesquisadores do tema, que estará on-line até 2008, contará com o banco de
dados do acervo, munido de filtros de busca, que permitirão o cruzamento de informações acerca do
autor, do contexto de produção, da materialidade e das temáticas do objeto, além de comentários do
autor e/ou do usuário (no caso do acervo DA infância, comentários das crianças) acerca das formas de
construção e/ou de uso do objeto. O acervo Museu Virtual da Infância não contará apenas com as peças
do Museu da Infância, mas com o de outras instituições e pessoas colaboradoras que estão participando
da construção desse “planetário” de culturas DA, SOBRE e PARA a infância, mediante a doação de
reproduções digitais de objetos referentes ao tema, assim como, das informações solicitadas para sua
inclusão no banco de dados. É dessa forma que o Museu Virtual da Infância pretende constituir-se como
espaço promotor do conhecimento, com recursos que permitam aos pesquisadores construir
“constelações” de culturas infantis a partir dos dados ali veiculados.
A noção de museu como depósito de objetos estranhos às novas gerações não condiz
com o campo museal atual. Isso fica mais evidente nos museus que têm a criança como
público privilegiado, ou naqueles que tomam a infância como tema norteador. É esse o caso do
Museu da Infância (http://www.museudainfancia.unesc.net) cujas metas são coletar,
documentar, preservar e disseminar as produções científica e artístico-cultural DA, SOBRE e
PARA a infância, assim como fornecer subsídios aos processos e às pesquisas que abordam
ou tangenciam esse tema.
O museu foi concebido em 2005, por professores do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), junto ao Grupo de
Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação Estética (http://www.gedest.unesc.net). Proposto
como projeto de extensão, coordenado pelo Prof. Dr. Celdon Fritzen, juntamente da Profª Drª
Maria Isabel Leite e do Prof. Dr. Gladir Cabral, contou ainda com a colaboração de alunos de
graduação e de pós-graduação da instituição, além de pesquisadores convidados externos –
como é o meu caso.
1
Desde 2006, ali se realizam exposições, oficinas com grupos escolares e atividades
para educadores, eventos abertos às comunidades intra e extra-universitária. Ainda, em
parceria com o Núcleo de Arte Educação do Museu de Arte de Santa Catarina (NAE-MASC) e
com o Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (CED-UFSC), promove
mensalmente o ciclo “Museu, Educação e Cultura em debate”. Todas essas ações são
realizadas por entendermos que um museu consolida-se como instituição educativa, nem tanto
pelo tipo e pela quantidade de peças que resguarda, mas pela qualidade da comunicação
estabelecida com seus públicos e, por sua vez, pelo entendimento que traz acerca do tema
agregador do seu acervo – no nosso caso, as culturas infantis.
Das culturas infantis
Os estudos de Philippe Ariés (1981) mostraram o quão gradual e parcial foi o
reconhecimento dos signos da infância: do olhar reticente à criança, no início da Idade
Moderna, à idealização desta no Romantismo. O século XIX terminou com práticas que
isolavam a criança do “mundo dos adultos”, ora introduzindo-as num regime educacional
disciplinar de internato, ora resguardando-as das mazelas da vida em sociedade a fim de
favorecer um tipo de aprendizagem que não violentasse sua “natureza” infantil – como intentou
i
fazer o preceptor de Emílio . Por mais distintas que sejam essas duas abordagens, em ambas a
criança era mantida à parte do cotidiano dos adultos. Ou seja, viveu-se na modernidade a
substituição da medieval indiferença à infância por uma “muralha” que distinguia infância e
maturidade, assim como os contextos privados (ligados à criança e ao lar) e os públicos (dos
quais a criança era excluída).
Tal distinção foi criticada durante o século XX, em especial a partir das reflexões
tecidas por Walter Benjamin (1984). Afirmava-se, assim, que as produções culturais
vivenciadas pelas crianças não são expressão de um modo de vida autônomo, mas “um mudo
diálogo simbólico entre ela [a criança] e o povo [cidadão adulto]” (p. 70 – grifo no original).
Desde então, a criança não é mais percebida como retrato da pura natureza humana; passa a
sujeito histórico que possui modos singulares de vivenciar e de significar o mundo, de se
apropriar e de produzir cultura. Sujeito de contextos e de referenciais diversificados e
entrelaçados aos dos adultos.
Passar do diálogo mudo à voz ecoante e ultrapassar o processo de reconhecimento dos
signos da infância rumo à promoção de uma comunicação efetiva entre crianças e adultos são
motes norteadores do Museu da Infância. Por isso, sua ação não se resume a colecionar
desenhos, brinquedos, livros, filmes e tudo mais relacionado à criança. Na verdade, objetiva
favorecer significações múltiplas do acervo e promover a produção de novos enunciados
científicos e artístico-culturais, ou seja, fazer-nos apreender de forma crítica e contextualizada
uma multiplicidade de culturas infantis.
Do museu comunicativo
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Assim como o processo do conhecer não se traduz na imagem caricatural da aula
expositiva como transmissão de saberes instituídos, tampouco se reduz a isso, a comunicação
em museus não deve ser entendida como monólogo autoritário. O discurso museal nunca é
sumário; é repleto de pontos polêmicos e de paradoxos que suscitam diálogos com o público.
Tal abertura discursiva já está no caráter polissêmico dos objetos que resguarda, e é
potencializada em função da diversidade e da coerência do acervo, assim como do modo como
este é oferecido ao público. O fator comunicativo é constitutivo da própria postura que o
visitante terá dentro do museu, no processo de significação do acervo, transitando das
“respostas iguais” valoradas em ambiente escolar às apropriações autorais. Defendendo a
atitude autoral do visitante, Maria Isabel Leite (2005, p. 46) destaca que:
Cada passeio, cada visita [em museu], cada experiência
suscita no contemplador sensações e indagações únicas;
desperta desejos, abre portas para novas buscas – e isso não
poderia ser desperdiçado, encolhido. É o ponto central do
transbordamento, tanto de crianças quanto dos educadores.
Deslocados da obrigatoriedade e da estrutura burocrática do ensino formal, os museus
propiciam experiências que são, simultaneamente, lúdicas e educativas; tais vivências
levantam e difundem paixões, fagulhas que inflamam o conhecer. O papel do educador não
deixa de estar presente; porém, distribuído nas estratégias de comunicação realizadas pelos
de meios de massa (como catálogos, exposições e museus portáteis) e por meio de relações
interpessoais (oficinas e outras atividades nas quais a fala do mediador configura-se em função
da reação dos receptores). Essas estratégias estruturam a experiência do visitante, tendo o
poder de atraí-lo ou de repeli-lo, de estimular um posicionamento intelectivo ou venerativo em
relação aos objetos, de problematizar ou de mistificar o próprio museu. Por tudo isso, Eilean
Hooper-Greenhill (1998) defende que a ação comunicativa é a força que dá forma ao projeto
político (educativo) da instituição museal contemporânea.
Balizado pelas idéias de infância plural e de museu comunicativo, desde 2006 o
Museu da Infância iniciou um mergulho progressivo no universo da telemática. Primeiramente,
elaborou um sítio para veiculação na web de informações acerca do museu, divulgando a
agenda de suas atividades presenciais e os projetos que desenvolve. Posteriormente,
estendeu seu campo de ação ao ciberespaço, tomando a rede mundial de computadores não
apenas como instrumento informacional, como também tecnologia que promove a
interconectividade
entre
computadores,
programas,
instituições,
pessoas
e
dados,
engendrando um novo espaço sociocultural, comunitário, que extrapola os territórios e as
convenções temporais antes definidas (Leão, 2004). Para tanto, desde 2007, trabalha na
estruturação e no desenvolvimento de um museu virtual propriamente dito, dentro do projeto
“Culturas infantis: processos de apropriação e produção” – coordenado pela Profª Drª Maria
Isabel Leite, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
3
(CNPq), por meio do edital 50/2006, de seleção pública de projetos de pesquisa nas áreas de
Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas.
Dos museus virtuais
Nos anos 90, os museus povoavam a web com sítios informativos. Logo vieram as
simulações do museu-prédio feitas com programas gráficos 3D, nas quais o internauta tinha a
ilusão de se deslocar pelas salas expositivas do museu, tendo a planta-baixa do prédio como
navegador. Essa transcrição direta do espaço arquitetônico do museu para o meio digital não
satisfez aqueles que defendem a idéia de um museu virtual não se realizar pela mera
digitalização e veiculação do acervo na web.
A comunicação museal estabelecida por meio da Internet não deve ser tomada como
remédio para aqueles que não podem ir ao museu-prédio; e sim, como oferta de outras formas
de construção de conhecimento – muitas das quais, inviáveis de serem realizadas
presencialmente. Entendemos que a expressão “museu virtual” designa as iniciativas que
buscam reinventar os modos de o museu operar – independentemente de incluírem ou não
simulações do seu espaço físico –, de realizar seus objetivos institucionais, tendo em vista as
especificidades do ciberespaço.
O termo virtual é utilizado no cotidiano para qualificar aquilo que não faz parte da vida
“real” por não pertencer ao mundo palpável. Todavia, pela definição filosófica da palavra – por
ii
Gilles Deleuze e por Félix Guattari (1997), remontando à definição de potência por Aristóteles virtual é real: a realidade é composta tanto pelo que possui forma, que está colocado em ato,
quanto por aquilo que está em potência, que é virtual. Apesar de intangível, o virtual não está
dissociado do mundo atual, pois é o informe que está prestes a tomar forma, a realizar-se
enquanto ato – como a árvore que está em potência na semente, ou o fogo, no palito de
fósforo. A atualização não esgota a potência do virtual; porém, garante que este siga existindo
– o que seria da árvore sem a semente, ou dos conceitos (entendidos por Deleuze e por
Guattari como virtualidades) sem os enunciados filosóficos que os atualizam? O processo de
atualização nunca é mecânico – a forma da árvore é resultado tanto das informações contidas
na semente, quanto do ambiente no qual ela cresceu e das interferências que geram processos
de seleções natural e artificial que podem acarretar modificações na própria semente. Assim, o
virtual e o atual não são dimensões estanques e isoladas da realidade; na verdade,
retroalimentam-se. Ou seja, é necessário encarar o virtual não apenas como real, como
também algo necessário e indissociável do atual.
A conceituação do virtual, acima sintetizada, ajuda-nos a entender o que motiva o uso
desse termo para designar produções culturais diversas, como os jogos ópticos dos artistas
cinéticos de meados do século XX, ou a recente Second Life (http://secondlife.com), um
sistema computacional que traz informações referentes à vida em sociedade em potência, que
só ganha forma na medida em que os usuários ali interagem. Em ambos os casos, o autor cria
um dispositivo, uma obra em reserva, cuja forma não está prefigurada, pois será o resultado do
trabalho voluntário de um interator. Com isso, não queremos diminuir o caráter ativo da
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experiência cultural com produtos desenvolvidos por meios tradicionais (como o livro impresso
e a peça de teatro), atividade sobre a qual tão bem teorizou Roland Barthes (2004) designando
o leitor como co-autor da obra saboreada pela leitura. O termo virtual designa um tipo de
produção cultural que exterioriza a dimensão autoral dos processos de significação dos textos
culturais, tornando compartilhada e objetiva uma prática que já se costuma realizar, mas de
modo privado e oculto.
Como produzir uma virtualidade que realize os objetivos do Museu da Infância?
Como exteriorizar a experiência museal enquanto apropriação autoral do patrimônio cultural?
Uma resposta geral não é difícil de ser dada: alçamos o virtual quando
problematizamos aquilo que está posto em ato, ou duvidamos das certezas advindas de
determinadas práticas e conceitos (Lévy, 1996). Para virtualizar uma empresa, por exemplo,
precisamos reinventar seu planejamento estratégico, reler seus objetivos para além das
estratégias até então utilizadas e criar ações apropriadas ao novo ambiente no qual vai atuar. A
dificuldade do processo de virtualização vem à tona ao atentarmos para as especificidades de
cada caso, ao tão custoso processo de estranhar aquilo que nos é familiar e encarar o desafio
de construir planos de ação para um ambiente e com tecnologias que nos surpreendem a todo
o momento.
A virtualização de uma instituição não implica em ruptura radical com tudo que já foi
formado. Até porque, como defende Lev Manovich (2006), é característica constitutiva dos
objetos das novas mídias a existência de duas “peles”. Uma delas é a camada cultural –
proveniente da transcodificação de “velhos” meios, categorias e conceitos (como enciclopédia,
narrativa e museu) – que preserva/atualiza as formas de organização cultural antes
desenvolvidas e que permite que as novas interfaces façam sentido para os usuários. A outra é
a camada informática, referente à ontologia, à epistemologia e à pragmática do computador,
responsável pela atualização dos meios anteriores. O autor, em um minucioso estudo dos
objetos computacionais gerados em 1980 e em 90, período da expansão das tecnologias de
silício, aponta a importância dessa camada cultural na absorção (e não do “impacto”, como se
costumou chamar) dos computadores em nosso cotidiano. Se não fosse desse modo, as
tecnologias à base de silício não teriam recebido tão vasta e rápida aceitação pública.
O que se mostra necessário é a flexibilização do corpo institucional, de modo a permitir
o profícuo cruzamento entre o museu e a cibercultura. Em especial, é necessário, antes
mesmo de se ocupar com a digitalização do acervo e com o desenho da interface gráfica,
relativizar as práticas comunicativas já sedimentadas, ponderando o quão comprometidas elas
estão com a dinâmica própria da vida em cidade, com a materialidade do espaço arquitetônico
que contém o acervo e com a incumbência institucional de preservar a materialidade dos
objetos. Tais questões deixam de ser pilares ao pensarmos em museu virtual, espaço a estar
aberto ininterruptamente, no qual será possível dirigir-se, ao mesmo tempo, a pessoas de
todos os cantos do mundo desde um único local (endereço), no qual o internauta poderá visitar
simultaneamente com outros museus, estabelecendo relações entre dados e abordagens
5
museológicas, e com capacidade de receber uma quantidade de visitantes exponencialmente
maior do que aquela dos que adentram seu espaço físico.
Sequer as dificuldades de construção de uma comunicação efetiva que os museusprédio enfrentam correspondem às de um museu virtual. E é claro que outras limitações
existem, em especial, as relativas aos processos de inclusão digital: hoje, menos de um quinto
iii
da população mundial tem acesso à Internet , e a velocidade das inovações tecnológicas
costuma ser maior do que a capacidade dos museus em acompanhá-las. O que devemos ter
claro é que a edificação de um museu virtual não depende apenas do acesso aos recursos
tecnológicos de ponta, mas também de um corpo de profissionais disposto a questionar alguns
dos paradigmas constitutivos dos museus, como a supremacia do objeto original (nãoreproduzido) e da contemplação presencial.
Reprodução e mediação no acesso aos bens culturais é um tema que, apesar de
continuar sendo palco de polêmica, não é recente. Reporta-nos a Walter Benjamin (2000), na
década de 30, lembrando que a reprodução de objetos únicos não iniciou com a fotografia, e
que o intuito de dar acesso massivo aos bens culturais já estava no projeto dos museus
oitocentistas. A diferença destacada por Benjamin está nas técnicas industriais, as quais
trouxeram a possibilidade de reprodução em quantidade indefinida, acarretando a perda do
valor ritual (da aura) da obra de arte e o ganho de uma atualidade ao objeto do passado
histórico. Mais do que lamentar as perdas, o autor entreviu na fotografia (e no cinema) a
diminuição do poder da figura do produtor cultural (do artista) e a geração de “um conjunto de
novas atitudes” no público.
Por essa mesma via, André Malraux (2000), em 1940, defendeu o uso da reprodução
fotográfica como modo de renovação das formas de apreensão do saber cultural, de superação
das limitações que o museu impõe ao nosso imaginário - como a dificuldade de aproximar
peças que se encontram fisicamente distantes, ou de realizar insistentes visitas a uma mesma
obra, ou ainda o acesso àquilo que pertence a colecionadores particulares. Por meio das
reproduções podemos construir museus à margem dos institucionais – que o autor intitulou
Musée Imaginaire –, que funcionem como a leitura dos dramas, à margem da sua
representação, ou como a audição dos discos, à margem do concerto. O acesso mediado pela
reprodução não leva ao esquecimento das qualidades singulares da peça original; ao contrário,
promove tanto o desejo de conhecê-la quanto aponta possibilidades múltiplas de apropriação
do saber que ali é colocado em jogo.
Assim como as gravações das orquestras em estúdio não esvaziaram os concertos,
ou como o cinema não colocou fim ao teatro, é equivocado crer que o advento do museu virtual
represente perigo à existência dos museus presenciais. Não se trata de buscar a substituição
da relação presencial com o objeto museal, mas de agregar modos de experiência cultural
gerados desde o ciberespaço – como vimos no premiado jogo on-line Bosch Universe,
desenvolvido pelo V2_Lab e Ra.nj digital entertainment, para a exposição "Hieronymus Bosch
1450-1516: Only Opportunity to See So Many Works Together", realizada em 2001, pelo
iv
Museum Boijmans/Roterdam . É desse modo que os museus virtuais tornar-se-ão tão
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relevantes para o internauta do século XXI quanto foram os museus monumentais para os
citadinos do século XIX.
O projeto Museu Virtual da Infância
As ações a serem realizadas na “sede” on-line do Museu da Infância (que, por
enquanto, não possui endereço eletrônico) não se distinguirão das presenciais apenas pelas
estratégias comunicativas utilizadas, mas pela amplitude dos conteúdos manuseados. O
desenvolvimento desse museu virtual traduz a constante motivação da equipe do Museu da
Infância para interagir com outras instituições que abordam a temática “infância” e buscar uma
melhor comunicação com as próprias crianças. Por isso, pretende abrigar digitalmente não
apenas as peças do seu acervo físico (reproduções em código numérico, acompanhadas dos
dados documentais), como também as coleções de instituições parceiras e os objetos doados
virtualmente por colaboradores independentes. Além de veicular e de dar condições de
apropriação do universo de signos da infância que ali será configurado, o museu oferecerá
recursos interativos, em diferentes linguagens (como a verbal, a visual e a musical), a fim de
propiciar as produções cultural e científica a partir das peças do acervo.
Tomamos como referência o modelo de museu virtual proposto por Bart Marable, em
2004, que explora a capacidade da tecnologia computacional de prover perspectivas múltiplas
de um mesmo conjunto de informações. O autor propõe oferecer ao visitante do museu virtual
três entradas, correspondendo a níveis de aprofundamento do conteúdo disponível. Eis cada
nível: a) Pesquisa, ou nível de arquivamento do acervo, pensado para especialistas que
dominem termos e nomes específicos da área; estruturado como sistema computacional de
armazenamento e de gerenciamento de dados (vulgo banco de dados) e que dá acesso ao
nível máximo de informações veiculadas pelo museu; b) Exposição, semelhante àquilo que
costumamos ver nos museus-prédio; voltado ao público em geral, destacando as informações
interpretativas e educativas produzidas acerca do acervo. Neste, o banco de dados é implícito
(pois pode ser acessado como possibilidade de aprofundamento das informações) e uma
narrativa é explicitada; c) Experiência, que se distingue do nível anterior por propiciar a
imersão, na qual o visitante vê-se envolvido por artifícios estéticos e lúdicos, propiciando a
vivência de momentos de interação e de fruição.
Apesar de o primeiro patamar ser destinado aos pesquisadores, como os três níveis
são interconectados, o máximo de profundidade de informação acerca de uma peça do acervo
pode ser acessado mesmo por aquele que entrou pelo terceiro nível, pensado para o público
que busca atividades de entretenimento. Trata-se, assim, de uma estrutura densa; porém,
maleável às motivações, às intenções e às digressões de cada visitante. A extensão do
percurso e a qualidade do envolvimento com os conteúdos ali ofertados serão definidas pelo
próprio internauta no transcorrer de sua visita. Por isso, o resgate de dados a ser realizado não
dependerá apenas do sistema computacional que estamos implementando, mas do sempre
diferencial processo cognitivo de cada usuário.
7
O modelo de Marable mostra-se adequado ao Museu da Infância, principalmente por
permitir elaborar ações que extrapolem os perfis tradicionais de público (famílias, profissionais,
escolares), oferecendo um trânsito fluido por seus conteúdos, sem segregar crianças e adultos,
pesquisadores e curiosos.
Iniciamos o desenvolvimento do Museu Virtual da Infância pelo nível de banco de
dados. Partimos da segmentação do acervo já existente – bens culturais DA, PARA e SOBRE
v
a criança – e desenvolvemos fichas de documentação específicas para cada segmento. Estas
nos permitiram documentar as informações intrínsecas e extrínsecas acerca dos objetos do
acervo e serviram de base para a modelagem dos objetos do banco de dados e para a
construção dos filtros de busca. A diferenciação estabelecida entre as fichas não limitará as
buscas pelo acervo como um todo, pois todas possuem uma estrutura comum: dados do autor
e contextuais do objeto, características materiais do objeto e temáticas referidas no objeto (ver
tabela 1).
Acervo DA criança
Dados do autor
Dados do objeto
contextuais
materiais
temáticos
Outros
Acervo PARA a criança
Acervo SOBRE a criança
gênero; idade; ano escolar;
escola que freqüenta e
cidade/estado/país de
moradia (atual e anteriores).
nome, gênero, profissão,
datas de nascimento e de
morte, cidade/estado/país de
moradia (atual e anteriores).
nome, gênero, profissão,
datas de nascimento e de
morte, cidade/estado/país de
moradia (atual e anteriores).
título; tipo de produçãovi;
contexto de produção com
data, cidade/estado/país e
local (de educação formal,
informal ou não-formal);
fator externo que motivou a
produçãovii; propósito da
produção (didática, artísticocultural ou lúdica).
título; número de identificação
do produto; tiragem; tipo de
produção; dados da obra de
referência (no caso de
adaptação infantil); contexto
de produção, com data,
cidade/estado/país e processo
(artesanal ou industrial);
propósito da produção
(desenvolvimento de material
didático, artístico-cultural ou
lúdico).
título; número de identificação
do produto; tiragem; tipo de
produção; contexto de
produção, com data,
cidade/estado/país e processo
(artesanal ou industrial);
propósito da produção
(desenvolvimento de material
didático, artístico-cultural ou
lúdico).
suporte/meio; materiais e
instrumentos utilizados;
dimensões/duração e
formato.
suporte/meio;
dimensões/duração.
suporte/meio;
dimensões/duração.
palavras-chave referentes
aos temas abordados.
descrição temática*.
descrição temática*.
comentários do autor*;
histórico do processo de
musealização do objeto*.
história do objeto*; histórico
do processo de musealização
do objeto*.
história do objeto*; histórico
do processo de musealização
do objeto*.
* tópicos que permitem a inclusão de textos descritivos; nos demais, a informação é incluída em formulários (como em
dias do mês e nomes de países) ou assinalando palavras-chave (como em tipo de produção, material e temática).
Tabela 1: estrutura das fichas de documentação do acervo do Museu Virtual da Infância
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Essa estrutura foi elaborada com o intuito de arquitetar um “planetário” de signos da
infância. É um sistema que, por um lado, permite traduzir em código numérico e sistematizar
um montante de dados acerca dos objetos do acervo, construindo uma base consistente para a
edificação das demais camadas do museu virtual; por outro, busca ser eficiente e flexível para
resgatar os dados, aportando o visitante às condições necessárias para configurar múltiplas
leituras das culturas infantis.
O fato de o Museu da Infância abrir mão da seqüencialidade característica das salas
expositivas não o exime daquilo que lhe é inexorável – a dimensão ideológica subliminar à
constituição e à veiculação pública de um acervo. Todavia, ao não oferecer um
desencadeamento temático, um começo e um fim predefinidos para a visualização do acervo, o
banco de dados do Museu Virtual da Infância solicitará aos seus visitantes a tecedura de
composições próprias, fazendo-os desempenhar um papel semelhante ao que já assumem
como usuários da Internet, na qual nada lhes é mostrado de imediato, e tudo está igualmente
disponível a um clic de distância, aguardando suas solicitações, seleções e co-relações. É por
conta desse posicionamento autoral que a Internet não está sendo palco de uma cultura global
pasteurizada, mas aportando um mosaico dinâmico de referências culturais diversas que ali coexistentes e inter-relacionam-se. Assim também pretende ser o Museu Virtual da Infância, não
repisando as figurações estereotipadas da criança, mas impelindo os seus visitantes a atuarem
como co-editores de constelações de culturas infantis.
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9
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Proceedings. Toronto: Archives & Museum Informatics. Recuperado em 12 dezembro, 2006, de
http://www.archimuse.com/mw2004/papers/marable/marable.html
i
Faz-se aqui referência ao jovem personagem Emílio,da obra de Jean J. Rousseau.
Segundo o dicionário de filosofia de N. Abbagnano, virtual equivale à Potência, definida por Aristóteles nos livros
Terceiro (parte VI), Quinto (parte XII) e Nono da Metafísica. É apresentada em oposição ao ato que, por sua vez,
define-se pela realidade realizada ou que está se realizando.
iii
Segundo estatística apresentada pelo Internet World Stats (http://www.internetworldstats.com/stats.htm), com dados
de setembro de 2007, apenas 18,9% da população mundial têm acesso à rede de computadores interligados. A
porcentagem varia entre os continentes, tendo a América do Norte como topo (70,2% da população são usuários),
seguida da Oceania/Austrália (55,2%) e da Europa (41,7%), no qual Portugal apresenta uns dos melhores índices:
73,8% da população portuguesa têm acesso à rede. Nessa escala, a África fica com a menor proporção (4,7%);
todavia, as pesquisas indicam que essa discrepância está diminuindo. Segundo relatório apresentado por Cláudio
Nazareno, Elizabeth Bocchino, Fábio Luis Mendes e José de Sousa Paz Filho (Coordenação de Publicações da
Câmara/Brasília, 2006), o aumento percentual de usuários da rede no continente norte-americano é cada vez menor
em relação ao latino-americano, por exemplo. Esse mesmo relatório apontou que, em 2002, cerca de 10,3% da
população brasileira tinham acesso à rede e, em 2005, esse número cresceu para 13,9%. Segundo o Internet World
Stats, em 2007, 20,1% dos brasileiros tinham acesso à rede.
iv
Esse jogo é objeto de estudo da tese de doutoramento que estou realizando, com defesa prevista para julho de 2008.
v
Entendendo por produção da infância desenhos, pinturas, esculturas, partituras, trabalhos escolares e demais bens
culturais realizados por crianças; produção sobre a infância, a científica e a artístico-cultural, cujo eixo central é a
diversidade de enfoques sobre a criança; produção para infância, artístico-cultural destinada ao público infantil, como
jogos, brinquedos, músicas, literatura, filmes, entre outros.
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Entre os tipos de produção estão história em quadrinhos, história escrita, narrativa oral, poesia, partitura, canto,
música, palco/ cenário, fantasia/máscara, fantoche/marionete, filmagem, animação (em desenho ou com massinha),
jogo eletrônico, jogo (não-eletrônico), brinquedo eletrônico, brinquedo (não-eletrônico), fotografia, maquete, móbile,
escultura/modelagem, colagem, desenho, gravura, monotipia, pintura, bordado/costura, exercício de cópia, entre
outros.
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Entre os fatores de motivação do acervo da infância destacamos as datas comemorativas, os exercícios e as
avaliações escolares, filme assistido, história ou música ouvida, passeio realizado e atividade lúdica vivida.
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