Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó
ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa)
MULHERES EM PROJETOS COLONIZADORES: vozes silenciadas e corpos
sujeitados
MUJERES EN PROYECTOS COLONIZADORES: voces silenciadas y cuerpos
sujetos
WOMEN IN COLONIZING PROJECTS: silenced voices and subjected bodies
Paulino Eidt1
https://orcid.org/0000-0001-7731-7696
Roque Strieder2
https://orcid.org/0000-0002-0007-7628
Cristiane Elisabeth Cupchinski Rempel3
https://orcid.org/0000-0002-2374-8885
Resumo
O artigo aborda elementos da reestruturação da Igreja Católica no Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, dentro do cenário de restauração de princípios e valores em decadência no Velho Mundo,
face à emergência de novas correntes de pensamento. Aponta que nas frentes agrícolas dos
estados do sul, em resposta à descristianização na Alemanha, houve experiências de revigoração
do naturalismo e do romantismo, no final do século XIX e primeira metade do XX. Expressa como
os meios educacionais, culturais, econômicos e o uso da imagem e linguagem reproduziram, longe
dos espaços dos novos tempos, o direito divino pelo teocentrismo e o padroado. O eixo de análise
da produção bibliográfica apresenta três reflexões básicas: e emigração europeia como resposta
às bandeiras do modernismo e do liberalismo; a formação do Projeto Porto Novo/SC, de caráter
confessional e etnicamente uniforme; e a restauração da autoridade patriarcal por meio de
mecanismos de enquadramento e normatização do papel da mulher e da família dentro do
paradigma naturalista da colonização.
Palavra Chave: Colonização. Direito divino. Autoridade patriarcal. Papel da mulher.
Doutorado em Ciências Sociais – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Rede Pública
de Ensino de Santa Catarina. E-mail: paulinoeidt1@gmail.com
2
Doutorado em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade do Oeste
de Santa Catarina. E-mail: roque.strieder@unoesc.edu.br
3
Mestre em Educação. Professora titular da rede municipal de ensino de Tunápolis (SC). E-mail:
cristiane_cupchinski@yahoo.com.br
1
Como referenciar este artigo:
EIDT, Paulino; STRIEDER, Roque; REMPEL, Cristiane Elisabeth Cupchinski. Mulheres em projetos
colonizadores: vozes silenciadas e corpos sujeitados. Revista Pedagógica, v. 23, p. 125, 2021.
DOI http://dx.doi.org/10.22196/rp.v22i0.6359
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Resumen
El artículo aborda elementos de la reestructuración de la Iglesia católica en Rio Grande do Sul y
Santa Catarina, en el escenario de restauración de principios y valores en decadencia en el Viejo
Mundo, ante la aparición de nuevas corrientes de pensamiento.Señala que en los frentes agrícolas
de los estados del sur, en respuesta a la descristianización en Alemania, hubo experiencias de
revitalización del naturalismo y el romanticismo, a finales del siglo XIX y la primera mitad del XX.
Expresa cómo los medios educativos, culturales, económicos y el uso de la imagen y el lenguaje
reprodujeron, lejos de los espacios de los nuevos tiempos, el derecho divino por el teocentrismo y el
mecenazgo. El eje de análisis de la producción bibliográfica presenta tres reflexiones básicas: la
emigración europea como respuesta a las banderas del modernismo y el liberalismo; la formación del
Proyecto Porto Novo / SC, confesional y étnicamente uniforme; y la restauración de la autoridad
patriarcal a través de mecanismos para enmarcar y estandarizar el papel de la mujer y la familia dentro
del paradigma naturalista de colonización.
Palabras clave: Colonización. Derecho divino. Autoridad patriarcal. Papel de la mujer
Abstract
The article addresses elements of the restructuring of the Catholic Church in Rio Grande do Sul and
Santa Catarina, within the scenario of restoration of decadent principles and values in the old world,
in the face of the emergence of new currents of thought. It points out that on the agricultural fronts
of the southern states, in response to dechristianization in Germany, there were experiences of
reinvigoration of naturalism and romanticism in the late 19th century and first half of the 20th. It
expresses how educational, cultural, economic means and the use of image and language
reproduced, far from the spaces of the new times, the divine right through theocentrism and
patronage. The axis of analysis of the bibliographical production presents three basic reflections:
the European emigration as a response to the flags of modernism and liberalism; the formation of
the Porto Novo/SC, confessional and ethnically uniform; and the restoration of the patriarchal
authority through mechanisms of framing and standardization of the role of women and the family
within the naturalist paradigm of colonization.
Keywords: Colonization. Divine right. Patriarchal authority. Role of women
1 INTRODUÇÃO
A Europa vivenciou uma série de mudanças no campo econômico e cultural durante
o século XIX. O advento da Revolução Industrial, a crise do paradigma naturalista, o
surgimento de novas linhas de pensamento, a miséria econômica, as guerras da unificação
e o Kulturkampf (luta pela cultura entre Estados Nações democráticos e poder político
cultural da igreja) criaram as condições para a emigração de milhões de pessoas de
nacionalidades diversas, entre as quais a alemã. A migração intercontinental também foi
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uma resposta a uma sociedade que se descristianizava a partir do surgimento do estado
laico em muitos países do velho continente. A igreja católica escolheu o sul do Brasil para
criar projetos jesuíticos dentro do cenário de restauração de princípios e valores cristãos
em decadência no Velho Mundo. Estes valores situavam-se entre o liberalismo, onde todos
são largados à sua sorte e o comunismo, onde a coletividade é submetida aos auspícios do
Estado.
Uma das experiências mais singulares dentro do processo migratório foi a
implantação de uma colonização alemã na terceira década do século XX no Oeste de Santa
Catarina. O Projeto Porto Novo4, criado sob matizes religiosos, pautou-se no misticismo e
numa visão sacralizada da natureza e da sociedade. Os colonos, sob orientação dos
jesuítas, instauraram um território confessional e etnicamente homogêneo, determinando
uma fronteira entre o sagrado e o profano. Seus protagonistas foram orientados a se
evadir da sociedade moderna, vista como pecaminosa, para reacender antigos valores em
meio à selva subtropical catarinense. Milhares de pessoas, pobres e tementes a Deus,
atenderam ao pedido migratório para, num espaço cativo, fazer frente à miscigenação
racial e aos grupos urbanos emergentes nos espaços de emigração. Os idealizadores
conseguiram, longe de tudo e de todos, inventar um espaço eficientemente submetido
cultural e economicamente aos propósitos da religião católica.
Embora não se possa estigmatizar o projeto religioso como avesso à civilização e à
civilidade, Porto Novo conseguiu ser instrumento de conservação cultural e moral por
muito mais tempo que qualquer outro espaço de imigração. A doutrina social implementou
a construção e sustentação de um sentimento de pertencimento ao grupo e
corresponsabilização coletiva. O associativismo moveu e estabeleceu metas e ações,
acordadas, pactuadas a partir do compartilhamento de compromissos. Assim, mesmo após
à Nacionalização do Ensino (1938) e da adoção de estruturas públicas (prefeitura, exatoria,
delegacia e outros), as comunidades não abdicaram de erguer colégios, fazer mutirões
entre famílias, construir hospitais, clubes sociais e igrejas pomposas.
Porto Novo, forçadamente idealizada enquanto negação do Outro, foi uma
resposta à crise do paradigma naturalista, do teocentrismo e da decadência dos padrões
4
O território do antigo Projeto Porto Novo é atualmente ocupado pelos municípios de Itapiranga, São João do
Oeste e Tunápolis e situam-se no Extremo Oeste de Santa Catarina.
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tradicionais de sociabilidade da primeira metade do século XX.
Embora houvesse
dissidências, as práticas ordinárias da maioria acenavam para a possibilidade da
emergência de um território com sentido único a fim de expressar uma única cultura e
história. Ademais, os protagonistas do projeto, embora emergentes de pontos múltiplos,
em especial da Encosta Inferior do Rio Grande do Sul, são gestados dentro de um mesmo
discurso onde vão aos poucos se adaptando ao poder nivelador da maioria, em especial
pelas necessidades impostas pelo tempo e, pela solidariedade imprescindível para a
sobrevivência de todos. A hegemonia de um espaço tão singular também pode ser
associada à deficiência nos meios de transporte e comunicação. A policultura de
subsistência foi o elemento econômico mais importante até a segunda metade do século
XX. A localização do projeto Porto Novo, ilhado entre a densa floresta argentina (Oeste) e
Rio Uruguai (Sul e Leste), gerou poucos pontos de contatos e de comércio (madeira e fumo
predominantes até por volta de 1950).
Ao conceber uma civilização autônoma, sem embates nem rivalidades de língua e
religião, o projeto jesuítico, com seu indisfarçável desejo de superioridade na relação
estabelecida com outras culturas, vai encontrando pela frente rugosidades que nem
sempre atenderam às expectativas iniciais. O espaço não foi somente unidade. Dentro das
fronteiras cerradas, houve rivalidades. Indivíduos exerceram sua individualidade. O poder
nivelador, por vezes, não conseguiu uma passiva adequação de todos aos seus produtos
culturais. Grupos dissidentes fizeram recortes claros no tecido social único. Um jogo de
forças, silenciosamente, atuava contra o poder monopolizador. Exíguas minorias
perseguiram, de modo incontestável, um mundo substancialmente autônomo. Essa
trajetória das minorias, obscura e quase indecifrável, aflora, porém, após novas pesquisas
sobre o audacioso projeto.
O eixo de análise da produção bibliográfica apresenta três reflexões básicas: a
emigração europeia como resposta às bandeiras do modernismo e do liberalismo; a criação
de um protótipo de cristão novo no Projeto Porto Novo/SC e a restauração da autoridade
patriarcal por meio de mecanismos de enquadramento e normatização do papel da mulher
e da família dentro do paradigma naturalista da colonização.
O propósito da escrita não é de ser um exercício de convencimento, e sim um legado
histórico para aqueles que possam sentir-se “tocados” por uma trajetória de vida que não
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viveram ou rememorar com os protagonistas o quão batalharam para tecer a vida em meio
ao nada.
2 SÉCULO XIX: EMIGRAR PARA ISOLAR, DOUTRINAR E SUBMETER
No século XIX, as relações burguesas e proletárias no velho continente tornaram
cada vez menos natural o paradigma naturalista. As bandeiras do modernismo e do
liberalismo, entre outras correntes de pensamento, foram contestadas por instituições
conservadoras, dentre as quais a Igreja, que as colocou como responsável pelo ateísmo e
a imoralidade. Os novos tempos questionaram a aura de sacralidade atribuída aos
representantes religiosos e de sua autoridade inconteste. A secularização dos bens do
clero católico desencadeou a perda da sua autonomia econômica e abalou sua influência
política.
A igreja, quanto ao seu lugar, à sua organização e à sua competência na sociedade,
era evidentemente incompatível com os novos ventos que começaram a varrer o
mundo desde a Europa, a partir da segunda metade do século dezoito. Pregavase a liberdade como pressuposto para que a realização individual e coletiva fosse
possível. A liberdade pressupunha o direito do indivíduo sobre a livre escolha de
sua profissão, de seu estilo de vida, do lugar onde morar, da ideologia a seguir, da
confissão religiosa a professar (RAMBO, 2002, p. 282).
Especificamente na Alemanha, a laicização das instituições públicas, criou as
condições para reacender, em terras distantes, os valores cristãos em decadência. pelos
agentes católicos. No sul do Brasil, vários projetos jesuíticos5 foram criados dentro do
cenário de restauração de princípios e valores em decadência no Velho Mundo. Kreutz
(1991, p.35) destaca: “Expulsos da Alemanha (1872), boa parte dos jesuítas foi trabalhar
junto à colonização alemã no Rio Grande do Sul, onde assumiram todo um projeto de
atividades religiosas e sociais sem precedentes”1.
Os projetos criados pela Igreja católica foram uma resposta à sociedade alemã que
estava se descristianizando, face à emergência de uma classe operária e novas correntes
de pensamento. A volta ao naturalismo e ao romantismo, em crise nas regiões de
emigração recebem novo impulso nas frentes agrícolas dos séculos XIX e XX. A Igreja, no
5
Destaque para os projetos de Serro Azul/RS (atualmente Cerro Largo) e Porto Novo/SC (Itapiranga).
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seu plano de organização temporal, longe dos espaços dos novos tempos, revigorou o
direito divino expresso pelo pensamento teocêntrico e o padroado.
A pessoa nascia num determinado contexto e por isso mesmo passava a integrálo, sem que se lhe oferecesse oportunidade de, por livre escolha, seguir outro
caminho. O contexto marcava o espaço em que a pessoa necessariamente tinha
que se movimentar. Estabelecia limites para a sua visão do mundo, do homem, do
ideário ideológico, social, econômico e também e de modo especial do religioso.
É neste último aspecto que o fato se torna mais visível. Nascia-se numa sociedade
cristã e por isso mesmo era-se cristão. Não havia o mínimo espaço para uma
escolha livre fora destes parâmetros (RAMBO, 2002, p. 282).
Rambo (2002) destaca ainda que os sacerdotes estimulavam o fervor religioso, a
vida sacramental e a fidelidade religiosa. Nessa direção, a Igreja dos imigrantes
caracterizou-se pelo envolvimento na vida do povo, incentivando a educação e o bem-estar
material como pressuposto para a vida espiritual saudável. Envolveram-se e concentraram
maior atenção na assistência social e na liderança em projetos que visavam à promoção da
vida humana.
Kreutz (1991) aponta o romantismo alemão como um movimento de ideias
nitidamente conservadoras que se manifestaram entre o final do século XVIII e meados do
século XIX. Constituiu-se de um movimento que fez renascer a espiritualidade, sendo,
sobretudo, uma reação ao iluminismo e ao liberalismo, que mais ou menos à mesma época
inspiraram transformações políticas, econômicas, sociais e mentais. Os românticos
alemães sonhavam com a unidade perdida com o fim do Sacro-Império e clamavam por
uma comunidade ideal, projetada pela imaginação, ora no futuro, ora no passado.
Promoveram a glorificação do passado medieval e feudal dos povos alemães e a
valorização do tradicional, do popular e do nacional.
Em algumas frentes agrícolas do sul do Brasil emergiram experiências e estilos,
comparáveis ao ancien régime. Obras coletivas, hierarquia religiosa, escolas privadas,
mutirões comunitários, entre outras experiências, ignoraram a existência de um estado
nacional.
A materialidade era de fato apenas aparente, pois, inseria-se existencialmente
numa civilização que na sua essência era religiosa. Concluía-se, daí, que as
autoridades civis necessitavam da investidura religiosa para legitimar suas
funções. Deduzia-se dessa situação, também, que todo o poder sobre a sociedade
civil emanava de Deus (RAMBO, 2002, p. 4).
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A grande leva de imigrantes europeus que adentraram no território brasileiro no
século XIX, vitimados pela conjectura econômica, cultural e política do velho continente,
reproduziu em solo brasileiro seu modus vivendi, interceptado pelos novos tempos. O
caráter comunitário das colonizações foi condição necessária para a reprodução da família
camponesa. Em meio a disputas territoriais e à constante flutuação das fronteiras, o
modelo comunitário e a solidariedade constituíram uma blindagem contra a insegurança e
a instabilidade e, em última instância, condição necessária para a sobrevivência do próprio
tecido social. O associativismo e a construção de vínculos sociais permitiram, a partir dessa
relação intersubjetiva, a formação do sujeito dependente do contexto com o qual ele se
relacionava interativamente.
Mergulhados em seus sonhos migratórios, esses migrantes conseguiram elaborar
um conjunto de princípios étnicos que inviabilizavam qualquer contradição profunda ou
instabilidade desestabilizadora. Os migrantes, isolados geográfica e culturalmente, foram
induzidos a dedicar a maior parte de suas preocupações e de suas atividades a exercer
ações coletivas. O fracionamento da área colonizada em comunidades criou laços coletivos
determinantes para a edificação de estabelecimentos escolares, religiosos e sociais
sustentados por uma rede de associações.
Numa comunidade podemos contar com a boa vontade dos outros. Se
tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez. Ninguém
vai rir de nós, nem ridicularizar nossa falta de jeito e alegrar-se com nossa
desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar
explicações e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as pessoas ouvirão
com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para
sempre. E sempre haverá alguém para nos dar a mão em momentos de tristeza.
Quando passarmos por momentos difíceis e por necessidades sérias, as pessoas
não pedirão fiança antes de decidirem se nos ajudarão; não perguntarão como e
quando retribuiremos, mas sim do que precisamos. E raramente dirão que não é
seu dever ajudar-nos nem recusarão seu apoio só porque não há um contrato
entre nós que as obrigue a fazê-lo, ou porque tenhamos deixado de 1er as
entrelinhas. Nosso dever, pura e simplesmente, é ajudar uns aos outros e, assim,
temos pura e simplesmente o direito de esperar obter a ajuda de que precisamos
(BAUMAN, 2003, p. 09).
A existência de uma comunidade pressupõe que um número considerável de
pessoas tenha coisas em comum, que se “considerem” ou se “imaginem” integrantes
desse grupo. Nessa acepção, dispositivos e significados adquirem forças, quando
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partilhados por todos. O controle sobre o outro por meio da partilha comunitária
descentrou e expropriou a subjetividade própria para implantação de um pensamento
comum. “Uma vez identificada com uma essência a comunidade vem murada no interior
de si própria e separada do seu exterior ” (EXPOSITO, 2017, p. 34). O sistema comunitário
incumbia-se de prever e, ao mesmo tempo, anular conflitos e contradições, dentro do
pensamento cristão.
Bauman (2003, p. 08), ao se referir à força comunitária, enfatiza:
Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que
ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos
desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós.
Podemos discutir — mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando
tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e,
embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum,
podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns aos
outros, e podemos estar certos de que os outros à nossa volta nos querem bem.
No sul do Brasil, numa espécie de bandeiras, ao estilo do Brasil colonial, as
colonizações frutificaram e mostraram que o pensamento naturalista continuava
povoando suas mentes, independente da conjetura política e econômica da nova pátria.
2.1 A formação de cristãos novos no projeto Porto Novo
O processo de urbanização já verificado nas antigas colônias de imigração do Rio
Grande do Sul e Santa Catarina introduziu naqueles espaços novas concepções de mundo
e de vida. Novamente o paradigma naturalista, com seus padrões tradicionais de
sociabilidade, deslocou homens e mulheres, eruditos e analfabetos, para uma nova frente
agrícola no Oeste Catarinense na primeira metade do século XX.
No Extremo Oeste de Santa Catarina, em 1926, foi erguida uma colonização de
alemães católicos de caráter ímpar no Brasil: o Projeto Porto Novo, conhecido, na literatura
alemã do Brasil como um dos mais fechados e homogêneos concebidos dentro do
processo migratório do século passado. Para tanto, seus idealizadores contaram com a
ajuda de uma instituição afinada ao projeto católico. A Sociedade União Popular
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(Volksverein6) deu os suportes ideológicos, técnicos e materiais para a concretização do
projeto imunológico. O modelo de Einheitskolonie (étnica e confessionalmente
homogêneo), de caráter fechado, foi a saída encontrada para a restauração de antigos
valores morais e religiosos que estavam definhando no espaço de imigração das chamadas
colônias velhas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
O Projeto Porto Novo, criado e movido pelos padres jesuítas, assumiu mais do que
em qualquer outra colonização, uma natureza eclesiástica sacra, mesmo quatro décadas
após a instalação do Estado laico no Brasil. O catolicismo e a organização societária do
Projeto Porto Novo estavam por longos anos livres do vínculo com o Estado. As diretrizes
sociais e culturais, desalinhadas com a comunhão nacional, estavam estreitamente ligadas
com a Igreja Católica Romana. Fortalecida frente à sociedade, reforçou seu papel de
organizadora, disciplinadora e condutora do sentido da história.
Como um recuo no tempo, os modelos arquitetônicos, a forma de pensar e
linguajar, as festas, os rituais e as práticas religiosas, o romantismo rural, o teocentrismo,
as práticas coletivas remontam ao passado teocêntrico da história. Assim, o gerenciamento
da economia, a condução da família e da sociedade tiveram seus alicerces em parâmetros
religiosos. Nos espaços público e privados, os protagonistas do audacioso projeto
imunológico, incessantemente, faziam seus contratos, alianças e promessas por meio da
evocação das imagens, orações e súplicas.
O projeto jesuítico recebeu, no início da década de 1930, a visita do Padre Provincial
da Companhia de Jesus, Padre Petrus Lenz, o qual, na missa dominical, numa das
comunidades que serviram de Porta de Entrada (Sede Capela), traçou um paralelo entre o
Projeto Porto Novo e a Terra Prometida bíblica de outrora. Conforme ele, a Terra
Prometida atual tem um povo escolhido, para transformar um cantinho do mundo num
paraíso. E segue:
6
Criada em 1890, a União Popular para a Alemanha Católica foi a mais representativa organização associativa
católica da Alemanha, para a promoção e divulgação das ideias do catolicismo social. No sul do Brasil,
organizou frentes agrícolas, financiou terras, organizou paróquias e comunidades, criou escolas paroquiais.
Assumindo funções de Estado, também criou casas de saúde, asilos e instituições de caridade.
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Queridos ouvintes, vocês que escolheram por livre espontânea vontade esta bela
Terra, única em sua beleza, neste lado de vosso Jordão, o maravilhoso Uruguai,
vocês que aceitaram arcar com a difícil tarefa, o imenso trabalho, sacrifícios e
privações de um novo começo nesta mata virginal ‒ ainda não maculada pelos
maus costumes do mundo ‒ que se encerrava intocada em sua pureza como
criação divina, e se tornou um lar para vós e vossos filhos: estejam e permaneçam
conscientes de vossa responsabilidade, que vocês aceitaram ao escolher a
bênção, de mantê-lo, para vocês, para vossos filhos e futuras gerações.
Mantenham longe desta terra os perigos morais e relativos aos costumes que
vigoram no mundo exterior, não os deixem encontrar a entrada pelos portões de
vossa terra junto das águas de vosso Jordão, para que, para sempre, esteja
garantida contra a maldição e a perdição. Contem para vossos filhos e netos como
o Senhor vos guiou e os ensinem a seguir seus mandamentos. Permaneça fiel,
meu amado povo de Porto Novo (ROHDE, 2011, p. 157).
O protótipo do “Cristão Novo”, criado a partir da demarcação de território
exclusivamente de confissão católica, gestou uma tradição religiosa hegemônica de
negação da pluralidade religiosa. As vidas de seus protagonistas não foram expostas à
alteridade. A pregação antiprotestante, a negação de casamentos mistos, a não aceitação
da condição de solo, a crueldade com as mães solteiras, entre tantas outras formas da não
aceitação da diferença provocou discórdias por muitas décadas. O projeto religioso foi
pensado a partir de uma organização sólida composta por associações setoriais
mutuamente complementares. Essas associações 7 espalhadas nas comunidades, davam
sustentação religiosa e moral ao projeto. Lúcio Kreutz (1991, p. 63) destaca os três pilares
indispensáveis para a sustentação do Projeto Católico da Restauração: o associativismo, o
controle da imprensa, a escola e o professor paroquial.
No campo econômico, na região sul do Brasil, as frentes agrícolas foram movidas
por imigrantes europeus com base nas unidades familiares orientadas pelo minifúndio, a
policultura, a mão de obra familiar. Dentro desse modelo, o patriarcado foi um elemento
determinante na organização social, ao passo que a vida cotidiana tinha uma regularidade
de calendário.
A religião se constituía num espaço onde as respostas e os significados eram
procurados, encontrados e finalizados. Isolados na selva, com poucas miragens externas,
os “escolhidos da Terra Prometida” eram confiantes e tementes a Deus, revelando na
crença o sentido dos seus propósitos. Há de se reconhecer que a religiosidade inspirou atos
7
Entre as associações setoriais, destaque para a Congregação Mariana, ao Apostolado da Oração e ao Divino
Coração de Jesus.
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profundos de caridade, solidariedade e serviço altruísta, embora com barreiras étnicas e
religiosas bem definidas. Essas contribuições positivas geraram ressonâncias em várias
gerações, como a inclusão e a caridade, além do intenso progresso econômico decorrente,
em especial, da disciplina e obediência a que os colonos estavam submetidos8.
A incansável motivação religiosa, aliada a uma vida sacramental intensa, fez com
que se multiplicassem as vocações ao sacerdócio e à vida religiosa em geral nas
comunidades9. À exceção dos primeiros colonizadores do projeto, os nascidos e criados no
meio da selva, não possuíam outra miragem de mundo, com exceção de periódicos
religiosos que circulavam no sul do Brasil. Estavam crentes de que os costumes, as crenças,
as relações sociais, as práticas sociais da região, representavam o modelo generalizado
para o restante do país. A novidade nunca foi aleatória em vista que práticas
diferenciadoras dos diversos espaços não foram trazidas à luz, para evitar contágio. O
discurso ideológico impunha as verdades pela repetição dos seus enunciados, que, por sua
vez, dava consistência interna ao projeto. Não obstante, os membros do projeto exerciam
pressões uns sobre os outros, através de um controle social formal, ou informal, para que
houvesse um conformismo com os padrões de comportamento considerados apropriados.
Emilio Willems (1980, p. 306) enfatiza o efeito da coerção comunitária, no sentido de
pensamento único:
A comunidade inteira participa da educação dos menores. Qualquer adulto pode
censurar uma criança que não se comporta de acordo com os padrões da
comunidade local. Essas censuras encontram geralmente não a oposição, mas a
aprovação dos pais. Há uma espécie de frente única dos adultos em geral, contra
os imaturos, uma solidariedade de pais, vizinhos, professores e pessoas do
mesmo status ou de nível superior.
Enfim, a negação da pluralidade, no Projeto Porto Novo relegou o diferente ao não
existente ou, em última instância, ao manipulável. Assim foi com os povos pré-capitalistas
que rondavam a mata antes mesmo da colonização. A existência de índios e caboclos no
interior da colonização nunca foi oficialmente reconhecido, mesmo para aqueles que
incorporaram a caricatura europeia.
Este pensamento também pode ser entendido a partir do artigo “A Formação Cristã como formação para a
humanização”, publicado no volume 22 da Revista Pedagógica.
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A título de exemplo, no Projeto Porto Novo, numa comunidade rural com cerca de 4 quilômetros quadrados
de área (Linha Ervalzinho, São João do Oeste/SC), foram ordenados 12 padres.
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2.2 O papel das mulheres de Porto Novo/SC
Porto Novo também nasceu pelas mãos de mulheres – raríssimas vezes citadas na
literatura alemã e tampouco na história oficial dos municípios que compunham o projeto
imunológico. Desconhecidas, ignoradas e varridas das biografias dos homens ilustres do
projeto, sua importância está vindo à tona graças à tecnologia, que tem interligado
pesquisas e pesquisadores. Essas protagonistas, embora não possam ser vistas com
perspectivas e dinâmicas libertadoras das mulheres, conseguiram romper com a sociedade
masculina na medida em que participaram ativamente nos debates públicos das
associações católicas.
Lermen (2009) registra que as autoridades masculinas, quando chamavam as
mulheres para a participação em eventos como palestras, não visavam à verdadeira
“participação” feminina, mas, muito pelo contrário, objetivavam mantê-las como membros
dóceis e submissos dentro das estruturas sociais e eclesiásticas tradicionais, como o
sistema patriarcal.
A presença delas somente foi admitida enquanto se mostrava útil para uma
finalidade definida já de antemão. Como sujeitos autônomos e agentes
independentes, no entanto, que pudessem contribuir com as suas próprias
experiências para a configuração e construção do projeto da Restauração, elas
não interessaram (LERMEN, 2009, p. 08).
O desempenho institucional da religião para a manutenção da heteronomia foi
endossado pelas mulheres presentes nos alicerces de Porto Novo. Estes limites devem ser
entendidos dentro da objetividade possível em uma sociedade masculina. Embora movidas
pelo saudosismo e pelo pensamento naturalista, Josefine Wiersch e suas três filhas
altamente letradas10 e com conhecimento universalizado, acompanharam os primeiros
anos da colonização homogênea. A filha de Josefine Wiersch destaca:
10
Josefine Wiersch, foi uma grande intelectualidade, conterrânea e contemporânea de Karl Marx,
desconhecida da história da frente agrícola de Porto Novo. Josefine Wiersch, de nacionalidade alemã, nasceu
em 1860 na cidade de Trier. Com 11 anos se mudou para Luxemburgo onde viveu sua adolescência. Na
juventude trabalhou como professora particular na França onde realizou estudos avançados. Migrou para os
EUA no início do século XX, onde nacionalizou suas três filhas (Maria, Margot e Antônia). Em 1920 imigraram
para o sul do Brasil, e, em 1926 Maria, já casada com o diretor da colonizadora do Projeto Porto Novo (Carlos
Rohde), acompanhou-o à implantação do Projeto imunológico. A mãe migrou para Porto Novo no natal de
1930.Josefine, em uma das suas obras, retrata o entusiasmo pela formação de espaços sem mistura étnica.
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Nossos melhores e mais felizes anos foram os primeiros anos como pioneiros,
apesar de todas as dificuldades e do trabalho duro. Sentia-se melhor a presença
de Deus ali onde Ele era mais necessário, sua Providência sábia se fazia sentir com
maior intensidade na imensidão esmagadora da natureza indomada. Época em
que o amor ao próximo ainda era a atitude comum, e o espírito dos homens ainda
não havia sido corrompido pelas tentações tolas e vícios da sociedade moderna.
Ali, onde havia tanto trabalho a ser feito, não sobrava tempo para coisas e
pensamentos inúteis. Era necessário trabalhar e rezar para que não faltasse a
benção divina (ROHDE, 2011, p. 18).
A família Wiersch, desde o início da colonização, conclamou a intelectualidade cristã
presente no projeto para o engajamento em prol da educação escolar das crianças. Numa
época em que grande parte da população brasileira era analfabeta, praticamente 100% dos
filhos de Porto Novo foram alfabetizados.
Embora letradas e com um pensamento mais universalizado, a mãe e suas três filhas
não representaram um contraponto da mulher de Porto Novo. Elas se moviam dentro das
possibilidades dadas e ao que convinha socialmente. A exemplo das demais, tiveram que
assumir a condição de aprendiz do marido, tanto nas decisões sobre seu corpo, quanto nas
decisões políticas e administrativas do grupamento familiar.
Se é uma mulher que fala sobre experiências obtidas em três mundos, então
ficamos duplamente atentos: não é próprio da mulher, rapidamente a partir de
algumas experiências fugazes – e muitas vezes às pressas – realizar julgamentos
gerais, como com facilidade os homens ou as crianças o fazem. O olho da mulher
está voltado para o amor e para a aparência dos fenômenos concretos 11
(GRAACH, 1936?, p. 06).
O sentido feminino, quando chamadas para o espaço público, era para referenciar
a ordem tradicional e contribuir para cessar ameaças dos novos hábitos e costumes do
mundo moderno. A naturalização da subserviência feminina, embora menos opressora
quando se remete à participação em dispositivos familiares, era notadamente
Na obra prima de maior repercussão no velho continente “Durch drei Welten” (1936 ?, p. 426), escreve:
“Escolhemos Porto Novo como nosso lar final e, temos a firme esperança de que [...] uma tribo alemã pacífica
criará terra natal lá, que estilo e costumes alemães também se tornarão lá, que sons e melodias alemãs soarão e
fazendas e cidades amigáveis serão refletidas nas inundações do poderoso Rio Uruguai”. Mãe e filhas foram
entusiastas defensoras do Projeto Porto Novo, e durante o período de dificudades, a exemplo da
Nacionalização, usaram seu conhecimento junto às autoridades estaduais e federais para interferir a favor
dos colonizadores humildes.
11
O prefaciador da obra mais importante da pioneira alemã Josefine Wiersch, intitulada “Durch Drei Welten”
(Por Três Mundos), deixou claro o pensamento social da época. A obra está em vias de tradução e publicação
na Língua Portuguesa. A data de 1936 como publicação da obra ainda está por ser confirmada em definitivo.
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desacreditada e silenciada no conjunto de regras que regiam a cultura coletiva 12. A história
raramente registra conflitos de ordem moral matrimonial, de mães e esposas, do projeto
imunológico de Porto Novo13. A imigrante alemã Josefine Wiersch, antes de migrar para o
Projeto Porto Novo, escreveu, no velho continente, as diretrizes que deveriam nortear o
papel feminino:
No dia em que as nossas mulheres (alemãs) trocam sua liberdade pela dignidade
de donas de casa [...] de um modo geral sabem proteger sua dignidade e, de outro
lado, dependem das opiniões e do comportamento do chefe da casa [...]. Quanto
mais uma mãe se afasta dos grandes deveres de uma mãe cristã, tanto maiores
serão os danos que recairão sobre ela mesma. Uma simpatia excessiva e uma
atitude comunicativa muitas vezes são mal entendidas e facilmente colocam a
pessoa envolvida em situação de inconveniência. É por isso que uma dama já se
previne para evitar intrusões (WIERSCH, 1936?, p. 430).
A família Wiersch se engajou no projeto católico o que foi fundamental para a vida
cotidiana dos colonos. Marcada pelo humanismo que herdou na Europa no século XIX
assumiu a defesa de causas coletivas, distantes de interesses particulares e da transgressão
da ordem existente. Longe do conforto do primeiro mundo, não teve, no meio da selva,
uma postura de passividade e observação e sim de ação.
Intelectuais católicos engajados, na medida em que saíram de sua reflexão cristã
passiva ampliaram o espaço da religiosidade pela ação política e social dentro do projeto.
Foram determinantes para assentar as bases de uma vida coletiva que consubstanciou na
ênfase da elaboração de um sentimento de pertencimento e identidade na permanência
12
Nas colônias alemãs, os encontros denominados de Katholikenversammlung (congressos ou reuniões dos
católicos), além de lançarem as bases institucionais e econômicas da colonização, também focavam a imagem,
os papéis e os deveres da mulher nas frentes agrícolas, dentro do projeto de Restauração Católica. Realizados
desde 1898, via de regra a cada dois anos em regiões diferentes, eram os eventos católicos mais
representativos nas frentes agrícolas do sul do Brasil. As Assembleias não foram uma criação dentro do
projeto migratório do Brasil meridional; já aconteciam na Alemanha e foram revigoradas nas frentes agrícolas
de descendência alemã. O primeiro congresso que teve participação feminina foi realizado em 1930 (Arroio
do Meio/RS), cujo tema era a reafirmação do papel tradicional da mulher. Agathe Fessler (ex-enfermeira
militar, no exército austríaco-húngaro), proferiu a palestra “Frauenfürsorge” com o subtítulo “Os cuidados
duma boa dona de casa e mãe”. No mesmo evento, Maria Rohde palestrou sobre o tema “Um juramento de
fidelidade à índole, à comunidade cultural e à fé dos antepassados”, que focou a experiência da pioneira no
Projeto Porto Novo. A normatização do papel feminino, apesar da tímida presença delas nos encontros,
continuava sendo ditada pelos homens da colonização. A título de exemplo, no Congresso Católico de 1932
(em Selbach/RS), a palestra “A destruição da benção da Procriação” foi proferida por um médico. Na Colônia
Porto Novo, o Congresso foi realizado em 1934, com a presença de católicos dos três estados do sul do Brasil.
13
Um dos episódios mais chocantes retratado por meio de cartas foi a saga de Nair, personagem descrita em
detalhes por Eidt (2016), na obra Os Sinos se dobram por Alfredo, da Editora Argos/Chapecó.
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da tradição. Uma concepção de identidade que não expressava a abertura para a
diversidade, mas era virtuosa com todos os seus atores. Uma sociedade que defendia a
ordem, a hierarquia da autoridade religiosa, a educação guiada pelos princípios religiosos
e controlada pela autoridade eclesiástica.
Em Porto Novo, restaurou-se o papel tradicional da mulher e qualquer outro
princípio foi recusado. As bases do projeto estavam plenamente sintonizadas com os 3K 14
(Kirche, Küche e Kinder). Outros desafios ou possibilidades que pudessem abrir novas
perspectivas de vida foram sufocados pela moral do pflicht (dever). As mulheres da frente
agrícola estavam expostas aos desígnios masculinos e não decidiam sobre seu corpo. A
dignidade do corpo individual foi capturada pela dureza de uma práxis e de uma imagem
coletiva. Assim, o corpo coletivo não foi objeto de reflexão. Ele seguiu a trilha do hábito.
O colonizador foi reflexo do fluxo da história e da vivência no interior de uma
tradição que legou pré-conceitos e estereótipos. Grande parte dos processos culturais foi
adotada de forma inconsciente e estava inscrita no patrimônio histórico dos alemães. É
factível de que a cultura é preexistente ao indivíduo, que não tem alternativa senão aderir
a ela sob pena de se tornar marginal e dissidente. Assim, cabia aos membros comunitários
exercerem pressões uns sobre os outros, através de um controle social formal ou informal,
para que houvesse conformismo com os padrões de comportamento considerados
corretos e apropriados: “O conjunto de estratégias implantadas e sistematicamente
conduzidas pelo clero em meio às comunidades, principalmente rurais, foram
determinantes para o êxito do Projeto da Restauração Católica” (RAMBO, 2002, p. 19).
Assim o papel feminino foi, antes de mais nada, uma construção mental lenta e
gradual que culminou em dispositivos de aceitação. A possibilidade de reconfigurar o
corpo, de reajustar sua forma de sentir e lidar com o mundo decorre do contato com outras
amostras culturais. O corpo, uma vez gestado, adequava-se a posturas sociais possíveis da
sociedade portonovense. Os gestos, a fala, o bem e o mal são incorporados por
mecanismos e técnicas de poder presentes nas instituições nas quais houve o
pertencimento.
14
Termo usado por Claude Lévy Strauss ao se reportar ao papel tradicional da mulher na sociedade.
Respectivamente: igreja, cozinha e filhos.
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A pioneira Maria Rohde (2011, p. 221) que acompanhou sistematicamente a
colonização desde sua fundação, em sua obra-prima destaca o papel feminino e sua
importância na edificação da região:
Quantas vezes, andando a cavalo pela colônia, eu via mulheres executando, de
forma igual aos homens, os trabalhos mais pesados. Eu via muitas mulheres ajudar
a derrubar com machado, capoeiras e até árvores. Eu as via ajudar cortar de
traçador (trummsäge), os troncos mais grossos, tábuas e vigas para suas casas,
até na montagem e construção dos seus casebres eu as via botar mão. E quando
terminava a jornada pesada, e no silencioso casebre colonial toda a família já fora
descansar, muitas vezes perto do fogão ainda ardia a luzinha de banha e a
incansável mãe se debruçava sobre a roupa a ser remendada da sua família,
porque não podia sacrificar para isso o precioso dia de trabalho. E mal amanhecia
o novo dia, ela como primeira estava em pé de novo, cuidando do lar, antes que a
família estivesse sentada em torno da mesa do café da manhã, para então
enfrentar de novo, com ânimo, o trabalho pesado de roça.
O caráter quase obsessivo da moral sexual recriminava formas anticonceptivas e o
aborto. As investidas se voltavam principalmente para o quinto, sexto e nono
mandamentos. Dessa forma, o dever de procriar, exaustivamente cobrado em todos os
eventos públicos; o ato sexual entendido somente para a necessidade procriativa; a culpa
do pecado original livremente atribuída à fraqueza feminina; a abominação das relações
sexuais fora do casamento cristão; o espectro da esterilidade sempre atribuída à mulher;
as relações sexuais não consensualmente concebidas; o não direito à sedução, ao gozo, ao
orgasmo e ao prazer; a obrigação feminina de não evitar filhos, entre outras estruturas
opressoras sempre justificadas biblicamente, são o retrato da mulher pioneira.
O ditado – muito presente na mentalidade das mulheres das frentes agrícolas do
século XX, hoje na terceira idade – “Lieben ein Kind auf dem Kissen als eines auf dem
Gewisse”15, atribuiu ao seu útero uma função social, impedindo à mulher o direito de legislar
sobre seu corpo. Nesse entendimento, a mulher se submetia sexualmente por obrigação,
sem dispositivos de prazer. Juridicamente despersonalizada, assumiu o papel bíblico
atribuída à mulher, ou seja, destituída de um corpo pertencente ao esposo e uma alma de
posse de Deus.
15
Melhor uma criança em cima de um travesseiro do que tê-la na consciência. Expressão usada nas
Congregações Marianas como orientação para fins conceptivos.
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Nas frentes agrícolas, de forma geral, a presença de mulheres no espaço público
não transmitia quase nenhuma valorização positiva. Proibidas de inverter a ordem de
prioridades calculadamente premeditada pelos homens, estavam inteiramente absorvidas
pela plenitude dos três “K”. Expressam seus pensamentos e ideias com base em teorias
concebidas em épocas distintas e convenientemente pensadas por uma sociedade
paternal.
Além da questão de gênero, a mulher economicamente era vista como
insignificante. Totalmente excluídas da sucessão quando contraiam matrimônio. A
linhagem beneficiava apenas componentes do sexo masculino e a herança feminina não
passava de um dote, que passava, igualmente, a ser administrado pelo marido. A não
delegação de herança favorecia a submissão feminina aos desígnios do marido. Numa
sociedade masculina, as raras experiências de mulheres que chefiaram o lar deveram-se
mais à aridez dos maridos do que propriamente a uma conquista feminina.
Há de se considerar que, na família pioneira, as relações interpessoais entre homens
e mulheres foram relações cordiais, amistosas e não relações perigosas, cruéis e brutais
como se possa supor. A violência, no seu estado difuso e velado, deu-se pela relação
assimétrica na determinação dos papéis sociais e familiares. Assim, a violência se
manifestou por meio do constrangimento exercido sobre a mulher, destituindo-a do livrearbítrio.
2.3 A flexibilização das amarras culturais
Se foi pelas mãos da Igreja que a mulher desempenhou um papel de subordinação
familiar e de ostracismo social na colonização, foi também pelas mãos da Igreja e da
inserção feminina no trabalho remunerado que a emancipação feminina ganhou força nas
frentes agrícolas.
No Oeste de Santa Catarina, o papel político secundário das mulheres nas frentes
agrícolas recebeu seu grande impacto na década de 1980, a partir das orientações da
denominada Igreja Progressista, em especial da Diocese de Chapecó, que passou a
reescrever a imagem feminina e seu papel social, familiar e profissional. Até ali o papel
feminino não foi um processo neutro, mas politicamente orientado. As Comunidades
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Eclesiais de Base e a emersão das minorias trouxeram para o debate público mudanças
importantes
nas
relações
sociais
e
o
empoderamento
feminino.
A
repressão sofrida por muitas gerações de mulheres tem agora a seu favor um braço da
Igreja Católica com perspectiva libertadora. As heroínas anônimas da selva ganham luz e
começam a se autodeterminar e empoderar.
Figura 01- Bispo D. José e os movimentos de base
Fonte: Arquivo do https://mst.org.br/2021/03/25/dom-jose-gomes-o-bispo-combatente/
Os novos reordenamentos e contornos, introduzidos em especial pela ala
progressista da Igreja Católica, vieram a reboque dos princípios modernos de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade. A imagem da família ideal, construída por décadas e séculos pela
supremacia masculina em detrimento da identidade feminina, perde força na medida em
que os movimentos das mulheres agricultoras, organizadas pela Diocese de Chapecó,
ganha vigor em toda a região. Por sua vez, a pastoral urbana, igualmente põe em xeque a
procriação como a principal atribuição funcional do ser mulher. Os movimentos sociais das
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décadas de 1980-90 foram intensos em todos os municípios do Grande Oeste Catarinense,
impulsionados principalmente pelo bispo diocesano D. José Gomes16.
A Igreja Católica, na medida em que promoveu a participação dos leigos em suas
estruturas eclesiais, atendeu às mudanças do Concílio Vaticano II (1960), no que se refere
a um posicionamento político em defesa dos pobres e minorias marginalizadas pela
sociedade. A opção preferencial pelos pobres e marginalizados foi assumida intensamente
na Diocese de Chapecó/SC. A liderança incontestável do Bispo Dom José, aliada ao fervor
religioso dos colonizadores de ascendência europeia, ajudou a espalhar os novos tempos
em todas as paróquias e comunidades da Diocese.
A emergência de uma nova sensibilidade social em relação ao gênero trouxe a
necessidade de apontar a construção histórica da região como sendo um produto de
todos. O papel difuso da mulher, em especial no espaço público, passou a ser
compreendido a partir de um novo jogo de olhares, que entrecruzavam passado e
presente. Com o advento da autoafirmação feminina, as mudanças recaíram sobre os
valores familiares e sua função social. A posição da mulher dentro e fora da família, até
então apoiada no determinismo biológico e na naturalização dos papéis sociais, sofreu um
impacto sem precedentes na história regional.
A emergência de uma nova concepção do feminino não nasce apenas pelos
movimentos das Comunidades Eclesiais de Base impulsionadas pela Diocese de
Chapecó/SC, mas emerge também pela autonomia financeira das mulheres. A região
experimentou um avanço técnico-científico na agricultura e pecuária, o que elevou o status
social das camponesas. Na cidade, a emergência de uma classe operária, além de oxigenar
os valores culturais pelas relações sociais e de trabalho, cria uma autodeterminação do
proletariado feminino. Não obstante, o avanço dos meios de transportes e comunicações
redunda numa nova visibilidade cosmopolita da mulher, diminuindo paulatinamente a
distância e a aspereza entre os gêneros.
16
O Bispo D. José Gomes assumiu a Diocese de Chapecó/SC em 1968 e encerrou seu apostolado episcopal
em 1999, três anos antes de sua morte. Líder carismático, levou pessoalmente os novos ordenamentos da
Igreja para todos os municípios de jurisprudência da Diocese.
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Figura 02 - Monumento ao Imigrante Tunápolis/SC
Fonte: autores, 2020.
As marcas indeléveis de um passado masculino são visíveis e tangíveis em nomes de
ruas, escolas, praças e monumentos. Os suportes materiais, em especial no espaço público,
retratam um passado sem a presença feminina, evidenciando o quanto a cultura masculina
atravessou os espaços públicos de forma exclusiva. Atentam contra a memória das
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mulheres fisicamente ausentes e ignoram a atual geração de idosas que apresentam
marcas culturais e biológicas de uma sociedade masculina. Estas registram em seus corpos
a crueza de gerar uma grande família, da dupla jornada de trabalho, do ouvir e não falar,
da vergonha e do embaraço público. No corpo carregam marcas das varizes, da trombose
e dos seios flácidos decorrentes de muitas gestações. Culturalmente estampam a
submissão, a fidelidade e a piedade como sendo marcas biologicamente determinadas. Os
rostos macerados e as fisionomias dóceis, discretas e penitentes de um passado remoto
denunciam um contexto histórico em extinção. A geração de idosas do antigo Projeto
Porto Novo não é mais capaz de começar algo, de intervir no que existe, de revelar-se em
atos e palavras.
A história de uma cultura e de um povo é constituída a partir da batalha entre o
visível e o dizível. A imagem feminina institucionalizada foi de abnegação e submissão e, ao
mesmo tempo, de orgulho de sua ascendência europeia e branca.
Enfim, vale destacar que o pensamento masculino e de parte das mulheres segue o
ritmo já descrito pela pioneira Josefine Wiersch (1936?, p. 428):
A posição que as mulheres ocupam de um modo geral entre nós (alemãs) é
relativamente invejável. Uma liberdade maior do que as nossas mulheres
atualmente desfrutam não é compatível com a dignidade do nosso gênero. A
assim chamada emancipação feminina, que aqui e ali está tentando abrir caminho,
é repugnante. [...] Enquanto elas crescerem em suas posições, preservando a
dignidade da sua condição de mulheres, nenhum ser humano decente lhe faltará
com o respeito por mais incomum que seja a posição que elas ocupem. Mas onde
quer que seja exigida uma liberdade sem limites, direitos inúteis, que só podem
ter origem em motivos baixos ou em cérebros extravagantes, ali se encerra a
dignidade, a atenção e o objetivo de vida das mulheres. Graças a Deus a maioria
das mulheres construiu contra esse tipo de reivindicação isolada uma barreira
sólida.
É imperioso que a cultura ideal seja sempre o ideal de alguém. Ela pode ser talhada
como uma identificação cega ao coletivo, principalmente quando colocada como
instrumento do poder. Se constitui numa marcha natural de práticas ordinárias assimiladas,
em ritmos diferentes, de forma compulsória, pela pressão social ou por instrumentos de
coerção institucional. É dessa forma que podemos entender a história local e regional. Bosi
(1994) defende que as reflexões sobre a vida e sobre a validade das decisões tomadas ao
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longa desta recebem maior impulso na velhice. Nessa fase da vida, se erguem as vertigens
acerca das decisões tomadas no passado e a polarização entre o válido e o inválido.
A devassa sobre o passado inclui as possibilidades perdidas, as escolhas feitas, os
ganhos e as perdas decorrentes das opções pretéritas, entre outras. Nesse entendimento:
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. [...] A
lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa
disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual”
(BOSI, 1994, p. 55).
Enfim, observando-se a formação social capitalista, desde os tempos remotos até
os períodos pós-modernos, atribuiu valor econômico menor ao trabalho produzido pelas
mulheres, embora as práticas mudem conforme o tipo diferente de sociedade e o
momento histórico vivenciado. A dependência econômica da mulher, ainda em tempos
atuais, tem sido fator de humilhação e de um relacionamento abusivo.
Os novos tempos, da cultura individualista, invadiram e corroeram o domínio das
normas sociais, enfraquecendo as formas de autoridade, entre as quais a familiar. No lugar
da mãe subordinada e protetora, emergiu o Estado social para preencher o vácuo deixado
pela ausência de tempo livre das pessoas capturadas pelo trabalho. Assim, o Estado-babá
contribuiu para o declínio da família tradicional na medida em que emergiu como um
dispendioso substituto das antigas competências familiares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Porto Novo foi um projeto que nunca escondeu a sua nacionalidade. Uma expressão
ainda não em desuso “Deutschland über alles“ (Alemanha acima de tudo), se houve em
eventos germânicos, competições esportivas (Brasil X Alemanha) e na procura de
cidadania alemã.
Um povo que, apesar de ter a cidadania pré-migratória negada, desenvolveu vida e
cultura voltadas para a Europa até a segunda metade do século XX. Estranhamente, a
cultura de importação adotou práticas em desuso no velho continente e escondeu outras.
O discurso ideológico impunha as verdades pela repetição dos seus enunciados, que, por
sua vez, dava consistência interna ao projeto. Não obstante, os membros do projeto
exerciam pressões uns sobre os outros, mediante um controle social formal, ou informal,
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para que houvesse um conformismo com os padrões de comportamento considerados
apropriados.
A negação da pluralidade no Projeto Porto Novo relegou o diferente ao não
existente, ou, em última instância, ao manipulável. Assim foi com os povos pré-capitalistas
que rondavam a mata antes mesmo da colonização. A existência de índios e caboclos no
interior da colonização nunca foi oficialmente reconhecida, mesmo para aqueles que
incorporaram a caricatura europeia. Tratados como parte da natureza que precisava ser
controlada, desbravada e explorada, nativos e negros foram afastados ou cooptados pelo
poder nivelador da maioria. Parte deles se concentram na zona fronteiriça da colonização.
Contudo, Porto Novo não foi lugar de lamentação, choro, vidas infelizes e parcas.
Embora tenha assumido a caricatura e a subserviência, houve um desfilar de elementos
culturais raros, pinçados como relíquias e hoje em vias de extinção. O progresso técnicocientífico quebrou a unidade da cultura endogâmica e arcaica na qual, num mesmo lugar,
todos participavam, ao mesmo tempo, como atores e espectadores da vida comunitária
expressa em festas, ritos e cerimônias. A cultura de massa, porém, aniquilou a comunhão
coletiva expressa por meio de festas distribuídas ao longo do ano, para levar aos espaços
privados as imagens e os modelos de lazer e cultura experimentados por uma elite
dominante.
Por outro lado, o Projeto Porto Novo, induzido pelos Padres Jesuítas para formar
uma sociedade de iguais, traz outras interrogações: a mobilidade humana contemporânea
é um fenômeno de livre escolha dos indivíduos?
O passado colonial atribuiu ao homem o papel de prover, proteger e defender sua
família. O discurso determinista de naturalização dos papéis sociais de homens e mulheres
ratificava o papel das mulheres como protagonistas da reprodução biológica. O papel
subalterno da mulher sempre foi concebido como natural. Documentos e escritas de toda
natureza contêm uma linguagem redigida do ponto de vista da identidade masculina. As
mulheres das frentes agrícolas de descendência europeia foram heroínas anônimas, cujos nomes
raramente podem ser lidos em placas indicativas de nomes de ruas, colégios e praças. Seus feitos e
suas histórias não são contados nos livros nem convertidos em poesia ou música. Atribuir um
caráter marginal à história das mulheres das frentes agrícolas, por meio da glorificação do
papel masculino, é um exercício de opressão engendrada na história oficial.
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No estágio atual dos municípios que formaram o Projeto Porto Novo, o esguio e
sinuoso caminho feito pelos pés de uma população avessa ao novo e ao diferente ganha
novas visibilidades com a sucessão natural de gerações. Os jovens, mais voláteis e
efêmeros, produzem novos sentidos para a cultura, que, por sua vez, se intercruza
constantemente no processo de construção de identidades e produção de subjetividades.
Enfim, esses jovens são capazes de captar as diferentes formas de antagonismos que
emergem em nosso mundo globalizado. O futuro vai mostrar se as práticas de tolerância e
aceitação do outro, mais receptíveis nas novas gerações, também se fazem acompanhar
de ações virtuosas do passado etnocêntrico.
Enfim, o Projeto etnocêntrico de Porto Novo não foi um erro histórico. Representou
o pensamento de uma época. As questões das diferenças de gênero, cultura, etnia/cor
seguem borbulhando absurdamente no mundo. Em pleno século XXI, à luz das sociedades
plurais, Estados, regimes políticos e maiorias seguem escravizando e matando em nome
de Deus. Assim, as práticas xenofóbicas e de intolerância não são mais especificidades de
territórios exclusivos: elas acontecem incessantemente em escala global.
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feita por Valdir Eidt.
Enviado em: 19-05-2021
Aceito em: 28-08-2021
Publicado em: 06-09-2021
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