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Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) MULHERES EM PROJETOS COLONIZADORES: vozes silenciadas e corpos sujeitados MUJERES EN PROYECTOS COLONIZADORES: voces silenciadas y cuerpos sujetos WOMEN IN COLONIZING PROJECTS: silenced voices and subjected bodies Paulino Eidt1 https://orcid.org/0000-0001-7731-7696 Roque Strieder2 https://orcid.org/0000-0002-0007-7628 Cristiane Elisabeth Cupchinski Rempel3 https://orcid.org/0000-0002-2374-8885 Resumo O artigo aborda elementos da reestruturação da Igreja Católica no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, dentro do cenário de restauração de princípios e valores em decadência no Velho Mundo, face à emergência de novas correntes de pensamento. Aponta que nas frentes agrícolas dos estados do sul, em resposta à descristianização na Alemanha, houve experiências de revigoração do naturalismo e do romantismo, no final do século XIX e primeira metade do XX. Expressa como os meios educacionais, culturais, econômicos e o uso da imagem e linguagem reproduziram, longe dos espaços dos novos tempos, o direito divino pelo teocentrismo e o padroado. O eixo de análise da produção bibliográfica apresenta três reflexões básicas: e emigração europeia como resposta às bandeiras do modernismo e do liberalismo; a formação do Projeto Porto Novo/SC, de caráter confessional e etnicamente uniforme; e a restauração da autoridade patriarcal por meio de mecanismos de enquadramento e normatização do papel da mulher e da família dentro do paradigma naturalista da colonização. Palavra Chave: Colonização. Direito divino. Autoridade patriarcal. Papel da mulher. Doutorado em Ciências Sociais – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Rede Pública de Ensino de Santa Catarina. E-mail: paulinoeidt1@gmail.com 2 Doutorado em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade do Oeste de Santa Catarina. E-mail: roque.strieder@unoesc.edu.br 3 Mestre em Educação. Professora titular da rede municipal de ensino de Tunápolis (SC). E-mail: cristiane_cupchinski@yahoo.com.br 1 Como referenciar este artigo: EIDT, Paulino; STRIEDER, Roque; REMPEL, Cristiane Elisabeth Cupchinski. Mulheres em projetos colonizadores: vozes silenciadas e corpos sujeitados. Revista Pedagógica, v. 23, p. 125, 2021. DOI http://dx.doi.org/10.22196/rp.v22i0.6359 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) Resumen El artículo aborda elementos de la reestructuración de la Iglesia católica en Rio Grande do Sul y Santa Catarina, en el escenario de restauración de principios y valores en decadencia en el Viejo Mundo, ante la aparición de nuevas corrientes de pensamiento.Señala que en los frentes agrícolas de los estados del sur, en respuesta a la descristianización en Alemania, hubo experiencias de revitalización del naturalismo y el romanticismo, a finales del siglo XIX y la primera mitad del XX. Expresa cómo los medios educativos, culturales, económicos y el uso de la imagen y el lenguaje reprodujeron, lejos de los espacios de los nuevos tiempos, el derecho divino por el teocentrismo y el mecenazgo. El eje de análisis de la producción bibliográfica presenta tres reflexiones básicas: la emigración europea como respuesta a las banderas del modernismo y el liberalismo; la formación del Proyecto Porto Novo / SC, confesional y étnicamente uniforme; y la restauración de la autoridad patriarcal a través de mecanismos para enmarcar y estandarizar el papel de la mujer y la familia dentro del paradigma naturalista de colonización. Palabras clave: Colonización. Derecho divino. Autoridad patriarcal. Papel de la mujer Abstract The article addresses elements of the restructuring of the Catholic Church in Rio Grande do Sul and Santa Catarina, within the scenario of restoration of decadent principles and values in the old world, in the face of the emergence of new currents of thought. It points out that on the agricultural fronts of the southern states, in response to dechristianization in Germany, there were experiences of reinvigoration of naturalism and romanticism in the late 19th century and first half of the 20th. It expresses how educational, cultural, economic means and the use of image and language reproduced, far from the spaces of the new times, the divine right through theocentrism and patronage. The axis of analysis of the bibliographical production presents three basic reflections: the European emigration as a response to the flags of modernism and liberalism; the formation of the Porto Novo/SC, confessional and ethnically uniform; and the restoration of the patriarchal authority through mechanisms of framing and standardization of the role of women and the family within the naturalist paradigm of colonization. Keywords: Colonization. Divine right. Patriarchal authority. Role of women 1 INTRODUÇÃO A Europa vivenciou uma série de mudanças no campo econômico e cultural durante o século XIX. O advento da Revolução Industrial, a crise do paradigma naturalista, o surgimento de novas linhas de pensamento, a miséria econômica, as guerras da unificação e o Kulturkampf (luta pela cultura entre Estados Nações democráticos e poder político cultural da igreja) criaram as condições para a emigração de milhões de pessoas de nacionalidades diversas, entre as quais a alemã. A migração intercontinental também foi Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 2 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) uma resposta a uma sociedade que se descristianizava a partir do surgimento do estado laico em muitos países do velho continente. A igreja católica escolheu o sul do Brasil para criar projetos jesuíticos dentro do cenário de restauração de princípios e valores cristãos em decadência no Velho Mundo. Estes valores situavam-se entre o liberalismo, onde todos são largados à sua sorte e o comunismo, onde a coletividade é submetida aos auspícios do Estado. Uma das experiências mais singulares dentro do processo migratório foi a implantação de uma colonização alemã na terceira década do século XX no Oeste de Santa Catarina. O Projeto Porto Novo4, criado sob matizes religiosos, pautou-se no misticismo e numa visão sacralizada da natureza e da sociedade. Os colonos, sob orientação dos jesuítas, instauraram um território confessional e etnicamente homogêneo, determinando uma fronteira entre o sagrado e o profano. Seus protagonistas foram orientados a se evadir da sociedade moderna, vista como pecaminosa, para reacender antigos valores em meio à selva subtropical catarinense. Milhares de pessoas, pobres e tementes a Deus, atenderam ao pedido migratório para, num espaço cativo, fazer frente à miscigenação racial e aos grupos urbanos emergentes nos espaços de emigração. Os idealizadores conseguiram, longe de tudo e de todos, inventar um espaço eficientemente submetido cultural e economicamente aos propósitos da religião católica. Embora não se possa estigmatizar o projeto religioso como avesso à civilização e à civilidade, Porto Novo conseguiu ser instrumento de conservação cultural e moral por muito mais tempo que qualquer outro espaço de imigração. A doutrina social implementou a construção e sustentação de um sentimento de pertencimento ao grupo e corresponsabilização coletiva. O associativismo moveu e estabeleceu metas e ações, acordadas, pactuadas a partir do compartilhamento de compromissos. Assim, mesmo após à Nacionalização do Ensino (1938) e da adoção de estruturas públicas (prefeitura, exatoria, delegacia e outros), as comunidades não abdicaram de erguer colégios, fazer mutirões entre famílias, construir hospitais, clubes sociais e igrejas pomposas. Porto Novo, forçadamente idealizada enquanto negação do Outro, foi uma resposta à crise do paradigma naturalista, do teocentrismo e da decadência dos padrões 4 O território do antigo Projeto Porto Novo é atualmente ocupado pelos municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis e situam-se no Extremo Oeste de Santa Catarina. Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 3 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) tradicionais de sociabilidade da primeira metade do século XX. Embora houvesse dissidências, as práticas ordinárias da maioria acenavam para a possibilidade da emergência de um território com sentido único a fim de expressar uma única cultura e história. Ademais, os protagonistas do projeto, embora emergentes de pontos múltiplos, em especial da Encosta Inferior do Rio Grande do Sul, são gestados dentro de um mesmo discurso onde vão aos poucos se adaptando ao poder nivelador da maioria, em especial pelas necessidades impostas pelo tempo e, pela solidariedade imprescindível para a sobrevivência de todos. A hegemonia de um espaço tão singular também pode ser associada à deficiência nos meios de transporte e comunicação. A policultura de subsistência foi o elemento econômico mais importante até a segunda metade do século XX. A localização do projeto Porto Novo, ilhado entre a densa floresta argentina (Oeste) e Rio Uruguai (Sul e Leste), gerou poucos pontos de contatos e de comércio (madeira e fumo predominantes até por volta de 1950). Ao conceber uma civilização autônoma, sem embates nem rivalidades de língua e religião, o projeto jesuítico, com seu indisfarçável desejo de superioridade na relação estabelecida com outras culturas, vai encontrando pela frente rugosidades que nem sempre atenderam às expectativas iniciais. O espaço não foi somente unidade. Dentro das fronteiras cerradas, houve rivalidades. Indivíduos exerceram sua individualidade. O poder nivelador, por vezes, não conseguiu uma passiva adequação de todos aos seus produtos culturais. Grupos dissidentes fizeram recortes claros no tecido social único. Um jogo de forças, silenciosamente, atuava contra o poder monopolizador. Exíguas minorias perseguiram, de modo incontestável, um mundo substancialmente autônomo. Essa trajetória das minorias, obscura e quase indecifrável, aflora, porém, após novas pesquisas sobre o audacioso projeto. O eixo de análise da produção bibliográfica apresenta três reflexões básicas: a emigração europeia como resposta às bandeiras do modernismo e do liberalismo; a criação de um protótipo de cristão novo no Projeto Porto Novo/SC e a restauração da autoridade patriarcal por meio de mecanismos de enquadramento e normatização do papel da mulher e da família dentro do paradigma naturalista da colonização. O propósito da escrita não é de ser um exercício de convencimento, e sim um legado histórico para aqueles que possam sentir-se “tocados” por uma trajetória de vida que não Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 4 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) viveram ou rememorar com os protagonistas o quão batalharam para tecer a vida em meio ao nada. 2 SÉCULO XIX: EMIGRAR PARA ISOLAR, DOUTRINAR E SUBMETER No século XIX, as relações burguesas e proletárias no velho continente tornaram cada vez menos natural o paradigma naturalista. As bandeiras do modernismo e do liberalismo, entre outras correntes de pensamento, foram contestadas por instituições conservadoras, dentre as quais a Igreja, que as colocou como responsável pelo ateísmo e a imoralidade. Os novos tempos questionaram a aura de sacralidade atribuída aos representantes religiosos e de sua autoridade inconteste. A secularização dos bens do clero católico desencadeou a perda da sua autonomia econômica e abalou sua influência política. A igreja, quanto ao seu lugar, à sua organização e à sua competência na sociedade, era evidentemente incompatível com os novos ventos que começaram a varrer o mundo desde a Europa, a partir da segunda metade do século dezoito. Pregavase a liberdade como pressuposto para que a realização individual e coletiva fosse possível. A liberdade pressupunha o direito do indivíduo sobre a livre escolha de sua profissão, de seu estilo de vida, do lugar onde morar, da ideologia a seguir, da confissão religiosa a professar (RAMBO, 2002, p. 282). Especificamente na Alemanha, a laicização das instituições públicas, criou as condições para reacender, em terras distantes, os valores cristãos em decadência. pelos agentes católicos. No sul do Brasil, vários projetos jesuíticos5 foram criados dentro do cenário de restauração de princípios e valores em decadência no Velho Mundo. Kreutz (1991, p.35) destaca: “Expulsos da Alemanha (1872), boa parte dos jesuítas foi trabalhar junto à colonização alemã no Rio Grande do Sul, onde assumiram todo um projeto de atividades religiosas e sociais sem precedentes”1. Os projetos criados pela Igreja católica foram uma resposta à sociedade alemã que estava se descristianizando, face à emergência de uma classe operária e novas correntes de pensamento. A volta ao naturalismo e ao romantismo, em crise nas regiões de emigração recebem novo impulso nas frentes agrícolas dos séculos XIX e XX. A Igreja, no 5 Destaque para os projetos de Serro Azul/RS (atualmente Cerro Largo) e Porto Novo/SC (Itapiranga). Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 5 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) seu plano de organização temporal, longe dos espaços dos novos tempos, revigorou o direito divino expresso pelo pensamento teocêntrico e o padroado. A pessoa nascia num determinado contexto e por isso mesmo passava a integrálo, sem que se lhe oferecesse oportunidade de, por livre escolha, seguir outro caminho. O contexto marcava o espaço em que a pessoa necessariamente tinha que se movimentar. Estabelecia limites para a sua visão do mundo, do homem, do ideário ideológico, social, econômico e também e de modo especial do religioso. É neste último aspecto que o fato se torna mais visível. Nascia-se numa sociedade cristã e por isso mesmo era-se cristão. Não havia o mínimo espaço para uma escolha livre fora destes parâmetros (RAMBO, 2002, p. 282). Rambo (2002) destaca ainda que os sacerdotes estimulavam o fervor religioso, a vida sacramental e a fidelidade religiosa. Nessa direção, a Igreja dos imigrantes caracterizou-se pelo envolvimento na vida do povo, incentivando a educação e o bem-estar material como pressuposto para a vida espiritual saudável. Envolveram-se e concentraram maior atenção na assistência social e na liderança em projetos que visavam à promoção da vida humana. Kreutz (1991) aponta o romantismo alemão como um movimento de ideias nitidamente conservadoras que se manifestaram entre o final do século XVIII e meados do século XIX. Constituiu-se de um movimento que fez renascer a espiritualidade, sendo, sobretudo, uma reação ao iluminismo e ao liberalismo, que mais ou menos à mesma época inspiraram transformações políticas, econômicas, sociais e mentais. Os românticos alemães sonhavam com a unidade perdida com o fim do Sacro-Império e clamavam por uma comunidade ideal, projetada pela imaginação, ora no futuro, ora no passado. Promoveram a glorificação do passado medieval e feudal dos povos alemães e a valorização do tradicional, do popular e do nacional. Em algumas frentes agrícolas do sul do Brasil emergiram experiências e estilos, comparáveis ao ancien régime. Obras coletivas, hierarquia religiosa, escolas privadas, mutirões comunitários, entre outras experiências, ignoraram a existência de um estado nacional. A materialidade era de fato apenas aparente, pois, inseria-se existencialmente numa civilização que na sua essência era religiosa. Concluía-se, daí, que as autoridades civis necessitavam da investidura religiosa para legitimar suas funções. Deduzia-se dessa situação, também, que todo o poder sobre a sociedade civil emanava de Deus (RAMBO, 2002, p. 4). Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 6 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) A grande leva de imigrantes europeus que adentraram no território brasileiro no século XIX, vitimados pela conjectura econômica, cultural e política do velho continente, reproduziu em solo brasileiro seu modus vivendi, interceptado pelos novos tempos. O caráter comunitário das colonizações foi condição necessária para a reprodução da família camponesa. Em meio a disputas territoriais e à constante flutuação das fronteiras, o modelo comunitário e a solidariedade constituíram uma blindagem contra a insegurança e a instabilidade e, em última instância, condição necessária para a sobrevivência do próprio tecido social. O associativismo e a construção de vínculos sociais permitiram, a partir dessa relação intersubjetiva, a formação do sujeito dependente do contexto com o qual ele se relacionava interativamente. Mergulhados em seus sonhos migratórios, esses migrantes conseguiram elaborar um conjunto de princípios étnicos que inviabilizavam qualquer contradição profunda ou instabilidade desestabilizadora. Os migrantes, isolados geográfica e culturalmente, foram induzidos a dedicar a maior parte de suas preocupações e de suas atividades a exercer ações coletivas. O fracionamento da área colonizada em comunidades criou laços coletivos determinantes para a edificação de estabelecimentos escolares, religiosos e sociais sustentados por uma rede de associações. Numa comunidade podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez. Ninguém vai rir de nós, nem ridicularizar nossa falta de jeito e alegrar-se com nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicações e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre. E sempre haverá alguém para nos dar a mão em momentos de tristeza. Quando passarmos por momentos difíceis e por necessidades sérias, as pessoas não pedirão fiança antes de decidirem se nos ajudarão; não perguntarão como e quando retribuiremos, mas sim do que precisamos. E raramente dirão que não é seu dever ajudar-nos nem recusarão seu apoio só porque não há um contrato entre nós que as obrigue a fazê-lo, ou porque tenhamos deixado de 1er as entrelinhas. Nosso dever, pura e simplesmente, é ajudar uns aos outros e, assim, temos pura e simplesmente o direito de esperar obter a ajuda de que precisamos (BAUMAN, 2003, p. 09). A existência de uma comunidade pressupõe que um número considerável de pessoas tenha coisas em comum, que se “considerem” ou se “imaginem” integrantes desse grupo. Nessa acepção, dispositivos e significados adquirem forças, quando 7 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) partilhados por todos. O controle sobre o outro por meio da partilha comunitária descentrou e expropriou a subjetividade própria para implantação de um pensamento comum. “Uma vez identificada com uma essência a comunidade vem murada no interior de si própria e separada do seu exterior ” (EXPOSITO, 2017, p. 34). O sistema comunitário incumbia-se de prever e, ao mesmo tempo, anular conflitos e contradições, dentro do pensamento cristão. Bauman (2003, p. 08), ao se referir à força comunitária, enfatiza: Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós. Podemos discutir — mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum, podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns aos outros, e podemos estar certos de que os outros à nossa volta nos querem bem. No sul do Brasil, numa espécie de bandeiras, ao estilo do Brasil colonial, as colonizações frutificaram e mostraram que o pensamento naturalista continuava povoando suas mentes, independente da conjetura política e econômica da nova pátria. 2.1 A formação de cristãos novos no projeto Porto Novo O processo de urbanização já verificado nas antigas colônias de imigração do Rio Grande do Sul e Santa Catarina introduziu naqueles espaços novas concepções de mundo e de vida. Novamente o paradigma naturalista, com seus padrões tradicionais de sociabilidade, deslocou homens e mulheres, eruditos e analfabetos, para uma nova frente agrícola no Oeste Catarinense na primeira metade do século XX. No Extremo Oeste de Santa Catarina, em 1926, foi erguida uma colonização de alemães católicos de caráter ímpar no Brasil: o Projeto Porto Novo, conhecido, na literatura alemã do Brasil como um dos mais fechados e homogêneos concebidos dentro do processo migratório do século passado. Para tanto, seus idealizadores contaram com a ajuda de uma instituição afinada ao projeto católico. A Sociedade União Popular 8 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) (Volksverein6) deu os suportes ideológicos, técnicos e materiais para a concretização do projeto imunológico. O modelo de Einheitskolonie (étnica e confessionalmente homogêneo), de caráter fechado, foi a saída encontrada para a restauração de antigos valores morais e religiosos que estavam definhando no espaço de imigração das chamadas colônias velhas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O Projeto Porto Novo, criado e movido pelos padres jesuítas, assumiu mais do que em qualquer outra colonização, uma natureza eclesiástica sacra, mesmo quatro décadas após a instalação do Estado laico no Brasil. O catolicismo e a organização societária do Projeto Porto Novo estavam por longos anos livres do vínculo com o Estado. As diretrizes sociais e culturais, desalinhadas com a comunhão nacional, estavam estreitamente ligadas com a Igreja Católica Romana. Fortalecida frente à sociedade, reforçou seu papel de organizadora, disciplinadora e condutora do sentido da história. Como um recuo no tempo, os modelos arquitetônicos, a forma de pensar e linguajar, as festas, os rituais e as práticas religiosas, o romantismo rural, o teocentrismo, as práticas coletivas remontam ao passado teocêntrico da história. Assim, o gerenciamento da economia, a condução da família e da sociedade tiveram seus alicerces em parâmetros religiosos. Nos espaços público e privados, os protagonistas do audacioso projeto imunológico, incessantemente, faziam seus contratos, alianças e promessas por meio da evocação das imagens, orações e súplicas. O projeto jesuítico recebeu, no início da década de 1930, a visita do Padre Provincial da Companhia de Jesus, Padre Petrus Lenz, o qual, na missa dominical, numa das comunidades que serviram de Porta de Entrada (Sede Capela), traçou um paralelo entre o Projeto Porto Novo e a Terra Prometida bíblica de outrora. Conforme ele, a Terra Prometida atual tem um povo escolhido, para transformar um cantinho do mundo num paraíso. E segue: 6 Criada em 1890, a União Popular para a Alemanha Católica foi a mais representativa organização associativa católica da Alemanha, para a promoção e divulgação das ideias do catolicismo social. No sul do Brasil, organizou frentes agrícolas, financiou terras, organizou paróquias e comunidades, criou escolas paroquiais. Assumindo funções de Estado, também criou casas de saúde, asilos e instituições de caridade. 9 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) Queridos ouvintes, vocês que escolheram por livre espontânea vontade esta bela Terra, única em sua beleza, neste lado de vosso Jordão, o maravilhoso Uruguai, vocês que aceitaram arcar com a difícil tarefa, o imenso trabalho, sacrifícios e privações de um novo começo nesta mata virginal ‒ ainda não maculada pelos maus costumes do mundo ‒ que se encerrava intocada em sua pureza como criação divina, e se tornou um lar para vós e vossos filhos: estejam e permaneçam conscientes de vossa responsabilidade, que vocês aceitaram ao escolher a bênção, de mantê-lo, para vocês, para vossos filhos e futuras gerações. Mantenham longe desta terra os perigos morais e relativos aos costumes que vigoram no mundo exterior, não os deixem encontrar a entrada pelos portões de vossa terra junto das águas de vosso Jordão, para que, para sempre, esteja garantida contra a maldição e a perdição. Contem para vossos filhos e netos como o Senhor vos guiou e os ensinem a seguir seus mandamentos. Permaneça fiel, meu amado povo de Porto Novo (ROHDE, 2011, p. 157). O protótipo do “Cristão Novo”, criado a partir da demarcação de território exclusivamente de confissão católica, gestou uma tradição religiosa hegemônica de negação da pluralidade religiosa. As vidas de seus protagonistas não foram expostas à alteridade. A pregação antiprotestante, a negação de casamentos mistos, a não aceitação da condição de solo, a crueldade com as mães solteiras, entre tantas outras formas da não aceitação da diferença provocou discórdias por muitas décadas. O projeto religioso foi pensado a partir de uma organização sólida composta por associações setoriais mutuamente complementares. Essas associações 7 espalhadas nas comunidades, davam sustentação religiosa e moral ao projeto. Lúcio Kreutz (1991, p. 63) destaca os três pilares indispensáveis para a sustentação do Projeto Católico da Restauração: o associativismo, o controle da imprensa, a escola e o professor paroquial. No campo econômico, na região sul do Brasil, as frentes agrícolas foram movidas por imigrantes europeus com base nas unidades familiares orientadas pelo minifúndio, a policultura, a mão de obra familiar. Dentro desse modelo, o patriarcado foi um elemento determinante na organização social, ao passo que a vida cotidiana tinha uma regularidade de calendário. A religião se constituía num espaço onde as respostas e os significados eram procurados, encontrados e finalizados. Isolados na selva, com poucas miragens externas, os “escolhidos da Terra Prometida” eram confiantes e tementes a Deus, revelando na crença o sentido dos seus propósitos. Há de se reconhecer que a religiosidade inspirou atos 7 Entre as associações setoriais, destaque para a Congregação Mariana, ao Apostolado da Oração e ao Divino Coração de Jesus. Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 10 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) profundos de caridade, solidariedade e serviço altruísta, embora com barreiras étnicas e religiosas bem definidas. Essas contribuições positivas geraram ressonâncias em várias gerações, como a inclusão e a caridade, além do intenso progresso econômico decorrente, em especial, da disciplina e obediência a que os colonos estavam submetidos8. A incansável motivação religiosa, aliada a uma vida sacramental intensa, fez com que se multiplicassem as vocações ao sacerdócio e à vida religiosa em geral nas comunidades9. À exceção dos primeiros colonizadores do projeto, os nascidos e criados no meio da selva, não possuíam outra miragem de mundo, com exceção de periódicos religiosos que circulavam no sul do Brasil. Estavam crentes de que os costumes, as crenças, as relações sociais, as práticas sociais da região, representavam o modelo generalizado para o restante do país. A novidade nunca foi aleatória em vista que práticas diferenciadoras dos diversos espaços não foram trazidas à luz, para evitar contágio. O discurso ideológico impunha as verdades pela repetição dos seus enunciados, que, por sua vez, dava consistência interna ao projeto. Não obstante, os membros do projeto exerciam pressões uns sobre os outros, através de um controle social formal, ou informal, para que houvesse um conformismo com os padrões de comportamento considerados apropriados. Emilio Willems (1980, p. 306) enfatiza o efeito da coerção comunitária, no sentido de pensamento único: A comunidade inteira participa da educação dos menores. Qualquer adulto pode censurar uma criança que não se comporta de acordo com os padrões da comunidade local. Essas censuras encontram geralmente não a oposição, mas a aprovação dos pais. Há uma espécie de frente única dos adultos em geral, contra os imaturos, uma solidariedade de pais, vizinhos, professores e pessoas do mesmo status ou de nível superior. Enfim, a negação da pluralidade, no Projeto Porto Novo relegou o diferente ao não existente ou, em última instância, ao manipulável. Assim foi com os povos pré-capitalistas que rondavam a mata antes mesmo da colonização. A existência de índios e caboclos no interior da colonização nunca foi oficialmente reconhecido, mesmo para aqueles que incorporaram a caricatura europeia. Este pensamento também pode ser entendido a partir do artigo “A Formação Cristã como formação para a humanização”, publicado no volume 22 da Revista Pedagógica. 9 A título de exemplo, no Projeto Porto Novo, numa comunidade rural com cerca de 4 quilômetros quadrados de área (Linha Ervalzinho, São João do Oeste/SC), foram ordenados 12 padres. 8 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 11 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) 2.2 O papel das mulheres de Porto Novo/SC Porto Novo também nasceu pelas mãos de mulheres – raríssimas vezes citadas na literatura alemã e tampouco na história oficial dos municípios que compunham o projeto imunológico. Desconhecidas, ignoradas e varridas das biografias dos homens ilustres do projeto, sua importância está vindo à tona graças à tecnologia, que tem interligado pesquisas e pesquisadores. Essas protagonistas, embora não possam ser vistas com perspectivas e dinâmicas libertadoras das mulheres, conseguiram romper com a sociedade masculina na medida em que participaram ativamente nos debates públicos das associações católicas. Lermen (2009) registra que as autoridades masculinas, quando chamavam as mulheres para a participação em eventos como palestras, não visavam à verdadeira “participação” feminina, mas, muito pelo contrário, objetivavam mantê-las como membros dóceis e submissos dentro das estruturas sociais e eclesiásticas tradicionais, como o sistema patriarcal. A presença delas somente foi admitida enquanto se mostrava útil para uma finalidade definida já de antemão. Como sujeitos autônomos e agentes independentes, no entanto, que pudessem contribuir com as suas próprias experiências para a configuração e construção do projeto da Restauração, elas não interessaram (LERMEN, 2009, p. 08). O desempenho institucional da religião para a manutenção da heteronomia foi endossado pelas mulheres presentes nos alicerces de Porto Novo. Estes limites devem ser entendidos dentro da objetividade possível em uma sociedade masculina. Embora movidas pelo saudosismo e pelo pensamento naturalista, Josefine Wiersch e suas três filhas altamente letradas10 e com conhecimento universalizado, acompanharam os primeiros anos da colonização homogênea. A filha de Josefine Wiersch destaca: 10 Josefine Wiersch, foi uma grande intelectualidade, conterrânea e contemporânea de Karl Marx, desconhecida da história da frente agrícola de Porto Novo. Josefine Wiersch, de nacionalidade alemã, nasceu em 1860 na cidade de Trier. Com 11 anos se mudou para Luxemburgo onde viveu sua adolescência. Na juventude trabalhou como professora particular na França onde realizou estudos avançados. Migrou para os EUA no início do século XX, onde nacionalizou suas três filhas (Maria, Margot e Antônia). Em 1920 imigraram para o sul do Brasil, e, em 1926 Maria, já casada com o diretor da colonizadora do Projeto Porto Novo (Carlos Rohde), acompanhou-o à implantação do Projeto imunológico. A mãe migrou para Porto Novo no natal de 1930.Josefine, em uma das suas obras, retrata o entusiasmo pela formação de espaços sem mistura étnica. Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 12 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) Nossos melhores e mais felizes anos foram os primeiros anos como pioneiros, apesar de todas as dificuldades e do trabalho duro. Sentia-se melhor a presença de Deus ali onde Ele era mais necessário, sua Providência sábia se fazia sentir com maior intensidade na imensidão esmagadora da natureza indomada. Época em que o amor ao próximo ainda era a atitude comum, e o espírito dos homens ainda não havia sido corrompido pelas tentações tolas e vícios da sociedade moderna. Ali, onde havia tanto trabalho a ser feito, não sobrava tempo para coisas e pensamentos inúteis. Era necessário trabalhar e rezar para que não faltasse a benção divina (ROHDE, 2011, p. 18). A família Wiersch, desde o início da colonização, conclamou a intelectualidade cristã presente no projeto para o engajamento em prol da educação escolar das crianças. Numa época em que grande parte da população brasileira era analfabeta, praticamente 100% dos filhos de Porto Novo foram alfabetizados. Embora letradas e com um pensamento mais universalizado, a mãe e suas três filhas não representaram um contraponto da mulher de Porto Novo. Elas se moviam dentro das possibilidades dadas e ao que convinha socialmente. A exemplo das demais, tiveram que assumir a condição de aprendiz do marido, tanto nas decisões sobre seu corpo, quanto nas decisões políticas e administrativas do grupamento familiar. Se é uma mulher que fala sobre experiências obtidas em três mundos, então ficamos duplamente atentos: não é próprio da mulher, rapidamente a partir de algumas experiências fugazes – e muitas vezes às pressas – realizar julgamentos gerais, como com facilidade os homens ou as crianças o fazem. O olho da mulher está voltado para o amor e para a aparência dos fenômenos concretos 11 (GRAACH, 1936?, p. 06). O sentido feminino, quando chamadas para o espaço público, era para referenciar a ordem tradicional e contribuir para cessar ameaças dos novos hábitos e costumes do mundo moderno. A naturalização da subserviência feminina, embora menos opressora quando se remete à participação em dispositivos familiares, era notadamente Na obra prima de maior repercussão no velho continente “Durch drei Welten” (1936 ?, p. 426), escreve: “Escolhemos Porto Novo como nosso lar final e, temos a firme esperança de que [...] uma tribo alemã pacífica criará terra natal lá, que estilo e costumes alemães também se tornarão lá, que sons e melodias alemãs soarão e fazendas e cidades amigáveis serão refletidas nas inundações do poderoso Rio Uruguai”. Mãe e filhas foram entusiastas defensoras do Projeto Porto Novo, e durante o período de dificudades, a exemplo da Nacionalização, usaram seu conhecimento junto às autoridades estaduais e federais para interferir a favor dos colonizadores humildes. 11 O prefaciador da obra mais importante da pioneira alemã Josefine Wiersch, intitulada “Durch Drei Welten” (Por Três Mundos), deixou claro o pensamento social da época. A obra está em vias de tradução e publicação na Língua Portuguesa. A data de 1936 como publicação da obra ainda está por ser confirmada em definitivo. Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 13 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) desacreditada e silenciada no conjunto de regras que regiam a cultura coletiva 12. A história raramente registra conflitos de ordem moral matrimonial, de mães e esposas, do projeto imunológico de Porto Novo13. A imigrante alemã Josefine Wiersch, antes de migrar para o Projeto Porto Novo, escreveu, no velho continente, as diretrizes que deveriam nortear o papel feminino: No dia em que as nossas mulheres (alemãs) trocam sua liberdade pela dignidade de donas de casa [...] de um modo geral sabem proteger sua dignidade e, de outro lado, dependem das opiniões e do comportamento do chefe da casa [...]. Quanto mais uma mãe se afasta dos grandes deveres de uma mãe cristã, tanto maiores serão os danos que recairão sobre ela mesma. Uma simpatia excessiva e uma atitude comunicativa muitas vezes são mal entendidas e facilmente colocam a pessoa envolvida em situação de inconveniência. É por isso que uma dama já se previne para evitar intrusões (WIERSCH, 1936?, p. 430). A família Wiersch se engajou no projeto católico o que foi fundamental para a vida cotidiana dos colonos. Marcada pelo humanismo que herdou na Europa no século XIX assumiu a defesa de causas coletivas, distantes de interesses particulares e da transgressão da ordem existente. Longe do conforto do primeiro mundo, não teve, no meio da selva, uma postura de passividade e observação e sim de ação. Intelectuais católicos engajados, na medida em que saíram de sua reflexão cristã passiva ampliaram o espaço da religiosidade pela ação política e social dentro do projeto. Foram determinantes para assentar as bases de uma vida coletiva que consubstanciou na ênfase da elaboração de um sentimento de pertencimento e identidade na permanência 12 Nas colônias alemãs, os encontros denominados de Katholikenversammlung (congressos ou reuniões dos católicos), além de lançarem as bases institucionais e econômicas da colonização, também focavam a imagem, os papéis e os deveres da mulher nas frentes agrícolas, dentro do projeto de Restauração Católica. Realizados desde 1898, via de regra a cada dois anos em regiões diferentes, eram os eventos católicos mais representativos nas frentes agrícolas do sul do Brasil. As Assembleias não foram uma criação dentro do projeto migratório do Brasil meridional; já aconteciam na Alemanha e foram revigoradas nas frentes agrícolas de descendência alemã. O primeiro congresso que teve participação feminina foi realizado em 1930 (Arroio do Meio/RS), cujo tema era a reafirmação do papel tradicional da mulher. Agathe Fessler (ex-enfermeira militar, no exército austríaco-húngaro), proferiu a palestra “Frauenfürsorge” com o subtítulo “Os cuidados duma boa dona de casa e mãe”. No mesmo evento, Maria Rohde palestrou sobre o tema “Um juramento de fidelidade à índole, à comunidade cultural e à fé dos antepassados”, que focou a experiência da pioneira no Projeto Porto Novo. A normatização do papel feminino, apesar da tímida presença delas nos encontros, continuava sendo ditada pelos homens da colonização. A título de exemplo, no Congresso Católico de 1932 (em Selbach/RS), a palestra “A destruição da benção da Procriação” foi proferida por um médico. Na Colônia Porto Novo, o Congresso foi realizado em 1934, com a presença de católicos dos três estados do sul do Brasil. 13 Um dos episódios mais chocantes retratado por meio de cartas foi a saga de Nair, personagem descrita em detalhes por Eidt (2016), na obra Os Sinos se dobram por Alfredo, da Editora Argos/Chapecó. Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 14 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) da tradição. Uma concepção de identidade que não expressava a abertura para a diversidade, mas era virtuosa com todos os seus atores. Uma sociedade que defendia a ordem, a hierarquia da autoridade religiosa, a educação guiada pelos princípios religiosos e controlada pela autoridade eclesiástica. Em Porto Novo, restaurou-se o papel tradicional da mulher e qualquer outro princípio foi recusado. As bases do projeto estavam plenamente sintonizadas com os 3K 14 (Kirche, Küche e Kinder). Outros desafios ou possibilidades que pudessem abrir novas perspectivas de vida foram sufocados pela moral do pflicht (dever). As mulheres da frente agrícola estavam expostas aos desígnios masculinos e não decidiam sobre seu corpo. A dignidade do corpo individual foi capturada pela dureza de uma práxis e de uma imagem coletiva. Assim, o corpo coletivo não foi objeto de reflexão. Ele seguiu a trilha do hábito. O colonizador foi reflexo do fluxo da história e da vivência no interior de uma tradição que legou pré-conceitos e estereótipos. Grande parte dos processos culturais foi adotada de forma inconsciente e estava inscrita no patrimônio histórico dos alemães. É factível de que a cultura é preexistente ao indivíduo, que não tem alternativa senão aderir a ela sob pena de se tornar marginal e dissidente. Assim, cabia aos membros comunitários exercerem pressões uns sobre os outros, através de um controle social formal ou informal, para que houvesse conformismo com os padrões de comportamento considerados corretos e apropriados: “O conjunto de estratégias implantadas e sistematicamente conduzidas pelo clero em meio às comunidades, principalmente rurais, foram determinantes para o êxito do Projeto da Restauração Católica” (RAMBO, 2002, p. 19). Assim o papel feminino foi, antes de mais nada, uma construção mental lenta e gradual que culminou em dispositivos de aceitação. A possibilidade de reconfigurar o corpo, de reajustar sua forma de sentir e lidar com o mundo decorre do contato com outras amostras culturais. O corpo, uma vez gestado, adequava-se a posturas sociais possíveis da sociedade portonovense. Os gestos, a fala, o bem e o mal são incorporados por mecanismos e técnicas de poder presentes nas instituições nas quais houve o pertencimento. 14 Termo usado por Claude Lévy Strauss ao se reportar ao papel tradicional da mulher na sociedade. Respectivamente: igreja, cozinha e filhos. Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 15 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) A pioneira Maria Rohde (2011, p. 221) que acompanhou sistematicamente a colonização desde sua fundação, em sua obra-prima destaca o papel feminino e sua importância na edificação da região: Quantas vezes, andando a cavalo pela colônia, eu via mulheres executando, de forma igual aos homens, os trabalhos mais pesados. Eu via muitas mulheres ajudar a derrubar com machado, capoeiras e até árvores. Eu as via ajudar cortar de traçador (trummsäge), os troncos mais grossos, tábuas e vigas para suas casas, até na montagem e construção dos seus casebres eu as via botar mão. E quando terminava a jornada pesada, e no silencioso casebre colonial toda a família já fora descansar, muitas vezes perto do fogão ainda ardia a luzinha de banha e a incansável mãe se debruçava sobre a roupa a ser remendada da sua família, porque não podia sacrificar para isso o precioso dia de trabalho. E mal amanhecia o novo dia, ela como primeira estava em pé de novo, cuidando do lar, antes que a família estivesse sentada em torno da mesa do café da manhã, para então enfrentar de novo, com ânimo, o trabalho pesado de roça. O caráter quase obsessivo da moral sexual recriminava formas anticonceptivas e o aborto. As investidas se voltavam principalmente para o quinto, sexto e nono mandamentos. Dessa forma, o dever de procriar, exaustivamente cobrado em todos os eventos públicos; o ato sexual entendido somente para a necessidade procriativa; a culpa do pecado original livremente atribuída à fraqueza feminina; a abominação das relações sexuais fora do casamento cristão; o espectro da esterilidade sempre atribuída à mulher; as relações sexuais não consensualmente concebidas; o não direito à sedução, ao gozo, ao orgasmo e ao prazer; a obrigação feminina de não evitar filhos, entre outras estruturas opressoras sempre justificadas biblicamente, são o retrato da mulher pioneira. O ditado – muito presente na mentalidade das mulheres das frentes agrícolas do século XX, hoje na terceira idade – “Lieben ein Kind auf dem Kissen als eines auf dem Gewisse”15, atribuiu ao seu útero uma função social, impedindo à mulher o direito de legislar sobre seu corpo. Nesse entendimento, a mulher se submetia sexualmente por obrigação, sem dispositivos de prazer. Juridicamente despersonalizada, assumiu o papel bíblico atribuída à mulher, ou seja, destituída de um corpo pertencente ao esposo e uma alma de posse de Deus. 15 Melhor uma criança em cima de um travesseiro do que tê-la na consciência. Expressão usada nas Congregações Marianas como orientação para fins conceptivos. Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 16 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) Nas frentes agrícolas, de forma geral, a presença de mulheres no espaço público não transmitia quase nenhuma valorização positiva. Proibidas de inverter a ordem de prioridades calculadamente premeditada pelos homens, estavam inteiramente absorvidas pela plenitude dos três “K”. Expressam seus pensamentos e ideias com base em teorias concebidas em épocas distintas e convenientemente pensadas por uma sociedade paternal. Além da questão de gênero, a mulher economicamente era vista como insignificante. Totalmente excluídas da sucessão quando contraiam matrimônio. A linhagem beneficiava apenas componentes do sexo masculino e a herança feminina não passava de um dote, que passava, igualmente, a ser administrado pelo marido. A não delegação de herança favorecia a submissão feminina aos desígnios do marido. Numa sociedade masculina, as raras experiências de mulheres que chefiaram o lar deveram-se mais à aridez dos maridos do que propriamente a uma conquista feminina. Há de se considerar que, na família pioneira, as relações interpessoais entre homens e mulheres foram relações cordiais, amistosas e não relações perigosas, cruéis e brutais como se possa supor. A violência, no seu estado difuso e velado, deu-se pela relação assimétrica na determinação dos papéis sociais e familiares. Assim, a violência se manifestou por meio do constrangimento exercido sobre a mulher, destituindo-a do livrearbítrio. 2.3 A flexibilização das amarras culturais Se foi pelas mãos da Igreja que a mulher desempenhou um papel de subordinação familiar e de ostracismo social na colonização, foi também pelas mãos da Igreja e da inserção feminina no trabalho remunerado que a emancipação feminina ganhou força nas frentes agrícolas. No Oeste de Santa Catarina, o papel político secundário das mulheres nas frentes agrícolas recebeu seu grande impacto na década de 1980, a partir das orientações da denominada Igreja Progressista, em especial da Diocese de Chapecó, que passou a reescrever a imagem feminina e seu papel social, familiar e profissional. Até ali o papel feminino não foi um processo neutro, mas politicamente orientado. As Comunidades 17 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) Eclesiais de Base e a emersão das minorias trouxeram para o debate público mudanças importantes nas relações sociais e o empoderamento feminino. A repressão sofrida por muitas gerações de mulheres tem agora a seu favor um braço da Igreja Católica com perspectiva libertadora. As heroínas anônimas da selva ganham luz e começam a se autodeterminar e empoderar. Figura 01- Bispo D. José e os movimentos de base Fonte: Arquivo do https://mst.org.br/2021/03/25/dom-jose-gomes-o-bispo-combatente/ Os novos reordenamentos e contornos, introduzidos em especial pela ala progressista da Igreja Católica, vieram a reboque dos princípios modernos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A imagem da família ideal, construída por décadas e séculos pela supremacia masculina em detrimento da identidade feminina, perde força na medida em que os movimentos das mulheres agricultoras, organizadas pela Diocese de Chapecó, ganha vigor em toda a região. Por sua vez, a pastoral urbana, igualmente põe em xeque a procriação como a principal atribuição funcional do ser mulher. Os movimentos sociais das 18 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) décadas de 1980-90 foram intensos em todos os municípios do Grande Oeste Catarinense, impulsionados principalmente pelo bispo diocesano D. José Gomes16. A Igreja Católica, na medida em que promoveu a participação dos leigos em suas estruturas eclesiais, atendeu às mudanças do Concílio Vaticano II (1960), no que se refere a um posicionamento político em defesa dos pobres e minorias marginalizadas pela sociedade. A opção preferencial pelos pobres e marginalizados foi assumida intensamente na Diocese de Chapecó/SC. A liderança incontestável do Bispo Dom José, aliada ao fervor religioso dos colonizadores de ascendência europeia, ajudou a espalhar os novos tempos em todas as paróquias e comunidades da Diocese. A emergência de uma nova sensibilidade social em relação ao gênero trouxe a necessidade de apontar a construção histórica da região como sendo um produto de todos. O papel difuso da mulher, em especial no espaço público, passou a ser compreendido a partir de um novo jogo de olhares, que entrecruzavam passado e presente. Com o advento da autoafirmação feminina, as mudanças recaíram sobre os valores familiares e sua função social. A posição da mulher dentro e fora da família, até então apoiada no determinismo biológico e na naturalização dos papéis sociais, sofreu um impacto sem precedentes na história regional. A emergência de uma nova concepção do feminino não nasce apenas pelos movimentos das Comunidades Eclesiais de Base impulsionadas pela Diocese de Chapecó/SC, mas emerge também pela autonomia financeira das mulheres. A região experimentou um avanço técnico-científico na agricultura e pecuária, o que elevou o status social das camponesas. Na cidade, a emergência de uma classe operária, além de oxigenar os valores culturais pelas relações sociais e de trabalho, cria uma autodeterminação do proletariado feminino. Não obstante, o avanço dos meios de transportes e comunicações redunda numa nova visibilidade cosmopolita da mulher, diminuindo paulatinamente a distância e a aspereza entre os gêneros. 16 O Bispo D. José Gomes assumiu a Diocese de Chapecó/SC em 1968 e encerrou seu apostolado episcopal em 1999, três anos antes de sua morte. Líder carismático, levou pessoalmente os novos ordenamentos da Igreja para todos os municípios de jurisprudência da Diocese. 19 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) Figura 02 - Monumento ao Imigrante Tunápolis/SC Fonte: autores, 2020. As marcas indeléveis de um passado masculino são visíveis e tangíveis em nomes de ruas, escolas, praças e monumentos. Os suportes materiais, em especial no espaço público, retratam um passado sem a presença feminina, evidenciando o quanto a cultura masculina atravessou os espaços públicos de forma exclusiva. Atentam contra a memória das Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 20 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) mulheres fisicamente ausentes e ignoram a atual geração de idosas que apresentam marcas culturais e biológicas de uma sociedade masculina. Estas registram em seus corpos a crueza de gerar uma grande família, da dupla jornada de trabalho, do ouvir e não falar, da vergonha e do embaraço público. No corpo carregam marcas das varizes, da trombose e dos seios flácidos decorrentes de muitas gestações. Culturalmente estampam a submissão, a fidelidade e a piedade como sendo marcas biologicamente determinadas. Os rostos macerados e as fisionomias dóceis, discretas e penitentes de um passado remoto denunciam um contexto histórico em extinção. A geração de idosas do antigo Projeto Porto Novo não é mais capaz de começar algo, de intervir no que existe, de revelar-se em atos e palavras. A história de uma cultura e de um povo é constituída a partir da batalha entre o visível e o dizível. A imagem feminina institucionalizada foi de abnegação e submissão e, ao mesmo tempo, de orgulho de sua ascendência europeia e branca. Enfim, vale destacar que o pensamento masculino e de parte das mulheres segue o ritmo já descrito pela pioneira Josefine Wiersch (1936?, p. 428): A posição que as mulheres ocupam de um modo geral entre nós (alemãs) é relativamente invejável. Uma liberdade maior do que as nossas mulheres atualmente desfrutam não é compatível com a dignidade do nosso gênero. A assim chamada emancipação feminina, que aqui e ali está tentando abrir caminho, é repugnante. [...] Enquanto elas crescerem em suas posições, preservando a dignidade da sua condição de mulheres, nenhum ser humano decente lhe faltará com o respeito por mais incomum que seja a posição que elas ocupem. Mas onde quer que seja exigida uma liberdade sem limites, direitos inúteis, que só podem ter origem em motivos baixos ou em cérebros extravagantes, ali se encerra a dignidade, a atenção e o objetivo de vida das mulheres. Graças a Deus a maioria das mulheres construiu contra esse tipo de reivindicação isolada uma barreira sólida. É imperioso que a cultura ideal seja sempre o ideal de alguém. Ela pode ser talhada como uma identificação cega ao coletivo, principalmente quando colocada como instrumento do poder. Se constitui numa marcha natural de práticas ordinárias assimiladas, em ritmos diferentes, de forma compulsória, pela pressão social ou por instrumentos de coerção institucional. É dessa forma que podemos entender a história local e regional. Bosi (1994) defende que as reflexões sobre a vida e sobre a validade das decisões tomadas ao 21 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) longa desta recebem maior impulso na velhice. Nessa fase da vida, se erguem as vertigens acerca das decisões tomadas no passado e a polarização entre o válido e o inválido. A devassa sobre o passado inclui as possibilidades perdidas, as escolhas feitas, os ganhos e as perdas decorrentes das opções pretéritas, entre outras. Nesse entendimento: Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. [...] A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI, 1994, p. 55). Enfim, observando-se a formação social capitalista, desde os tempos remotos até os períodos pós-modernos, atribuiu valor econômico menor ao trabalho produzido pelas mulheres, embora as práticas mudem conforme o tipo diferente de sociedade e o momento histórico vivenciado. A dependência econômica da mulher, ainda em tempos atuais, tem sido fator de humilhação e de um relacionamento abusivo. Os novos tempos, da cultura individualista, invadiram e corroeram o domínio das normas sociais, enfraquecendo as formas de autoridade, entre as quais a familiar. No lugar da mãe subordinada e protetora, emergiu o Estado social para preencher o vácuo deixado pela ausência de tempo livre das pessoas capturadas pelo trabalho. Assim, o Estado-babá contribuiu para o declínio da família tradicional na medida em que emergiu como um dispendioso substituto das antigas competências familiares. CONSIDERAÇÕES FINAIS Porto Novo foi um projeto que nunca escondeu a sua nacionalidade. Uma expressão ainda não em desuso “Deutschland über alles“ (Alemanha acima de tudo), se houve em eventos germânicos, competições esportivas (Brasil X Alemanha) e na procura de cidadania alemã. Um povo que, apesar de ter a cidadania pré-migratória negada, desenvolveu vida e cultura voltadas para a Europa até a segunda metade do século XX. Estranhamente, a cultura de importação adotou práticas em desuso no velho continente e escondeu outras. O discurso ideológico impunha as verdades pela repetição dos seus enunciados, que, por sua vez, dava consistência interna ao projeto. Não obstante, os membros do projeto exerciam pressões uns sobre os outros, mediante um controle social formal, ou informal, 22 Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) para que houvesse um conformismo com os padrões de comportamento considerados apropriados. A negação da pluralidade no Projeto Porto Novo relegou o diferente ao não existente, ou, em última instância, ao manipulável. Assim foi com os povos pré-capitalistas que rondavam a mata antes mesmo da colonização. A existência de índios e caboclos no interior da colonização nunca foi oficialmente reconhecida, mesmo para aqueles que incorporaram a caricatura europeia. Tratados como parte da natureza que precisava ser controlada, desbravada e explorada, nativos e negros foram afastados ou cooptados pelo poder nivelador da maioria. Parte deles se concentram na zona fronteiriça da colonização. Contudo, Porto Novo não foi lugar de lamentação, choro, vidas infelizes e parcas. Embora tenha assumido a caricatura e a subserviência, houve um desfilar de elementos culturais raros, pinçados como relíquias e hoje em vias de extinção. O progresso técnicocientífico quebrou a unidade da cultura endogâmica e arcaica na qual, num mesmo lugar, todos participavam, ao mesmo tempo, como atores e espectadores da vida comunitária expressa em festas, ritos e cerimônias. A cultura de massa, porém, aniquilou a comunhão coletiva expressa por meio de festas distribuídas ao longo do ano, para levar aos espaços privados as imagens e os modelos de lazer e cultura experimentados por uma elite dominante. Por outro lado, o Projeto Porto Novo, induzido pelos Padres Jesuítas para formar uma sociedade de iguais, traz outras interrogações: a mobilidade humana contemporânea é um fenômeno de livre escolha dos indivíduos? O passado colonial atribuiu ao homem o papel de prover, proteger e defender sua família. O discurso determinista de naturalização dos papéis sociais de homens e mulheres ratificava o papel das mulheres como protagonistas da reprodução biológica. O papel subalterno da mulher sempre foi concebido como natural. Documentos e escritas de toda natureza contêm uma linguagem redigida do ponto de vista da identidade masculina. As mulheres das frentes agrícolas de descendência europeia foram heroínas anônimas, cujos nomes raramente podem ser lidos em placas indicativas de nomes de ruas, colégios e praças. Seus feitos e suas histórias não são contados nos livros nem convertidos em poesia ou música. Atribuir um caráter marginal à história das mulheres das frentes agrícolas, por meio da glorificação do papel masculino, é um exercício de opressão engendrada na história oficial. Revista Pedagógica • v. 23 •p. 1-25• 2021 23 I Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unochapecó ISSN 1984-1566 (on-line) ISSN 1415-8175 (impressa) No estágio atual dos municípios que formaram o Projeto Porto Novo, o esguio e sinuoso caminho feito pelos pés de uma população avessa ao novo e ao diferente ganha novas visibilidades com a sucessão natural de gerações. Os jovens, mais voláteis e efêmeros, produzem novos sentidos para a cultura, que, por sua vez, se intercruza constantemente no processo de construção de identidades e produção de subjetividades. Enfim, esses jovens são capazes de captar as diferentes formas de antagonismos que emergem em nosso mundo globalizado. O futuro vai mostrar se as práticas de tolerância e aceitação do outro, mais receptíveis nas novas gerações, também se fazem acompanhar de ações virtuosas do passado etnocêntrico. Enfim, o Projeto etnocêntrico de Porto Novo não foi um erro histórico. Representou o pensamento de uma época. As questões das diferenças de gênero, cultura, etnia/cor seguem borbulhando absurdamente no mundo. Em pleno século XXI, à luz das sociedades plurais, Estados, regimes políticos e maiorias seguem escravizando e matando em nome de Deus. Assim, as práticas xenofóbicas e de intolerância não são mais especificidades de territórios exclusivos: elas acontecem incessantemente em escala global. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca de segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Tradução de Plínio Dentzien. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, 484 p. DALSOTTO, Mariana Parise Brandalise; LUCHESE, Terciane Ângela. 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