JULGAR Acordos Sobre A Sentença em Processo Penal João Abrantes
JULGAR Acordos Sobre A Sentença em Processo Penal João Abrantes
JULGAR Acordos Sobre A Sentença em Processo Penal João Abrantes
João Abrantes
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1
DIAS, FIGUEIREDO, Acordos sobre a sentença em processo penal, Conselho Distrital do Porto da
OA, Coleção Virar de Página, 2011, pp. 23 e 24.
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II – Requisitos
A admissibilidade legal deste acordo pressupõe, na opinião de FIGUEIREDO
DIAS, o preenchimento dos seguintes requisitos6:
1. A confissão pelo Arguido da prática do crime (“conditio sine qua non” do
acordo sobre a sentença); 2. O poder/dever do Tribunal da sindicância da
credibilidade da confissão, salvaguarda do princípio de que o acordo nunca poderá
prejudicar os princípios da investigação judicial e da descoberta da verdade
material; 3. O acordo restringe-se ao limite máximo e, eventualmente, mínimo, da
pena a aplicar, afluindo numa moldura concreta da pena; 4. A possibilidade, ou
mesmo vinculação, a penas de substituição; 5. A disposição da faculdade de extensão
do acordo quanto a penas acessórias; 6. A manutenção da decisão final do Tribunal,
dentro dos limites consensualizados, por respeito ao princípio da culpa; 7. A
publicitação do acordo, que deve constar da ata; 8. A proibição de prova dos
elementos do processo negocial, na hipótese de o acordo fracassar; 9. A intervenção,
2
MADLENER, KURT, Simpósio em Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra
Editora, 2009, p. 662.
3
Na doutrina alemã, uma posição muito crítica dos acordos é expressa por BERND SCHÜNEMANN,
cf. SANTOS, CLÁUDIA CRUZ, «Decisão Penal Negociada», Revista JULGAR, n.º 25, Coimbra,
Coimbra Editora, 2015, p. 155.
4
Ac. BVerfG 2 BvR 2628/10, de 19/03/2013. Em Itália, o Tribunal Constitucional também se
pronunciou sobre o “patteggiamento sulla pena”, cf. BRANDÃO, NUNO, «Acordos sobre a Sentença
Penal: Problemas e Vias de Solução», Revista JULGAR, n.º 25, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 165.
5
Ibidem, pp. 162, 165, 171 e 172.
6
Entende FIGUEIREDO DIAS (nota 1), pp. 111 e segs., que a introdução deste instituto no
ordenamento jurídico-penal será concretizada, necessariamente, com uma reforma do processo
penal, mas que, até lá, não existe nenhum entrave para a aplicação do mesmo na jurisprudência
portuguesa.
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no acordo, dos principais sujeitos processuais: Juiz, MP, Arguido e o seu Defensor.7
10. A proibição da renúncia prévia ao direito de recurso; 11. O acordo deve ser obtido
até ao início da produção de prova, após as declarações do Arguido; 12. O
cumprimento de todos os atos processuais legalmente prescritos, incluindo a
prolação da sentença.
7
FIGUEIREDO DIAS (nota 1), pp. 83 a 88, defende que o assistente, enquanto sujeito processual e na
qualidade de colaborador do MP, deve ser convidado a colaborar na formulação do acordo, mas não
terá o poder de invalidar o acordo alcançado pelos restantes sujeitos processuais.
8
Foi no círculo judicial de Ponta Delgada que, pela primeira vez na jurisprudência portuguesa, um
Tribunal decidiu-se pela aplicação do instituto em causa (Orientação da PGDL n.º 1/2012 de
13/01/2013, disponível em <www.pgdlisboa.pt>). Além desta decisão judicial, vide o Ac. do Tribunal
Judicial de Mangualde, processo comum coletivo n.º 292/10.7 GAMGL, de 12 de setembro de 2012; o
Ac. TRC, processo comum coletivo n.º 292/10.7 GAMGL, de 27 de Fevereiro de 2013 (disponível em
<www.dgsi.pt>); o Ac. do Tribunal Judicial de Vouzela, processo comum coletivo n.º 224/06.7
GAVZL, de 09 de julho de 2012; vejam-se, de igual modo, o Memorandum de 19 de janeiro de 2012, da
Procuradoria-Geral Distrital de Coimbra e os artigos do Juiz Conselheiro JOSÉ DE SOUTO MOURA –
Acordos em Processo Penal, disponíveis em < www.dgsi.pt>.
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Não existindo fundamentação legal, prevê o art.º 4.º do CPP, numa primeira
fase, a aplicação, por analogia, de disposições deste Código. Numa segunda fase, e
apenas quando essa aplicação não for possível, observar-se-ão as normas do
processo civil harmonizáveis com o processo penal. Poder-se-á, então, perguntar:
haverá alguma norma que possa aplicar-se por analogia? A resposta remete-nos para
o disposto no art.º 344.º do CPP. A ratio legis deste artigo assenta “(…) no regime de
valoração da confissão ser construído com o propósito do incremento da celeridade
processual”9.
O art.º 344.º do CPP prevê a possibilidade de o Arguido confessar os factos na
audiência de julgamento, de livre vontade, integralmente e sem reservas, com a
confissão a ter implicações no normal decorrer do processo (n.º 2 do art.º 344.º), as
mais relevantes das quais são a renúncia à produção de prova, relativa aos factos
imputados e a imediata passagem às alegações orais. Esta confissão será sempre
validada pelo Tribunal, que mantem o poder de aferir da credibilidade da confissão
do Arguido.
Não obstante, o n.º 3 do art.º 344.º estabelece determinadas situações em que
não se aplica o referido n.º 2, designadamente, a existência de coarguidos e a não
confissão por todos eles, a moldura penal do crime, em causa, e a fiabilidade da
confissão do Arguido.
A solução preconizada por este artigo seria uma base legal sustentada e
credível para a aplicação dos acordos sobre a sentença em processo penal. Aliás, se
fizermos um exercício de comparação entre o disposto nos números do artigo e
aquilo que FIGUEIREDO DIAS defende (supra descrito), enquanto pressupostos de
aplicação do instituto, as semelhanças são por demais evidentes:
a) a confissão livre, integral e sem reservas do Arguido;
b) o poder de aferição pelo Tribunal da credibilidade desta confissão;
c) o princípio da publicidade, aplicável nas duas situações;
9
ALBUQUERQUE, PAULO PINTO, Comentário ao Código de Processo Penal – art.º 344º, 4ª ed.,
Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011.
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10
ALBERGARIA, SOARES, Plea Bargaining-Aproximação à Justiça Negociada nos E.U.A., Coimbra,
Almedina, 2007.
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julgamento as provas necessárias, o que leva a que, da parte da defesa, haja uma
investigação paralela à investigação do MP. O Juiz tem, neste modelo processual,
um papel de árbitro, de moderador, funcionando como garante do cumprimento
das normas processuais.
Perante este cenário, a figura do “plea bargaining” surge como uma
consequência natural do processo de partes. Uma declaração negociada de culpa do
Arguido pressupõe que haja cedências por parte do MP, consubstanciadas, no
limite, na “renúncia à acção penal ou revogação da decisão de acusar”.11
No modelo norte-americano, o MP tem várias possibilidades, atendendo
nomeadamente, ao registo criminal do Arguido, à natureza do crime, à perspetiva
do Arguido em cooperar noutras investigações, à probabilidade de condenação, ao
interesse público no processo ser julgado, em vez de negociado.12 Não se estranha
por isso, que o MP disponha do processo conforme as propostas que a Defesa lhe
apresenta ou da consistência da prova recolhida e da perspetiva de uma sólida
acusação.
Perguntar-se-á então, se este modelo de processo de partes, com uma “justiça
negociada”, não prejudicará a descoberta da verdade material, no fundo, um dos
objetivos primários do Estado, enquanto garante da segurança e da paz social? Não
se sobreporá o papel negociador do MP ao seu papel de representante do Povo,
enquanto defensor dos Direitos, Liberdades e Garantias? Teremos aqui uma
discricionariedade de atuação do MP?13
Terão sido estas inquietações que suscitaram a proibição da “selective
prosecution”, ou seja, propôs-se evitar a discricionariedade de atuação do MP, no
que conduziria a uma consagração constitucional, através da “equal protection
11
SOARES DE ALBERGARIA (nota 10), p. 51.
12
Ibidem, pp. 65 e segs.
13
Ibidem, p. 54.
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14
Ibidem, p. 58.
15
NUNO BRANDÃO, (nota 4), p. 164 e 166.
16
Ac. do Tribunal Constitucional n.º 695/95, de 5/12. Numa das últimas revisões do CPP, o dever do
Arguido em declarar quais os seus antecedentes criminais foi eliminado do elenco normativo do n.º 1
do art.º 342.º do CPP.
17
ANDRADE, COSTA, Sobre as proibições de prova em Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1996, p.
125.
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Se o Arguido tem o direito de não prestar declarações, além daquelas a que está
obrigado no início do julgamento, tem, similarmente, o poder absoluto de
prescindir desse direito e falar sobre factos que digam respeito à matéria que está a
ser discutida na acusação (cf. art.º 343.º do CPP). Podendo prescindir desse direito e
declarar que pretende falar, o Arguido pode, em última análise, confessar os factos18
de que está acusado, até por uma questão de estratégia da sua própria defesa,
atuando esta confissão como fator atenuante, uma demonstração de
arrependimento, ocorrendo a partir daqui o juízo de sindicância do Tribunal que
avaliará as condições em que o Arguido confessou.
Analisado o princípio da não autoincriminação, surge uma brecha na
tramitação dos acordos sobre a sentença em processo penal: até que ponto uma
proposta do MP, no início da audiência, será um factor de pressão colocado sobre o
Arguido? Uma não aceitação da proposta de acordo do MP levará a uma atitude
“hostil”, por parte das autoridades judiciárias?19 Estaríamos, aqui, perante uma
coação ao Arguido, colocando o mesmo “entre a espada e a parede”?
Perante este cenário de uma hipotética coação sobre o Arguido, para que aceite
o acordo, e, com isso, confesse, poderemos ter uma proibição de prova? Estipula o
art.º 126.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do CPP, coadjuvado pelo preceito constitucional do art.º
32.º, nº 8 da CRP, que uma prova obtida através de coação ou promessa de vantagem
legalmente inadmissível, será nula, não obstante o consentimento do próprio
Arguido.
Vejamos,
O Arguido é e será sempre livre de aceitar ou não as condições propostas pelo
MP, sem que uma não aceitação possa prejudicá-lo, porque, caso algum Tribunal
formulasse um pré-juízo do Arguido, por não ter aceite um acordo, teríamos, aí sim,
18
“expressão livre da sua auto-responsabilidade e do seu direito de autodeterminação”, cf. NUNO
BRANDÃO (nota 4), p. 166.
19
KURT MADLENER (nota 2), p. 663.
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20
A garantia da imparcialidade do Juiz é uma das objeções que se aponta ao modelo alemão dos
acordos, onde o papel do Juiz, na tramitação dos acordos, é mais interventivo do que no nosso
Direito, quando o acordo não é alcançado entre os sujeitos processuais – máxime entre o Juiz e o
Arguido – e o processo segue para a fase de julgamento. Numa comparação do papel do Juiz nos dois
modelos processuais, vide NUNO BRANDÃO (nota 4), p. 176.
21
Ac. STJ, proc. n.º 224/06.7GAVZL.C1.S1, de 10-04-2013 (disponível em <www.dgsi.pt>). A posição dos
Juízes Conselheiros foi desfavorável à aplicação do instituto, consubstanciada nos seguintes
fundamentos: “I- O direito processual penal português não admite os acordos negociados de sentença;
II – Constitui uma prova proibida a obtenção da confissão do arguido mediante a promessa de um
acordo negociado de sentença entre o Ministério Publico e o mesmo arguido no qual se fixam os limites
máximos da pena a aplicar”; Posição idêntica e desfavorável foi expressa pela PGR, na diretiva n.º 2/14
de 2014-02-21, na sequência de uma tentativa de acordo no julgamento do processo conhecido por
“caso Remédio Santo”. Ver, na mesma senda, a opinião do Juiz Conselheiro EDUARDO MAIA
COSTA, Acordos sobre Sentença Penal – II Jornadas de Direito Penal dos Açores, Ponta Delgada, 2012.
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22
Numa postura crítica aos fundamentos do STJ, vide CLÁUDIA CRUZ SANTOS, (nota 3), pp. 159
(parte final) e 160.
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IV – Conclusão
O CPP já admite soluções de consenso23, onde a concordância dos sujeitos
processuais é uma das condições para a formalização desses institutos (v.g.
suspensão provisória do processo, processo sumaríssimo). A aplicação, pelos nossos
Tribunais, do instituto dos acordos sobre a sentença em processo penal, não trará
uma fraturante metamorfose, isto apesar dos agoiros e (infundadas) profecias. O
nosso processo penal continuará a ter uma matriz acusatória, integrado por um
princípio de investigação24, onde o papel do MP continuará a ser o de investigar e
acusar (ou arquivar). Não haverá uma transferência dos poderes do Juiz para o MP,
como já foi sugerido, porque o Juiz continuará a ter a faculdade de avaliar a
credibilidade da confissão25 do Arguido e decidirá qual a pena em concreto a aplicar,
permitindo-se, outrossim, nos casos em que o Tribunal tenha dúvidas, que haja
produção de mais provas. Não haverá o receio do Arguido ser coagido a aceitar o
acordo apresentado, porquanto, este acordo parte de uma proposta, e, como tal, o
Arguido e o seu Defensor, convictos da inocência, são livres de aceitarem ou não as
condições do acordo, quando considerem que os indícios e as provas constantes da
acusação podem ser contraditados em audiência de julgamento. Não existirá uma
renúncia prévia ao recurso, o que permitirá ao Arguido e ao seu Defensor, caso não
aceitem as penas, em concreto, aplicadas, recorrerem para uma instância superior.
Teríamos uma justiça mais célere, com todos os convenientes que daí advêm, sob a
égide de estruturas de consenso, tendo por base a intervenção e a vontade expressa
de todos os sujeitos processuais. A implementação desta solução de futuro, numa
escala gradual26, deverá constituir uma réplica face às novas realidades
23
CLÁUDIA CRUZ SANTOS (nota 3), pp. 148 e 149.
24
Aliado ao poder-dever do Tribunal de sindicar a credibilidade da confissão do Arguido, evitando-
se assim “(…) as violações ao princípio da culpa inerentes às confissões falsas.”, cf. NUNO BRANDÃO
(nota 4), p. 173.
25
“para o funcionamento do acordo é imprescindível a confissão (…) como elemento probatório dirigido
ao esclarecimento e comprovação dos factos objeto do processo”, ibidem p. 173.
26
Aplicação, primo, em situações de pequena e média criminalidade, cf. NUNO BRANDÃO (nota 4),
p. 174.
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27
FIGUEIREDO DIAS (nota 1), p. 16.