http://dx.doi.org/10.5007/2175-7917.2014v19n2p123
MACHADO DE ASSIS E A IMPRENSA
PERIÓDICA: UMA ANÁLI“E DE CONFI““ÕE“
DE UMA VIÚVA MOÇA
Greicy Bellin*
Universidade Federal do Paraná
Resumo: O presente artigo tem por finalidade analisar o conto “Confissões de uma viúva
moça”, publicado por Machado de Assis em formato de folhetim no periódico Jornal das
Famílias. O conto evidencia como Machado atuou na imprensa periódica do Rio de Janeiro
no início de sua carreira literária, bem como a maneira pela qual se relacionou com os seus
leitores, fossem eles empíricos ou ficcionais. Em primeiro lugar, será feita uma breve preleção
teórica a respeito do estatuto do jornal e da formação do público leitor na sociedade brasileira
oitocentista, procurando compreender o papel dos periódicos na publicação e circulação de
obras literárias e o perfil dos leitores do Jornal das Famílias. Em segundo lugar, faremos a
análise do conto machadiano, a fim de mostrar como se dá a construção de um
relacionamento entre leitor empírico e narrador, considerando o veículo em que a narrativa foi
publicada. Por último, será feita uma análise a respeito da polêmica surgida no Correio
Mercantil na época da publicação de “Confissões de uma viúva moça”, com o objetivo de
mostrar como Machado e seu editor se relacionavam com os leitores das narrativas publicadas
no Jornal das Famílias.
Palavras-chave: Jornal. Folhetim. Público leitor.
Introdução
O objetivo do presente artigo é analisar o conto “Confissões de uma viúva moça”, de
Machado de Assis, a fim de esmiuçar como se deu a colaboração do escritor na imprensa
periódica de sua época, bem como o relacionamento estabelecido com o público leitor dos
folhetins que ele publicava no Jornal das Famílias, um dos periódicos de maior circulação no
Rio de Janeiro do século XIX. Com base nesta análise, mostraremos que Machado tinha uma
aguda consciência em relação à presença do leitor na significação de uma obra literária,
principalmente se levarmos em consideração a polêmica, surgida no Correio Mercantil,
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.
*
Possui mestrado em literatura norte americana e estudos de gênero pela UFPR (2010). Atualmente é
doutoranda em literatura comparada pela mesma instituição. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
literatura brasileira e norte americana, e estudos feministas e de gênero, além de prática de ensino em língua
inglesa. Atuou como professora no Centro de Línguas da UFPR. E-mail: grebellin@yahoo.com.br.
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quando da publicação da narrativa a ser analisada, que teria causado revolta por conter um
caráter subversivo em relação à moral burguesa e aos costumes da família brasileira
oitocentista.
No Brasil do século XIX, o jornal era o principal meio de comunicação de massa,
exercendo um papel importante na publicação e circulação de obras literárias. Segundo Hélio
de Seixas Guimarães, “o principal veículo de escoamento da produção literária oitocentista
era o jornal, sendo raro o romance publicado em volume sem antes ter passado pelo rodapé
dos diários cariocas.” (GUIMARÃES, 2004, p. 49). A popularidade e o alcance do jornal
eram perfeitamente compreensíveis em um contexto marcado pelo analfabetismo e por um
baixo poder aquisitivo, que tornava difícil ou até mesmo inviabilizava a aquisição de obras
literárias. Para se ter uma ideia, em 1872 apenas 18% da população brasileira livre era
alfabetizada, número este que baixou para 14% em 1890. Na mesma época, Inglaterra e
França contavam, respectivamente, com 70 e 77% de alfabetizados, ao passo que os Estados
Unidos, nação de independência recente, contava com quase 90% de população branca
alfabetizada. (GUIMARÃES, 2004, p. 64). Estes dados nos ajudam a compreender a
existência de um enorme abismo entre público leitor e produção de cultura letrada, o que
impactava diretamente a circulação de textos literários, que encontravam no jornal uma forma
prática e eficaz de atingir a pequena parcela alfabetizada da população brasileira.
A imprensa periódica era também a porta de entrada da maioria dos escritores
brasileiros na esfera da produção ficcional. Machado de Assis foi um deles, tendo iniciado
suas colaborações na Marmota Fluminense, onde trabalhou primeiro como caixeiro, depois
como tipógrafo e por fim, como colunista. Machado também colaborou no Diário do Rio de
Janeiro, onde exerceu atividade como crítico teatral, além de elaborar comentários
contundentes em relação à situação política da época. Sua colaboração no Jornal das
Famílias, no entanto, foi a mais relevante, tendo se estendido de 1864 a 1878. Machado
publicou quase uma centena de narrativas no periódico ao longo deste período, narrativas
estas que eram, em sua maioria, de cunho romântico e sentimental, destinadas a provocar a
emoção das leitoras. Neste sentido, faz-se necessário analisar como se deu a configuração de
um público leitor e de um perfil ideológico específicos, a fim de compreender como surgiu a
polêmica relacionada ao conto “Confissões de uma viúva moça”.
O Jornal das Famílias surgiu em 1859 sob o nome de Revista Popular, tendo como
editor o francês Baptiste Louis Garnier. Para Hélio de Seixas Guimarães,
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Garnier foi figura fundamental para a definição do mercado real das publicações
brasileiras por ter sido o primeiro editor a publicar sistematicamente autores
nacionais, tendo lançado 655 trabalhos de autores brasileiros no período 1860-1890,
além de muitas traduções de autores estrangeiros. (GUIMARÃES, 2004, p. 95).
No tocante à carreira literária de Machado de Assis, Garnier foi também
imprescindível, uma vez que publicou em livro os primeiros romances machadianos antes de
lançá-los em folhetim, o que seria o usual na época. Destaca-se, portanto, a importância da
mediação estrangeira na formação da cultura e da literatura brasileira oitocentistas, ainda mais
se considerarmos que o Jornal era impresso em Paris, “o que favorecia o barateamento da
assinatura, melhorava a qualidade da impressão e representava mais prestígio para o
periódico, já que, no Brasil desse período, havia uma supervalorização de tudo o que vinha da
França.” (FARIAS, 2013, p. 83).
Em 1863, o periódico mudou de nome devido a mudanças em sua estruturação e
direcionamento, passando a apresentar seções mais restritas, “com um enfoque
predominantemente literário e voltado exclusivamente para o público feminino e para os
interesses domésticos das famílias brasileiras.” (CRESTANI, 2006, p. 148). O elemento
marcante das publicações era a preocupação com a instrução moral, bem como o caráter
religioso, o que fazia com que a literatura publicada neste periódico fosse romântica e de
caráter fantasioso. Assim sendo, os textos publicados no Jornal ajudavam na perpetuação de
uma ideologia burguesa, que visava manter a integridade do lar e da família, defendendo a
necessidade de ministrar uma educação decente às mulheres. Com base em tais informações,
parece-nos certo considerar que Machado de Assis, como um dos principais colaboradores do
periódico, sofresse uma pressão, por parte de seu editor, para se adequar ao perfil do público
leitor, constituído, em sua imensa maioria, por mulheres provenientes de famílias
conservadoras da sociedade carioca. Para Jaison Crestani, o escritor era colocado “no fio da
navalha”, isto é, “na obrigação de não escandalizar o pai ou marido que pagava pela
assinatura do jornal, e, ao mesmo tempo, seduzir a mulher que o lia.” (CRESTANI, 2006, p.
152). Todavia, Crestani reconhece a existência de traços subversivos e corrosivos que
transgrediam os padrões estabelecidos pelo periódico, a partir dos quais Machado já
articulava, mesmo antes da fase realista, “o seu pensamento crítico em relação aos
mecanismos que governavam a sociedade brasileira da época.” (CRESTANI, 2006, p. 156).
Isto se torna visível em “Confissões de uma viúva moça”, na narração de um episódio de
infidelidade entre uma mulher casada e um homem de moral duvidosa. Mais do que
simplesmente tematizar o adultério, o conto alerta as mulheres burguesas sobre os perigos de
se ceder às tentações fora do casamento, uma vez que o amante de Eugênia acaba por
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abandoná-la no final. O caráter ousado do relato da viúva moça teria provocado reações
violentas nos leitores, conforme sugere a polêmica na seção “a pedidos” do Correio
Mercantil. Lúcia Granja (2008) e Jaison Crestani (2006) acreditam que Garnier tenha forjado
um golpe publicitário a fim de atrair a atenção dos leitores em tempos de Guerra do Paraguai,
que se desenvolveu entre os anos de 1865 e 1870 e provocou uma queda nas vendas do Jornal,
conforme será analisado mais adiante.
“Confissões de uma viúva moça”: o ficcionista “no fio da navalha”
“Confissões de uma viúva moça”, assinado com o pseudônimo J., foi publicado em
folhetim entre abril e junho de 1865, tendo sido incluído, posteriormente, na coletânea Contos
Fluminenses, de 1870. A análise do conto nos permitirá depreender a existência de uma
inegável relação estabelecida entre a narradora e o(a) leitor(a), seja ele(a) a leitora empírica do
folhetim, seja ele(a) Carlota, amiga de Eugênia para quem as cartas são endereçadas. Cabe
ressaltar que as relações com o leitor são construídas a partir de elementos ficcionais próprios
do folhetim, tais como o corte narrativo, a propagação do suspense e o valor instrutivo da
narrativa, que apela para a sensibilidade feminina a fim de construir uma espécie de
“receituário básico” para o comportamento “decente” das leitoras. (PEREIRA, 2010, p. 389).
Em primeiro lugar, faz-se necessário considerar o papel do narrador em primeira
pessoa. Neste conto, não se trata de um narrador e sim de uma narradora, o que aponta para a
singularidade desta narrativa, uma vez que praticamente todos os narradores machadianos são
homens. A este respeito, Cilene Margarete Pereira afirma o seguinte:
A opção narrativa de Machado revela a audácia do autor de, em uma época
absolutamente restritiva à mulher, limitada por papéis secundários e precisos, darlhe voz. A configuração dessa narradora adquire uma força excepcional na obra
machadiana, pois a mulher ao invés de silenciada – como serão outras versões da
adúltera e de certas mulheres em sua ficção – se torna porta-voz das expectativas e
frustrações femininas. (PEREIRA, 2010, p. 389).
Ao lançar mão de uma narradora ao invés de um narrador, Machado poderia também
estar em busca de uma maior cumplicidade com a leitora empírica de seu conto, que, por
conta do desnudamento da subjetividade feminina, poderia até se identificar com o relato de
Eugênia. O foco narrativo em primeira pessoa, aliás, permite a penetração no universo
emocional da mulher, em um relato resultante de uma memória marcada pela emoção e, ao
mesmo tempo, pela racionalidade. Assim, a narrativa se torna uma espécie de diário íntimo,
no qual a narradora combina emoção e cálculo como estratégia para cooptar sua leitora,
conforme expresso no trecho abaixo:
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É tempo de contar-te este episódio de minha vida.
Quero fazê-lo por cartas e não por boca. Talvez corasse de ti. Deste modo o coração
abre-se melhor e a vergonha não vem tolher a palavra nos lábios. Repara que eu não
falo em lágrimas, o que é um sintoma de que a paz voltou ao meu espírito. (ASSIS,
2008, p. 114).
Estabelece-se, portanto, uma evidente tensão em um discurso impregnado pelas
emoções e, ao mesmo tempo, pelo uso da racionalidade, uma vez que, dois anos após o
ocorrido, Eugênia sente-se emocionalmente madura para poder contar a alguém a história de
um deslize conjugal, algo que a envergonharia se fosse feito “por boca”.
A história relatada na forma de gênero epistolar é outro dado a ser levado em
consideração na análise da construção de relações textuais (e extratextuais) com o leitor.
Além de ser um terreno propício para a exploração da subjetividade, o gênero carta permite
uma relação muito próxima com o leitor, e, no caso do conto de Machado, com a amiga da
narradora, que passa a ser sua principal interlocutora. Na visão de Lúcia Granja, isto faz com
que os papéis de leitora empírica e amiga leitora se sobreponham, de forma que “Carlota, é
claro, é a interlocutora que ocupa o lugar de todas as outras leitoras, as quais são, por sua vez,
todas elas, possíveis interlocutoras de cartas reveladoras de uma amiga.” (GRANJA, 2008, p.
22). O formato epistolar coincide com outro, que é também de fundamental relevância: o
folhetim. Neste sentido, deve-se destacar o caráter metaficcional da narrativa, expresso na
seguinte declaração de Eugênia: “As minhas cartas irão de oito em oito dias, de maneira que a
narrativa pode fazer-te o efeito de um folhetim periódico semanal.” (ASSIS, 2008, p. 114). O
formato folhetinesco está, de fato, presente no conto, sendo que “os capítulos são cortados nos
momentos de maior tensão, sendo interrompidos muitas vezes sem que se acabasse de se
referir à ideia principal da carta, como espécie de prolongamento da narrativa.” (PEREIRA,
2010, p. 389). Um exemplo disto é o encerramento da primeira carta, que corresponde ao
primeiro capítulo: “Devo terminar esta. É o prefácio do meu romance, estudo, conto, o que
quiseres. Não questiono sobre a designação, nem consulto para isso os mestres d’arte.”
(ASSIS, 2008, p. 114). Percebe-se, a partir da leitura deste trecho, que a narradora deixa a
cargo do leitor a categorização do gênero textual de seu relato, o que mostra a importância da
figura deste para a atribuição de significados à narrativa. Os comentários metaficcionais de
Eugênia, portanto, modulam a recepção de seu relato, exercendo inegável influência sobre as
interpretações e conjeturas de quem o lê.
Na transição para a segunda carta, opera-se o corte narrativo, que deixa o leitor em
profunda expectativa em relação ao que virá a seguir. A carta é iniciada com considerações
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que, o leitor compreenderá mais tarde, funcionam como justificativas para as atitudes de
Eugênia, como no excerto abaixo:
Minha casa era ponto de reunião de alguns rapazes conversados e algumas moças
elegantes. Eu, rainha eleita pelo voto universal... de minha casa, presidia as reuniões
familiares. Fora de casa, tínhamos os teatros animados, as partidas das amigas, mil
outras distrações que davam à minha vida certas alegrias exteriores em falta das
íntimas, que são as únicas verdadeiras e fecundas.
Se eu não era feliz, era alegre.
E aqui vai o começo do meu romance. (ASSIS, 2008, p. 115).
Com base nestas informações, percebe-se que Machado já começa a articular a
denúncia que funciona como mote central de sua narrativa: a insatisfação feminina com a vida
conjugal, algo que deveria ser muito frequente em uma sociedade patriarcal que propalava o
casamento por conveniências, realizado, na maioria das vezes, sem amor. Torna-se clara a
futilidade que norteia a vida do casal, baseada quase que exclusivamente em reuniões com
“rapazes conversados e moças elegantes”, eventos que conferem à vida de Eugênia a alegria
que, ela admite, falta em sua vida particular. Ela chega até mesmo a negar que era feliz, o que
sugere a enorme frustração amorosa que abrirá espaço para as investidas de um estranho. Ao
iniciar seu relato desta forma, a narradora tenta angariar a simpatia tanto do(a) leitor(a)
empírico(a) quanto de sua interlocutora, talvez com o intuito de suavizar a suposta
amoralidade de sua narrativa. Isto se observa nos primeiros trechos da primeira carta, em que
ela afirma ter se isolado por dois anos em Petrópolis, como se estivesse se punindo pelo que
fez: “Estes dois anos são nulos na conta de minha vida; foram dois anos de tédio, de
desespero íntimo, de orgulho abatido, de amor abafado.” (ASSIS, 2008, p. 114). Além disso,
constata-se o teor utilitário assumido pela narração de Eugênia, que considera sua história um
alerta para “as nossas amigas inexperientes”, rogando a Carlota: “Mostra-lhes estas cartas; são
folhas de um roteiro que se eu tivera antes, talvez, não houvesse perdido uma ilusão e dois
anos de vida.” (ASSIS, 2008, p. 114). Desta forma, pode-se inferir que Machado de Assis, por
meio da narração de uma mulher desiludida mas já refeita emocionalmente desta experiência,
estivesse tentando alertar as leitoras do Jornal das Famílias a respeito não só dos infortúnios
da vida de casada, mas das consequências advindas da não-aceitação das condições impostas
pelo casamento, que podem ser piores do que qualquer matrimônio por conveniência.
O encontro com o misterioso homem se dá no teatro Lírico, lugar que Eugênia insiste
em frequentar a despeito da recusa do marido: “Eu tinha certa superioridade sobre o espírito
de meu marido. O meu tom imperioso não admitia recusa; meu marido cedeu a despeito de
tudo, e à noite fomos ao teatro Lírico.” (ASSIS, 2008, p. 115). Este trecho nos revela a
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submissão do marido às vontades da esposa, permitindo-nos caracterizá-lo como uma pessoa
inexpressiva e até mesmo nula. É interessante inclusive observar que o marido não é sequer
nomeado ao longo da narrativa, o que remete a um apagamento de sua identidade. Talvez seja
esta indiferença a causadora do interesse de Eugênia por um homem que se impõe pela
ousadia não observada em seu marido:
Somos todas vaidosas da nossa beleza e desejamos que o mundo inteiro nos admire.
É por isso que muitas vezes temos a indiscrição de admirar a corte mais ou menos
arriscada de um homem. Há, porém, uma maneira de fazê-lo que nos irrita e nos
assusta; irrita-nos por impertinente, assusta-nos por perigosa. É o que se dava
naquele caso.
O meu admirador insistia de tal modo que me levava a um dilema: ou ele era vítima
de uma paixão louca, ou possuía a audácia mais desfaçada. Em qualquer dos casos
não era conveniente que eu animasse as suas adorações. (ASSIS, 2008, p. 117).
O trecho acima também revela duas características fundamentais da personalidade da
narradora: a vaidade e a curiosidade, que acabam levando-a a corresponder, sem querer, o
descarado flerte do estranho, ainda que reconheça o perigo de fazê-lo. Estabelece-se, portanto,
uma ambiguidade que acompanhará Eugênia ao longo de toda a sua narrativa, assentada em
um dilema moral entre ceder às investidas insistentes do homem e preservar um casamento
que, apesar de infeliz, lhe dá segurança. Na visão de Lúcia Granja, “no lugar de uma
amoralidade insinuada, está, na verdade, a história de uma esposa virtuosa.” (GRANJA, 2008,
p. 23). O flerte insistente do homem, por sua vez, remete a um suposto caráter dominador, que
reduz a mulher à condição de objeto a ser olhado e admirado a despeito de sua vontade e de
seu estado civil. A preocupação da narradora é tão grande que ela resolve se isolar da vida
social por algum tempo, com o objetivo de salvar-se “de uma preocupação que podia ser-me
fatal.” (ASSIS, 2008, p. 118). Tem-se, com esta declaração, uma prova de que Eugênia tinha
noção das conseqüências advindas de um caso extraconjugal, o que angaria ainda mais
simpatia por parte do(a) leitor(a), pois não se trata de uma mulher leviana e sim, de uma
mulher honesta.
A paz da narradora tem seu fim quando ela recebe uma carta de seu admirador
secreto, o que intensifica ainda mais a aura de mistério em torno dele:
Não se surpreenda, Eugênia; este meio é o do desespero, este desespero é o do amor.
Amo-a e muito. Até certo tempo procurei fugir-lhe e abafar este sentimento; não
posso mais. Não me viu no teatro Lírico? Era uma força oculta e interior que me
levava ali. Desde então não a vi mais. Quando a verei? Não a veja embora;
paciência; mas que o seu coração palpite por mim um minuto em cada dia, é quanto
basta a um amor que não busca nem as venturas do gozo, nem as galas da
publicidade. Se a ofendo, perdoe um pecador; se pode amar-me, faça-me um deus.
(ASSIS, 2008, p. 118).
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Para Cilene Margarete Pereira, a carta de Emílio contém figurações poéticas,
entusiastas e românticas que nada mais são do que técnicas de persuasão usadas com a
finalidade de envolver a mulher no jogo amoroso. (PEREIRA, 2010, p. 396-397). Esta, por
sua vez, torna-se um espelho de seu sedutor ao também lançar mão de cartas para relatar a sua
história, o que nos permite inferir que elas são construídas para seduzir o seu leitor.
(PEREIRA, 2010, p. 387-388). Interessante observar que a narradora havia decorado o
conteúdo da carta, uma vez que a queimara em seu gabinete, no momento em que seu marido
entrava pela porta:
Quando a última faísca do papel enegreceu e voou, senti passos atrás de mim. Era
meu marido.
Tive um movimento espontâneo: atirei-me em seus braços.
Ele abraçou-me com certo espanto.
E quando meu abraço se prolongava senti que ele me repelia com brandura dizendome:
- Está bom, olha que me afogas!
Recuei.
Entristeceu-me ver aquele homem, que podia e devia salvar-me, não compreender,
por instinto ao menos, que se eu o abraçava tão estreitamente era como se me
agarrasse à ideia do dever.
Mas este sentimento que me apertava o coração passou por um momento para dar
lugar a um sentimento de medo. As cinzas da carta ainda estavam no chão, a vela
conservava-se acesa em pleno dia; era bastante para que ele me interrogasse.
Nem por curiosidade o fez!
Deu dois passos no gabinete e saiu.
Senti uma lágrima rolar-me pela face. Não era a primeira lágrima de amargura. Seria
a primeira advertência do pecado? (ASSIS, 2008, p. 120).
Torna-se claro que a postura do marido, somada à vaidade da viúva moça e ao seu
descontentamento com a vida conjugal, irão agir em favor de Emílio, que encontra terreno
livre para exercer sua sedução. A partir do recebimento da carta, Eugênia não é mais a mesma
pessoa, pois a imaginação e o mistério atiçam a sua curiosidade: “a luta do dever e da
imaginação é cruel e perigosa para os espíritos fracos. Eu era fraca. O mistério fascinava a
minha fantasia.” (ASSIS, 2008, p. 120). A indiferença de seu cônjuge torna-se ainda mais
evidente do terceiro capítulo, em que a narradora descreve uma reunião em sua casa na qual a
ausência dele “não era notada nem sentida, visto que, apesar de franco cavalheiro como era,
não tinha o dom particular de um conviva para tais reuniões.” (ASSIS, 2008, p. 120-121).
Trata-se, portanto, de um homem inexpressivo tanto social quanto afetivamente, pelo menos
dentro da perspectiva de Eugênia, que, com sua narração, “marca o desconforto da mulher e
sua inadequação aos princípios postulados do casamento.” (PEREIRA, 2010, p. 401). Neste
sentido, o texto machadiano problematiza a experiência do matrimônio, chamando a atenção
para a necessidade de se questionar os papéis da mulher e do homem no interior de uma
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relação em que o marido se torna o responsável indireto pelo flerte de sua esposa com um
desconhecido.
A surpresa de Eugênia é enorme quando ela se depara com Emílio, acompanhado por
seu marido, na sala de sua casa. O rapaz acaba por cativar a todos com seu charme e sua
conversa de homem culto e recém-chegado da Europa: “Soubemos então que Emílio era um
provinciano filho de pais opulentos, que recebera uma esmerada educação na Europa, onde
não houve um só recanto que não visitasse.” (ASSIS, 2008, p. 121). A educação europeia
confere ao personagem ares cosmopolitas que atraem a atenção de todos, inclusive do marido
de Eugênia, que se empolga bastante com o desconhecido: “É uma pérola, não é? Foi-me
apresentado no escritório há dias; simpatizei logo; parece ser dotado de boa alma, é vivo de
espírito e discreto como o bom senso. Não há ninguém que não goste dele...’ (ASSIS, 2008, p.
122). Tem-se, portanto, uma ameaça latente ao casamento que é plenamente ignorada pelo
marido, o que fragiliza Eugênia e a expõe ainda mais aos artifícios do sedutor. Quase ao
término do terceiro capítulo, ela demonstra estar consciente de sua condição:
Se meu marido tivesse em mim uma mulher, e se eu tivesse nele um marido, minha
salvação era certa. Mas não era assim. Entramos no nosso lar nupcial como dois
viajantes estranhos em uma hospedaria, e aos quais a calamidade do tempo e a hora
avançada da noite obrigam a aceitar pousada sob o teto do mesmo aposento.
Meu casamento foi resultado de um cálculo e de uma conveniência. Não inculpo
meus pais. Eles cuidavam fazer-me feliz e morreram na convicção de que o era.
Eu podia, apesar de tudo, encontrar no marido que me davam um objeto de
felicidade para todos os meus dias. Bastava para isso que meu marido visse em mim
uma alma companheira de sua alma, um coração sócio do seu coração. Não se dava
isto; meu marido entendia o casamento ao modo da maior parte da gente; via nele a
obediência às palavras do Senhor do Gênesis. (ASSIS, 2008, p. 123).
A insatisfação feminina é trazida à tona, servindo como estratégia para angariar, mais
uma vez, a simpatia e a cumplicidade da leitora do Jornal das Famílias, além de denunciar, de
maneira bastante clara, as consequências dos casamentos arranjados na sociedade brasileira
oitocentista. O adultério vem a ser uma destas consequências, transformando-se, para Cilene
Margarete Pereira, em uma “forma de resposta à nulidade do papel matrimonial do homem ou
à distância que este ocupa em relação ao ideal da mulher.” (PEREIRA, 2010, p. 402). Tal
distância é enfatizada na fala de Eugênia, no momento em que ela diz que o marido, assim
como os outros, via no casamento uma obediência às palavras de deus, ao invés de percebê-lo
como “objeto de felicidade” e de realização pessoal. Torna-se, portanto, evidente que as
expectativas de marido e mulher estão desencontradas, uma vez que Eugênia esperava mais
do casamento, ao passo que seu marido agia em conformidade com regras sociais, morais e
religiosas. Daí a frustração da mulher, que se transforma em um ser duplo, pois, ao mesmo
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tempo em que rompe com os valores morais da sociedade, “se vê presa a certas imposições
sociais que a impedem de dar um passo à frente.” (PEREIRA, 2010, p. 405).
Não se pode deixar de ressaltar que a infidelidade conjugal é um dos temas mais
presentes na obra de Machado de Assis, em especial em Dom Casmurro e Memórias
póstumas de Brás Cubas. Havia, no século XIX, uma moral disciplinadora que condenava o
adultério feminino, alegando que ele desarticulava a ordem familiar e colocava a paternidade
em dúvida. A análise de “Confissões de uma viúva moça” revela as possíveis causas da
traição, que seria resultado da falta de realização emocional da mulher e da indiferença do
homem, que permite a entrada de um estranho em sua casa e, consequentemente, em sua vida.
Neste sentido, é quase impossível não se recordar de Bento Santiago, que passa a suspeitar
que Capitu o traíra com Escobar, seu amigo inseparável dos tempos de seminário. Também
nos vem à lembrança a figura de Brás Cubas, que trava relações amigáveis com Lobo Neves
mas mantém um caso amoroso com sua esposa, Virgília. Tanto Escobar como Brás Cubas são
dissimulados e manipuladores, características que também podem ser identificadas em
Emílio. Este continua a frequentar a casa de Eugênia sem dar mostras de seu interesse por ela,
situação esta que se prolonga por alguns meses, até surgir a oportunidade de ficarem a sós.
Nesta ocasião, o elegante rapaz declara o seu suposto amor pela narradora:
- Oh! eu bem sei a que me exponho. Vejo como este amor é culpado. Mas que quer?
É fatalidade. Andei tantas léguas, passei à ilharga de tantas belezas, sem que o meu
coração pulsasse. Estava-me reservada a ventura rara ou o tremendo infortúnio de
ser amado ou desprezado pela senhora. Curvo-me ao destino. Qualquer que seja a
resposta que eu possa obter, não recuso, aceito. Que me responde? (ASSIS, 2008, p.
126).
Neste trecho, Emílio mais uma vez lança mão de artifícios românticos para
convencer Eugênia de seu amor, afirmando que sua felicidade está nas mãos dela. Ao exigir
uma resposta, o rapaz dissimula uma relação de dependência entre os dois, apelando,
metafórica e implicitamente, para as capacidades leitoras de Eugênia, que se revela, ao fim e
ao cabo, uma ingênua leitora de seus atos e de sua aproximação. (PEREIRA, 2010, p. 413).
Mais por medo do que por rejeição, ela pede que ele se retire de sua casa, cedendo, contudo, à
manipulação contida naquela declaração de amor:
Até então eu não tinha visto o amor senão nos livros. Aquele homem parecia-me
realizar o amor que eu sonhara e vira descrito. A ideia de que o coração de Emilio
sangrava naquele momento despertou em mim um sentimento vivo de piedade. A
piedade foi um primeiro passo. (ASSIS, 2008, p. 128).
Ela chega até mesmo a considerar que foi muito severa com o rapaz, sensação que se
confirma quando, no quinto capítulo, descobre que Emílio está doente. Tal doença, na
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realidade, é a sugestão de uma tentativa de suicídio, papel certamente emprestado de Werther,
personagem principal de um dos romances mais emblemáticos da literatura ocidental. A
representação é bem sucedida, uma vez que a narradora é enredada no jogo de sedução,
encenado com lágrimas e falsas ameaças de sofrimento. Mesmo apaixonada, no entanto,
Eugênia recusa-se a fugir com Emílio, dando a seguinte justificativa: “desejo ficar a seus
olhos a mesma mulher, amorosa é verdade, mas até certo ponto... pura.” (ASSIS, 2008, p.
133). Mesmo cometendo adultério, Eugênia se preocupa em manter a sua honra, o que remete
à cisão que se opera na personalidade da viúva moça, dividida entre viver uma nova paixão e
manter um casamento de aparências. A solução para este conflito parece se esboçar com a
morte do marido, que libera a narradora das exigências matrimoniais e permite que ela
disponha de si mesma. Para Lúcia Granja, o fato de Eugênia ser “uma viúva moça” tem
implicações diretas na construção do gênero folhetim, conforme a citação abaixo:
Pensando que uma viúva moça corresponde a uma das (raras) formas de autonomia e
liberdade da mulher naquela sociedade, e que Eugênia, dentro da narrativa, se põe a
narrar querendo que seu relato seja lido como ficção e no formato “folhetim”, temos
aqui uma interessante intersecção entre personagem, narrativa e liberdade, assim
como entre narrador, ficção e folhetim. (GRANJA, 2008, p. 25).
De fato, só depois de se tornar viúva e de se isolar por dois anos na serra fluminense
é que a narradora toma coragem de relatar à amiga sua desventura amorosa, o que ratifica não
só as ideias de Granja como também a existência das amarras da sociedade patriarcal, onde
apenas as viúvas podiam usufruir de uma real liberdade. A viuvez se afigura, portanto, como
uma justificativa social para a experiência da nova paixão, o que nos mostra que Machado de
Assis estava bastante atento não só às regras do mercado matrimonial, mas também aos
dispositivos sociais que governavam as relações afetivas e sexuais. Daí o apelo incontestável
de “Confissões de uma viúva moça” junto às leitoras do Jornal das Famílias, que poderiam
ter vivenciado experiência semelhante ou conhecer alguém que a vivenciara, corroborando,
assim, o pacto ficcional entre leitor e obra literária.
Ao enviuvar, Eugênia se considera moral e socialmente livre para viver a sua paixão,
mas descobre que Emílio vai partir da corte. É a partir da leitura desta carta que a narradora
toma conhecimento da verdadeira índole do rapaz: “Uma união contigo seria para mim o ideal
da felicidade se eu não fosse homem de hábitos opostos ao casamento. Adeus. Desculpa-me, e
reza para que eu faça boa viagem. Adeus. Emílio.” (ASSIS, 2008, p. 135). Torna-se claro,
neste momento da narrativa, o descompasso existente entre o amor fulminante anteriormente
declarado a Eugênia e a informação de que Emílio era, na realidade, apenas um sedutor.
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Confirma-se, assim, a incapacidade feminina em fazer uma leitura adequada das atitudes deste
homem, incapacidade esta que provoca uma confusão emocional que é, mais tarde, superada:
Mas, perguntava eu, como é que este homem, que parecia amar-me tanto, recusou
aquela de cuja honestidade podia estar certo, visto que pôde opor uma resistência
aos desejos de seu coração? Hoje vejo que não era; Emílio era um sedutor vulgar e
só se diferençava dos outros em ter um pouco mais de habilidade do que eles.
Tal é a minha história. Imagina o que sofri nestes dois anos. Mas o tempo é um
grande médico: estou curada.
O amor ofendido e o remorso de haver de algum modo traído a confiança de meu
esposo fizeram-me doer muito. Mas eu creio que caro paguei o meu crime e achome reabilitada perante a minha consciência. (ASSIS, 2008, p. 135-136).
Ao término da narrativa, Eugênia faz uma mea culpa a fim de, mais uma vez, cativar
o seu leitor, mostrando ter consciência acerca do erro que cometera. É neste momento em que
a viúva moça, nas palavras de Cilene Margarete Pereira, se transforma em uma “narradora
utilitária”, pois deixa claro que seu relato tem um “ensinamento moral a transmitir.”
(PEREIRA, 2010, p. 391). O valor educacional do texto literário é salientado por Sandra
Vasconcelos em seu estudo sobre o romance inglês do século XVIII:
Diante do reduzido acesso feminino à educação formal, são os romances e
periódicos que vão preencher a lacuna e cumprir o papel de importante fonte de
educação para a maioria das mulheres. O romance passa a funcionar, graças ao zelo
didático dos romancistas e aos propósitos morais que alegam ter, como um poderoso
instrumento pedagógico que visa à reforma dos costumes e maneiras.
(VASCONCELOS, 2002, p. 141-142).
Apesar de ter sido escrito no século XIX, o conto de Machado faz jus às afirmações
acima, ainda mais se considerarmos o veículo no qual foi publicado. Daí a importância de se
analisar o papel do leitor na significação de “Confissões de uma viúva moça”, uma vez que tal
papel, além de construído pela própria narradora, foi problematizado em uma polêmica no
jornal Correio Mercantil. Raimundo Magalhães Jr. chega a instigantes conclusões a respeito
do assunto:
[...] Machado de Assis esteve envolvido numa falsa polêmica, travada em “apedidos”, isto é, na seção paga do Correio Mercantil e por sua vez, no Diário do Rio
de Janeiro, a que Machado de Assis pertencia. Um exame aberto dessa polêmica
levaria qualquer observador medianamente arguto a descobrir que tudo não passava
de um simples artifício publicitário. (MAGALHÃES JÚNIOR, 1981, p. 321).
O “artifício publicitário” teria sido usado pelo editor Garnier e pelo próprio Machado
de Assis a fim de atrair a atenção dos leitores, que não seria mais a mesma por conta da queda
de vendas do Jornal das Famílias. Esta teria sido provocada pela Guerra do Paraguai, que se
iniciara em 1865, mesmo ano de publicação de “Confissões de uma viúva moça”. A primeira
investida de “O Caturra” aparece no dia primeiro de abril, logo após a publicação dos dois
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primeiros capítulos da narrativa, os quais, conforme já analisado, parece esboçar o princípio
do adultério e a indiferença do marido de Eugênia:
Jornal das Famílias
[...]
No último número deste jornal, que se diz das famílias, e cujo programa já vai se
afastando sofrivelmente, enceta-se a publicação de um romancito sob o título
Confissões de uma viúva moça.
Pela amostra do pano desde já se pode conjeturar de que magnificência será o
vestido que trata-se de expor à atenção das jovens, que têm um dia de serem esposas
e mães de família, isto é, daquelas que bem deverão compreender qual a verdadeira
missão dos filhos, e os legítimos gozos ocorrentes que suavizam os frequentes
cuidados de respeitável mãe de família. Para os pais de família, pés de boi, os que
têm a esquisitice de verem a realidade deste mundo pelo prisma rococó escrevemos
estas ligeiras linhas, pedindo-lhes que façam companhia às suas filhas na apreciação
de tão edificantes escritos, tão harmoniosos como os esplendores deste século
reformista. (O CATURRA apud MASSA, 1965, p. 210).
O comentário teve resposta no dia 2 de abril, quando J., na realidade Machado de
Assis, rebateu da seguinte forma: “Felizmente, basta ler o primeiro capítulo para ver a
malignidade d’O Caturra. Protesta-se contra a caturrice, e fiquem descansados os pais de
família: o autor das Confissões respeita, mais que ninguém, a castidade dos costumes.” (J.,
apud MASSA, 1965, p. 211). Estabelece-se, desta forma, um descompasso entre a
interpretação do polemista e o que está realmente escrito no conto, uma vez que, para Lúcia
Granja, “nada havia nos dois primeiros capítulos que viesse a fazer apologia de um vício
moral.” (GRANJA, 2008, p. 25). A polêmica teria continuidade no mês de maio, mais
especificamente no dia primeiro, quando “O Caturra”, em novo artigo publicado no Correio
Mercantil, demonstra, mais uma vez, preocupação com a castidade das famílias e com uma
suposta liberdade exagerada de imprensa que a publicação das “Confissões” demonstrou
existir. Tal liberdade estaria relacionada a alguns aspectos do enredo, entre eles a paixão de
Eugênia por outro homem e a iniciativa de se isolar na serra fluminense em pleno inverno. No
entanto, vale ressaltar que tal liberdade não é conquistada à revelia de quaisquer fatores
sociais, sendo apenas possível a partir do momento em que a personagem se torna viúva.
Assim sendo, confirma-se a “caturrice” do polemista, o que nos dá a entender que o irônico
comentário foi talvez escrito com o objetivo de provocar não só os leitores, mas o próprio
Machado, que responde à altura, exigindo uma leitura adequada de sua narrativa.
No dia 2 de maio, o escritor assume sua identidade em mais uma de suas respostas às
reclamações de “O Caturra”: “Sou o autor do romance que, com este título, publica
atualmente o Jornal das Famílias. Peço ao Sr. Caturra que aguarde o resto do escrito para
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julgar da sua moralidade – sem o que, qualquer discussão será inútil.” (ASSIS, apud MASSA,
1965, p. 211). Com esta declaração, Machado elegantemente desqualifica a leitura do
misterioso polemista, reiterando a impossibilidade de se fazer uma interpretação moralista
sem ler o conto na íntegra. Em 4 de maio, “O Caturra” responde o seguinte: “releve-nos o Sr.
Machado de Assis essa rigidez do nosso conceito; nem todos a terão, e é provável mesmo que
estejamos em ridícula minoria.” (O CATURRA, apud MASSA, 1965, p. 214). Estes
comentários se adequam perfeitamente ao pseudônimo adotado pelo comentarista, uma vez
que “caturra” significa “teimoso”, “rabugento” e “agarrado a velhos hábitos”. (GRANJA,
2008, p. 26). Neste sentido, cabe uma pergunta: não seria o “caturra” o próprio Garnier, ou
alguém de fora do grupo de jornalistas do Jornal das Famílias, ou simplesmente um moralista
realmente preocupado com a manutenção da integridade da família burguesa? Não há, na
crítica machadiana, um consenso a respeito disto; o que há é, conforme já dito, a suspeita de
que a polêmica tenha sido forjada, o que mostra a habilidade tanto do escritor quanto de seu
editor em prever e até mesmo, manipular a recepção de uma narrativa. É bem possível que
Garnier, consciente da temática aparentemente subversiva de “Confissões de uma viúva
moça”, tenha tentado atrair a atenção dos seus leitores, convocando, também, o próprio
Machado para defender o seu texto e amenizar quaisquer reações violentas por parte do
público leitor. Assim sendo, o que o “golpe publicitário” revela é, acima de tudo, “a
consciência das formas literárias em sua relação com o seu veículo e seu público”,
evidenciando a capacidade machadiana de imaginar outras vozes e de lançar mão de tais
vozes para dinamizar a recepção de sua narrativa. (GRANJA, 2008, p. 27).
Com base em tudo o que foi exposto, pode-se interpretar “Confissões de uma viúva
moça” como um conto que, além de tematizar alguns aspectos da condição feminina na
sociedade do século XIX, nos permite analisar a construção das relações entre autor, obra
literária e leitor, relação esta que é construída dentro do texto e pelo texto, por meio das
técnicas folhetinescas que criam suspense e aumentam a expectativa daquele que lê. Isto é o
que parece fazer com que Eugênia passe de “personagem seduzida” a “narradora sedutora,
que usa a sedução romanesca para alcançar sua leitora e compreender-se melhor.” (PEREIRA,
2010, p. 415). Garnier, assim como Machado, certamente não estava imune a esta sedução,
pois lançou mão dela para movimentar leituras e interpretações distintas, permitindo-nos
aprofundar a questão da polêmica para além da queda nas vendas causada pela Guerra do
Paraguai. Temos, desta maneira, evidências de que Machado de Assis, mesmo antes da fase
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realista, estava atento ao seu público leitor e às mais diversas formas de recepção literária,
algo que seria, mais tarde, largamente destacado e explorado em sua literatura.
Referências
ASSIS, Machado de. Contos Fluminenses. São Paulo: Martin Claret, 2008.
CRESTANI, Jaison. A colaboração de Machado de Assis no Jornal das Famílias:
subordinações e subversões. Patrimônio e memória, São Paulo, n. 1, v. 2, p. 154-183, 2006.
Disponível em: http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/109 Acesso em: 01 fev.
2014.
FARIAS, Virna Lúcia Cunha de. Machado de Assis na imprensa do século XIX: práticas,
leitores e leituras. 238f. Tese (Doutorado em Letras) – Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Federal da Paraíba, 2013.
GRANJA, Lúcia. Novas confissões sobre um conto polêmico de Machado de Assis. Machado
de Assis em linha, São Paulo: n. 1, p. 19-28, jun. 2008. Disponível em:
http://machadodeassis.net/download/numero01/num01artigo03.pdf Acesso em: 01 fev. 2014.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o
público de literatura no século XIX. São Paulo: EDUSP, 2004.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
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MASSA, Jean Michel (Org.). Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: INL, 1965.
PEREIRA, Cilene Margarete. “Confissões de uma viúva moça” e a educação sentimental da
mulher machadiana. Revista Travessias, Cascavel, n. 1, v. 4, p. 385-417, 2010. Disponível
em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/3606/2863 Acesso em: 01
fev. 2014.
VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês no século XVIII. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
[Recebido em fevereiro de 2014 e aceito para publicação em agosto de 2014]
Machado de Assis and the periodic press: an analysis of “Confissões de uma viúva
moça”
Abstract: This articles’s aim is to analyze the short story “Confissões de uma viúva moça”,
published by Machado de Assis as a serialized novel in Jornal das Famílias. The story gives
us some evidence on Machado’s actuation in Rio de Janeiro’s periodic press in the beginning
of his literary career, as well as the ways in which he built a relationship with his readers,
being them real or fictional. Firstly, there will be a brief theoretical discussion in relation to
the status of the newspaper and the formation of the reading public in the nineteenth-century
Brazilian society, seeking to understand the role of the newspapers and journals and the
circulation of literary texts, as well as the profile of the readers of Jornal das Famílias.
Secondly, the short story will be analyzed, in order to show how the relationship between the
writer and the reader is constructed, considering the communication vehicle in which it is
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published. Finally, the polemic in Correio Mercantil will be discussed, in order to show how
Machado and his editor built a relationship with the readers of Jornal das Famílias.
Keywords: Journal. Serialized novel. Reader.
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