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Disjointed: a sitcom no Holodeck
Stephanie Watanabe
Disjointed: a sitcom no Holodeck
Stephanie Watanabe 1
Universidade Anhembi Morumbi
Resumo: A obra seriada Disjointed (2017), de Chuck Lorre e David
Javerbaum, apresenta elementos estéticos e narrativos
diferenciados. Conhecido por suas sitcoms, Chuck Lorre parece
inovar o subgênero, apresentando vlogs, video clips, fake trailers, fake
breaks comerciais, vinhetas sugestivas de transição de cena, e
trechos em animação com tom surrealista. Tendo como principal
problemática a classificação da obra, o artigo visa analisar estes
elementos de sua primeira temporada, e os conceitos de vanguarda
surrealista, narrativa seriada clássica e complexa, o subgênero
sitcom e sua evolução.
Palavras-chave: Disjointed; sitcom; narrativa seriada.
Abstract: Chuck Lorre and David Javerbaum's series Disjointed (2017)
presents differentiated aesthetic and narrative elements. Known for
his sitcoms, Chuck Lorre renews the format by using vlogs, video
clips, fake trailers, fake commercials, suggestive vignettes on scene
transitions, and mental trips in surrealistic animation. The main
problematic is the series’ classification, so the article analyzes these
first season’s elements, and also concepts such as surrealist
vanguard, classical narration in TV series, complex TV, the sitcom
genre and its evolution.
Key words: Disjointed; sitcom; narration in TV series.
1
Stephanie Watanabe é mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi
Morumbi, bolsista integral por mérito acadêmico. É graduada em Design de Animação (UAM, 2010), e especialista
em Produção Audiovisual (SENAC, 2013). Possui larga experiência em animação e conteúdo audiovisual infantil, e
atualmente coordena projetos audiovisuais ficcionais infanto-juvenis, como a série Alex Green, em parceria com a
Tortuga Studios. Sua dissertação, orientada por Sheila Schvarzman, analisa a obra seriada animada infantil Irmão
do Jorel (Cartoon Network 2014-2018). E-mail: stephanie@moonshot.com.br. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2744319220100362.
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Disjointed (2017), obra seriada que estreou mundialmente em agosto de 2017, apresenta
Ruth (Kathy Bates), uma advogada e ativista que lutou a vida toda pela legalização, e que agora
possui um depósito e loja com as mais variadas cepas de cannabis. A trama2, ou plot, 3 principal
gira em torno do recente negócio farmacêutico de Ruth Whitefeather Feldman - autointitulada
curandeira, xamã e rabina-, que conta com o marketing de seu único filho, Travis, recémespecialista em administração, para deslanchar financeiramente. Porém, alocado em uma
estrada em Los Angeles, Califórnia – um dos oito Estados onde a erva é legalizada ao consumo
recreativo-, segue a legislação à risca, temerosa com os policiais de estados vizinhos e alguns
conservadores em seu encalço. Assim, Ruth atende apenas pacientes com identificação e
prescrição médica. A fiscalização fica por conta de Carter, o segurança da loja, um veterano da
guerra do Iraque, com dificuldades de socialização, e que vive com o estresse pós-traumático
e a culpa de ter sobrevivido.
A protagonista, ex-hippie e com histórico de prisões devido ao seu grande amor, a
cannabis, reconecta-se recentemente com o filho, que cresceu com o pai, ex-Black Panther
e advogado de uma grande empresa farmacêutica. Os plots secundários envolvem esta
relação entre mãe e filho; os traumas do segurança Carter; as relações entre os três jovens
atendentes e especialistas da loja; um jovem casal de clientes que nunca estão sóbrios;
uma cliente ansiosa e mãe de família; e o conservador professor de tae-kwon-do, Douglas,
que divide a praça de seu estabelecimento com o de Ruth.
A série apresenta elementos diferenciados em sua narrativa e estética, levando à
principal problemática deste artigo: sua classificação. Apesar de apresentar-se como uma
sitcom, possui arcos longos e uma aproximação tanto do conceito de obra seriada clássica,
de Pallottini (2012), como de complexidade narrativa, de Mittell (2012) – que serão
aprofundados neste trabalho. Como Mittell toma as sitcoms complexas como exceção, há
2
A trama, plot, ou syuzhet, é a forma na qual são organizados os eventos em sua narração. A trama na narrativa
clássica pode apresentar, geralmente, uma estrutura causal dupla, uma principal que pode girar em torno de um
casal, e a secundária que envolveria outra esfera: trabalho, guerra ou outras relações pessoais. (BORDWELL, 2005,
p. 280). Em Disjointed, é o inverso, o negócio da família é o principal plot.
3
Ao contrário do cinema, e apesar de ter apenas 30 minutos de duração, as diferentes estruturas causais da trama
seriada podem ser divididas em um plot principal A, e plots secundários, B, C e assim por diante, que se intercalam,
até se encontrarem e serem concluídos somente ao final do episódio (THOMPSON, 2003, p.31).
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uma dificuldade em estruturar e definir este novo formato complexo presente em Disjointed
– bem como em recentes sitcoms que serão citadas neste artigo.
Disjointed permite um engajamento, com sua trama principal unindo toda a primeira
temporada e situações que remetem e citam episódios anteriores. Desta maneira, o
espectador de Disjointed poderia acompanhar os episódios de maneira independente –
apesar de todos os episódios remeterem aos arcos longos, descartando aqui a existência
de episódios isolados -, caso desejasse, sem perder conhecimento de acontecimentos
anteriores; ou poderia permitir-se engajar por sua complexidade.
Além disso, os elementos estéticos da série envolvem mistura de gêneros, interação
com a plataforma de VOD (video on demand, ou vídeo sob demanda) Netflix, quadros em vlogs,
video clips, fake trailers, fake breaks comerciais, vinhetas sugestivas de transição de cena e
trechos em animação com tom surrealista. Todos estes contribuem a uma produção de
sentido que dialoga com a trama e o principal tema da série – a legalização e os efeitos da
cannabis-, e abrem questionamentos se seriam parte de uma evolução do subgênero sitcom.
Dentro do conceito de narrativa no Holodeck (ou no Cyberespaço), apresentado por
Janet Murray (1997), há a hipótese de que a evolução da sitcom dialogue com novas
propostas de contar histórias e com a convergência das mídias, pensamentos já elucidados
por Murray e aprofundados por Jenkins (2006).
Por meio de análise da primeira temporada, destes conceitos, e do histórico
estrutural do subgênero sitcom, uma investigação buscará traçar o perfil de Disjointed.
Analisando Disjointed
No início do século passado, a marijuana era legalizada 4 em todos os Estados
Unidos. Em meados da década de 1930, o consumo da erva fora proibido em apenas
29 dos então 48 Estados norte-americanos. O país passava pela Grande Depressão
e, devido à crise, o consumo da erva cresceu. Os conservadores diziam que isso fez
aumentar o crime e a violência nas cidades. Em 1937, após uma forte campanha, o
Congresso aprovou uma lei criminalizando o uso da maconha em toda a nação,
4
Disponível em: <http://www.drugpolicy.org>. Acesso em: 08 set. 2017.
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restringindo a utilização da erva apenas em casos medicinais. Até o presente
momento, oito estados 5 estadunidenses legalizaram o uso recreativo de cannabis
para adultos acima de 21 anos de idade, três ainda mantêm o uso totalmente ilegal,
e o restante permite o consumo apenas com propósitos medicinais.
Com recentes eventos incentivando a legalização – como o stand no festival
Coachella 6 vendendo cannabis legalizada -, o turismo 7, e variadas séries originais
Netflix que mencionam e incentivam o uso – como Wet Hot American Summer: Ten
Years Later (2017), Bojack Horseman (2014), Arrested Development (2003), Grace and
Frankie (2015), Santa Clarita Diet (2017), Orange is The New Black (2013) entre outros , Disjointed surge em um momento oportuno.
Neste controverso e polêmico contexto, Chuck Lorre e David Javerbaum, com
a proposta de uma sitcom tendo a erva como tema que uniria todos os personagens,
recebem o aval da produtora e exibidora on demand Netflix 8, em parceria com a
Warner Bros Television. Sem ao menos precisarem apresentar um piloto 9, ganham a
encomenda inicial de 20 episódios (divididos em duas partes, ou temporadas).
A temática da legalização na série envolve não somente a trama ficcional,
como todos os elementos que compõem a série, contribuindo à sua narrativa. Como,
por exemplo, os títulos dos episódios, que são nomes de cepas reais de cannabis.
5
Dados
disponíveis
em:
<http://www.governing.com/gov-data/state-marijuana-laws-map-medicalrecreational.html>. Acesso em: 08 set. 2017.
6
Iniciativa do evento. Disponível em: <http://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2017/03/29/coachella-oasismaconha/>. Acesso em: 08 set. 2017.
7
Legalização
em
8
estados
acelera
o
turismo
nos
EUA.
Disponível
em:
<http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/05/1885778-com-legalizacao-em-8-estados-turismo-de-maconhaganha-folego-nos-eua.shtml>. Acesso em: 08 set. 2017.
8
Disponível em: <https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/series-e-tv/2017/04/disjointed-netflix-lancaprimeiro-teaser-de-serie-sobre-maconha-em-data-sugestiva>. Acesso em: 07 set. 2017.
9
O piloto, ou episódio inicial, tem o caráter de introduzir-nos à série. De acordo com entrevista, Ted Sarando –
diretor de conteúdo da Netflix – afirma não acreditar que um piloto seja suficiente para apresentar uma série, e
tampouco para fisgar um espectador, assim justifica a escolha da plataforma em disponibilizar todos os episódios
de uma só vez (NASCIMENTO, 2015, p. 67).
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A abertura10 da série é um dos elementos diferenciados analisados no artigo e
merece atenção uma vez que é uma sequencia, com montagem paralela11 de cenas de dois
longas-metragens, Marijuana: The Weed With Roots From Hell! (Maconha: A Erva com Raízes
no Inferno) e Reefer Madness (A Loucura da Mary Juana). Ambos lançados em 1936, as obras
faziam parte de uma série de longas-metragens contra o consumo da erva - na época ainda
não proibida nos Estados Unidos. Tinham o objetivo de mostrar para crianças e jovens o
mal que o uso da cannabis supostamente causaria.
Entretanto, a abertura, com trilha sonora alegre, acaba por apresentar apenas cenas
divertidas dos longas, levando o consumo do ponto de vista de uma saudável brincadeira. A
canção tema da abertura, Jack, I’m Mellow (Jack, Eu Estou Tranquila, tradução da autora) traz
trechos como “Estou bem alta”, “O mundo parece tão leve”, que referenciam os efeitos do
trago, dialogando com as cenas dos longas-metragens. Cada um dos personagens da abertura
muda de feição instantaneamente, assim que inala a fumaça. Eles entram em delírio, se
abraçam, se beijam e dançam loucamente, inclusive em cima de uma mesa.
A vinheta de abertura, além deste resgate da história do cinema (e da história da
legalização nos Estados Unidos), também exibe conexões interessantes com os episódios.
Nos dois primeiros episódios, e no último, da primeira temporada, a música e a abertura
são exibidas de maneira completa, de modo que ambos realmente virem um hit alegre e
hipnótico, nos introduzindo a atmosfera e ao humor da série. Nos episódios restantes, a
abertura é rapidamente acelerada, simulando o efeito de fast forward, ou do avançar de um
rolo de filme, revelando apenas poucos segundos iniciais e finais dela - tempo
suficientemente preciso para que o botão “Pular Abertura”, da plataforma Netflix, se faça
10
As vinhetas possuem diferentes funções. Ao passo que as de abertura de série, telenovelas, telejornais
introduzem estas obras, as demais vinhetas no geral fazem parte da paraserialidade, tendo a função de demarcar
início e fim, seja do produto seriado no geral, seja de blocos. A vinheta também é parte da estética da repetição
televisual e tem cunho auto referencial. Tal repetição relembraria o espectador de que está, de novo, conectado à
emissora e à programação que aprecia (SCHIAVONI, 2011). Entretanto, tratando-se de um produto em exibição via
plataforma on demand, Disjointed abre mão da repetição - diferente de seus antecessores, exibidos na televisão,
conforme analisado a seguir.
11
Para Marie-Therèse Journot, a montagem paralela alterna uma série de imagens que não têm entre si qualquer
relação de simultaneidade. “É discursiva, e não narrativa, utilizada para fins retóricos e de simbolização, para criar
efeitos de comparação ou de contraste”. (JOURNOT, 2005, p. 103).
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inutilizado. O botão “Pular Abertura”, dispositivo recente 12 da plataforma, pela primeira
vez 13 seria pensado durante a produção de uma série original Netflix.
Uma exceção seria o oitavo episódio, chamado O verde de Pyongyang, que inicia de
maneira totalmente diferente, como uma quebra no formato narrativo da obra seriada.
Parodiando 14 um trailer15 televisivo de série, os primeiros minutos anunciam a morte de um
personagem, tema suficientemente chamativo para convidar o espectador a acompanhar
o episódio seguinte. A morte, devido à intervenção divina, chega para Jake, um fotógrafo
antagonista de Ruth, e é a primeira cena que testemunhamos após o falso trailer comercial
– no lugar da abertura tradicional. A abertura, neste episódio, é exibida de maneira
completa, para que a canção interaja com a cena. A letra da música também sofre uma
paródia: mantém o ritmo e as rimas enquanto narra a morte hilariante de Jake, que voava
pelos céus de parasail e caiu devido à instabilidade do vento. Mas, caso o espectador
deseje, também pode “pular” esta abertura com o recurso do botão.
O primeiro episódio já anuncia que será uma experiência voltada ao espectador de
streaming 16 e de Netflix, aquele que assiste por um computador, SmartTV, smartphone, tablet ou
qualquer dispositivo móvel. Logo após os logos da Netflix e da Warner Brothers, uma página do
YouTube surge e ela é mencionada pelo vlogger 17 em questão, Pete - que vai nos apresentar a
loja “Caminho Alternativo da Ruth”, a proprietária e como ela funciona. Um ícone cursor do
mouse passa pelo site e clica no botão de play e no botão de “tela cheia”, e o vlog de Pete preenche
a tela, desta vez, com as marcações de timer e rec, simulando a câmera gravadora de um celular
iPhone. O artifício de vlog para publicidade da loja, logo nos primeiros três minutos do piloto,
12
Dispositivo surge de uma atualização da plataforma Netflix, em Março de 2017. Disponível em:
<https://olhardigital.com.br/noticia/voce-podera-pular-a-abertura-de-series-na-netflix/66878>. Acesso em: 08
set. 2017.
13
“Parece que a série sozinha decidiu apertar o botão ‘pular abertura’ para você”, tradução da autora. Disponível
em:
<http://www.indiewire.com/2017/08/disjointed-review-netflix-kathy-bates-need-to-be-high-comedy1201868788/>. Acesso em: 08 set. 2017.
14
“[...] paródia é uma repetição com distanciamento crítico que permite a indicação irônica da diferença no próprio
âmago da similaridade” (HUTCHEON, 1985, p. 185).
15
“A função imediata do trailer é anunciar um filme a ser apresentado. Mas, é também, uma forma abreviada e
fragmentada de contar uma história, isto é, comporta uma narrativa própria.” (QUINTANA, 2003, p. 10).
16
Streaming é uma forma de transmissão audiovisual online, sem a necessidade de download. (SHEPHARD, 2003,
p. 295-308).
17
Vlogger é o autor e apresentador de uma série de vídeos diários, ou vídeo blogs (vlogs), via plataformas como
YouTube, Vimeo, entre outros. (DORNELLES, 2015).
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serve como pretexto perfeito para apresentar rapidamente os personagens principais, os
funcionários da loja e a lei estadual para os leigos, dentro da narrativa clássica 18. Este vlog fará
parte dos episódios, com a vinheta chamada Strain o’ the Day, informando um tipo diferente de
cannabis por dia, sua origem e efeitos. Com viés informativo, o vlog apresenta cepas reais, que
são utilizadas na medicina contemporânea, em tratamentos para ansiedade, depressão, estresse
e até doenças como Alzheimer e câncer.
O segurança Carter, por sua vez, é o personagem que nos transportará a
momentos com tons surrealistas 19. Animações em diversas técnicas revelam o
consciente ou subconsciente do segurança, sua imaginação ou memória: um mundo
de traumas, dores, e abandonos, desengatilhados pelo estresse pós-traumático do
veterano de guerra. Somente por meio deste personagem é que o espectador também
testemunhará os efeitos relaxantes causados pelo tratamento via cannabis e o
consequente desaparecimento deste trauma.
Outro elemento inusitado da sitcom são quebras na trama para cenas que
parodiam outros vlogs, o gênero fílmico musical, clipes musicais contemporâneos, ou
mesmo um tele programa de investigação policial, sempre dialogando com o tema de
seu respectivo episódio. Nestes momentos, a estilística de multicamera do sitcom
(CORTÉS, 2000, p.185-189) abre espaço para um visual de câmera única, com
iluminação e direção de arte típicos de cada elemento parodiado. Estas pequenas
surpresas têm possibilidade de engajar o espectador que, além de interpretá-las com
humor não elitista, poderia se perguntar qual seria o elemento surpresa do próximo
episódio.
As vinhetas de transição de cena em Disjointed também surgem como elemento
surpresa, uma vez que não seguem um padrão – diferente de telejornais e de outras
sitcoms, como a vinheta animada de um átomo, recorrente em Big Bang Theory. Cada
vinheta também possui estilística própria em câmera única, referenciando uma
18
A narrativa clássica não é elitista e possui estrutura de redundância, causa e efeito (THOMPSON, 2003, p. 56).
De acordo com Eduardo Cañizal, o surrealismo apresenta símbolos de maior compreensão e aproximação que
o distanciamento causado pelo dadaísmo. E tem como proposta oscilar entre o consciente e subconsciente, o real
ou imaginário. (CAÑIZAL, 2007, p.143).
19
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direção de arte e cinematografia típicas do cinema de longa-metragem, e sugerindo
uma produção de sentido mais complexa. A cada vinheta, uma situação diferente: seja
ela relaxante, atraente ou viciante - como um hobbie, um bom prato saindo do forno,
ou várias fichas ganhas em um cassino-; ou focada e de cura, como um rapaz andando
sobre um trampolim, uma cirurgia médica, e um paciente sentindo melhora. Sugerem
efeitos que a erva pode proporcionar, ou ainda, atividades nas quais a erva não
atrapalharia.
Outra quebra da narrativa, e diferencial da série, são os falsos comerciais,
sempre presentes nos episódios – aparecendo uma a duas vezes a cada episódio. Com
muito humor, parodiam o design e narração apelativos típicos da intensa publicidade
de décadas atrás. Alguns comerciais, em preto e branco, questionam como seria a
publicidade da erva nos anos 1930, antes de sua proibição. Já Kush, The Banquet Weed
– Since 1873, por exemplo, é um falso comercial contemporâneo que remete à
publicidade da indústria de cigarros, com cowboys semelhantes aos do cigarro
Marlboro. O ano de surgimento da marca, juntamente à narração em voice over 20,
sugerem uma indústria que cresceu e fortaleceu a economia do país, lado a lado a
qualquer espécie da agricultura, com solidez, paixão e tradição.
Esta parece ser a fonte do conflito entre mãe e filho. Enquanto Travis pensa em
construir um império da marijuana, com franquias da loja em todo o país; Ruth, que
sempre foi ativista, não quer se tornar “o sistema”. A série, de diversas maneiras, nos
leva a pensar o perfil industrial certeiro que um “novo” produto proporciona ao
chegar ao país com seu consumo recreativo liberado, e seu impacto no mercado e nos
meios de comunicação – se seu comercial fosse legalizado nas emissoras do país.
20
“Voz-over – voz narrativa que provém de um espaço e um tempo indefinidos, e que pode ou não ser de
personagens.” (PUCCI, 2009, p 271).
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Investigar a Sitcom
Disjointed, embora direcionada ao streaming, é dividida em blocos 21, parodiando as
clássicas sitcoms de décadas anteriores. Com narrativa seriada clássica 22, habituada
basicamente em três cenários - a recepção, os fundos da loja, e a sala de Ruth-, e gravação
em multicâmera, Disjointed ainda mantém as características clássicas da sitcom, estando a
maioria delas elencadas a seguir:
•
episódios com trinta minutos em média de duração e situações humorísticas
(WOLFF, 1996, p.3);
•
o humor se origina nas tentativas frustradas dos personagens em se libertar de seus
problemas cotidianos (CURTIS, 1982);
•
há o uso de narrativa clássica, com redundância, existência de dois blocos com
cliffhanger23 entre eles, e dois plots ou mais, que podem se intercalar, e, comumente,
se resolverem de maneira conjunta ao final do episódio (THOMPSON, 2003, p.42);
•
a estilística geralmente utiliza-se de ângulos de câmera abertos, possibilitando
observar as ações de mais de um personagem ao mesmo tempo; e é gravado em
multicamera, em um único cenário; há ainda, alternância entre humor visual e de
situação com uso de claque 24 (CORTÉS, 2000, p.185-189);
•
o personagem é tipificado, com seus trejeitos repetidos, e um breve silêncio
antecede as gags; logo, há uma fórmula fixa, raramente mutável, com esquemas
pré-definidos e repetidos, de problemas na trama e de como e onde o humor
surgiria (ESQUENAZI, 2010, p. 101);
•
os episódios apresentam situações e problemas recorrentes, que se resolvem com
final feliz, e podem ser acompanhados de maneira individual, sem engajamento,
21
A serialidade televisiva, diferente da serialidade literária, apresenta a chamada “estética da interrupção”, na qual
a trama seria sempre contada de maneira fragmentada em blocos, para que haja os intervalos comerciais
(MACHADO, 2000, p. 83).
22
Narrativa seriada clássica se assemelha à clássica do cinema, onde há integridade, unidade. E, apesar de contar
uma história completa em um episódio, ele está contido na “unidade maior de todo o seriado, que lhe dá sentido
e integridade final”. (PALLOTTINI, 1998, p. 79).
23
Cliffhanger, ou gancho, na narrativa, causa um efeito de engajamento do espectador, uma vez que estaria
desprovido de saber o término de um plot. (THOMPSON, 2003, p.42).
24
A laugh track, ou claque, é a reação de da plateia ouvida pelo espectador. Remete aos tempos teatrais e se tornou
uma das características mais marcantes da sitcom. (CERETTA, 2014, p. 17)
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raramente se referindo a acontecimentos de episódios anteriores (MILLS, 2008,
p.27, tradução da autora);
•
não são séries evolutivas e tendem a dar lugar a estas que sabem jogar com o tempo
diegético (ESQUENAZI, 2010, p. 102). Esquenazi, aqui, se refere ao formato seriado
clássico, com episódios independentes - e Renata Pallottini cita como exemplo
deste formato algumas sitcoms brasileiras. (PALLOTTINI, 2012, p.30-31).
Entretanto, a série parece não se encaixar nos dois últimos tópicos da lista.
Disjointed mescla situações de humor com total dramaticidade e, consequentemente,
empatia dos personagens – e do público-, para com os problemas da trama. Ao contrário
do humor constrangedor da dramédia, na qual o público é induzido a rir dos dramas e
frustrações dos personagens, aqui o público de Disjointed está sujeito a rir e chorar com os
funcionários da Ruth’s Alternative Caring, sem esperar um final feliz em seus episódios.
Embora possam ser acompanhados de maneira independente, os episódios da série
ainda carregam um arco em sua temporada, citando situações passadas, e convidando o
espectador a se engajar e acompanhar a temporada toda em sequência. Considerando sua
plataforma streaming de lançamento, é inevitável que o espectador se direcione a
acompanhar a série desta maneira, sequencial. Se Esquenazi previa que a série clássica
cada vez mais perderia o interesse do publico, abrindo espaço para a complexidade
narrativa, vale investigar como este perfil se deu na evolução do subgênero sitcom.
Evolução do subgênero
A sitcom já era um formato de sucesso nas rádios estadunidenses, desde os anos
1920; surge na TV americana nos anos 1940, com Mary Kay e Johnny, e ainda é considerada
um dos formatos de maior sucesso da televisão. Formato econômico que possibilitava a
gravação ao vivo em mais de uma câmera ao mesmo tempo, logo se tornou um modelo
replicado pelas décadas seguintes. Os anos 1960 e 1970 iriam reproduzir este formato
descoberto em I Love Lucy (1951), além das estruturas de humor e de roteiro deste sucesso
de audiência. Ainda sim, poderiam propor mudanças nas temáticas, envolvendo elementos
de fantasia e de ficção científica, como em A Feiticeira (1964) e Jeannie é um Gênio (1973), ou
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mesmo elementos de crítica social, envolvendo assuntos como a sexualidade, a violência e
a guerra de classes, como visto em Família Buscapé (1962), Dias Felizes (1974) e M*A*S*H
(1972). Em contraponto ao liberalismo inspirado pela contracultura, os anos 1980
recuperariam o conservadorismo e o American Way of Life em suas temáticas familiares.
(MORREALE, 2002).
Considerando a sitcom um subgênero da comédia, vale lembrar que os gêneros e
subgêneros não possuem identidades ou fronteiras estáveis, e são frequentemente
híbridos e abertos à evolução (ALTMAN, 2011, p. 39). De acordo com Esquenazi (2010), as
experimentações dentro do formato de sitcom já apareceriam mesmo nos anos 1950, com
arcos tímidos, ultrapassando alguns episódios, e gerando engajamento. Mas, para Jason
Mitell (2012), Seinfeld (1989) seria o principal marco, já que inovaria o formato de maneira
muito mais presente, com arcos e provocações particulares em suas tramas. Desta
maneira, incentivaria maiores experimentações nas décadas seguintes.
Os arcos são maiores e mais presentes nos anos 1990, nas sitcoms e nas séries
dramáticas. A temática destas sitcoms envolve amizades e famílias disfuncionais, podendo
abrir espaço também para a comédia dramática, como já visto em Os Simpsons (1989) e em
Família Dinossauro (1991). O enorme sucesso de Friends (1994) e seus largos arcos
românticos dos personagens, que levariam temporadas – aliados a situações secundárias
que ultrapassariam alguns episódios-, são alguns exemplos que seriam replicados
posteriormente, também.
Os anos 2000 possuem uma queda em audiência nas sitcoms, devido ao surgimento e
a alta popularidade dos reality shows. O crescente sucesso das emissoras HBO, TNT e
Showtime, e sua exigência por séries complexas também foi um incentivo a maiores
experimentações. Embora The Big Bang Theory (2007) e Two and a Half Men (2003) ainda
exibissem números significativos, as séries de comédia se sentiram na liberdade de mesclar
gêneros, uma vez que “a mistura de gêneros, quando assumida com segurança e ousadia, [...]
ilumina toda a série” (ESQUENAZI, 2010, p.136). As sitcoms, ainda mantendo gags e temáticas
simples, poderiam migrar seu ambiente, do lar para o trabalho, e mesclar a realidade com o
sitcom, criando um falso documentário (mockumentary) seriado – como em Arrested
Development (2003), The Office (2005), Parks and Recreation (2009) e Modern Family (2009).
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Já que as audiências estariam mais habituadas à mescla de gêneros em suas
programações televisivas (MILLS, 2005, p. 65, tradução da autora), a partir dos anos 2010,
é ainda mais comum esta mescla e as mudanças no formato, como gravações em câmera
única e descarte do uso de claque. Com temáticas de inclusão e de excentricidade, também
há a recuperação de uma provocação social (CERETTA, 2014). Destaque para obras como
Scrubs (2001), Brooklyn Nine-Nine (2013), e The Ranch (2016) – que mesclam sitcom com série
médica, série policial e western, respectivamente -; e Master of None (2015), F is for Family
(2015) e Grace e Frankie (2015), que apresentam esta temática social e inovações estéticas.
O Cômico Complexo
Mittell (2012), ao apresentar o conceito de complexidade narrativa, elenca uma lista
de características das novas séries dramáticas que trariam inovações em suas narrativas,
se distanciando do modelo convencional 25 de narrativa seriada.
é uma redefinição de formas episódicas sob a influência da narração em
série – não é necessariamente uma fusão completa dos formatos
episódicos e seriados, mas um equilíbrio volátil. Recusando a necessidade
de fechamento da trama em cada episódio, que caracteriza o formato
episódico convencional, a complexidade narrativa privilegia estórias com
continuidade e passando por diversos gêneros. (MITTELL, 2012, p.36).
Além destas características, há o uso de um arco longo, que atravessaria episódios
e temporadas, criando uma ligação de temporalidade e sentido, e a possibilidade de
reassistibilidade e engajamento, podendo apresentar várias tramas e “efeitos especiais”
narrativos, como em uma “pirotecnia” narrativa.
Como o conceito de complexidade narrativa não é muito restritivo e abrange uma larga
gama de séries não convencionais, as obras consideradas complexas podem, inclusive,
alternar entre episódios conectados ao arco longo e episódios isolados, como em X Files (1993),
Buffy The Vampire Slayer (1997), Angel (1999), e The Sopranos (1999). Ou utilizar-se somente de
pequenos arcos que conectem poucos episódios, como em Seinfeld. “Esses arcos narrativos e
25
Por convencional, entendem-se as séries que contém episódios com tramas independentes, conceito chamado
de “seriado” por Renata Pallottini (PALLOTTINI, 1998, p. 41).
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essas tramas contínuas demandam pouco conhecimento explícito levado de um episódio a
outro, já que ações e eventos raramente continuam entre episódios – especialmente em
virtude da falta de muitas ações ou eventos significativos num programa dedicado a fazer
crônica a partir de minúcias e insignificâncias.” (MITTELL, 2012, p.40). Como Seinfeld cria humor
em situações inexplicáveis, não exige do público a mesma dedicação das séries complexas com
arco longo. Para Mittell, comédias como Seinfeld, Arrested Development e Curb Your Enthusiasm
(2000) são exceções às regras da complexidade narrativa e mantêm seu engajamento de
maneira única e metarreflexiva, já que suas narrativas possuem suas próprias regras e humor
baseado no absurdo das situações.
Entretanto, grande parte da análise de Mittell envolve as obras dramáticas e deixa
de lado a crescente complexidade nas sitcoms. Utilizando apenas estas três sitcoms citadas
como exemplos em Complex TV: The Poetics of Contemporary Television Storyteling (2015) e
em Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea (2012), Mittell aponta que
o engajamento do público estaria somente em observar de que maneira os quatro plots das
séries seriam conectados pela originalidade dos roteiristas (idem, 2015, p.42).
Na ausência de maiores exemplos estruturais para a sitcom complexa – visto que Mittell
as toma como exceção-, e desviando de alguns aspectos da complexidade narrativa das séries
dramáticas, busca-se aqui uma definição à complexidade de Disjointed. A série em questão
permite um engajamento, visto que a trama principal do futuro da loja traça uma tensão por
toda a primeira temporada, terminando, no último episódio, em um gancho. Mas com diálogos
explicativos sobre assuntos anteriores, o espectador de Disjointed poderia acompanhar os
episódios de maneira independente – apesar de todos os episódios remeterem aos arcos
longos, descartando aqui a existência de episódios isolados.
Na tentativa de analisar a complexidade na sitcom, Jéssica Neri (2015) observa um
padrão nas novas sitcoms: um herói cômico, menos tipificado, que levará a trama a executar
uma evolução dentro de um arco longo. Ainda que coabitando com personagens
tipificados, que trazem humor por suas frustrações, este herói busca uma evolução em seu
personagem, e traz uma humanidade à trama, permitindo ao espectador rir e chorar “com
ele”, e não mais “dele”. Neri também traz o conceito de quase saga, de Daniele Barbieri
(1992), quando este analisa quadrinhos seriados das empresas DC e Marvel. Na quase saga,
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os episódios poderiam ser acompanhados de maneira independente, como autônomos, já
que não são inconclusivos; mas ainda estão conectados em suas narrativas e
temporalidades (BARBIERI, 1992, p.51).
Este conceito da serialidade dos quadrinhos se aplica às novas sitcoms, quando
observamos uma autonomia com arcos, seja em Disjointed, como na grande maioria das
sitcoms contemporâneas, já citadas: The Office, Seinfeld, Arrested Development, Modern
Family, Grace e Frankie, The Ranch, entre outros. Disjointed ainda se permite terminar alguns
de seus episódios com ganchos, finalizando um ou mais plots e deixando um em aberto como Pallottini observaria apenas nas telenovelas (PALLOTTINI, 2012, p.103), ou como
parte da narrativa complexa. Desta maneira, ao contrário de Neri, não descarto a
complexidade de Mittell, já que as novas sitcoms se encaixam neste novo contexto de fuga
do convencional, com arcos, pirotecnia narrativa, e mescla de gêneros.
Uma obra presente no Holodeck
Se, por um lado, a popularidade dos realities influencia o subgênero sitcom, e a
reassistibilidade permite a complexidade narrativa (MITTELL, 2012), vale observar o
quanto a evolução deste subgênero e da complexidade são sugeridas pelo perfil
sociocultural contemporâneo. Em uma contemporaneidade midiatizada e invadida por
símbolos vindos de todas as mídias (LIPOVETSKY, 2014), espera-se um público apto a rir e
compreender toda a complexidade narrativa e imagética de Disjointed.
De acordo com Lipovetsky e Serroy (2009), há um chamado espírito cinema, cuja
estética e narrativa atravessam as mídias, resultando em uma multiplicidade de telas que
colaboram em uma produção de sentido – o chamado Tela Global. “A expressão ‘tela ou
ecrã global’ deve ser entendida em vários sentidos. Em sua significação mais ampla, ela
remete ao novo poder planetário da ecranosfera, ao estado generalizado de tela
possibilitado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação” (LIPOVETSKY;
SERROY, 2009, p. 23) - tecnologias tais como TV, VHS, videoclipes, publicidade, câmeras
pessoais e/ou de vigilância, DVD, BLURAY, computadores, internet, videogames,
plataformas de streaming, SmarTVs, smartphones, tablets, etc.
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A Tela Global se aproxima do conceito de convergência das mídias, proposto por
Jenkins (2006). De acordo com Jenkins, jamais haverá uma única mídia, que ele intitula
“caixa preta”, pelo contrário, as diversas mídias sempre evoluiriam - em prol de agradar os
mais variados públicos -, e seus conteúdos são passíveis de transitar entre elas, conectando
as novas e as antigas mídias. Seja por meio de reprise com adaptações, seja pelas narrativas
transmidiáticas26, é cada vez mais comum planejar o contar de uma história para que esta
seja reaproveitada nas mais variadas mídias. “Convergência é entendida aqui como um
processo contínuo ou uma série contínua de interstícios entre diferentes sistemas de mídia,
não uma relação fixa” (JENKINS, 2006, p. 377). Jenkins cita o amplo universo de Matrix
(1999) como um exemplo fortíssimo de obra planejada para a transmidiação, estendendo
seu universo em variadas narrativas com tramas diferentes, porém conectadas, em video
games, quadrinhos, e série animada, baseados no longa-metragem original.
Janet Murray, em 1997, muito antes de Mittell (2009) e Jenkins (2006), já anunciava
uma possibilidade de construir narrativas complexas interligando as novas mídias. De
acordo com ela, sempre houve, desde a literatura, e sempre haverá a busca por novas
formas de contar histórias, independente de um público alvo ou mídia. “A beleza narrativa
não depende do meio. Contos de tradição oral, histórias ilustradas, peças de teatro,
romances, filmes de cinema e programas de televisão, todos podem variar do fraco e
sensacionalista ao comovente e brilhante” (MURRAY, 1997, p. 255). Usando como exemplo
o Holodeck, um cinema interativo do universo de Star Trek (1966), Janet já previa que o
formato tradicional de contar histórias seria mais uma vez abalado pelo surgimento das
novas mídias 27, e pelo crescente referencial imagético do público e seu desejo de interação
- tal qual observado por ela nas narrativas de RPG, e mais aprofundado por Jenkins, em seu
conceito de cultura participativa (JENKINS, 2006).
26
Por narrativa transmidiática entende-se um rico universo construído em diversas mídias. (JENKINS, 2006, p. 132179) A partir de uma narrativa de uma mídia, o conteúdo se estende em diferentes tramas, em mídias diversas,
complementando seu conteúdo e instigando uma maior participação, investigação ou perfurabilidade do fã.
(MITTEL, 2009).
27
Já em sua introdução, Janet dedica sua obra a gamers e programadores, prevendo o quanto estas mídias (video
games e internet) poderiam provocar evoluções nas narrativas.
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E esta realidade de contar histórias “no Holodeck” já faz parte do novo milênio, e
está presente nas mais variadas obras transmidiáticas, e nas demais inovações estéticas e
narrativas resultantes da convergência, como é o caso de Disjointed - obra nãotransmidiática que apresenta elementos das variadas mídias.
Considerações finais
A sitcom apresentou potencial para tímidos arcos desde os anos 1950, mas, a partir
dos anos 1990, com a popularização das séries dramáticas complexas, e o sucesso dos
realities nos anos 2000, as sitcoms evoluem de maneira muito mais intensa e aparente,
deixando de lado o perfil narrativo seriado tradicional, e se aproximando cada vez mais da
complexidade narrativa. A quase saga de Barbieri, aqui, pode ser compreendida como um
conceito dentro da complexidade de Mittell. Sendo seu conceito, como já dito, bem amplo,
este guarda-chuva pode abranger das quase sagas das sitcoms com arcos menores, às
maiores pirotecnias narrativas que exigiriam intensa reassistibilidade dos fãs para
compreensão de suas regras únicas – como X Files (1993), Lost (2004), e Twin Peaks (1990),
citados por Mittell (2012).
Muito mais que simplesmente hibridizar dois gêneros, a série Disjointed parodia os
variados gêneros e formatos narrativos das diversas mídias (e a própria estrutura clássica
da sitcom), evocando um humor único, uma ginástica cognitiva e uma opção à
complexidade narrativa. Além disso, a série também dialoga com a evolução do subgênero,
conforme observado neste artigo, deixando de lado o formato de mockumentary, mas
trazendo o apelo ao real por meio dos vlogs.
Disjointed surge em um contexto de convergência de mídias (JENKINS, 2006),
acoplando de maneira inédita a estética e narrativa das diferentes mídias para compor sua
trama e provocação social em uma única obra. Assim como em outras séries, os elementos
estéticos diferenciados em Disjointed nascem com a série e são parte dela (ESQUENAZI,
2011, p.122). Dentre outros exemplos resultantes da convergência - como os transmidiáticos
Matrix, Doctor Who (2005), Blade Runner (1982) (HILLS, 2012), e LOST (VENANCIO, 2011) -,
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Disjointed merece destaque, uma vez que adentra esta evolução das narrativas ainda que
como uma sitcom, uma série não-dramática e não-transmidiática.
Resta, assim, ao espectador, uma experiência recheada de estímulos diferenciados,
resultando em um possível engajamento por sua trama, humor, ou provocação por
evoluções na narrativa seriada, no subgênero, e na política.
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