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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA GABRIELA MARIA FARIAS FALCÃO DE ALMEIDA ARTICULAÇÕES DISCURSIVAS EM TORNO DA CONSTRUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES EM PERNAMBUCO Recife 2019 GABRIELA MARIA FARIAS FALCÃO DE ALMEIDA ARTICULAÇÕES DISCURSIVAS EM TORNO DA CONSTRUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES EM PERNAMBUCO Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Sociologia. Área de concentração: Cultura Política, Identidades Coletivas e Representações Sociais. Orientador: Prof. Dr. Remo Mutzenberg. Coorientador: Prof. Dr. Alexandre Zarias. Recife 2019 Catalogação na fonte Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291 A447a Almeida, Gabriela Maria Farias Falcão de. Articulações discursivas em torno da construção das Conferências de Políticas para as Mulheres em Pernambuco / Gabriela Maria Farias Falcão de Almeida. – 2019. 350 f. : il. ; 30 cm. Orientador: Prof. Dr. Remo Mutzenberg. Coorientador: Prof. Dr. Alexandre Zarias. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Recife, 2019. Inclui referências, apêndice e anexos. 1. Sociologia política. 2. Teoria feminista. 3. Política pública. 4. Feminismo. 5. Direitos das mulheres. 6. Democracia. I. Mutzenberg, Remo (Orientador). II. Zarias, Alexandre (Coorientador). III. Título. 301 CDD (22. ed.) UFPE (BCFCH2019-136) GABRIELA MARIA FARIAS FALCÃO DE ALMEIDA ARTICULAÇÕES DISCURSIVAS EM TORNO DA CONSTRUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES EM PERNAMBUCO Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de doutora em Sociologia. Aprovada em: 28/02/2019. BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Prof. Dr. Remo Mutzenberg (Presidente/Orientador) Universidade Federal de Pernambuco _________________________________________________ Profª. Drª. Silke Weber (Examinadora Interna) Universidade Federal de Pernambuco _________________________________________________ Prof. Dr. Joanildo Alburquerque Burity (Examinador Interno) Universidade Federal de Pernambuco _________________________________________________ Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro (Examinadora Externa) Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Universidade Federal de Pernambuco _________________________________________________ Profª. Drª. Maria Betânia de Melo Ávila (Examinadora Externa) SOS CORPO À Margarida Jerônimo, feminista aguerrida, defensora incansável dos direitos humanos das mulheres e da democracia, que tanto acreditou na importância da pesquisa que integra esta tese. AGRADECIMENTOS Ao longo da escrita desta tese, ensaiei mentalmente o momento da escrita dos agradecimentos diversas vezes. Ia traçando as linhas no pensamento e era tomada de emoção. Enquanto os olhos enchiam de lágrimas, dava-me conta de quanto sou privilegiada não apenas pelas oportunidades de uma vida de conforto e de possibilidades de estudo – que, inclusive, possibilita que esteja encerrando o doutorado num país tão desigual quanto o Brasil -, mas também por ter o privilégio de não caminhar sozinha nessa trajetória. Esse percurso me fez ver quantas pessoas importantes e especiais existem em minha vida e quanto aprendo com elas a ser alguém melhor e, principalmente, a sonhar com um mundo menos desigual. Aproveito este espaço para reforçar todo o meu apreço por cada um e cada uma e dizer que as conversas, as sugestões, os lamentos, a escuta e o amparo amigo foram fundamentais para esta escrita. Agradeço aos meus pais, Antônia e Cláudio, por terem acreditado tanto e priorizado a educação na vida de suas filhas e por nos passarem tantos valores éticos e de justiça. São eles que me guiam cotidianamente e que me fazem querer estudar e viver a política para lutar por transformações sociais. À minha irmã, Fernanda, por ser uma inspiração em minha vida, ainda que talvez nem saiba disso. Gratidão por escutar minhas angústias e me fazer ter mais consciência da realidade. Aproveito para agradecer ao meu cunhado, Nilton, por, juntos, terem dado tanto apoio para que esta tese fosse concluída. Ao meu orientador, o professor Remo Mutzenberg, que vem me acompanhando desde a graduação de Ciências Sociais e que é um grande exemplo de generosidade e doação aos orientandos e orientandas. Nada do que escrever vai ser suficiente para dizer o quanto ele foi importante nesses anos de doutorado. Agradeço imensamente por acreditar em mim, a ter tanta paciência e me ajudar a ver que essa pesquisa fazia sentido e que era viável. Ao meu coorientador, o professor Alexandre Zarias, que tanto discutiu a tese comigo em momentos cruciais dessa caminhada e que me desafiou a pensar em outras possibilidades de abordagens. À Paulina Tambakaki, que me recebeu durante o período do doutorado sanduíche, na University of Westminster, em Londres. Uma professora extremamente acolhedora, que conseguia traduzir em palavras o que, para mim, ainda estava no plano das ideias e que me mostrou que, ao contrário do que pensava nos momentos de angústia, eu tinha uma tese e precisava acreditar nela. À Betânia Ávila, uma referência em pesquisa e militância feminista, que se dispôs a ouvir minhas dúvidas, a discutir meu projeto de pesquisa e que muito me incentivou a fazer este trabalho. A Joanildo Burity por todo o empenho em me ajudar a estabelecer os contatos para realizar o doutorado sanduíche e por toda a generosidade em discutir a metodologia de análise dos meus dados. Ao Fórum de Mulheres de Pernambuco por ter aberto os seus espaços para que eu pudesse realizar a pesquisa de campo e, sobretudo, tivesse me tornado uma militante feminista. Às mulheres que integram o movimento, gratidão por terem me acolhido e por me fazerem acreditar que é possível transformar o mundo pelo feminismo. Ao SOS Corpo por disponibilizar tantas obras de extrema importância para a produção feminista local e que integram as referências desta tese. Um agradecimento com muito carinho a Carmen Silva, educadora da instituição, que diversas vezes acolheu minhas dúvidas, debateu os assuntos comigo e me provocou vários questionamentos. Às secretárias dos Conselhos da Mulher do Recife e de Pernambuco, respectivamente, Maíra Gibson e Betânia Soares, por terem sido solícitas nas vezes em que precisei de documentos ou qualquer outra informação dos órgãos. Às conselheiras pela abertura e por reconhecerem meu papel de pesquisadora naqueles espaços. Aos amigos queridos Wag, Mila e Shir pelo respeito, amor e apoio. A Tato e Deby, amigos de tantos anos, por estarem sempre próximos. A Ju Lins e Tatá, pela partilha da casa e do cotidiano de tantos aprendizados e amadurecimento. A Nati, Narita e Martinha pela escuta dos perrengues e por muitas risadas juntas. A Veri, Céci, Renata, Mari Azevedo e Mari Melo pela atenção e apoio em diversos momentos. Aos amigos que o bacharelado em Ciências Sociais me deram de presente e que, mesmo distante, estão sempre por perto: Geová e Rafael Acioly. À amiga que a licenciatura me proporcionou: Ericka que, achando pouco tanto amor em sua amizade, ainda me trouxe Frida e Dilminha, as duas felinas que enchem os meus dias de afeto e que amenizaram o sentimento de solidão ao longo da escrita. A Chico, Raitza, Raynaia, Felícia, Rany, Sulamita e Talles, os “xuxus”, por estarem sempre por sempre por perto, ainda que fisicamente distantes. Aos colegas e amigos da turma do doutorado do Programa de Pós-graduação em Sociologia, pelo convívio e partilha do conhecimento: Ericka, João, Altiere, Rosi, Josi, Joyce e Marcílio. Às minhas referências feministas no Programa: Alyne, Anita, Marília, Sophia por me inspirarem e me fazerem aprender sobre o quão diverso é o movimento feminista. À também feminista Sabrina Bezerra, pelos diversos diálogos sobre nossas pesquisas. A Aristeu e Rafa, por todo o amor, pelo sonhar juntos e por tantas contribuições para este trabalho. A André, muita gratidão por toda a paciência e ajuda para que eu conseguisse realizar o doutorado sanduíche. A Chico, João e Pajé pela generosidade em aplicarem reiki em mim, o que foi muito importante para que eu mantivesse o equilíbrio dos meses de escrita. À minha tia Alba Falcão, uma grande incentivadora dos meus estudos e que tanto acreditou que eu conseguiria concluir esta etapa. Aos companheiros do doutorado sanduíche Gustavo, Verena, Mila, Nittina e Pablo, pelo cotidiano em Londres e pelo carinho. Ao amigo querido, carinhosamente chamado de “primo”, Márcio Markendorf, por toda a paciência em me escutar e por tantos conselhos e sugestões ao longo de toda essa trajetória no doutorado. Aos presentes que Lisboa me trouxe e que me dão total apoio: Marina, Clara e Nanda. Às que também vibram na energia do acolhimento: Verônica e Renata Mesquita. Às amigas dos tempos de colégio, que me acompanham e tanto torcem por mim: Mari, Mayra, Juli e Najynha. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE, inspirações de dedicação à profissão e comprometimento com as causas sociais. À professora Eliane Veras que, junto com Remo, coordena o grupo de estudos Sociedade Brasileira Contemporânea, e aos colegas do grupo por tantas contribuições ao longo das reuniões. Às secretárias do PPGS, Karine Mendes e Mônica Malafaia, pela constante disponibilidade em resolver as demandas dos discentes. Às gestoras de organismos de políticas para as mulheres e outras funcionárias que me acolheram em seus municípios para realizar a pesquisa de campo em 2015: Afogados da Ingazeira, Palmares, Caruaru, Vitória de Santo Antão, Olinda, Ipojuca e Recife. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por ter me proporcionado a bolsa de estudos e por ter me permitido realizar o Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE). Às gestões de Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff na Presidência da República, que fizeram da educação uma de suas áreas prioritárias de investimento e que, por conta disso, pude realizar este doutorado. RESUMO O objetivo desta tese é investigar os processos discursivos que permearam a construção das Conferências de Políticas para as Mulheres na cidade do Recife e no Estado de Pernambuco, realizadas respectivamente em setembro e dezembro de 2015. A partir do referencial teórico pós-estruturalista da Teoria do Discurso, trabalhado pelos filósofos políticos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, realizei a pesquisa de campo entre junho de 2015 e maio de 2016 por meio da observação participante nos Conselhos de Direitos da Mulher municipal – do Recife - e estadual, além das pré-conferências e conferências municipais e nacional. Diante de um recorte do material de pesquisa constituído por diário de campo e documentos dos conselhos e das conferências, analisei as reuniões de construção dos eventos no período de junho a dezembro de 2015, referentes aos conselhos e ao espaço do movimento social, o Fórum de Mulheres de Pernambuco. Através da análise, observei a existência de discursos antagônicos que revelam uma abordagem burocrática dos sujeitos dos governos atrelada à realização dos eventos e uma tentativa de imprimir um sentido político, feita por representantes da sociedade civil. Diante das tensões, houve processos de hegemonia governamental, que excluíram as diferenças defendidas pela sociedade civil em nome de cadeias de equivalência construídas a partir de discursos de realização do evento, eleição das delegadas e definição de propostas de políticas em detrimento das avaliações sobre a incidência das políticas públicas na vida concreta das mulheres. Frente a isso, o FMPE, em parceria com quatro entidades, impulsionou a Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”, realizada no dia 07 de dezembro no Recife e que contou com participantes de outras regiões do Estado. Tratava-se uma novidade a realização de conferências livres no segmento das mulheres, já que foi a primeira vez se estavam previstas no regimento da Conferência Nacional. A referida Conferência Livre se constituiu um posicionamento político dos movimentos sociais frente a processos discursivos governamentais hegemônicos, que ocultaram suas pautas, sobretudo, sobre saúde, violência e contexto político. Tratou-se de uma narrativa própria que permitiu articular as identidades e diferenças que não conseguiram se sobressair nas conferências convocadas pelos governos. Palavras-chave: Articulações discursivas. Políticas para as mulheres. Movimento feminista. Controle social. Conferências de Políticas Públicas. Democracia radical. ABSTRACT The purpose of this thesis is to investigate the discursive processes that pervaded the Conferences on Policies for Women in the city of Recife and State of Pernambuco, Brazil, held in September and December of 2015, respectively. Based on the theoretical framework of post-structuralist Theory of Discourse, as worked out by political philosophers such as Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, I conducted the field research, from June 2015 to May 2016, by means of participant observation of the Municipal Council on Women’s Rights, in Recife, and the State Council on Women's Rights, aside from the municipal and national preconferences and conferences. In light of the data, comprising field journals, council and conference documents, I analyzed the meetings, which aimed to organize the events in the period from June to December of 2015, concerning the councils and the social movement identified as the Women’s Forum of Pernambuco. Through the analysis, I observed the existence of antagonistic discourses that reveal a bureaucratic approach of the government individuals linked to the conferences, while the representatives of civil society attempt to give the event a political nature. Dealing with this tension, there were moments of governmental hegemony, which excluded the diversity defended by civil society in the name of chains of equivalence built from discourses of holding the event, electing the Conference Delegates, and defining policy proposals, to the detriment of evaluations on the impact of public policies on the women's concrete life. Therefore, the Women's Forum of Pernambuco, in partnership with four entities, promoted the free conference “For Women's Life”, held on December 7th in Recife, with the active participation of people from other regions of the state. It was a novelty for the women's segment the implementation of free conferences, as that was the first time they have been included in the National Conference Statute. These free conferences represented a political position of the social movements in opposition to the hegemonic government discursive processes, which concealed their agenda, especially in regards to health, violence and political context. It provided their own narrative that allowed them to articulate the identities and pluralities, which could not stand out in the conferences organized by the municipality and state’s government. Keywords: Discursive articulations. Policies for women. Feminist movement. Social control. Public policies conferences. Radical democracy. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadro 1 – Lista dos espaços que fizeram parte do campo de pesquisa......... 152 Quadro 2 – Reunião do Conselho Municipal da Mulher – Recife.................. 165 Quadro 3 – Reuniões ordinárias do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – Pernambuco.................................................................. Quadro 4 – Reuniões da Comissão de Organização da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres – Pernambuco................. Quadro 5 – Gráfico 1 – 170 Eixos temáticos por cada etapa das Conferências de Políticas para as Mulheres........................................................................... Quadro 6 – 169 272 Moções aprovadas na Conferência Livre de Pernambuco “Pela Vida das Mulheres”...................................................................... 289 Eixos da IV CEPM e sua interface com os da IV CNPM............ 295 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Agende Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento AMB Articulação de Mulheres Brasileiras AMNB Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras BID Banco Interamericano para o Desenvolvimento CEDIM-PE Conselho Estadual de Direitos das Mulheres - Pernambuco CFemea Centro Feminista de Estudos e Assessoria CMM Conferência Municipal da Mulher do Recife CMV Coletivo Mulher Vida CNDM Conselho Nacional de Políticas para as Mulheres CNPM Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres CUT Central Única dos Trabalhadores DEAM Delegacia Especial de Defesa da Mulher FBPF Federação Brasileira para o Progresso Feminino Fetape Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco FIDA Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrário FMPE Fórum de Mulheres de Pernambuco GT Grupo de Trabalho IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFMS Instituições Financeiras Multilaterais LDO Lei de Diretrizes Orçamentárias LGBT Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis LOA Lei Orçamentária Anual MED Mulheres em Desenvolvimento MMM Marcha Mundial das Mulheres MMTR-NE Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Brasil MTST Movimento dos Trabalhadores Sem-teto NEIM Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher NUPEM Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher ONG Organização não governamental ONU Organização das Nações Unidas OPM Organismos de Políticas para as Mulheres Page Programa de Assessoria em Gênero PAISM Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher PCdoB Partido Comunista Brasileiro PCR Prefeitura da Cidade do Recife PEC Projeto de Emenda Constitucional PL Projeto de Lei PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNPM Plano Nacional de Políticas para as Mulheres PP Partido Progressista PPA Plano Plurianual PPF Plataforma Política Feminista PSB Partido Socialista Brasileiro PSD Partido Social Democrático PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PSOL Partido Socialismo e Liberdade PT Partido dos Trabalhadores RMR Região Metropolitana do Recife REF Rede Economia e Feminismo RMM Rede Mulher e Mídia RPA Região Político Administrativa (Recife) SecMulher-PE Secretaria Estadual da Mulher – Pernambuco SEPPIR Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SINDSEPRE Sindicato dos Servidores da Prefeitura do Recife SNPM Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres SOF Sempreviva Organização Feminista SPM Secretaria de Políticas para as Mulheres UBM União Brasileira de Mulheres UFBA Universidade Federal da Bahia SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...................................................................................... 2 TEORIA FEMINISTA, O MOVIMENTO SOCIAL E A RELAÇÃO COM O ESTADO BRASILEIRO......................................................................................... Teoria feminina pós-estruturalista....................................................... Teoria política feminista........................................................................ O movimento feminista no Brasil e sua relação com o Estado........... 2.1 2.2 2.3 3 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES E AS CONFERÊNCIAS.................................................................................. O papel do Estado brasileiro e as políticas públicas........................... Políticas públicas de gênero e para as mulheres no Brasil................. Os antecedentes da institucionalização das políticas para as mulheres no Brasil.................................................................................. Organismos de Políticas para as Mulheres.......................................... Conferências de Políticas Públicas e o caso específico das mulheres. REFLEXÕES METODOLÓGICAS E AS CATEGORIAS ANALÍTICAS......................................................................................... 4.1 A pesquisa científica a partir do olhar feminista................................. 4.2 A observação participante e o campo de pesquisa.............................. 4.2.1 Observação junto ao Fórum de Mulheres de Pernambuco................ 4.2.2 Observação nos Conselhos Municipal e Estadual dos Direitos da Mulher – Recife e Pernambuco............................................................. 4.3 Reflexões acerca do meu papel no campo de pesquisa........................ 4.4 O campo de pesquisa e a base para análise.......................................... 15 22 24 45 61 80 81 95 110 119 122 4 5 5.1 5.2 5.2.1 5.2.2 5.2.3 5.2.4 5.2.5 5.3 5.3.1 AS ARTICULAÇÕES EM TORNO DAS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES NO RECIFE E EM PERNAMBUCO..................................................................................... O material de análise: diário de campo e documentos oficiais........... Conselho da Mulher do Recife.............................................................. Avaliação das pré-conferências e da Conferência Municipal.................. Questão das servidoras da Secretaria da Educação.................................. Quantitativo de vagas de delegadas para Conferência Estadual.............. Sugestões para Conferência Municipal e sua importância....................... Análise geral dos temas.......................................................................... Organização da IV CEPM-PE e Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – PE............................................................................................ Orçamento................................................................................................ 133 135 149 153 164 174 180 184 186 191 192 206 210 213 215 219 219 5.3.2 5.3.3 5.3.4 5.3.5 Palestras.................................................................................................... Convidadas e homenageadas.................................................................... Reforma política e conjuntura.................................................................. Análise geral dos temas............................................................................ FÓRUM DE MULHERES DE PERNAMBUCO E A CONSTRUÇÃO DA CONFERÊNCIA LIVRE “PELA VIDA DAS MULHERES”......................................................................................... 6.1 Avaliação das pré-conferências no Recife e das conferências municipais............................................................................................... 6.2 Estratégias............................................................................................... 6.3 Contexto político..................................................................................... 6.4 Etapa estadual......................................................................................... 6.5 As discussões em torno do sentido de se realizar uma conferência livre.......................................................................................................... 6.6 A construção da Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”........ 6.6.1 Preparação estadual organizada pelo FMPE............................................ 6.6.2 A realização da Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”................ 6.7 Os antagonismos e a democracia radical frente aos espaços estudados................................................................................................. 6.8 O pluralismo agnóstico e formas alternativas de se lidar com a política..................................................................................................... 227 233 241 244 6 7 249 251 257 266 269 275 280 300 304 308 312 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................. 317 REFERÊNCIAS..................................................................................... 324 APÊNDICE A – EIXOS TEMÁTICOS ABORDADOS NO CAMPO DE PESQUISA....................................................................... 338 ANEXO A – DOCUMENTO PARA DISCUSSÃO NOS GRUPOS ELABORADO PELO FÓRUM DE MULHERES DE PERNAMBUCO..................................................................................... 341 ANEXO B – CARTA POLÍTICA E MOÇÕES APROVADAS NA CONFERÊNCIA LIVRE “PELA VIDA DAS MHERES”............. 349 15 1 INTRODUÇÃO Para discorrer acerca do que efetivamente trata esta tese, sinto a necessidade de voltar no tempo e remeter a uma situação que considero a semente do que viria a se tornar a presente pesquisa. Em 2007, cursava o bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco e fui chamada para integrar a equipe de relatoria da II Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres (II CEPM-PE), que aconteceu em junho de 2007 em Recife. No grupo de trabalho que acompanhei para fazer a relatoria, alguns aspectos me impressionaram na discussão: havia diversos embates políticos de modo que o consenso era obtido, muitas vezes, mediante votação, que acabava por excluir alguns sujeitos. Saí de lá com inquietações que, anos mais tarde, tornar-se-iam o problema de pesquisa de uma tese na área de Sociologia. Em 2011, tive a oportunidade de trabalhar na Secretaria Estadual da Mulher (SecMulher-PE) na organização da III CEPM-PE. O trabalho me possibilitou acompanhar de perto não só os processos organizativos do governo, por exemplo, indo a diversos municípios para dialogar sobre o evento ou para estar presente neles, mas também me fez estar presente nas reuniões do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM-PE). Esse espaço, ocupado por representantes do governo e da sociedade civil, naquele momento, era marcado por muitos embates e disputas políticas. Novamente, o meu olhar estava atento para o aspecto dos conflitos. Em dezembro do mesmo ano, aconteceu em Brasília a III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Estive presente na condição de observadora. Lá, tive a noção de que eu tinha uma ideia dos movimentos de mulheres e feministas que não condizia com a realidade. Acreditava que eram bastante homogêneos e que havia consensos em torno de algumas questões relacionadas às mulheres. Primeiro, percebi movimentos sociais extremamente diversos, inclusive, com formas distintas de atuar naquele espaço. Por exemplo, havia um grupo cearense chamado “Tambores de Safo” cuja expressão de luta é o batuque dos tambores, permeado por músicas e dizeres feministas. Segundo, vi que pautas que julgava consensuais, como o aborto, estavam distantes de assim o serem. É interessante que, ao manifestar o posicionamento a favor da legalização durante a votação na plenária final, ouvi uma representante da sociedade civil de Pernambuco me dizer que havia simpatizado comigo antes, mas que, naquele momento, não simpatizava mais. Os três dias foram intensos e a inquietação cada vez mais crescia em minha mente e ganhava forma. Eu me perguntava: em um ambiente tão diverso, como essas mulheres entram 16 em embates políticos, mas ainda assim, na plenária final, é aprovado um documento fruto de propostas consensuais? Nessa fase, ainda estava imbuída de uma aposta na ação comunicativa trabalhada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas. Assim como ele aborda, eu acreditava na troca argumentativa, na comunicação com a finalidade do entendimento mútuo e, sobretudo, na democracia deliberativa. Porém, já percebia que talvez essa teoria não conseguisse abarcar os conflitos e a forma como se davam as negociações políticas. Ao ter contato com os textos dos filósofos pós-estruturalistas Ernesto Laclau e Chantal Mouffe através da obra “Hegemonia e Estratégia Socialista: por uma política democrática radical”, percebi que o que havia naquele espaço se tratavam de articulações políticas em torno de equivalências democráticas e que o consenso era conflituoso e contingente. Acreditava, então, que as duas teorias, no mesmo trabalho, respondessem as minhas inquietações ligadas à construção de consensos em meio a conflitos. Com o passar dos anos no doutorado, tive a certeza de que a teoria habermasiana não mais me responderia o problema de pesquisa ao passo que a de Laclau e Mouffe se tornou central neste trabalho. Feito esse resgate histórico, explico que a presente tese busca compreender os processos discursivos que permearam a construção das Conferências de Políticas para as Mulheres em Pernambuco. A partir do entendimento que não se pode falar em sociedade como uma totalidade fechada, suturada e autodefinida, abre-se o espaço para entendê-la como constantemente aberta e permeada por tentativas de fixar um sentido de universal. Na concepção dos autores, estamos diante de identidades discursivamente construídas. Para entender o conceito de discurso, é preciso ter em mente o de articulação, que é “[...] Qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos de tal modo que a sua identidade seja modificada como um resultado da prática articulatória” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 178). Os elementos são as diferenças não discursivamente articuladas ou, dito de outra forma, são determinados significados que se encontram dispersos e que precisam dos processos de articulações para formarem uma aparemte totalidade estruturada, que se constitui o discurso. É preciso ressaltar que, diante do discurso estar sempre aberto, suscetível às articulações contingentes, estamos diante de uma pluralidade de identidades, ideia abordada por Mouffe ao discorrer sobre o sujeito democrático e o pluralismo agonístico (MOUFFE, 1999a, 2005). O que se percebem, portanto, são identidades puramente relacionais, pois toda experiência depende de posições discursivas. Diante da concepção de que toda prática social é, em uma de suas dimensões, articulatória, já que a sociedade não é um todo fechado, o discurso acaba por se constituir como uma tentativa de dominar o campo da discursividade, 17 para deter o fluxo das diferenças e constituir um centro. Os autores demominam esses pontos discursivos privilegiados de fixação parcial de pontos nodais. Para Laclau (2011, p. 64), na interação democrática, a sociedade gera um vocabulário de significantes vazios, de puro cancelamento de toda diferença, cujos significados temporários decorrem de uma competição política. É o que constitui a distância entre o universal e o particular. Os significantes vazios são, portanto, como significantes de uma falta, de uma totalidade ausente (LACLAU, 2011, p. 66). Os pontos nodais, portanto, vão dar uma aparência da fixação das identidades e são frutos do cancelamento das diferenças em nome das cadeias de equivalência. Diante disso, Laclau questiona quem vai assumir essa função significativa. A resposta, em sua perspectiva, passa pela noção de hegemonia. Diante da compreensão de que o sujeito democrático se constitui a partir da pluralidade de sentidos e identidades, os limites são sempre antagônicos. Em vista desse caráter incompleto e aberto do social, o que se nota é um campo de práticas articulatórias antagônicas que constituem a hegemonia. Isso acontece porque as cadeias de equivalência variam radicalmente de acordo com o antagonismo que estiver em jogo, podendo afetar e penetrar, de modo contraditório, a identidade do próprio sujeito. A hegemonia, então, é a composição de um determinado discurso, que exclui outros, dando a aparência de universalidade. Os consensos, portanto, serão sempre excludentes, conflituosos e contigentes. Na referida obra – Hegemonia e Estratégia Socialista -, foram lançados os pressupostos teóricos do que viria a ser conhecida posteriormente por “teoria do discurso”, que parte da concepção da democracia como um campo permeado por disputas, articulações e hegemonia que acontecem a partir das práticas discursivas. São constantes tentativas de fixar algum sentido em torno de projetos políticos. Essas fixações sempre vão deixar algo de lado. A partir da ideia dos referidos autores, percebi que se trata de uma teoria mais adequada a responder a minha pergunta inicial de pesquisa – em meio a diferenças de identidades e práticas políticas, como se constroem as propostas de políticas públicas? Esse problema foi reformulado, conforme fui avançando no campo de pesquisa e compreendendo que era mais viável em termos metodológicos e fazia mais sentido estudar a construção das Conferências de Políticas para as Mulheres ao invés de focar apenas na realização dos eventos. Diante do entendimento de que as conferências eram o auge de algo que já estava sendo construído desde antes, seja nas reuniões de debate nos Conselhos dos Direitos das Mulheres ou nos próprios movimentos sociais, defini que começaria a pesquisa a partir da observação participante nos espaços dos referidos conselhos do Recife e de Pernambuco, pois reúnem sociedade civil e governo na construção do evento junto às respectivas secretarias da 18 mulher. Mas, também, senti a necessidade de acompanhar uma instância do movimento feminista, que é o Fórum de Mulheres de Pernambuco, uma articulação política que reúne ao longo do estado mulheres de mais de 90 coletivos, organizações não governamentais e feministas sem vínculo institucional. A partir do problema empírico, interessava-me como as Conferências de Políticas para as Mulheres estavam sendo pautadas e construídas pelos diversos sujeitos, quais eram as disputas envolvidas e o que se sobressaía. De um ponto de vista teórico, estava em questão o processo discursivo em que se tentavam fixar os sentidos da construção do evento, quais os antagonismos presentes e quais as ideais que se tornavam hegemônicas, dando um sentido de totalidade ali. Diante disso, no capítulo 1 desta tese, o que se lerão são os pressupostos teóricos que guiam o trabalho. Trata-se de uma abordagem a partir da teoria política pós-estruturalista, que entende que as identidades são discursivamente construídas e que, quando se fala em sujeito aqui, não estamos frente a algo fechado, mas sim a posições de sujeito, que variam na estrutura discursiva. Isso quer dizer que, a depender das contigências e das articulações, o mesmo sujeito que, em certo momento, articula-se com outros em torno de um ponto nodal, em outros, podem reavaliar essas articulações e se fixar em torno de outra pauta. No caso aqui estudado, das mulheres, isso é particularmente interessante porque o período em que fiz a pesquisa de campo – de junho de 2015 a maio de 2016 – foi completamente atravessado por uma conjuntura política de muita turbulência no país frente a tentativas de manter a governabilidade e, posteriormente, do impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff. O que se defendeu nas etapas municipais das referidas conferências foi mudando ao longo da estadual e nacional, que aconteceu em plena votação do afastamento da presidenta feita pelo Senado Federal. Diante desse entendimento da teoria política do discurso, discorro acerca da teoria política feminista, nas figuras que abordam as questões que o feminismo trouxe à tona para a teoria política. Ao discorrer sobre feminismo e democracia radical, Mouffe aponta a necessidade de desconstrução de identidades essenciais, da categoria mulher como algo homogêneo. Em sua concepção, essa desconstrução teria que ser vista como condição adequada da variedade de relações sociais. Neste sentido, recorro às ideias das teóricas do feminismo inseridas na tradição pós-estruturalista para mostrar quais perspectivas, no meu entendimento, são de grande importância para a compreensão dos processos discursivos entre os sujeitos políticos nas conferências estudadas. A partir disso, trabalho na perspectiva da relação do feminismo com a democracia, desde participação, representação e a relação com o Estado para, então, chegar ao contexto brasileiro. Isso é fundamental para entender o contexto 19 de pesquisa e, principalmente, construir uma base para compreensão dos antagonismos e das relações hegemônicas na construção e realização das referidas conferências. A partir do entendimento da relação do movimento feminista com o Estado brasileiro, foi possível desenvolver a reflexão acerca do significado das políticas públicas e, mais especificamente, as voltadas para este segmento. No capítulo 2, trago à tona o contexto político em que o Brasil está inserido e que tem impactos diretos em políticas para os segmentos chamados de “minorias”, como é o caso das mulheres, negros, LGBT. É impossível não abordar esse contexto, pois a IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres foi marcada pelo último discurso público da presidenta Dilma Rousseff, em 10 de maio, antes de ser afastada pelo Senado Federal no dia seguinte. Para entender o que são as políticas para as mulheres, faço uma discussão sobre os papeis do Estado frente a conjunturas políticas e econômicas. Assim, mostro que os movimentos feministas e de mulheres demandaram políticas públicas que combatam as desigualdades de gênero e, ao mesmo tempo, focassem nos problemas vividos pelas mulheres. Neste sentido, a criação de um órgão do primeiro escalão do Poder Executivo nacional, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003, teve um papel central para o referido segmento. A realização da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2004, num contexto de uma grande aposta na democracia participativa por meio das conferências e conselhos de direitos, pode indicar que o reconhecimento do governo à época, sob o comando do presidente Luis Inácio Lula da Silva, era de que o combate às desigualdades de gênero era uma das pautas prioritárias. Desenvolvo essa discussão a partir da abordagem da institucionalização das políticas para as mulheres no Brasil para, assim, adentrar no tema específico das conferências de políticas públicas. O capítulo está completamente ligado ao seguinte, que trata sobre o que registrei durante quase um ano de pesquisa de campo. O cenário que permeou o campo de pesquisa demandou muito de mim no que tange aos aspectos físicos e emocionais, mas, ao mesmo tempo, foi um elemento fundamental para me tornar uma militante feminista e, especificamente, uma socióloga feminista. Neste sentido, o capítulo 3 versa sobre a relação entre ciência e feminismo para mostrar que é possível se fazer uma ciência feminista sem que abandone os pressupostos de reflexividade e objetividade tão caros à pesquisa científica. Trago essa discussão também para refletir sobre o meu papel durante toda a pesquisa empírca, cujo centro é a observação participante, pois foi o mergulho no campo de pesquisa, composto por reuniões dos conselhos dos direitos da mulher do Recife e de Pernambuco, do Fórum de Mulheres de Pernambuco e das conferências que me permitiu 20 não só ter uma compreensão mais aprofundada do objeto de estudo, como construir um corpus de análise para responder ao problema de pesquisa desta tese e a cumprir com os objetivos propostos. Discorro não só sobre o método definido, mas as implicações dele, como as dificuldades enfrentadas e a identificação com o campo feminista a ponto de me engajar como militante da causa. Realizei a pesquisa de campo em 55 momentos, dentre reuniões, pré-conferências e conferências. Desses, selecionei 31 referentes às reuniões do Conselho Municipal da Mulher do Recife; Conselho Estadual da Mulher de Pernambuco; Comissão de Organização da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres de Pernambuco e do Fórum de Mulheres de Pernambuco entre junho e dezembro de 2015. O recorte temporal está relacionado ao processo de construção das conferências municipal do Recife e estadual, bem como à Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”, impulsionada pelo FMPE junto a quatro organizações mistas1 e de mulheres no Estado de Pernambuco. A etapa nacional aparece por meio da descrição e análise da conjuntura política. Optei por não abordá-la porque as reuniões de construção que acompanhei traziam os elementos que buscava para a escrita desta tese. O restante dos dados construídos pode servir para outras pesquisas. A partir do campo de pesquisa, vi que a questão que estava procurando responder e que é o objetivo geral dizia respeito a como se davam os processos discursivos entre os diferentes sujeitos no processo de construção das referidas conferências. Estabeleci como objetivos específicos identificar estratégias de organização e de articulações; analisar de que forma os discursos dos diferentes grupos com suas reivindicações emergiram nesses espaços e como se construíram as articulações políticas entre eles e observar quais as pautas e propostas foram colocadas pelos sujeitos políticos nas diferentes etapas das conferências. Ao longo da pesquisa, registrei o máximo que consegui no diário de campo, que me permitiu sistematizar os dados a partir de eixos temáticos com o objetivo de ter uma ideia mais aproximada do material e do que foi discutido. No capítulo 4, faço a análise de três espaços distintos: as reuniões do Conselho Municipal da Mulher do Recife; do CEDIM-PE e Comissão de Organização da IV CEPM-PE; e, por fim, do Fórum de Mulheres de Pernambuco. A partir desses eixos temáticos, desenvolvo a análise utilizando a teoria política do discurso, observando diferenças e equivalências; articulações discursivas, pontos nodais e relações hegemônicas. Para realizar uma triangulação dos dados, utilizo os documentos que tive acesso através das Ouvidorias das Secretarias da Mulher do Recife e de Pernambuco, 1 Fez parte da construção o Coletivo de Mulheres da Central Única dos Trabalhadores (CUT); o Coletivo Margarida Alves; a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Coletivo Marcha das Vadias – Recife. 21 desde regimentos, decretos, atas de reuniões, listas de presença e listas de propostas entregues nos eventos. As imagens e áudios dos eventos e que fiz também servem para me aproximar das cenas vivenciadas. O objetivo é analisar o mesmo fenômeno a partir de perspectivas distintas. No capítulo 5, discorro especificamente acerca do que foi discutido nas reuniões do FMPE acerca da avaliação das conferências municipais, das estratégias coletivas e do contexto político. Esses eixos temáticos são fundamentais para o entendimento do que as levou a construir um evento apenas com movimentos sociais, a Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”, conforme relatei anteriormente. A realização de conferências livres foi uma novidade para as mulheres, já que a primeira vez em que se previu o formato no regimento aconteceu no referido ciclo conferencista, convocado em março de 2015. A tese aqui defendida é que, diante de discursos antagônicos e das disputas por hegemonia nos espaços de construção das etapas eletivas – as conferências convocadas pelos governos e conselhos de direitos -, o FMPE junto aos outros movimentos sociais, construiu uma narrativa própria e compatível com o projeto político da democracia radical e plural, abordado por Laclau e Mouffe, e que defende que a democracia precisa ser compatível com o reconhecimento das diversas identidades e, sobretudo, da articulação entre elas. Frente a isso, numa conjuntura já adversa às mulheres, com riscos de perda de direitos conquistados, as feministas se reuniram para dizer que, para além de políticas públicas, elas querem que os sujeitos dessas políticas sejam considerados. 22 2 Teoria feminista, o movimento social e a relação com o Estado brasileiro Este capítulo tem por objetivo apresentar e aprofundar a perspectiva teórica que servirá de base para esta tese: a perspectiva pós-estruturalista. Essa será debatida sob o prisma da teoria feminista, nomeadamente as de Judith Butler, Chantal Mouffe, Joan Scott e das que fazem a interface com a teoria política feminista, como Anne Phillips, Carole Pateman e Iris Marion Young. O intuito é situar o leitor ou a leitora sobre a importância nesta tese da teoria feminista pós-estruturalista e quais os questionamentos e contribuições que a mesma suscita para pensar a realidade. Que questões são levantadas? De que forma nos fazem refletir sobre a realidade neste trabalho? A historiadora estadunidense Joan Wallach Scott aborda o discurso e a relação entre igualdade e diferença como complementares. Esse é um debate importante na presente tese, pois a perspectiva de discurso que será utilizada e que abordaremos nos capítulos posteriores está relacionada à fixação parcial de identidades. Isso tem a ver com a crítica ao essencialismo, que é feita indireta ou explicitamente também por Butler e Mouffe, o que me leva a pontuar o que é central no pós-estruturalismo. Esse olhar é, inclusive, de grande relevância para o feminismo e, sobretudo, para a democracia radical e plural, como Chantal Mouffe e Ernesto Laclau abordam e que será abordado nos capítulos seguintes. Frente a isso, o pós-estruturalismo vai me permitir discutir a pluralidade de sujeitos políticos e estar atenta aos conflitos, bem como entender em que medida e como foram construídas as articulações políticas nos espaços analisados nesta tese. Ao encarar que o campo de estudo, da presente tese, está relacionado às relações democráticas, é pertinente fazer uma leitura acerca da Teoria Política e mais, especificamente, da Teoria Política Feminista. Ela me permite refletir acerca de uma série de desigualdades a partir do olhar sobre as mulheres. Para deixar mais claro: uma das discussões que mais se sobressai é a separação entre esfera pública e privada, bastante defendida pelas teorias liberais. Isso está relacionado a uma série de desigualdades de gênero construídas historicamente, pois a esfera pública, que é configurada pela política, pelas discussões públicas, pelo poder, é reservada aos homens, ao passo que a esfera privada, das tarefas domésticas, do anonimato, do cuidado dos filhos, é relegada às mulheres. Essa separação traz uma série de consequências sociais e, mais especificamente, para a política, refletindo, por exemplo, na baixa participação das mulheres na política representacional ou nas instâncias de poder. Diante disso, a Teoria Política 23 Feminista traz à tona para a esfera acadêmica essa e uma série de debates sobre unidade, ação política, representação, dentre outros. Isso nos dá base para chegar à discussão sobre o feminismo no Brasil, bem como a reivindicação por políticas públicas. Segundo Cynthia Sarti (2001), o feminismo no Brasil tem sua origem ligada ao campo política da esquerda. Sueli Carneiro (2003) aponta na mesma linha ao dizer que, desde o seu início, na década de 1970, o movimento feminista no Brasil está ligado a causas populares e à luta pela redemocratização. É essa que impulsiona a formação e consolidação do movimento no Brasil e é, inclusive, sua peculiaridade em relação aos países europeus e aos Estados Unidos. Cabe lembrar que, no Brasil, assim como no Hemisfério Norte, vivenciou-se a onda sufragista do início do século XX, que teve na reivindicação pelo direito das mulheres votarem, um significado de uma busca por direitos políticos. Porém, não foi um movimento que colocou em xeque as posições de poder dos homens perante as mulheres. Enxergo aqui, portanto, uma semente do que viria a ser um movimento questionador do que, na década de 1980, iria ser denominado por desigualdade de gênero, mas que, naquela altura, era entre homens e mulheres. Do início do século XX até a década 1970, houve muitas iniciativas, como a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF), cujo expoente foi Bertha Lutz, e o Conselho Nacional da Mulher, com destaque para a advogada Romy Medeiros. Com o recrudescimento da ditadura militar, os setores de esquerda se uniram em torno do combate ao regime. Muitos integrantes se exilaram na Europa e, lá, tiveram contato com a efervescência política, principalmente, na França. As feministas que lá estavam criaram o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris, que além de pensarem nos pleitos mais gerais do combate à ditadura, estavam preocupadas com as questões específicas das mulheres e o sistema que as oprimia. Cabe ressaltar, nesse contexto, uma crise das questões de classe. Muitos militantes achavam que, ao se preocupar com as pautas específicas, estava-se deixando de lado a luta mais urgente, que era contra a ditadura, constituindo-se um sério desvio pequeno-burguês (PINTO, 2003, p. 45). Foi nesse cenário que as mulheres brasileiras passaram a se reunir junto às demais latino-americanas a partir de questões em comum, lançando a semente do que se tornariam posturas feministas de encarar a realidade. Com a redemocratização, nos fins da década de 1970 e já na de 1980, a anistia política e o restabelecimento do pluripartidarismo, o cenário muda bastante e os movimentos sociais passam a se questionar sobre sua relação com o Estado. No caso das feministas, é criado o 24 Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, em 1983, na gestão do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e repleta de contradições sobre o que deveria ser e o que se concretizou na prática. Pouco depois, em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que teve um papel fundamental no que se definiu sobre as mulheres na Constituição Federal, de 1988, num movimento intenso junto às parlamentares no que ficou conhecido como “lobby do batom”. Trata-se de um período intenso, com muitos fatos e diversas lutas pelo reconhecimento pelo Estado das desigualdades que as atingiam. Diante disso, cabe fazer a pergunta sobre o que se esperar do Estado em relação às políticas públicas para as mulheres. Aprofundarei esse debate no próximo capítulo. No presente, interessa-me entender a trajetória do movimento feminista no Brasil para que possa introduzir o debate acerca das reivindicações por políticas públicas. Cabe nessa reflexão, também, a discussão sobre a institucionalização do feminismo, na década de 1980, por meio das Organizações Não-governamentais (ONGs). Esses temas são de grande importância para o campo de estudo da pesquisa que será apresentada nesta tese. 2.1 Teoria feminista pós-estruturalista Joan Scott (1999, p. 203) afirma que precisamos de teorias que não abordem a realidade em termos de unidades e universalismos, mas de pluralidades e diversidades. Além disso, a autora coloca a necessidade de romper o esquema conceitual das velhas tradições filosóficas ocidentais que têm construído o mundo a partir de universos masculinos e especificidades femininas. São necessárias, também, teorias que permitam articular modos de pensamentos alternativos sobre gênero, bem como uma teoria que tenha utilidade e relevância para a prática política. Em sua concepção, o campo teórico que mais se adéqua a tais pressupostos é o do pós-estruturalismo, pois, nas palavras da autora, através dele: Encontrei uma nova maneira de analisar as construções de significado e as relações de poder, que questionava as categorias unitárias e universais, e tornava históricos conceitos que normalmente são tratados como naturais (como “homem” e “mulher”) ou como absolutos (como a igualdade ou a justiça) (SCOTT, 1999, p. 204-205). Ela pontua aspectos úteis da referida perspectiva teórica e que foram apropriados pelas feministas: linguagem, discurso, diferença e desconstrução. A linguagem é o ponto central da análise pós-estruturalista, pois ela é entendida como um sistema que constitui sentido, 25 constrói significado e mediante o qual se organizam práticas culturais nas quais, nas palavras da autora (SCOTT, 1999, p. 205): “[...] As pessoas representam e compreendem o seu mundo, incluindo quem elas são e como se relacionam com os demais”. Dessa forma, de acordo com esta perspectiva, é preciso prestar atenção à linguagem e nos processos mediante os quais se constituem as categorias e os significados. É importante ter em mente que as palavras e os textos não têm significados imutáveis ou intrínsecos e que o desafio é encontrar formas de analisar os “textos”2específicos em termos de significados históricos e contextuais (SCOTT, 1999, p. 205). Esse aspecto ganha relevância na presente tese pelo fato de ser de interesse analisar que sentidos foram construídos em torno das conferências de políticas para as mulheres ou, ainda, que contextos permearam o período estudado e em que medida influenciaram na construção dos referidos eventos. O discurso se configura não como texto nem como uma linguagem, “[...] Mas uma estrutura histórica, social e institucionalmente específica, de enunciados, termos, categorias e crenças” (SCOTT, 1999, p. 206). A autora baseia seu pensamento em Foucault, que sugere que a elaboração do significado implica conflito e poder. Sobre isso, Joanildo Burity explica que: O sentido de determinado fenômeno, ou o que Laclau chama de o ser de tal fenômeno se constrói a partir da sua inscrição em unidades mais amplas de significação. A isso chamaríamos de formação discursiva. Uma formação discursiva é sempre um conjunto articulado, mas heterogêneo, de discursos, ou seja, de sistemas de regras de produção de sentido. Uma formação discursiva já está hegemonizada por um determinado discurso dentro de uma pluralidade. Não é um todo monolítico, fechado em si, mas produz efeitos de posicionamento, autorização e restrição sobre os sujeitos que nela se constituem ou expressam [destaque do autor] (BURITY, 2014, p. 66). Burity (2014, p. 66-67) reitera que, para Laclau, discurso é uma categoria teórica (e não analítica ou descritiva) e especifica que a formação discursiva é um conjunto de discursos que foram articulados hegemonicamente por um dos discursos que não é, necessariamente, por exemplo, o mais combativo ou o mais rico, mas sim o que teve a capacidade de significar os fenômenos/interlocutores a que se dirige, “[...] Como uma superfície de inscrição de diferentes demandas, em resposta a um desafio, uma crise ou uma ameaça percebida” (BURITY, 2014, p. 66-67). O discurso é um conceito central neste trabalho, pois meu problema de pesquisa está relacionado à produção de sentidos acerca das conferências e das 2 Aspas de Scott. Sobre o que seriam considerados “textos”, ela diz que não seriam apenas livros e documentos, mas expressões de todo tipo e em qualquer meio, inclusive as práticas culturais (SCOTT, 1999, p. 205). 26 políticas para as mulheres. Neste sentido, interessa aqui ter em mente a relação entre prática articulatória e discurso, que será abordada ainda neste capítulo. Laclau e Mouffe ressaltam, que, diante do entendimento de que não existe uma totalidade discursiva na forma de uma positividade dada e delimitada, constatamos que a lógica relacional está incompleta e penetrada pela contingência. É o espaço das práticas articulatórias. A transição dos “elementos” para os “momentos” nunca é inteiramente completa. Surge então uma terra-de-ninguém que torna possível a prática articulatória. Neste caso, não há identidade social plenamente protegida de um exterior discursivo que a deforme e impeça que ela se torne plenamente suturada. Tanto as identidades quanto as relações perdem seu caráter necessário. Como um conjunto estrutural sistemático, as relações são incapazes de absorver as identidades; mas, como as identidades são puramente relacionais, esta é outra maneira de dizer que nenhuma identidade pode ser plenamente constituída (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 185). Não podemos visualizar uma sociedade como uma totalidade fechada e autodefinida. Ou, como pontua Laclau (2013, p. 119), estamos diante de uma totalidade fracassada ou do espaço da inalcançável plenitude. Nesse contexto, o discurso acaba por se constituir como uma tentativa de dominar o campo da discursividade, para deter o fluxo das diferenças e constituir um centro. Os autores denominam esses pontos discursivos privilegiados de fixação parcial de pontos nodais. Nas palavras deles: A sociedade nunca consegue ser idêntica a si mesma, já que todo ponto nodal se constitui no interior de uma intertextualidade que lhe excede. A prática da articulação, portanto, consiste na construção de pontos nodais que fixam sentido parcialmente; e o caráter parcial desta fixação advém da abertura do social, resultante, por sua vez, do constante transbordamento de todo discurso pela infinitude do campo da discursividade [destaque dos autores] (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 188). Para os autores, toda prática social é, em uma de suas dimensões, articulatória, já que não se pode falar em “sociedade”. Isso nos leva ao caráter relacional das identidades e às posições de sujeito no interior da estrutura discursiva. Ou, como eles afirmam: “Como toda posição de sujeito é uma posição discursiva, ela compartilha do caráter aberto de todo discurso; consequentemente, as várias posições não podem ser totalmente fixadas num sistema fechado de diferenças” (LACLAU; MOUFFE, 2015. p. 190-191). Na perspectiva de Scott (1999, p. 207), inspirada nas ideias de Foucault, através do discurso é possível se pensar de modo diferente acerca da política da construção contextual 27 dos significados sociais e sobre princípios organizadores para ação política, tais como “igualdade e diferença”. Outra dimensão importante para o pós-estruturalismo é a da diferença, que está diretamente relacionada à identidade, pois se entende que uma definição positiva depende de algo que é sua antítese. Por exemplo, eu sou mulher e não sou homem. Scott (1999, p. 207) ressalta que: “Qualquer análise de significado implica esmiuçar estas negações e oposições, descobrindo como estão operando em contextos específicos”. É preciso observar os contextos em que determinados aspectos são colocados como diferentes para entender o que leva às desigualdades, tais como a de gênero. É preciso analisar o que os falsos binarismos, colocados pela tradição filosófica ocidental, ocultam: unidade/diversidade; identidade/diferença; presença/ausência; unidade/especificidade (SCOTT, 1999, p. 208). No caso das conferências, temos um binarismo que pode ocultar a pluralidade de identidades e possíveis relações de poder: as mulheres participam como delegadas (o que equivale a representantes) do governo ou da sociedade civil. Que reivindicações políticas ou interesses são revelados no processo de construção da conferência municipal do Recife, bem como da estadual? No que tange à desconstrução, a autora (SCOTT, 1999, p. 208) recorre às ideias de Jacques Derrida para explicar que se trata de: “[...] Analisar as operações da diferença nos textos e as formas nas quais os significados são trabalhados”. Isso é o que permite ir além dos binarismos, mostrando, inclusive, como eles são interdependentes e culturalmente construídos. O exemplo que Scott aduz é o da antítese entre igualdade e diferença, em que o feminismo gerava a ideia de que era preciso se lutar pela igualdade entre homens e mulheres. Porém, foi preciso desconstruir essa categoria de “igualdade” para compreender que esconde uma série de opressões e relações de poder. Isso fica bastante evidente ao observar que, na década de 1980, as feministas negras denunciaram que o feminismo era uma teoria de mulheres brancas e privilegiadas. Em seu artigo “Igualdade versus diferença: os usos da teoria pós-estruturalista”, Scott (1999) argumenta que as feministas não podem abrir mão da igualdade nem da diferença, pois a primeira se refere a princípios e valores do sistema político, enquanto a segunda tem sido a ferramenta analítica mais criativa. Igualdade e diferença, nessa concepção, não são dicotômicas na teoria feminista. Para ela (SCOTT, 1999, p. 217): “[...] é preciso desmascarar a relação de poder construída ao colocar a igualdade como antítese da diferença, e é preciso rejeitar as consequentes construções dicotômicas nas decisões políticas”. Essa dicotomia esconde uma relação danosa, pois oculta as diferenças. No contexto feminista, ao incluir as 28 mulheres dentro de uma identidade “humana”3geral, acaba por se perder a diversidade feminina e as experiências das mulheres. Ou, o que a autora coloca, regressa-se aos tempos em que “homem” era sinônimo de universal enquanto se esqueciam das mulheres na história: Não reivindicamos a semelhança ou a identidade entre as mulheres e os homens, porém uma mais complicada diversidade (historicamente variável) do que a permitida pela oposição mulher/homem, uma diversidade que também se expresse diferentemente para propósitos diferentes em contextos diferentes (SCOTT, 1999, p. 219). Esse debate nos remete ao “dilema Wollstonecraft”, segundo denominação da filósofa britânica Carole Pateman e que é referida por Chantal Mouffe. Pateman argumenta que a cidadania é uma categoria patriarcal, pois “[...] o que faz um cidadão e qual é o terreno dentro do qual ele atua são fatos construídos a partir da imagem do homem” (PATEMAN, 1986 apud MOUFFE, 1999a, p. 37). Mesmo que as mulheres sejam cidadãs nas democracias liberais, ainda são desvalorizadas em diversas esferas. Diante disso, Mouffe, guiada pelas ideias de Pateman4, explica que o referido dilema, que é inspirado no clássico feminista “Reivindicação dos Direitos da Mulher”5, escrito por Mary Wollstonecraft e publicado em Londres em 1792, configura-se como: [...] exigir igualdade é aceitar a concepção patriarcal de cidadania, a qual implica que as mulheres devem ser parecidas com os homens, enquanto que insistir em que aos atributos, às capacidades e atividades distintivas das mulheres seja dada expressão e sejam valorizados como forjadores da cidadania é pedir o impossível, posto que tal diferença é exatamente o que a cidadania patriarcal exclui (MOUFFE, 1999a, p. 37). Essa questão está associada a uma postura liberal de Wollstonecraft, em que ainda não se percebiam as marcas de gênero, classe e raça no feminismo, como ficaram conhecidas nos anos de 1980. As preocupações de Wollstonecraft, naquela época, estavam voltadas para a igualdade de homens e mulheres. Para resolver o dilema, Pateman aponta a elaboração de 3 Scott coloca entre aspas, mas não explica exatamente por que. Decidi preservar a forma como a autora utilizou (SCOTT, 1999, p. 219). 4 O referido texto de Carole Pateman chama-se “Feminism and Participatory Democracy”, que foi apresentado no Encontro da Associação Filosófica Estadunidense em maio de 1986 (MOUFFE, 1999a, p. 37) 5 A obra é uma resposta à Constituição Francesa, de 1791, que não incluía as mulheres na categoria de cidadãs, num contexto de submissão das mulheres aos maridos, pais ou irmãos. Segundo Maria Lygia Quartim de Moraes (2016), o texto pode ser considerado o documento fundador do feminismo. 29 uma concepção “sexualmente diferenciada”6 da cidadania, em que se reconhecessem as mulheres como7 mulheres, inclusive com seus corpos e o que eles significam. Para Pateman, isto implica dar significação política à capacidade que os homens não possuem: a capacidade de criar vida, ou seja, a maternidade. Declara que esta capacidade deveria ser usada para definir a cidadania com a mesma relevância política com a que normalmente se reconhece a última prova da cidadania: a vontade de um homem de lutar e morrer por sua pátria. Considera que o modo patriarcal tradicional de estabelecer uma alternativa, onde são valorizadas tanto a separação como a igualdade dos sexos, tem que ser superado por um novo modo de delinear o problema das mulheres. Isto pode ser feito mediante uma concepção da cidadania que reconheça tanto a especificidade da condição feminina como a humanidade comum de homens e mulheres (MOUFFE, 1999a, p. 37). Mouffe ressalta a importância das colocações de Pateman acerca do caráter patriarcal dos teóricos do contrato social, mas também aponta o que ela vê como uma solução insatisfatória para esse problema. Segundo Mouffe (1999a, p. 38), Pateman acaba caindo num essencialismo ao colocar que existem duas formas de individualidade que devem ser manifestadas em duas formas de cidadania: de homens como8 homens e mulheres como9 mulheres, ou seja, uma concepção sexualmente diferenciada do indivíduo. Sobre isso, Mouffe aponta que: Segundo Pateman, o problema é que a categoria de “indivíduo” apareça como a forma universal da universalidade embora esteja baseada no modelo masculino. As feministas devem denunciar essa falsa universalidade ao afirmar a existência de duas formas sexualmente diferenciadas de universalidade: esta é a única maneira de resolver o “dilema Wollstonecraft”, e de romper com as alternativas patriarcais do “outro” e do “mesmo” (MOUFFE, 1999a, p. 38). Mouffe tem uma argumentação que vai ao encontro à de Scott ao discorrer sobre o dilema da igualdade e diferença. A igualdade por si só, sem se considerar a diferença, acaba por remeter-se a um falso universalismo, marcado pelo masculino. Mas, a solução não passa por ressaltar a oposição entre homens e mulheres, mas sim descontruir as desigualdades provenientes dessas relações antagônicas. 6 Aspas colocadas no texto de Mouffe. Não fica claro se o formato é seu ou de Pateman. Preservei como está no texto (MOUFFE, 1999a, p. 37).. 7 Destaque colocado no texto de Mouffe. Também não fica claro se o formato é seu ou de Pateman. Preservei como está no texto (MOUFFE, 1999a, p. 37). 8 Destaque colocado no texto de Mouffe. Não fica claro se o formato é dela ou de Pateman (MOUFFE, 1999a, p. 38) 9 Idem. 30 Ou, nas palavras de Mouffe (1999b, p. 269), “[...] a existência de toda identidade é a afirmação de uma diferença [...]”. Esse aspecto é fundamental para o que ela e Ernesto Laclau concebem como antagonismo, que, no campo das identificações coletivas, se refere à criação de um “nós” mediante a delimitação de um “eles”. Laclau e Mouffe pontuam que a presença do “outro” nos impede de sermos nós mesmos, isto é, as relações não surgem de identidades plenas, mas da impossibilidade de constituição delas. Um exemplo que eles dão é sobre o camponês que não pode ser camponês porque existe um antagonismo com o proprietário que o expulsa da terra (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 202). Segundo os autores: Na medida em que há antagonismo, eu não posso ser uma presença plena para mim mesmo. Nem a força que antagoniza comigo é tal presença: seu ser objetivo é um símbolo do meu não-ser e, desta maneira, é excedido por uma pluralidade de sentidos que impedem que ele se fixe como uma positividade plena (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 202). Nessa discussão, é importante ter em mente o que significam oposição, contradição e antagonismo. A primeira está relacionada a uma relação objetiva, do campo físico, determinável, definível. A segunda também está relacionada à objetividade e diz respeito ao campo lógico, uma relação definível entre conceitos. Já o terceiro constitui os limites da objetividade, é a “experiência”10 do limite do social (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 203). É justamente por conta dos limites externos ou da impossibilidade de uma sutura final que vão surgir os antagonismos, já que a identidade não pode se constituir de uma maneira plena ou, dito de outra forma: existem fronteiras antagonísticas que vão demarcar as diferenças de identidades. Para os autores, se a linguagem é um sistema de diferenças, o antagonismo é o fracasso da diferença. Ele estabelece os limites da sociedade ou, dito de outra forma: O limite do social deve se dar no interior do próprio social, como algo que o subverte, destruindo sua ambição de constituir uma presença plena. A sociedade nunca consegue ser plenamente sociedade, porque tudo nela é atravessado pelos seus limites, os quais a impedem de constiuir-se como uma realidade objetiva (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 204). Neste sentido, eles pontuam que a subversão do social é construída discursivamente. Diante das diferenças, são construídas articulações discursivas para se chegar a equivalências entre determinados conteúdos políticos. Ao retomar a questão posta por Laclau, é possível que determinados grupos preencham os significantes vazios e, assim, passe-se a ideia de 10 Aspas colocadas por Laclau e Mouffe (2015). 31 totalidade. Porém, como a totalidade é algo impossível de se atingir, o que teremos é uma identidade hegemônica, fruto de antagonismos, de disputas políticas para que, em meio às diferenças, estabeleçam-se equivalências em torno de pontos nodais11 e, assim, os significantes vazios sejam preenchidos por determinados grupos ou certos projetos políticos. Na concepção dos autores, em vista desse caráter incompleto e aberto do social, temos um campo de práticas articulatórias antagônicas que constituem a hegemonia, que confere ao discurso uma aparência de universalidade que encobre as diferenças e os antagonismos. Laclau e Mouffe afirmam que: Assim, as duas condições de uma articulação hegemônica são: a presença de forças antagonísticas e a instabilidade das fronteiras que as separam. Somente a presença de uma vasta área de elementos flutuantes e a possibilidade de sua articulação a campos opostos – que implica uma constante redefinição destes últimos – constituem o terreno que nos permite definir uma prática como hegemônica. Sem equivalência e sem fronteiras, é impossível falar estritamente em hegemonia (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 215). Uma prática hegemônica acontece porque as cadeias de equivalência variam radicalmente de acordo com o antagonismo que estiver em jogo, podendo afetar e penetrar, de modo contraditório, a identidade do próprio sujeito. É preciso que haja uma articulação de elementos flutuantes e que diferenças sejam deixadas de lado em nome de uma tentativa de construir uma universalidade. Essa parte será abordada com profundidade nos capítulos 4 e 5 desta tese, mas de antemão, é importante ter em mente que identidade, na perspectiva pósestruturalista, é processual e relacional, pois é constituída a partir de uma multiplicidade de interações. Diante disso, assumo um olhar analítico de quem parte do pressuposto da consideração da multiplicidade de discursos e de relações de poder nos espaços estudados. A noção de igualdade depende de um reconhecimento da diferença. Essa abordagem é muito cara à perspectiva teórica que utilizamos nesta tese. Não questionar sobre essa falsa dicotomia entre igualdade e diferença leva à noção de universal que, nas perspectivas das filósofas políticas Judith Butler e Mouffe, como de Laclau, encobre uma série de exclusões e relações de poder. Concordando com essa perspectiva Scott: Não reivindicamos as semelhanças ou a identidade entre as mulheres e os homens, porém, uma mais complicada diversidade (historicamente variável) do que a permitida pela oposição mulher/homem, uma diversidade que 11 Esse conceito, utilizado por Laclau e Mouffe, será abordado no capítulo 4 desta tese. 32 também se expressa diferentemente para propósitos em contextos diferentes (SCOTT, 1999, p. 219). Insistir na igualdade, a partir dessa oposição com a diferença, pode significar o risco de negar que a diferença tem configurado as noções políticas de igualdade, bem como sugerir que a semelhança é o único âmbito no qual se pode reclamar a igualdade. Joan Scott reflete que: Parece-me que a única alternativa é rejeitar a oposição igualdade/diferença e insistir continuamente nas diferenças: a diferença como a condição das identidades individuais e coletivas, as diferenças como o desafio constante a ajustar nessas identidades, a história como a ilustração repetida do jogo das diferenças, as diferenças como o verdadeiro significado da própria igualdade (SCOTT, 1999, p. 220). O argumento central da historiadora é o de que a igualdade requer o reconhecimento e a inclusão das diferenças. Mais ainda: o poder se constrói no, deve ser questionando desde12 o âmbito da diferença (SCOTT, 1999, p. 222). A forma como a ideia de igualdade é construída, muitas vezes, esconde os processos de desigualdade. Esse debate passa pela abordagem de Mouffe (1999a) acerca da necessidade de se questionar o essencialismo para se pensar numa política feminista inspirada também em um projeto democrático radical. Para muitas feministas, é de fundamental importância utilizar “mulheres” como uma categoria única na luta por seus direitos e contra as desigualdades de gênero. Porém, Mouffe chama a atenção para o seguinte aspecto: Só quando descartarmos a visão do sujeito como um agente ao mesmo tempo racional e transparente para si mesmo, e descartarmos também a suposta unidade e homogeneidade do conjunto de suas posições, teremos possibilidades de teorizar a multiplicidade das relações de subordinação. Um indivíduo isolado pode ser o portador desta multiplicidade: ser dominante em uma relação e estar subordinado em outra (MOUFFE, 1999a, p. 32). Essa ideia está relacionada à concepção de sujeito que ela e Ernesto Laclau têm. Ambos se referem às posições de sujeito, que vão depender de uma série de contingências, pois são constituídas dentro de diferentes formações discursivas. Não é possível se falar em sujeito como algo homogêneo, unificado ou de uma entidade única chamada “mulheres”. Para ambos os teóricos, o que vamos encontrar são cadeias de equivalência entre as diferentes lutas 12 Destaques postos por Scott. 33 democráticas. É possível, por exemplo, observar articulações equivalentes de mulheres negras, trabalhadoras, homossexuais etc. Um exemplo bastante esclarecedor é o da luta em torno da legalização e descriminalização do aborto no Brasil, em que se percebem argumentos proferidos por diversas mulheres e/ou entidades, como organizações não-governamentais (ONGs), profissionais de saúde, movimentos sociais etc. Embora cada um tenha uma concepção distinta sobre o aborto, em determinadas situações, eles podem deixar as diferenças de lado e se equivalerem em torno de um ponto nodal, que pode ser, por exemplo, o de não serem contrários ao aborto. Temos, portanto, uma fixação de identidades que, dada a sua contingência, trata-se de uma fixação parcial. Scott chama a atenção para se entender a natureza contingente em que se lida com a questão de igualdade e diferença. Por exemplo, Existem momentos em que faz sentido para as mães pedir consideração por seu papel social, e contextos nos quais a maternidade é irrelevante na conduta das mulheres, mas defender que ser mulher é ser mães encobrimos as diferenças que tornam possível essa eleição (SCOTT, 1999, p. 221). Segundo a historiadora, trata-se de uma estratégia política desconstrutiva diante das poderosas tendências que constroem o mundo nesses tipos de oposições binárias. Na perspectiva de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (LACLAU; MOUFFE, 2015; MOUFFE, 1999a), a posição de sujeito é constituída dentro de uma estrutura discursivamente instável, já que se submete a uma variedade de práticas de articulação que a submetem e a transformam. Na perspectiva dos autores, não se pode falar do sujeito como uma categoria com essência unificada e unificante e, por isso, referem-se a posições de sujeito no interior de uma estrutura discursiva. Segundo os filósofos: Se toda posição de sujeito é uma posição discursiva, a análise não pode prescindir das formas de sobredeterminação de algumas posições sobre outras, do caráter contingente de toda necessidade que, como vimos, é inerente a qualquer diferença discursiva (LACLAU, MOUFFE, 2015, p. 191). Para tornar mais clara a questão, os autores recorrem a exemplos concretos, como o do “sujeito”13 do feminismo. Uma quantidade expressiva de estudos mostra que a noção préconstituída de “opressão das mulheres” tem sido rejeitada e, ao invés disso, tem-se procurado entender o momento histórico e as contingências que levem a diversas formas de subordinação. 13 Aspas de Laclau e Mouffe. 34 Pode-se então perceber a importância de lutas pontuais contra toda forma opressiva de construção das diferenças sexuais, seja ela no nível da lei, da família, da política social, ou das múltiplas formas culturais através das quais a categoria “o feminino” é constantemente produzida. Estamos, portanto, no campo da dispersão das posições de sujeito (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 193). Ao refletir acerca do campo de pesquisa desta tese, ressalto que, ao me referir aos sujeitos políticos, não tenho em mente algo unificante e unificado, mas a posições de sujeito, conforme os autores em questão colocam. Essas posições vão variar conforme diversos fatores, como contexto, local etc. Por exemplo, integrantes de movimentos sociais podem ter uma postura e práticas em espaços onde estejam representantes governamentais e, em reuniões internas do seu movimento, apresentar outras atitudes. Interessa-me, portanto, as relações que envolvem posições de sujeito e as cadeias de equivalências que geram articulações hegemônicas, conceitos abordados por Lalau e Mouffe. Encarar essa abordagem é fundamental para a formulação das lutas políticas no campo do feminismo, pois ao se partir do pressuposto de que não existe uma essência unitária e unificadora do que significa ser mulher, o problema não é mais como descobri-la, mas sim: [...] as questões centrais serão: como se constrói a categoria “mulher” como tal dentro de diferentes discursos?, como se transforma a diferença sexual em uma distinção pertinente dentro das relações sociais?, e, como se constroem relações de subordinação através desta distinção? Todo o falso dilema da igualdade versus a diferença cai, desde o momento em que já não temos uma entidade homogênea “mulher” confrontada com outra entidade homogênea “homem”, mas uma multiplicidade de relações sociais nas quais a diferença sexual está construída sempre de diversos modos, e onde a luta contra a subordinação tem que ser estabelecida de formas específicas e diferenciais (MOUFFE, 1999a, p. 34). Essas ideias permitem olhar para o campo de pesquisa desta tese, a partir das diferenças de sujeitos políticos, de suas pautas e concepções acerca das políticas para as mulheres, das conferências de políticas públicas, como consta no texto-base divulgado na III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2011: As Conferências Estaduais e do DF são um espaço político de participação das mulheres. Mulheres jovens, idosas, trabalhadoras rurais, urbanas, sejam de populações tradicionais, ribeirinhas ou quilombolas, do campo e da floresta, indígenas ou negras, ciganas, brancas e não brancas, lésbicas ou com diferentes orientações sexuais, mulheres com deficiência, somam forças para alterar a face de nosso país, radicalizando a democracia com o fortalecimento dos pilares da igualdade de gênero, raça e classe 35 (CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2011, p. 5). Utilizo a abordagem das referidas autoras para construir a base analítica da presente tese, que tem como pressuposto central de que a realidade é discursivamente construída e que questiona a ideia de universalismo. É preciso que tenhamos em mente que o processo de construção das conferências de políticas para as mulheres, analisado posteriormente neste trabalho, revela uma série de disputas e de tentativas de articulações em torno de pontos nodais. Não estamos diante de um sujeito único “mulheres”, mas de diversos "sujeitos", com histórias de vida distintas e, principalmente, com as mais variadas concepções do que significam as referidas conferências. O caminho proposto remete à visão de sujeito e feminismo, tal qual Judith Butler assinala: [...] parece necessário repensar radicalmente as construções ontológicas de identidade na prática política feminista, de modo a formular uma política representacional capaz de renovar o feminismo em outros termos. Por outro lado, é tempo de empreender uma crítica radical, que busque libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma base única e permanente, invariavelmente contestada pelas posições de identidade ou anti-identidade que o feminismo invariavelmente exclui (BUTLER, 2010, p. 22-23). Assim como Scott (1999, p. 2005) e Mouffe (1999a; 1999b), Butler critica a noção de igualdade e de um sujeito único. Para ela (BUTLER, 2010, p. 23), a genealogia feminista14 da categoria das mulheres é “[...] determinar as operações políticas que produzem e ocultam o que se qualifica como sujeito jurídico do feminismo”. Em sua concepção, as estruturas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam as categorias de identidade. Ao abordar as estruturas jurídicas, ela se refere à política representacional e afirma que as estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem o campo contemporâneo de poder e não é possível estar fora dele. No entanto, é preciso estar atento às forças envolvidas nesse meio. Assim como Scott aborda a questão da igualdade e diferença, Butler pontua uma forte contradição nessa perspectiva: Não há dúvida, a fragmentação no interior do feminismo e a oposição paradoxal ao feminismo – por parte de “mulheres” que o feminismo afirma representar – sugerem os limites necessários da política da identidade. A sugestão de que o feminismo pode buscar representação mais ampla para um 14 Destaque de Butler. 36 sujeito que ele próprio constrói gera a consequência irônica de que os objetivos feministas correm o risco de fracassar, justamente em função de sua recusa a levar em conta os poderes constitutivos de suas próprias reivindicações representacionais (BUTLER, 2010, p. 22). Esse tema é de grande importância no presente trabalho, pois boa parte do campo de pesquisa faz parte de uma esfera representacional no que tange aos direitos e políticas para as mulheres. É o caso dos Conselhos de Direitos das Mulheres do Recife e de Pernambuco, que são compostos por integrantes de sindicatos, comunidades, organizações não governamentais, movimentos sociais e de diversos órgãos municipais e estadual e que têm uma luta reconhecida ou produção acadêmica na área. De uma forma simplificada, são divididas em representantes da sociedade civil, governo e notório saber. As próprias conferências também fazem parte dessa política representacional e são construídas pelos organismos de políticas para as mulheres dos municípios. Junto aos respectivos conselhos e sujeitos políticos ali presentes são delegadas que vão discutir e definir as propostas de políticas públicas. Estamos, em todos os referidos espaços, diante da política representacional. O Fórum de Mulheres de Pernambuco, mesmo que não trabalhe com uma dimensão representacional, pois funciona através de reuniões e ações em que todas as integrantes podem estar presentes, é constituído por uma grande diversidade de sujeitos, vindas de comunidades, de organizações feministas, do meio acadêmico etc. e que reforçam, na prática, o que as referidas autoras trabalham na dimensão teórica sobre a pluralidade de identidades. Recorro novamente a Butler para salientar que não é uma questão fácil e que se tratam de espaços conflituosos e permeados por diversas disputas postas de uma forma explícita e, outras vezes, de forma mais sutil. No entanto, é preciso ter em mente que, [...] ao invés de um significante estável a comandar o consentimento daquelas a quem pretende descrever e representar mulheres – mesmo no plural – tornou-se um termo problemático, um ponto de contestação, uma causa de ansiedade (BUTLER, 2010, p. 20). Mouffe e Laclau afirmam que a categoria de universalidade implica em uma série de exclusões e antagonismos. Sobre isso, Butler argumenta que: [...] em primeiro lugar, uma tal noção totalizadora só poderia ser alcançada ao custo de produzir novas exclusões. O termo “universalidade” teria de ficar permanentemente aberto, permanentemente contestado, permanentemente contingente, a fim de não impedir de antemão reivindicações futuras de inclusão. Com efeito, de minha posição e de 37 qualquer perspectiva historicamente restringida, qualquer conceito totalizador do universal impedirá, em vez de autorizar, as reivindicações não antecipadas e inantecipáveis que serão feitas sob o signo do “universal”. Neste sentido, não estou me desfazendo da categoria, mas tentando aliviá-la de seu peso fundamentalista, a fim de apresentá-la como um lugar de disputa política permanente (BUTLER, 1998, p. 22). Neste sentido, assim como Scott, ela defende que o pós-estruturalismo pode ser usado como parte da agenda radical na medida em que oferece um modo de contestação ao universalismo. Butler (1998, p. 34) defende a necessidade de se encarar a construção do sujeito como algo problemático e, ao contrário do que dizem os teóricos pós-modernos, não se deve negar ou jogar fora o sujeito, mas sim desconstruí-lo, examinando as funções linguísticas a que o mesmo serve na consolidação e ocultamento da autoridade. Isso é o que a filósofa estadunidense chama de política de identidade (BUTLER, 1998, p. 35). Para ela, é preciso que sejam feitas reivindicações, manifestações, esforços legislativos e movimentos radicais em nome das mulheres. Ela resume: [...] se o feminismo pressupõe que “mulheres” designa um campo de diferenças indesignável, que não pode ser totalizado ou resumido por uma categoria de identidade descritiva, então o próprio termo se torna um lugar de permanente abertura e re-significação. Eu diria que os rachas entre as mulheres a respeito do conteúdo do termo devem ser preservados e valorizados, que esses rachas constantes devem ser afirmados como o fundamento infundado da teoria feminista. Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua utilização, mas ao contrário, liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-los das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir (BUTLER, 1998, p. 36). A autora critica a necessidade de se construir uma unidade em torno da categoria “mulheres” para se ter uma política efetiva. Em sua visão, uma perspectiva mais próxima da realidade é uma “política de coalizões”, caracterizada por identidades em bases contingentes. Isso nos remete à noção de articulações políticas, proposta por Laclau e Mouffe e que será abordada no capítulo 4 da presente tese, mas que pode ser resumido da seguinte forma: “[...] qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos de tal modo que a sua identidade seja modificada como um resultado da prática articulatória” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 178). Os elementos são as diferenças não discursivamente articuladas ou, dito de outra forma, são determinados significados que se encontram dispersos e que precisam dos processos de articulações para formarem uma aparente totalidade estruturada, que se constitui no discurso. 38 Questiono, assim, que elementos vão se compor para darem um aparente sentido de coletividade das mulheres ou, ainda, das políticas públicas para este segmento? Iris Marion Young afirma que a lógica da identidade nega ou reprime a diferença (YOUNG, 2013, p. 307). Ela defende que é preciso transformar o sentido de “público”15 para que se exponha a positividade das diferenças de grupos, as paixões e o lúdico. Essa abordagem dialoga com o que foi colocado por Laclau, Mouffe e Butler sobre os falsos universalismos e as opressões que eles escondem. Segundo Young (2013, p. 309-310), a ética moderna é a da imparcialidade como marca da razão moral e expressa através da lógica da identidade. Para isso, suspendem-se as paixões, reduz-se a subjetividade dos sujeitos a uma única subjetividade ou, dito de outra forma, universaliza-se o particular. Young direciona suas críticas aos teóricos liberais, como John Rawls e Jürgen Habermas e argumenta que o ideal de imparcialidade é uma grande ficção. O cidadão universal é, na verdade, homem, branco e burguês e, através desse ideal de imparcialidade, transmite-se a mensagem de que as decisões tomadas são boas para todos e todas ou, nas colocações da autora: “[...] desde que tenhamos agentes imparciais na posição de decidir, não há necessidade de discussão” (YOUNG, 2013, p. 324). Ela reitera que: Se abrirmos mão do ideal de imparcialidade, não resta justificativa moral para processos de tomada de decisão com relação à ação coletiva que não sejam democráticos. Em vez de um contrato fictício, exigimos estruturas de participação verdadeiras, nas quais pessoas reais, com suas diferenças geográficas, de gênero, étnicas e profissionais, afirmam suas perspectivas sobre questões sociais dentro das instituições que incentivam a representação de suas distintas vozes. O debate teórico sobre justiça requer, portanto, uma discussão teórica sobre democracia participativa (YOUNG, 2013, p. 329). Trata-se de uma questão de extrema importância nesta tese, pois o campo de pesquisa compõe as instâncias da democracia participativa no país, que tem na possibilidade de sociedade civil e governo estarem presentes no mesmo espaço como um trunfo de igualdade no país. Porém, uma das questões que colocarei em xeque ao longo da análise dos dados é em que medida se trata, de fato, de espaço em que todas têm direito à voz ou, mais ainda, conseguem ter participação nas tomadas de decisões. Ou, como coloca a autora: [...] o sentido básico de público é o que é aberto e acessível. O público, em princípio, não é excludente. Embora seja geral nesse sentido, essa concepção de um público não implica homogeneidade nem a adoção de um ponto de 15 Destaque de Young. 39 vista geral ou universal. De fato, em espaços e fóruns públicos abertos e acessíveis, devem-se esperar encontrar e ouvir aqueles que são diferentes. Para promover uma política de inclusão, então, os democratas participativos devem promover o ideal de um público heterogêneo, em que as pessoas se destaquem com suas diferenças reconhecidas e respeitadas por outras, embora, talvez, não totalmente compreendidas (YOUNG, 2013, p. 332). Diante disso, adianto que o campo de pesquisa da presente tese é permeado por disputas de sentido do que são as lutas e as políticas para as mulheres e, inclusive, preciso me questionar sobre que mulheres abordarei. Muito mais do que questionar acerca, por exemplo, de cadeias de equivalência, é de grande importância, tal como a teoria feminista pósestruturalista faz, analisar que relações de poder e que projetos estavam por trás dessa aparente universalidade. É de fundamental importância, portanto, a análise das tensões e das articulações nos espaços em que fiz a pesquisa de campo. Pretendo, com isso, entender como se deu a relação entre igualdade e diferença e suas possíveis questões de poder. A partir do arcabouço teórico aqui presente, indago em que medida a igualdade reconheceu as diferenças. Scott (2005, p. 22), no artigo “O enigma da igualdade”, argumenta, ao discutir essa relação de identidade e diferença, no contexto de políticas afirmativas, que a tensão entre identidade de grupo e individual não pode ser resolvida, pois: “[...] ela é uma consequência das formas pelas quais a diferença é utilizada para organizar a vida social”. A autora aborda essa relação para inserir o debate sobre ações afirmativas. Em sua perspectiva, é preciso aceitar o fato de que a relação entre grupos e indivíduos consiste em um processo constante de negociação em contextos históricos que se transformam. Mesmo que no texto em questão, a autora se refira às políticas afirmativas, nesta tese, esse debate é de grande relevância, pois assumo a noção de pseudouniversalismo colocado pelas autoras e autor em questão para analisar o que permeia as diferenças de discursos, seja nos espaços onde estão presentes representantes governamentais e da sociedade civil, seja no do movimento social estudado. É possível analisar, no processo de debate e construção das referidas conferências, que pautas se sobressaíram ou quem tomava as decisões. Para isso, trata-se da perspectiva teórica que me permite responder de uma forma mais adequada essas e outras questões de pesquisa. Recorro ao pensamento de Mouffe, no qual afirma: [...] para mim, o feminismo é a luta pela igualdade das mulheres. Porém esta igualdade não deve ser entendida como uma luta pela realização da igualdade para um definível grupo empírico com uma essência e uma identidade comuns – as mulheres – mas como uma luta contra as múltiplas 40 formas em que a categoria “mulher” é construída como subordinação (MOUFFE, 1999a, p. 47). Anne Phillips (2001, p. 13) observa que, à medida que as feministas encontram uma forma de compreender mais satisfatoriamente as diferenças de classe e raça, elas também se voltaram para as noções de construção de coalizões como a melhor forma para abordar as possiblidades de solidariedade das mulheres. [...] as discussões sobre a experiência das mulheres ou os interesses das mulheres às vezes dão a impressão de uma unidade baseada na experiência compartilhada da opressão; uma vez que reconhecemos que a experiência de opressão varia de acordo com a localização de uma pessoa em hierarquia racial e racial, isso se revela como um sonho fantástico. Uma - pouco desesperada - resposta continua a tratar as identidades dadas pela experiência, mas vê a "mulher" como fragmentada nas múltiplas identidades associadas ao gênero, classe, raça, sexualidade, nacionalidade e suas combinações quase infinitas (PHILLIPS, 2001, p. 13). Mouffe (1999a) ressalta, ainda, a multiplicidade dos feminismos e que deve ser abandonada qualquer tentativa por encontrar a “verdadeira” forma de política feminista16. O argumento principal de Chantal Mouffe diz respeito à necessidade de se entender como é construído o sujeito através de diferentes discursos e posições de sujeito. Isso permite, por exemplo, analisá-lo para além de categorias unitárias de classe, raça e gênero, mas sim de uma forma interdependente. Há autores que criticam as perspectivas pós-estruturalistas de identidade do sujeito, como a de Luis Felipe Miguel, que observa: [...] a recusa a conceder qualquer validade à categoria coletiva “mulheres” pode ter interesse acadêmico, mas inviabiliza por completo a atuação do feminismo como movimento político – já que ele deixaria de se refereir a qualquer grupo social concreto. Assim, independentemente do impacto das provocações das autoras pós-estruturalistas, o feminismo permanece às voltas com a identificação do seu sujeito, a mulher (MIGUEL, 2014, p. 82). O autor reitera que essa contradição pode ser resolvida pela política pós-identitária defendida pela teoria queer, cujo principal exponte é Judith Butler, e que faz uma oposição radical à dicotomia homem/mulher. Para Miguel, a referida teoria encerraria o paradoxo pelo 16 Isso me remete à noção de interseccionalidade, que aborda as formas pelas quais o racismo, o patriarcado e a opressão de classe criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002, p. 177). 41 fato de que toda ação política é a produção de uma identidade coletiva e que isso não quer dizer necessariamente que essa identidade deva ser absoluta, imutável e irrevogável (MIGUEL, 2014, p. 82). No contexto do campo de pesquisa desta tese, fica a reflexão sobre que elementos se compõem em torno do significante vazio “mulheres”. Liz Bondi (1999, p. 262) constrói uma análise que está de acordo com as demais referências teóricas arroladas neste capítulo no que diz respeito ao caráter processual da identidade e a crítica ao essencialismo, característico do humanismo liberal. Porém, ela argumenta que é possível se recorrer ao essencialismo a partir de uma perspectiva estratégica, ao invés de ontológica. Por exemplo, pode-se buscar o denominador comum “mulher” para reivindicar políticas específicas, como centros de saúde especializados. Com essa noção de essencialismo estratégico, a autora pontua que: [...] esta conceitualização da identidade apoia as tentativas das feministas de ajustar contas com os efeitos de exclusão de uma insuficiente sensibilidade diante das diferenças entre as mulheres, sem ter que apelar a essências ontológicas nem ter que renunciar completamente ao identificador “mulher” sobre o qual o feminismo está baseado (BONDI, 1999, p. 263). Laclau e Mouffe (2015), ao falar da democracia radical e plural, remontam à necessidade das equivalências entre as lutas democráticas. Por exemplo, para que a luta dos trabalhadores não seja feita em detrimento das causas das mulheres, é preciso que as diferenças sejam suspensas e haja equivalências em torno de pontos nodais. Pode-se tratar como o universalismo estratégico na construção de unidades de determinadas lutas democráticas. Passa-se a ideia de um universalismo, que pode ser estratégico em muitas situações, mas que por trás dele há uma série de lutas hegemônicas. Nessa discussão, cabe ressaltar as ideias da teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak, que propõe o essencialismo estratégico, partindo do entendimento de que é possível usar categorias essencializadoras para a produção de identificação sem a qual a mobilização política não acontece (MIGUEL, 2014, p. 84). O autor acrescenta que se trata de uma forma de aliar uma reflexão feminista pós-estruturalista ao imperativo da construção da unidade na diferença, que é próprio da ação política. Mesmo com o alerta de Spivak de que o perigo é passar do essencialismo estratégico para o acrítico, sua perspectiva é posta em xeque. É o que explica Miguel: [...] o recurso às ideias de essencialismo estratégico e de perspectiva social pode indicar caminhos, mas não resolve outra tensão crucial, entre o recurso 42 a uma identidade feminina (ou a traços mitigados do que seria essa identidade) e a admissão da multiplicidade de vivências das mulheres numa sociedade que é marcada por diversas outras clivagens, além do gênero. A experiência das mulheres em posição de elite – brancas, educadas, burguesas ou pequeno-burguesas, heterossexuais – tende a ser apresentada como a experiência de todas as mulheres (MIGUEL, 2014, p. 85). Isso está relacionado à noção de interseccionalidade e me faz olhar para o campo de pesquisa sem a expectativa de encontrar algo que una as mulheres em torno de uma única causa, mas sim compreender que diversas questões colocadas e conflitos que emergem nos espaços observados podem se relacionar à classe, raça, orientação sexual, dentre outros aspectos que não me permitem falar em feminismo no singular, mas em diversos feminismos. Conforme o referencial teórico que adoto aqui, estou interessada nas articulações e não na união ou convergência em torno de algo homogêneo. Baseio minha postura de pesquisadora na das tentativas das feministas de encontrarem uma unidade na luta entre as mulheres que, de certa forma, mostraram-se falhas e evidenciaram um problema de ordem teórica e também prática. Nesse contetxo, Miguel afirma: O esforço do feminismo negro é esse, ou seja, mostrar que a mulher negra, numa sociedade que é simultaneamente machista e racista, sofre formas de opressão que não são redutíveis às sofridas por mulheres brancas ou por homens negros (MIGUEL, 2014, p. 90). É importante retomar o pensamento de Butler, que chama a atenção para o uso normativo da categoria mulheres e da necessidade de se expandir o que é ser mulher. Isso me faz questionar de que forma a categoria é usada no campo de pesquisa. Um aspecto que é bastante caro ao referencial teórico aqui trabalhado e que Liz Bondi coloca é que a multiplicidade e a fratura interna das identidades nos fazem questionar não “quem sou?”, mas sim “onde estou?”, que pode ser associada a posições de sujeito de Laclau e Mouffe. A partir do momento em que se questiona a noção de sujeito unificado, presente nas tradições filosóficas anteriores, o que temos são posições de sujeito que vão nos remeter à ideia de identidade como processual, portanto, contingente e contextual. Dessa forma, analisarei como as integrantes dos espaços analisados vão construindo os seus sentidos sobre políticas para as mulheres e para as conferências, tendo essa noção de que vai depender do contexto em que elas estão inseridas num determinado momento. 43 Diversos teóricos podem questionar essa multiplicidade de posições de sujeito e, por exemplo, a possibilidade de sua ação política ou, dito de outra forma, se a identidade é tão fragmentada, como se pensar no sujeito? A resposta a esse tipo de questionamento encontrase nas teorias aqui trabalhadas e será aprofundada empiricamente através dos dados de pesquisa analisados posteriormente neste trabalho. Mas, de antemão, podemos colocar uma controvérsia entre pós-modernismo, pós-estruturalismo e Teoria Crítica. Seyla Benhabib, filósofa estadunidense, argumenta que a pós-modernidade e o feminismo não são aliados conceituais e políticos. Em seu texto (BENHABIB, 1995, p. 18), ela traz à tona as três mortes postuladas pela pós-modernidade: do sujeito (encarado como autônomo, autorreflexivo e capaz de atuar por princípios); da história (entendida como a quebra do interesse epistêmico pela história dos grupos em luta ao construir seus relatos passados); da metafísica (vista como a impossibilidade de criticar ou legitimar instituições, práticas e tradições de outro modo que não seja pela apelação imanente à autolegitimação de “pequenos relatos”17). Segundo ela: [...] assim interpretada, a pós-modernidade mina o compromisso feminista com a ação das mulheres e o sentido de autonomia, com a reapropriação da história das mulheres em nome de um futuro emancipado e com o exercício da crítica social radical que descobre o gênero "em toda sua infinita variedade e monótona semelhança” [tradução própria] (BENHABIB, 1995, p. 29). Ela argumenta que a renúncia à utopia, na teoria feminista da última década, tem consistido em tachar de essencialista qualquer tentativa de formular uma ética feminista, uma política feminista, um conceito de autonomia feminista e, inclusive, uma estética feminista. Apesar de Benhabib fazer uma crítica direta à pós-modernidade e a Butler, esta também questiona a pós-modernidade e, inclusive, põe em xeque a sua existência (BUTLER, 1998). O que está em questão na análise de Butler é, sobretudo, a noção de sujeito, que não está descartada (ou morta, como dizem os pós-modernos) e que necessita de indagações acerca do seu processo de construção e de seu significado político e das consequências de ser tomada como um requisito ou pressuposto da teoria (BUTLER, 1998, p. 15). Nesse contexto, os críticos colocam as correntes pós-estruturalistas e pós-modernas como sendo praticamente a mesma coisa. A questão que Butler foca é a universalidade do sujeito, tal como já foi colocado neste capítulo. 17 Original: “small narratives”. Benhabib coloca entre aspas. 44 Tomar a construção do sujeito como uma problemática política não é a mesma coisa que acabar com o sujeito; desconstruir o sujeito não é negar ou jogar fora o conceito; ao contrário, a desconstrução implica somente que suspendemos todos os compromissos com aquilo a que o termo “o sujeito” se refere, e que examinamos as funções linguísticas a que ele serve na consolidação e ocultamento da autoridade. Desconstruir não é negar ou descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais importante, abrir um termo, como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que anteriormente não estavam autorizadas (BUTLER, 1998, p. 34). Nancy Fraser (1995, p. 59) resume essa controvérsia teórica da seguinte forma: Benhabib defende o feminismo a partir da Teoria Crítica e das premissas sobre conceitos de autonomia, crítica e utopia. Para Benhabib, a questão é se as proclamações de morte da pósmodernidade podem apoiar a política feminista e a resposta é negativa. Butler, por sua vez, aborda o feminismo a partir das concepções pós-estruturalistas de sujeito, identidade e agência humana que estão em desacordo com o feminismo de Benhabib. Em sua concepção, a questão é se a pós-modernidade realmente existe fora das fantasias paranóicas em noções metafísicas não-problemáticas. O argumento central de Fraser é o de que a Teoria Crítica e o pós-estruturalismo não são antíteses e que é possível descontruí-los para preparar o campo para uma frutífura integração entre ambos no pensamento feminista. Assim, em vez de se apegar a uma série de antíteses falsas que se reforçam mutuamente, podemos conceber a subjetividade como dotada de capacidades críticas e construídas culturalmente. De maneira análoga, podemos considerar a crítica como simultaneamente situada e passível de autoreflexão, como pontencialmente radical e sujeita a garantias. Da mesma forma, podemos colocar uma relação com a história que é ao mesmo tempo antifundacionalistas e politicamente comprometida, promovendo um campo de historiografias múltiplas que é simultaneamente contextualizada e provisoriamente totalizante. Finalmente, podemos desenvolver uma visão das identidades coletivas ao mesmo tempo construídas e complexas discursivamente, possibilitando ações coletivas e passíveis de mistificação, que precisam de desconstrução e reconstrução [Destaques da autora] / [tradução própria] (FRASER, 1995, p. 71-72). Encaro que a análise dos dados construídos na pesquisa de campo desta tese exige um debate teórico e epistemológico relacionado ao pós-estruturalismo por eu partir da premissa de que estamos diante de posições de sujeito e relações de poder que são permeadas sobretudo por contingências. Admito tais tipos de críticas não só às ideias de Butler, mas de outros 45 teóricos inseridos no pós-estruturalismo, mas ainda assim, defendo que se trata da vertente mais adequada para se responder as questões de pesquisa aqui presentes. 2.2 Teoria política feminista A partir da discussão sobre qual o caminho teórico que seguirei nesta tese, sinto que é necessário aprofundar a especificidade da abordagem acerca de relações de poder e que, posteriormente, será abordado por meio de disputas em torno do sentido de políticas públicas para as mulheres. A teoria política feminista, segundo Luiz Felipe Miguel e Flávia Biroli (2014, p. 7), trata-se de uma perpectiva profundamente plural e diversificada que investiga a organização social partindo das desigualdades de gênero. Nesta perspectiva, são questionados os falsos universalismos postulados na teoria política tradicional. Miguel e Biroli chegam a afirmar que a referida corrente promove a refundação18 não só da teoria política, mas de toda a teoria social. Ao pôr em xeque a neutralidade de categorias consagradas, mostrando como seu caráter pretensamente universal corresponde, de fato, a determinações bem precisas, ela nos obriga a pensar nossos modelos, desde suas bases (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 10). Eles acrescentam que a inserção da teoria política feminista no Brasil ainda é muito incipiente e que a maior parte da ciência política está presa a análises simplistas de processos eleitorais, comportamento legislativo e relações entre os poderes: “É uma ciência política sem pegada teórica, portanto incapaz de aderir à agenda de pesquisa que a teoria feminista abre” (BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 10). Além disso, os autores apontam que as abordagens acabam se restringindo a uma análise institucional da democracia, como processos eleitorais, comportamento legislativo entre os três poderes. No campo da teoria política, a partir das lentes do feminismo, temos diversas autoras, como é o caso da própria Flávia Biroli, Marlise Matos, Céli Pinto, entre outras e também Luis Felipe Miguel. Mas, ainda assim, é uma área que carece de abordagens próprias e que precisa ser expandida e de produções nossas, isto é, que nos façam refletir a partir das experiências brasileiras. A teórica britânica Anne Phillips (2001, p. 1) ressalta que a relação entre feminismo e política tem sido tratada como um discreto objeto de estudo, de interesse apenas dos que estão 18 Destaque de Biroli e Miguel. 46 imersos em determinadas áreas, como a de literatura sobre gênero e política ou em teoria política feminista. Além disso, reitera a autora, enquanto os sociólogos têm sempre incluído a família nos seus objetos de estudo e os críticos literários não puderam afastar as escritoras, os estudantes de política, por outro lado, têm se referido à mesma como domínio do poder político do qual as mulheres estão largamente ausentes. Phillips é uma das fontes bibliográficas de quem estuda teoria política feminista no Brasil, sendo, inclusive, uma das autoras traduzidas no livro editado por Miguel e Biroli (2013) chamado “Teoria Política feminista: textos centrais”. A britânica afirma que “o feminismo é política” e nos dá exemplo de mudanças sociais que não foram atribuídas apenas ao feminismo, mas uma vez que a reformulação das relações de gênero é parcial e profundamente problemática, seria muito difícil não associá-lo a um período de mudança significativa. São elas: feminilização da força de trabalho, a rápida equalização entre os sexos (segundo a autora, pelo menos, nos países mais ricos) na participação educacional e qualificações, um marcante aumento na autoconfiança e auto-estima, que, em sua concepção, é um dos últimos legados do movimento de mulheres contemporâneo. No entanto, na política, o cenário parece não ter mudado: [...] certamente, a política que nos é retratada através dos jornais diários e das redes de televisão permanece predominantemente masculina em pessoal e estilo; enquanto que, em algumas partes do mundo, as mulheres enfrentam ataques diretos contra direitos civis recentemente alcançados vindos de partidos e governos que resistem à implicação da igualdade sexual (PHILLIPS, 2001, p.1). A autora reflete o quão difícil pode ser saber o que fazer: [...] num mundo onde “o político” ainda evoca imagens de governos, eleições e partidos: as feministas simplesmente devem recusar a se envolver com esse universo sombrio ou temos que nos envolver para transformá-lo? [destaque de Phillips] (PHILLIPS, 2001, p.2). Como militante feminista, minha resposta a essa indagação é que devemos nos engajar e transformar essa ordem predominantemente masculina, marcada por relações machistas e patriarcais. Na condição de pesquisadora, tenho observações semelhantes à de Phillips no que diz respeito à tímida abordagem de feminismo e política. Se o feminismo tem como objetivo transformar as relações de gênero, extremamente desiguais, ele diz respeito à política, a um projeto diferente de sociedade. Frases do tipo “Feminismo é a ideia radical de que mulher é gente” e “Lugar de mulher é onde ela quiser”, dentre outras caras ao movimento feminista, desafiam uma ordem em que as mulheres estão em situação inferior em diversos âmbitos da 47 sociedade, inclusive no ambiente doméstico, conforme pautam as teóricas ao dizer que “O pessoal é político”. Neste sentido, como a pesquisa empírica e as questões colocadas no presente trabalho são de ordem de relações internas – na micropolítica - aos espaços estudados, considero que esta é uma tese que integra a área de Sociologia Política e que tem como um de seus recortes teóricos a teoria política feminista. Vivemos numa sociedade extremamente desigual em diversos aspectos e o de gênero não podia estar fora desse quadro. Posso levantar alguns dados referentes ao mercado de trabalho, violência, mulheres nas instâncias de poder. Segundo o IBGE (BRASIL, 2014), ao contar com a esfera doméstica, as mulheres trabalham, em média, cinco horas semanais a mais do que os homens e ganham 76% do rendimento deles. O Mapa da Violência mostra que, em 2013, o Brasil ocupava a quinta posição, dentre 83 no mundo, em homicídio de mulheres, com uma média de 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres. Só “ganhamos” de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Federação Russa (WAISELFISZ, 2015). Mesmo fazendo parte da maioria da população no país, 51,4% (BRASIL, 2014c), ainda existe uma participação muito baixa das mulheres na política institucional. Segundo o texto publicado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (RAMOS et al, 2014), nas eleições de 2014, foram eleitas 51 deputadas federais (9,94% das 513 cadeiras) e cinco senadoras (6,17% das 81 cadeiras), o que, somado às que já estavam no Senado, representam o percentual, respectivamente, de 9,94% e 14,81%19 no Congresso Nacional. Em 2018, foram eleitas 77 deputadas federais (15% do total) e sete senadoras (que, somadas às eleitas em 2014, representam 13%). Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, houve um aumento de 52,6% no número de eleitas nos poderes executivo e legislativo no país que, ainda, assim, continua aquém do quantitativo masculino (NÚMERO..., 2018). Esses dados mostram o quanto a participação, nessa esfera política, ainda é uma realidade que não faz parte do cotidiano das mulheres no Brasil. Segundo Anne Phillips (2013, p. 287): “Quando um grupo é consistentemente sub-representado, algum outro grupo está obtendo mais do que o que lhe corresponde”. Diante disso, as Conferências de Políticas para as Mulheres constituem um espaço de seu protagonismo. O próprio slogan do evento já diz bastante sobre o que seria priorizado: “Mais direitos, participação e poder para as mulheres”. Como o objeto desta pesquisa são os discursos no processo de construção das referidas Conferências, é fundamental termos clareza das desigualdades que estão sendo debatidas para 19 Esse valor é somado às sete senadoras que já haviam sido eleitas em 2010 e que davam continuidade aos oito anos de mandato. Portanto, somam 12 senadoras num total de 81 cadeiras. 48 entendermos o que as participantes, nos espaços estudados, reivindicam e, principalmente, as suas disputas políticas. A crítica feminista ganha radicalidade e força quando as abordagens são capazes de incorporar nessa problematização o fato de que as relações de gênero impactam as experiências, mas o exercício do poder – assim como as formas de dominação e de exploração – se dá também internamente ao grupo “mulheres”. Uma democracia igualitária depende, portanto, do enfrentamento daquilo que faz rodar as engrenagens do gênero, mas também as de classe e raça (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 14). Além da teoria política feita no Brasil ser, na concepção de Miguel e Biroli (2012), simplificadora, eu ainda percebi que, no meu campo de estudo, não há tanto espaço para análises que não se restrinjam à dimensão institucional. No caso das Conferências de Políticas para as Mulheres, ao fazer uma minuciosa pesquisa acerca de trabalhos publicados, encontrei seis dissertações e apenas uma tese, que data de 201420. Chamo a atenção para o fato de que, com exceção de uma dissertação, que é da área de Direito e Desenvolvimento, as demais são de programas de pós-graduação em Ciências Sociais e Ciência Política, que estão voltadas, em sua maioria, à abordagem quantitativa e estrutural acerca da democracia participativa21. Portanto, dialogando com as colocações de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli, pontuo que esta tese objetiva tratar de indivíduos concretos, com suas próprias demandas. Os autores comentam que o cenário parece mudar aos poucos e que a teoria política feminista no Brasil parece estar se mostrando sensível a teóricas feministas anglo-saxãs, como é o caso de Nancy Fraser e Iris Marion Young. Além disso, tem sido mais comum a incorporação, de uma maneira bem mais central, das temáticas e abordagens feministas (MIGUEL; BIROLI, 2012, p. 10). Frente a isso, esclareço que o olhar, aqui, das relações democráticas será a partir do feminismo, isto é, assim como a pesquisadora Carmen Silva, entendo que: [...] o feminismo é um modo de olhar o mundo que busca articular a análise das desigualdades de gênero, raça e classe no intuito de transformá-las, e 20 Pesquisa feita na página da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (http://bdtd.ibict.br) e do Banco de Teses da Capes (http://bancodeteses.capes.gov.br). Cabe ressaltar que há limites na disponibilização dos trabalhos nessa plataforma e que é possível que haja outros nessa temática, mas que não os encontrei. 21 Quando já estava caminhando para o fim da escrita, no fim de outubro de 2018, tive acesso à recém publicada edição em dois volumes: “Quem são as mulheres das Conferências de Políticas para as Mulheres no Brasil?”, fruto dos estudos realizadas em conjunto nas II e III CNPM, respectivamente em dezembro de 2011 e maio de 2016, pelas pesquisadoras da Secretaria de Política para as Mulheres e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem), vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais. O primeiro volume se chama “O Feminismo Estatal Participativo brasileiro”(MATOS; ALVAREZ, 2018a) e o segundo “Expressões feministas nas Conferências de Políticas para as Mulheres” (MATOS; ALVAREZ, 2018b). Reconheço a importância das referidas obras, sobretudo, por se tratarem de perspectivas novas e com dados recentes. Porém, devido ao limite do prazo desta tese, não terei como incorporá-las numa primeira versão. 49 que, por isso, exige coerência entre construção teórica e luta social por sua transformação” (SILVA, 2010, p. 11-12). Reproduzo esse trecho, pois parto do pressuposto de que fazer uma pesquisa de campo em ambientes onde estão em questão uma série de relações de opressão e desigualdades de gênero, sobretudo de reivindicação política, e não assumir esse ponto de partida pode levar a uma incoerência de minha parte enquanto autora do texto. Como corrente intelectual, o feminismo, em suas várias vertentes, combina a militância pela igualdade de gênero com a investigação relativa às causas e aos mecanismos de reprodução da dominação masculina. Pertence, portanto, à mesma linhagem do pensamento socialista, em que o ímpeto para mudar o mundo está sempre colado à necessidade de interpretá-lo (MIGUEL, 2014, p. 17). Neste sentido, a produção acadêmica não está desvinculada da militância. Ambas vêm abordando o patriarcado como um dos pilares de sustentação da desigualdade de gênero. As visões críticas das estudiosas que abordam a teoria política, sob as lentes do feminismo, estão relacionadas aos pilares da desigualdade de gênero, como o patriarcado, a divisão sexual do trabalho, o racismo. O patriarcado pode ser entendido como o sistema de dominação e de opressão dos homens sobre as mulheres. Apesar de ser uma palavra que pode nos remeter a tempos históricos distintos, utilizarei aqui a acepção feminista contemporânea, que vem desde a década de 1970, conforme abordagem inglesa. Como mostra Christine Delphy, os dicionários franceses abordam outras acepções do patriarcado, relacionadas às questões religiosas, antes do século XIX e ao sentido social em outros períodos. [...] O patriarcado e os patriarcas designavam dignatários da Igreja, seguindo o uso dos autores sagrados, para os quais os patriarcas são os primeiros chefes da família que viveram, seja antes, seja depois, do Dilúvio (DELPHY, 2009, p. 173). O segundo sentido diz respeito à “[...] Existência de um direito materno que teria sido substituído pelo direito paterno” (DELPHY, 2009, p. 174). Foi seguido por Engels e as feministas do século XX. Com a segunda onda do feminismo, na década de 1970, feministas como Simone de Beauvoir não acreditavam na existência de um patriarcado original e também colocavam que pai ou marido é indiferente. Essa concepção ia de encontro à noção 50 do patriarcado como “autoridade do pai”, já que a expressão vem da comunicação das palavras gregas pater (pai) e arkhe (origem e comando) ((DELPHY, 2009, p. 174). A acepção contemporânea foi adotada pelos dicionários ingleses, conforme pontua Delphy. Na França, o termo patriarcado enfrentou resistências junto com gênero, pois ambos estão associados a teorias que privilegiam respectivamente o capitalismo e a diferença natural do sexo. Como alternativa, as teóricas criaram as relações sociais de sexo (DELPHY, 2009, p. 177). Para elas, as relações sociais de sexo estão completamente interligadas, formando um sistema, um paradigma das relações de dominação. Segundo Danièle Kergoat: [...] a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por características a distinção prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticos, religiosos, militares etc) (KERGOAT, 2009, p. 67). A autora chama a atenção, ainda, para os princípios organizadores da divisão social do trabalho, que separa os trabalhos de homens e os de mulheres e os hierarquiza, sendo os dos homens mais “valiosos” (KERGOAT, 2009, p. 67). Esse debate tem a ver com a divisão da esfera pública e da esfera privada e que está relacionada à opressão e desigualdade das mulheres. Flávia Biroli (2014) afirma que a reflexão crítica sobre a dualidade dessas duas esferas é uma marca do pensamento feminista, pois revela as implicações diferenciadas para homens e mulheres. Enquanto o público diz respeito ao político e ao masculino, o privado é associado à dimensão do cuidado e do espaço das mulheres. Na modernidade, a esfera pública estaria baseada em princípios universais, na razão e na impessoalidade, ao passo que a esfera privada abrigaria as relações de caráter pessoal e íntimo. Se na primeira os indivíduos são definidos como manifestações da humanidade ou da cidadania comuns a todos, na segunda é incontornável que se apresentem em suas individualidades concretas e particulares. Somam-se, a essa percepção, estereótipos de gênero desvantajosos para as mulheres. Papéis atribuídos a elas, como a dedicação prioritária à vida doméstica e aos familiares, colaboraram para que a domesticidade feminina fosse vista como um traço natural e distintivo, mas também como um valor a partir do qual outros comportamentos seriam caracterizados como desvios. A natureza estaria na base das diferenças hierarquizadas entre os sexos (BIROLI, 2014, p. 32) . Diante disso, é fundamental para as teóricas feministas questionarem o que esá por trás dessa separação. É nesse âmbito privado, tão colocado como o dos afetos e da intimidade, que 51 acontecem diversos abusos e violências. A valorização à privacidade, inclusive, é uma das marcas da democracia liberal. Porém, como pensar em democracia ou igualdade quando no âmbito familiar predomina a hierarquia de um gênero sobre o outro? Ou, ainda, como defender a democracia sem se questionar o patriarcado? As feministas mostraram, inclusive, que se trata de uma falsa separação entre as esferas, pois uma depende da outra. Para que alguém possa, geralmente os homens, estar no trabalho produtivo, na esfera pública, é preciso que haja alguém na esfera privada que execute as tarefas domésticas ou que cuide dos filhos, o que configura o trabalho reprodutivo, que, geralmente, é relegado às mulheres. As teóricas colocam a necessidade de se questionar o que leva a essa separação e, também, porque existe a hierarquia de valores entre elas. Anne Phillips é bastante incisiva em relação a essa distinção da esfera pública e privada: [...] nas condições aparentemente mais iguais, as desigualdades continuadas da divisão do trabalho ainda condenam as mulheres a um papel político menor. Frequentemente excluídas pela falta de tempo ou de confiança, elas não têm o mesmo peso que os homens [...] A obsessão liberal com a divisão entre o público e privado oculta e legitima uma desigualdade de pesos ainda mais prejudicial. Fazendo de conta que direitos iguais ao voto são tudo o que importa, recusa-se a envolver-se com as limitações impostas às mulheres por sua posição na esfera doméstica (PHILLIPS, 2013, p. 293). Para Miguel e Biroli (2013, p. 37), o questionamento dessa dicotomia entre esfera pública e privada faz com que a própria noção de política seja redefinida. Além disso, a crítica à noção abstrata do indíviduo, à universalidade e à imparcialidade colocam em xeque as próprias noções do liberalismo. A teórica britânica Carole Pateman tem um largo trabalho acerca do caráter patriarcal do liberalismo. O termo “ideologia” é apropriado neste caso porque a profunda ambiguidade da concepção liberal do privado e do público obscurece e mistifica a realidade social que ajuda a construir. As feministas argumentam que o liberalismo é estruturado por relações patriarcais, bem como de classe, e que a dicotomia o privado e o público obscurece a submissão das mulheres aos homens dentro de uma ordem aparentemente universal, igualitária e individualista (PATEMAN, 2013, p. 56-57). Para ela, as duas esferas estão “inextricavelmente interligadas” e constituem os dois lados da mesma moeda do patriarcalismo liberal. Dessa forma, o velho argumento patriarcal que tem como ponto de partida a natureza e a natureza das mulheres foi transformado ao ser modernizado e incorporado ao capitalismo liberal. A atenção teórica e prática passou a se 52 fixar exclusivamente na área pública, na sociedade civil – “no social” ou “na economia” – e se presumiu que a vida doméstica era irrelevante à teoria social e à política ou às preocupações dos homens de negócios. O fato de que o patriarcalismo é uma parte essencial, na verdade, constitutiva, da teoria e da prática do liberalismo permanece obscurecido pela dicotomia aparentemente impessoal e universal entre público e privado dentro da própria sociedade civil (PATEMAN, 2013, p. 61). Diversas feministas criticaram essa associação das mulheres à natureza e à essência do cuidado e os homens à cultura, portanto, ao poder. Ainda no século XVIII, Mary Wollstonecraft já dizia que o que se tinha como características “naturais” das mulheres eram, na verdade, “artificiais”, resultado da educação que elas recebiam ou da falta dela (PATEMAN, 2013, p. 62). No contexto político brasileiro, isso é facilmente observado através das instâncias de poder, como exemplo, os executivos municipais para os quais, em 2016, foram eleitas 641 mulheres diante de um total de 5668, representando 11,30% (ELEIÇÕES..., 2016). No âmbito dos estados, foi eleita apenas uma governadora, no estado de Roraima, a integrante do Partido Progressista (PP), Suely Campos. Apesar de sermos mais de 50% da população, é visível que não estamos nas instâncias que decidem os rumos políticos e, consequentemente, os investimentos e prioridades sociais. Pode parecer óbvio, mas é preciso ressaltar essa problemática porque a pesquisa, aqui desenvolvida, está relacionada a um espaço político que é ocupado apenas por mulheres e que pode ser considerada uma conquista do movimento feminista, que pauta cotidianamente o caráter patriarcal do sistema e suas consequências na vida e na participação política das mulheres. Na esfera da política representativa, existe a Lei Federal n° 12.034/2009 que torna obrigatório que cada partido ou coligação preencham no mínimo 30% de suas vagas com candidaturas de mulheres. Os números citados anteriormente do legislativo nacional mostram que, apesar dessa obrigatoriedade, as mulheres não estão conseguindo ocupar esse espaço. Em 2008, foi criada, pela então Secretaria de Política para as Mulheres, a “Plataforma Mais Mulheres no Poder” com o objetivo de fortalecer as candidaturas femininas nas eleições, com pautas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e do que saiu das conferências do referido segmento (PLATAFORMA..., 2016). A dicotomia da esfera pública e a privada está relacionada, também, a uma regulação da esfera íntima, como o caso da proibição do aborto ou da impossibilidade da expressão de uma sexualidade livre. 53 Quando essa forma da privacidade e da intimidade, que garante a autonomia das mulheres na decisão sobre seu corpo e sobre questões relevantes para sua identidade, não é garantida, os direitos individuais são restritos. As formas de controle que assim se definem são, quase sempre, determinadas não por agendas feministas favoráveis à reconstrução das relações afetivas e sexuais, mas por agendas morais de grupos religiosos ou tradicionalistas, que tendem a operar contrariamente a relações de gênero mais igualitárias e à autonomia das mulheres (BIROLI, 2014, p. 44). Essa questão leva a refletir sobre o que ficou bastante conhecido na segunda onda do feminismo na década de 1970 e que, até hoje, é utilizado. Trata-se do slogan “O pessoal é político”, que mostra as ambiguidades da noção da política liberal, que, na verdade, é um patriarcado liberal, que não está muito focado nas assimetrias de gênero dentro de casa e no qual, em meados do século XIX, o ideal em famílias respeitáveis era a esposa economicamete dependente. Sobre o slogan, Pateman afirma que: [...] seu grande impacto foi desmascarar o caráter ideológico das afirmações liberais sobre o privado e o público. A ideia de que o “pessoal é o político” tem chamado a atenção das mulheres para a maneira com que somos incentivadas a ver a vida social em termos pessoais, como uma questão de capacidade individual ou sorte para encontrar um homem decente com quem se casar ou um local adequado onde morar. As feministas têm enfatizado como as circunstâncias pessoais são estruturadas por fatores públicos, por leis sobre estupro e aborto, pelo status de “esposa”, pelas políticas de atenção às crianças e atribuição de benefícios de previdência, e a divisão sexual do trabalho na casa e no local de trabalho. Portanto, os problemas “pessoais” só podem ser resolvidos por meios políticos e ação política (PATEMAN, 2013, p. 71). O slogan está ligado à crítica da distinção entre público e privado, defendida pelo liberalismo. Segundo Luis Felipe Miguel (2014, p. 64), o liberalismo sempre se afirmou como filosofia da universalidade. Visto a partir de uma ótica crítica, o feminismo liberal, além de valorizar essa ideia de público, o que era controlado pelo Estado, e de privado (o que não o fosse), não questionava as profundas desigualdades de gênero no ambiente doméstico. Judith Squires (2004, p. 27) aponta que o liberalismo é, com frequência, rotulado como a perspectiva que trabalha com uma concepção de sujeito como agente autônomo e que assume as pessoas como indivíduos iguais, livres e racionais. A crítica ao liberalismo traz consigo o questionamento da relação entre igualdade e diferença. Diante da premissa de filosofia da universalidade, cabe colocá-la em xeque, mostrando, assim como os teóricos do pósestruturalismo, as desigualdades omitidas por essa forma de compreender o mundo. 54 Judith Squires (2004, p. 28) traz à tona o complemento à referida crítica, que são as origens do liberalismo na teoria do contrato social. O foco são as forças políticas e sociais que criaram a situação na qual as mulheres foram confinadas ao ambiente privado, doméstico e do cuidado, enquanto os homens foram presumivelmente capazes de se moverem livremente entre as esferas privada e a pública. Essa ideia foi profundamente analisada por Carole Pateman na obra “O Contrato Sexual”. Nela, a autora afirma que as mulheres são os sujeitos do contrato sexual, que acontece na esfera doméstica. Porém, a autora recebe críticas por não considerar que o liberalismo e a subordinação das mulheres podem ser mantidos sem um contrato. O que nos cabe ressaltar, no presente texto, é o que nos diz Squires (2004, p. 53): “A desconstrução do papel da distinção público/privado na teoria liberal foi central para a rejeição da construção liberal do político”. A autora reitera que: [...] os Estados liberais conseguiram agir dessa maneira aparentemente contraditória por causa de uma tensão essencial dentro da teoria liberal. O contrato original, sobre o qual a teoria liberal contemporânea continua a ser, foi, afirmou Pateman, não apenas um contrato que estabeleceu liberdade, mas também um contrato sexual que perpetuou a dominação. O contrato estabeleceu o direito político dos homens sobre as mulheres através do direito conjugal. Enquanto os teoristas do contrato desafiaram os direitos paternos dos pais, incorporaram em suas teorias os direitos patriarcais dos maridos sobre as esposas. Como resultado, eles criaram uma divisão não só entre o Estado e a sociedade civil, mas também entre a esfera pública da liberdade civil e a esfera privada da família [tradução própria] (SQUIRES, 2004, pág. 29). Se entendermos político também como relação de poder, nessa lógica patriarcal, o slogan “O pessoal é político” é mais uma vez reforçado. Se a desigualdade de gênero é vista em suas diversas esferas, inclusive, na do lar, entende-se que é preciso combatê-la em todos esses espaços. Anne Phillips argumenta que, à medida que a divisão do trabalho doméstico tem consequências políticas para os homens e as mulheres através da possibilidade de participação de uns em detrimento da ausência das demais, essa problemática tem que fazer parte do debate político. É o que nos explicam: [...] no contexto contemporâneo, a luta feminista se constituiu em fortalecer as mulheres como sujeitos políticos e politizar a esfera do privado, demonstrando que toda relação de poder, dominação e opressão das mulheres deve ser refletida como questão política. O “privado também é público” – é uma forma de problematizar essas dimensões como parte de uma mesma realidade, articulada e como elementos que dificultam a participação das mulheres, invisibilizando-as na História (SILVA; ALVES; ARANTES, 2014, p. 91). 55 Isso nos remete à luta do movimento feminista por políticas públicas que garantam que as mulheres possam estar nos diversos espaços e que, ao mesmo tempo, encare essa divisão como um problema social e, sobretudo, político. A partir do momento em que que foi criado um órgão para o referido segmento, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003, pode ser considerado como o reconhecimento pelo Estado brasileiro do seu papel no combate ao referido tipo de desigualdade. Phillips (2013, p. 294) ressalta que: “[...] uma das contribuições básicas do feminismo às nossas ideias sobre a democracia foi ter levantado a cortina sobre essa esfera privada”. Outra questão de extrema importância é a divisão das atividades na esfera doméstica. Sobre isso: [...] as feministas estão tentando desenvolver a teoria de uma prática social que, pela primeira vez no mundo ocidental, seria uma teoria verdadeiramente geral que incluísse homens e mulheres de forma igual – baseada na interrelação da vida individual com a coletiva ou da vida pessoal com a política, em vez de sua separação e oposição. No nível imediatamente prático, esta demanda é expressa no que talvez seja a conclusão mais clara das críticas feministas: a de que, para que as mulheres participem plenamente, como iguais, da vida social, os homens têm de dividir de forma igual a criação das crianças e outras tarefas domésticas. Enquanto as mulheres se identificarem com esse trabalho “privado”, seu status público será prejudicado (PATEMAN, 2013, p. 75). Essa desigualdade pode ser vista no cotidiano de boa parte da população brasileira, mas, muitas vezes, não é reconhecida como tal, já que vivemos em contextos patriarcais. Isso tem consequências imediatas para a participação das mulheres na vida social de um modo geral, mas sobretudo na vida política, que exige uma rotina, diversas vezes, incompatível com a quantidade de atribuições da vida privada, que não são divididas com os demais indivíduos ali presentes. O patriarcado gerou consequências também quando a chefe maior do Estado no país foi uma mulher, Dilma Rousseff, que sofreu impeachment acusada de crime de responsabilidade fiscal, mas que antes foi alvo de diversas ofensas misóginas, como o episódio em que teve um adesivo de carro em que, no local da bomba de combustível, colocava-se uma mangueira no que seria a sua vagina. Ou, ainda, num contexto em que, em 2014, o deputado Jair Bolsonaro, à época do Partido Progressista, disse em entrevista que não estupraria a deputada pelo Partido dos Trabalhadores, Maria do Rosário, porque ela era feia e não merecia22. Na política brasileira, há diversos exemplos de como a falsa divisão entre as 22 Em fevereiro de 2019, Bolsonaro foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal a pagar R$ 10 mil por danos morais à Maria do Rosário (AMORIM, 2019). 56 esferas, na verdade, encobre uma série de desigualdades e ainda legitima a visão de que à mulher é reservada a esfera doméstica e ao homem a vida pública e, principalmente, política, superior à privada. Os próprios dados sobre violência doméstica também são um reflexo desse cenário desigual. Sobre a democracia liberal, Anne Phillips faz a crítica: [...] a democracia liberal deseja ignorar (e o republicanismo cívico deseja transcender) todas as identidades e diferenças mais locais; na realidade, as duas tradições insinuam o corpo masculino e a identidade masculina em suas definições da norma. Os democratas liberais, em particular, acreditam ter estendido todos os direitos e liberdades necessários às mulheres ao permitirlhes o voto nos mesmos termos dos homens. Isso é simplesmente inadequado, como até os indicadores mais crus (os números das mulheres na política) mostram. A democracia não pode pairar acima da diferença sexual, mas tem de ser redefinida com essa diferença em mente. Uma implicação óbvia é que a democracia deve lidar conosco não apenas como indivíduos, mas como grupos (PHILLIPS, 2013, p. 285). A autora britânica é categórica na crítica à democracia liberal em ver os indivíduos isoladamente. Em sua perspectiva: [...] a ideia de assentos garantidos para mulheres, ou quotas de 40% para cada sexo, inevitavelmente cerceia a liberdade daqueles que selecionam os candidatos e, nessa medida entra em conflito com ideais liberais. De modo mais fundamental, porém, qualquer medida destinada a assegurar uma representação aumentada das mulheres está afirmando que a diferença sexual é politicamente relevante e que a democracia deve reconhecer grupos (PHILLIPS, 2013, p. 286) A autora defende uma abordagem focada nos grupos, que reconhece que a sociedade é composta por diferentes grupos, que podem desenvolver interesses distintos. Além disso, ela afirma a perspectiva de que os sexos têm diferentes níveis de poder e que a distribuição deve ser tornada igual (PHILLIPS, 2013, p. 287). Isso contrasta fortemente com a visão neutra e abstrata da democracia liberal: “[...] em sociedades dirigidas por grupos de interesses, é desonesto pretender que somos o mesmo” (PHILLIPS, 2013, p. 287). Diante disso, entendo que estudar a política é olhar para os dados, como é o caso brasileiro, da quantidade de homens na esfera da política representacional em detrimento das mulheres no mesmo espaço e indagar que fatores levam a isso o que está errado nesse modelo democrático. Frente a isso, recorro à Judith Squires (2004, p. 7), que aponta para os diferentes entendimentos acerca do político (no original, “the political”): enquanto há estudiosos que a definem em termos de instituições governamentais, outros a compreendem a partir das 57 relações de poder. Esta segunda abordagem é a que utilizo neste trabalho, pois partilho da concepção de Mouffe ao dizer que: [...] por “o político” refiro-me à dimensão do antagonismo inerente às relações humanas, um antagonismo que pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos de relações sociais. A ‘política”, por outro lado, indica o conjunto de práticas, discursos e instituições que procuram estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre afetadas pela dimensão do “político” (MOUFFE, 2005, p. 20). Squires (2004, p. 23) reitera que as feministas rejeitaram a concepção da política como localizada apenas na arena institucional do governo e adotaram uma concepção instrumentalista da política como poder e buscaram estender a definição de poder de uma forma que fosse onipresente e abrangente à política. Partilho desta noção para entender que é preciso se pensar a política para além de uma dimensão institucional que, inclusive, tem sido majoritariamente objeto de estudo a Ciência Política no Brasil. Em minha perspectiva, os estudos sobre a democracia participativa perdem uma oportunidade rica de entender e questionar acerca das relações democráticas, dos embates, das dificuldades em se conciliar interesses muito distintos e os mais diversos projetos. Nos termos de Mouffe, vejo que há uma carência em se pensar a dimensão “do político” ao se pesquisar “a política”. No caso aqui estudado, faz ainda mais sentido o questionamento das feministas colocadas por Squires, pelo fato de que as Conferências de Políticas para as Mulheres, além de serem espaços exclusivos para debater e deliberar sobre políticas para este segmento, colocam em pauta a responsabilidade do Estado perante o combate às desigualdades de gênero. Trazer à tona questões que, antes, estavam circunscritas ao ambiente doméstico e que tinham uma certa conivência social (como o ditado popular conhecido por “em briga de marido e mulher não se mete a colher”) é derrubar os muros que separavam as duas esferas. O slogan “O pessoal é político”, até hoje, mostra a força do movimento feminista em desmascarar uma série de desigualdades e violência contra as mulheres e, no meu entendimento de pesquisadora feminista, foi um dos componentes para os movimentos no país conquistarem o reconhecimento institucional visto na criação dos organismos de políticas para as mulheres (OPM) e das Conferências como instâncias de debate acerca das políticas públicas. Sobre os OPMs, temos que: [...] são órgãos da gestão, responsáveis pela execução das políticas públicas voltadas para garantir direitos, promover a igualdade e incorporar as mulheres como sujeitos políticos. Integram a estrurura administrativa do poder executivo das esferas governamentais federal, distrital e municipal (secretarias e/ou coordenadorias). Têm por responsabilidade articular, 58 elaborar, coordenar, organizar e implementar as políticas públicas para as mulheres nos municípios e nos estados (GUIA..., 2016, p. 6). Isso será trabalhado com mais profundidade nos próximos tópicos do presente capítulo, quando abordarei sobre a relação do movimento feminista no Brasil com o Estado e a própria criação das conferências. Neste momento, é possível levantar a questão da representação, que também é cara à Teoria Política Feminista e tem grande importância neste trabalho pelo fato de os conselhos de direitos e as conferências de políticas públicas de um modo geral funcionarem a partir da lógica representacional na figura das delegadas e delegados, que vão discutir, formular e votar as propostas de políticas públicas. No caso aqui estudado, 60% dos assentos nos conselhos e nas Conferências de Políticas para as Mulheres são destinadas à sociedade civil, que é composta por organizações não-governamentais, sindicatos, movimentos sociais, mulheres de comunidade, indígenas, quilombolas dentre outras. Os 40% das demais vagas são direcionados para as representantes governamentais. Assim, temos uma pluralidade de sujeitos políticos vindos de diversas áreas de atuação e que vão representar as mulheres nesses espaços. Lanço aqui questionamentos sobre como é definido quem vai representar ou, dito de outra forma: quem está apta a representar? Que projetos políticos estão envolvidos? Essas perguntas têm a ver com o debate posto aqui acerca de identidade, diferença, articulações políticas, dentre outros e será trabalhado em profundidade nos capítulos 4 e 5 desta tese, quando serão feitas a análise e a discussão dos dados. Neste momento, cabe trazer à tona as discussões em torno do que se entende por representação. Léa Tosold (2012) analisa os argumentos de Anne Phillips e Iris Marion Young acerca da relação entre as políticas para reverter o quadro de falta de representatividade das mulheres na política institucional. Tosold indaga, então, as políticas de diferenças e o problema do essencialismo. As primeiras dizem respeito à inclusão de grupos sociais que se encontram em desvantagens estruturais na sociedade com base em fatores moralmente arbitrários, como, por exemplo, gênero e raça na esfera pública (YOUNG, 1990, p. 42-8 apud TOSOLD, 2012, p. 189). Por essencialismo, a autora explica: [...] refere-se à necessidade de estabilizar determinados grupos sociais enquanto sujeitos políticos. Ou seja, o processo de essencialização procura garantir a legitimidade da representação política de determinado grupo, estabelecendo uma fronteira nítida que torne possível distinguir seus membros na sociedade como um todo. Esse processo engendra um grave problema: leva ao congelamento e à descontextualização de identidades e 59 diferenças como se fossem entidades fixas, porquanto impõe, a partir da esfera política, uma visão única do que as distingue [destaque da autora] (TOSOLD, 2012, p. 191). Como se inserir os sujeitos políticos que enfrentam os mais diversos contextos de desigualdades sociais sem se cair numa espécie de armadilha do essencialismo? A resposta, para Tosold, está relacionada à politização das diferenças: [...] ao incluir a representação direta de sujeitos coletivos e uma dimensão estrutural para enfrentar o problema das desigualdades, as políticas de diferença visam a ampliar as, até então, limitadas possibilidades de trabalhar institucionalmente contra os mecanismos geradores de tais desigualdades. Sob o ponto de vista de teóricas políticas feministas, além de permitir o combate a desigualdades com base em gênero a partir da própria esfera institucional, a politização das diferenças é uma maneira de colocar o funcionamento das instituições políticas sob escrutínio crítico (TOSOLD, 2012, p. 193). Trata-se de uma forma de provocar o debate público sobre a parcialidade da esfera pública e, principalmente, sobre as desigualdades sociais. Segundo essa perspectiva, é uma condição necessária “[...] para a transformação de estruturas de dominação no seio do fazer político e a efetiva realização de justiça social” (TOSOLD, 2012, p. 195). É uma perspectiva que dialoga com as ideias de Laclau, Mouffe e Butler, que foram colocadas aqui, pois os defensores das políticas de diferença precisam mostrar que identidades e interesses grupais são construídos e emergem durante os próprios processos de debate e deliberação na esfera pública. Essa ideia é alvo de críticas, como a de Seyla Benhabib, que acusa Young de dar uma nova roupagem ao essencialismo. As políticas de diferença não devem ser entendidas como políticas públicas isoladas em uma configuração política já preestabelecida de antemão, visto que requerem outro fazer político que seja capaz de superar desigualdades estruturais. A fim de compreender como o processo de politização de diferenças está transformando – e não inviabilizando – o funcionamento da comunidade política e a possibilidade de efetiva justiça social, é fundamental perceber o essencialismo não simplesmente como um problema em si, mas principalmente como indicador de desafios importantes para um novo fazer político que se pretende configurar, capaz de dar conta da complexidade de desigualdades estruturais que, até então, estiveram além do alcance do projeto liberal (TOSOLD, 2012, p. 200). 60 Já Anne Phillips aponta que os grupos sociais são subrepresentados politicamente por conta de desigualdades sociais decorrentes de fatores históricos. Por isso, ela defende que membros desses grupos sejam incluídos no processo da deliberação pública, pois equalizaria as desigualdades na representação. Nesse contexto, a autora critica a noção de interesses de grupos e introduz a noção de perspectivas, que está relacionada às vivências dos diferentes sujeitos. Ela dá o exemplo de que, embora existam mulheres que decidam não engravidar, isso não faz que a gravidez seja algo neutro em termos de gênero (PHILLIPS, 1995, p. 68 apud TOSOLD, 2012, p. 203). Em sua visão, a inserção dos grupos excluídos na esfera pública pode ampliar a probabilidade de que a perspectiva de grupo seja politicamente representada, influenciando as políticas públicas, além de levantar novos tópicos de interesse. A autora reitera a importância disso para haver maior justiça e transformações diante dos cenários de desigualdades sociais. O recurso à categoria “perspectiva” também não resolve o problema das diferenças internas ao grupo das mulheres. [...] É discutível se há uma posição na sociedade que abarque todas as mulheres, sedimento comum das posições particulares de cada uma delas, ou se outros determinantes (classe, raça, orientação sexual, geração etc) afetam de tal maneira as perspectivas que não se pode abstrair um ponto de vista unificado. Na prática, as posições de representantes políticas tendem a ser monopolizadas por aquelas em situação privilegiada (profissionais brancas heterossexuais burguesas ou de classe média). Elas são representantes das mulheres, em geral, ou de uma parcela das mulheres, com deteminadas características distintivas? [Destaque do autor] (MIGUEL, 2014, p. 102). Porém, o fato de ser mulher, por si só, não indica que se lutará por pautas que questionem as desigualdades de gênero, por exemplo. Sobre isso, Miguel questiona: [...] o esforço deve ser voltado para colocar mulheres em posições de poder ou para fazer avançar uma agenda política feminista? O impulso inicial na direção do Estado, quando surgiram os órgãos de defesa dos direitos das mulheres, era nessa segunda direção. Mas a ampliação do número de representantes do sexo feminino não guarda relação necessária com uma maior centralidade da pauta do feminismo (MIGUEL, 2014, p. 107). O que se vê em ambas as autoras, Anne Phillips e Iris Marion Young, são a compreensão das desigualdades na representação e, principalmente, tentativas, no plano da Teoria Política, de apontar caminhos para se mudar essas realidades. Para o campo de estudo desta tese, é preciso ter em mente que, além de se tratarem de espaços que funcionam a partir de uma lógica representacional, é um campo constituído e ocupado apenas por mulheres. 61 Desta forma, cabe questionar sobre como as diferenças emergem, os discursos vão se compondo na tentativa de dar um aparente sentido coletivo das propostas de políticas públicas. Laclau e Mouffe colocam que não existe uma opacidade entre representantes e representados e que é preciso abandonar a tautologia de um discurso único para se perceber que ambos são constituídos em diferentes níveis (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 195-196). Segundo os autores: [...] a representação é constituída não como um tipo definido de relação, mas como o campo de uma oscilação instável, cujo ponto de fuga é, como vimos, a literalização da ficção através da ruptura de toda relação entre representante e representado, ou o desaparecimento da identidade separada de ambos, por meio de sua absorção como momentos de uma identidade única (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 197). Eles reiteram que: “[...] a prática política constrói os interesses que ela representa” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 197). Seguindo essa leitura, entendo que os espaços onde realizei a pesquisa são permeados por representações e, portanto, carregam em si possíveis tensões entre as próprias representantes e com os seus coletivos. Para tornar claro: os Conselhos de Direitos das Mulheres são compostos de representações da sociedade civil e do governo; o Fórum de Mulheres de Pernambuco, embora em sua dinâmica interna não funcione mais por meio de presentações, pois é um espaço aberto a todas que queiram ir23, tem representações nos referidos Conselhos. A partir das ideias colocadas por Laclau e Mouffe, questiono a diferença dos argumentos e posicionamentos dos sujeitos políticos integrantes do FMPE em cada espaço que estudei, sejam as reuniões do movimento ou no Conselho. Interessa-me entender esses pontos de tensão. 2.3 O movimento feminista no Brasil e sua relação com o Estado As questões levantadas referentes à Teoria Política Feminista geraram uma série de atitudes por parte das mulheres para mudarem os cenários notadamente patriarcais e machistas em que estavam inseridas. Isto pode ser observado através das ondas do feminismo. A primeira delas está relacionada à reivindicação das mulheres estadunidenses pelo direito ao voto, o que ficou conhecido como movimento sufragista, que ocorreu na segunda metade do 23 Segundo relatos que me fizeram, durante muito tempo, as reuniões do FMPE eram frequentadas por representantes de cada coletivo ou organização que o compunha. Avaliou-se que esse método não era mais adequado porque impedia que fossem mais integrantes para as reuniões e, então, passou-se a admitir que fossem quantas quisessem de cada entidade. 62 século XIX e início do século XX. No Brasil, de maneira semelhante, a luta pelos mesmos direitos se deu durante a década de 1920 e teve como principal expoente Bertha Lutz. Celi Pinto (2003, p. 14) classifica o referido momento como o “feminismo bem comportado”. A autora avalia que essa luta não questiona as relações de gênero e a posição de poder dos homens: [...] a luta pela inclusão não se apresenta como alteração das relações de gênero, mas como um complemento para o bom andamento da sociedade, ou seja, sem mexer com a posição do homem, as mulheres lutavam para ser incluídas como cidadãs. Esta parece ser a face bem comportada do feminismo brasileiro do período (PINTO, 2003, p. 14-15). A autora destaca, ainda, duas outras vertentes do feminismo nessa época (primeiras décadas do século XX). À segunda, ela denomina de “feminismo difuso”, que veio à tona em muitas manifestações da imprensa feminista alternativa e que: [...] são mulheres cultas, com vidas públicas excepcionais, na grande maioria professoras, escritoras e jornalistas. Preocupadas com os direitos políticos, essas mulheres têm um campo mais vasto de questões, defendem a educação da mulher e falam em dominação dos homens e no interesse deles em deixar a mulher fora do mundo público. Em seus textos, tocam em temas delicados para a época, como sexualidade e divórcio. Esta é uma face menos comportada do feminismo brasileiro do início do século XX (PINTO, 2003, p. 15). A terceira vertente é a que ela denomina de “a menos comportada dos feminismos” desse período. Teve como expoente Maria Lacerda de Moura e se manifestou no movimento anarquista e, posteriormente, no Partido Comunista. Foi formado por trabalhadoras e intelectuais, militantes dos movimentos de esquerda que defendiam a liberação da mulher de forma radical e que tinha, na maior parte das vezes, a questão da exploração do trabalho como central (PINTO, 2003, p. 15). É interessante ter conhecimento dessa parte da história para sabermos que pautas mostravam as reivindicações dessa fase. Não vou me ater aos detalhes dos acontecimentos pelo fato de não ser o foco da presente tese. Mas, um aspecto me chamou a atenção e durante boa parte da história do feminismo no Brasil isso se repete: a presença de mulheres intelectuais ou que tinham acesso a uma educação fora do país, pois as famílias dispunham de abastados recursos materiais. Bertha Lutz, por exemplo, estudou Biologia na Universidade de Sorbonne, em Paris, onde teve contato com as sufragistas francesas e era filha de uma enfermeira inglesa e um dos mais importantes cientistas daquela época, Adolfo Lutz (PINTO, 2003, p. 21). Ela gozava de grande reconhecimento e trânsito na elite política 63 do período. Isso fez uma grande diferença na luta pelos direitos negados às mulheres. Bertha Lutz fez parte do que se tornou uma grande expressão do feminismo na época, a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF). Segundo Celi Pinto: [...] além de Bertha Lutz, formavam a comissão Jerônima Mesquita, filha do barão e da baronesa do Bonfim, que vivera na França e na Suíça por dez anos; Ana Amélia de Mendonça, filha de um engenheiro proprietário da Siderúrgica Esperança, que foi “educada por preceptoras estrangeiras, com as quais aprendeu inglês, francês e alemão”; e Maria Eugênia Celso, filha do conde e historiador Afonso Celso e neta do visconde de Ouro Preto. Evidentemente, essas mulheres também desafiaram os moldes de sua época, escreveram e se expuseram publicamente, mas é importante enfatizar o caráter altamente elitista do grupo que se poderia chamar “núcleo duro” da FBPF (PINTO, 2003, p. 24-25). A década de 70 foi marcada pela segunda onda do fenimismo em que, na Europa e nos Estados Unidos, fervilhavam novas ideias políticas e revolução dos costumes. Neste período, vivia-se no Brasil a ditadura militar, que ao mesmo tempo que marcou o surgimento do movimento feminista24 no país, foi o período de alianças dos setores de esquerdas para enfrentar o regime ditatorial. Segundo Yumi Garcia dos Santos (2006), o “feminismo moderno” começou a ganhar força na metade da década de 1970 com mulheres de classe média informadas acerca dos novos pensamentos feministas nos referidos países do Hemisfério Norte. Em 1972, foi realizado o congresso promovido pelo Conselho Nacional da Mulher. O Conselho foi criado em 1949 pela advogada Romy Medeiros e cuja principal atividade era lutar por iniciativas institucionais em prol das mulheres (PINTO, 2003, p. 46). Medeiros foi uma incessante lutadora junto ao Congresso Nacional pelos Direitos da Mulher Casada que, até 1962, era considerada, pela Constituição, como servis ao marido. No referido ano, foi aprovado o Estatuto da Mulher Casada que diminuiu as discriminações pelas quais as mulheres passavam. Segundo Pinto (2003), essa fase foi de transição do “feminismo bem 24 Antes, havia movimentos de mulheres, como era o caso da luta contra a carestia, dos clubes de mães etc., que não colocavam em questão as relações de desigualdade entre homens e mulheres. As estudiosas Carmen Silva e Silvia Camurça (2013, p. 16) afirmam que nem todas as organizações do movimento de mulheres se definem como fazendo parte do movimento feminista. Segundo elas, há mulheres em todos os segmentos sociais, mas nem todos eles enfrentam os problemas de situações de mulheres. Ou, ainda, nem todos refletem sobre situações de dominação e exploração. Dito de outra forma, nem todos apoiam as causas feministas. Assim, elas explicam que o movimento de mulheres faz o feminismo, ao mesmo tempo em que é construído por ele. Em suas palavras: “Um alimenta o outro” (SILVA; CAMURÇA, 2013, p. 15). 64 comportado” de Bertha Lutz para um malcomportado, que enfretou questões consideradas tabus. As atividades de Romy Medeiros, apesar de suas ligações com o regime, juntavam mulheres comprometidas com a luta da esquerda no Brasil e promoviam eventos públicos, que causavam problemas para o regime, mesmo sendo patrocinados por agentes tão insuspeitos como a Coca-Cola e a Benfam. Paralelamente a esse tipo de atividade, o início dos anos 1970 conheceu os primeiros grupos de reflexão. Era o feminismo “moderno” do hemisfério norte que aportava no Brasil (PINTO, 2003, p. 49). As análises desta fase do feminismo, no entanto, estão marcadas por esse caráter elitista das protagonistas. Sobre essa questão, a socióloga Carmen Silva, em sua tese de doutorado em que estudou o feminismo no movimento Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), afirma: [...] muitos estudos e discursos atuais sobre a trajetória política do movimento feminista não veem o movimento de mulheres negras e trabalhadoras, sindicalistas e camponesas, e também não reconhecem a presença das mulheres de classes populares. Esta pesquisa demonstra o contrário. A imbricação entre movimento feminista e movimento de mulheres, resultante deste processo histórico, ocorreu sem que fossem negadas especificidades existentes a partir de identidades coletivas, a exemplo do movimento de mulheres negras e de camponesas (SILVA, 2016, p. 304). Como um dos espaços pesquisados para a elaboração desta tese é o Fórum de Mulheres de Pernambuco, um dos principais movimentos feministas no referido estado e, em nível nacional, o mesmo integra a AMB, essa conclusão a que Carmen Silva chegou é de grande importância para encará-lo como um movimento que leva adiante uma série de lutas do campo feminista popular. Isso será desenvolvido na análise e discussão dos dados, nos capítulos 4 e 5. Foi no período da ditadura que, ao mesmo tempo que os setores de esquerda enfrentavam o regime, havia diversos militantes exilados em vários países, dentre eles a França, que se tornou o ambiente de encontro das mulheres exiladas, no que ficou conhecido por Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris, que durou de 1975 a 1979 (PINTO, 2003, p. 54). Essas mulheres tiveram contato com as ideias europeias num contexto de liberdade e acabavam cumprindo uma função política, como o de enviar material para o Brasil ou de entrar em contato com outros grupos feministas. Celi Pinto reitera que: 65 [...] o êxito da organização do círculo não impediu que a questão fundamental que acompanha o feminismo brasileiro na época tenha se manifestado, a saber: a tensão entre aquelas que pensavam que o feminismo tinha de estar associado à luta de classes e aquelas que associavam o feminismo a um movimento libertário que dava ênfase ao corpo, à sexualidade e ao prazer. Em que pese o aspecto mais lúdico desta segunda vertente, parece ter sido ela a grande propulsora de um feminismo mais vigoroso e mais capaz de pôr em xeque as estruturas de dominação (PINTO, 2003, p. 55). A pesquisadora Maíra Abreu (2004, p. 99), ao abodar sobre o Grupo LatinoAmericano de Mulheres em Paris, o primeiro que as exiladas brasileiras integraram e que se reivindicava feminista, chama a atenção para um dos fatos importantes, que, em sua perspectiva, é a percepção das diferenças entre homens e mulheres na comunidade exilada, que se tornaram ainda mais visíveis a partir do contato com o ambiente político-cultural do feminismo francês. Abreu remonta à fala de Danda Prado, filha do intelectual Caio Prado Júnior, que chegou na França em 1970 para fazer doutorado sobre a temática “mulher”. [...] Danda relata sua investigação com a situação de uma parte das mulheres da comunidade exilada, que, em condições muitas vezes adversas e precárias e em trabalhos considerados subalternos, como faxina, provia o dinheiro para a sobrevivência, enquanto os homens ficavam em casa, discutindo a revolução e esperando o retorno ao Brasil (ABREU, 2014, p. 100). Danda Prado acrescenta que o feminismo era visto como um absurdo, não sendo bem aceito por grande parte da esquerda, que na década de 1960 e início de 1970, considerava inimaginável a ideia de libertação das mulheres (ABREU, 2014, p. 102). As mulheres seriam acusadas de divisionistas também em relação à luta de classes. “Outras questões (como a chamada ‘questão das mulheres’, a ‘questão racial’ etc.) eram consideradas como menos importantes e sua resolução era remetida a um futuro pós-revolucionário” (ABREU, 2014, p. 102). Eram chamadas, inclusive, de “sexistas”, sob a justificativa de que enfatizavam mais a luta das mulheres do que a luta de classes ou, ainda, que ignoravam a última (ABREU, 2014, p. 147). Julgado segundo as dicotomias político/apolítico, unidade de classe/sexismo, entre outras, definido em termos tradicionais e frequentemente estereotipados, o feminismo não era benquisto pela esquerda brasileira. Não foi senão aos poucos que esta aceitou rediscutir sua visão sobre feminismo. O grupo surgiu justamente num momento em que a esquerda encontrava-se ainda bastante fechada para tal movimento. Assim, não surpreende que por seu pioneirismo como grupo de mulheres brasileiras, tenha enfrentado resistência e hostilidade na comunidade exilada (ABREU, 2014, p. 148). 66 Em 1975, a Organização das Nações Unidas declarou a década de 1976 a 1985 como “a Década da Mulher”. Isso fez que a questão da mulher ganhasse um novo status e que fossem realizados eventos no país que, nas palavras de Celi Pinto, marcaram em definitivo a entrada das mulheres e suas questões na esfera pública. Foi o caso do evento realizado em 1975 no Rio de Janeiro cujo título foi “O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira”. No mesmo evento, foi criado o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira (PINTO, 2003, p. 56). Em 1978, foi lançada pelo referido centro a “Carta às Mulheres”, com uma série de reivindicações gerais e específicas aos candidatos que fossem concorrer nas eleições daquele ano. Essa época também foi marcada pelos princípios da redemocratização: em 1979, houve a anistia aos presos políticos e a reforma partidária, que extinguiu o bipartidarismo. Se a crise, enfrentada anteriormente pelas feministas, era em relação à luta contra o regime e a luta de classes, neste momento, passou a ser em relação a uma institucionalização por meio dos partidos políticos ou uma autonomia em relação aos mesmos. Trata-se, na verdade, de que forma vai se dar uma relação com o Estado. Clara Araújo aduz às interpretações sobre o poder e o Estado e que passaram a ter influência no pensamento feminista: [...] sugeriu-se que a crítica empreendida pelos movimentos feministas aos padrões dominantes de exercício do poder político, sobretudo aquele exercido via Estado, teria gerado, em contrapartida, um movimento de resistência e até mesmo de negação desses canais de poder como algo desejável pelas mulheres. Ou seja, destacavam-se duas grandes questões/tensões que se articulavam, marcaram, e ainda marcam a trajetória feminista em relação ao campo político e suas demandas por poder no final do século XX. Embora isso continue, no presente, pode-se verificar certa flexão, com indícios de que demandas por criação de órgãos de políticas públicas para mulheres, instalação de conselhos formados por sociedade civil e governos, bem como articulações entre os movimentos de mulheres, feministas e outros, e órgão de políticas públicas, especialmente construídos para este fim, passaram a estar num foco privilegiado. Entretanto, como e em que consiste o acesso e o exercício do poder? E do poder no interior do Estado? E como ficam os movimentos feministas? (ARAÚJO, 2012, p. 247248). A autora reitera que, se por um lado, entende-se o poder25 como algo instituído politicamente, por outro, vê-se o Estado como uma instituição dominadora e patriarcal. É o caso brasileiro. Céli Pinto (2003, p. 69) explica que a institucionalização nunca foi um 25 Clara Araújo esclarece que, nessa leitura, não se considera a característica polêmica que o conceito de poder assume nas Ciências Sociais (ARAÚJO, 2012, p. 248). 67 consenso no movimento feminista brasileiro nem de países europeus, pois alegava-se que se corria o risco de ameaçar a autonomia do movimento em relação aos partidos políticos que estivessem no poder. Além disso, o feminismo luta por transformações radicais nas relações de poder que não poderiam advir de uma relação entre o movimento e o Estado. Sobre a nossa história, Maria Aparecida Schumaher e Elisabeth Vargas (1993) ponderam que o feminismo aparece com força no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. As mulheres estavam num processo de descoberta de quais seriam suas bandeiras de luta. Em 1983, foi criado o Conselho Estadual da Condição Feminina (SCHUMAHER; VARGAS, 1993, p. 351). As autoras reiteram que: [...] o Conselho de São Paulo representa o marco que divide o movimento de mulheres, tanto para as que acreditavam na proposta, como para as que eram contra. E o que estava em questão era estritamente a relação do “movimento autônomo” com o Estado. Como garantir a autonomia do movimento? Quais as formas de organização dentro do governo? De que maneira as reivindicações feministas serão atendidas? A criação do Conselho foi ampla e publicamente debatida (SCHUMAHER; VARGAS, 1993, p. 351-352). Essa divisão dentro do movimento continuou e, em 1985, no VII Encontro Nacional Feminista, que aconteceu em Belo Horizonte, novamente vieram à tona os questionamentos colocados acima. Se, por um lado, havia um entendimento da necessidade de espaços institucionais, por outro, não havia uma confiança no Estado, visto que o contexto em que essas mulheres estiveram envolvidas era de ditadura. Porém, saiu a proposta de criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), mas com uma série de critérios para tentar garantir a tão falada autonomia do movimento feminista perante o Estado. Yumi Garcia dos Santos (2006, p. 404-405) reflete que a criação dos conselhos especializados em monitorar a situação da mulher não teriam nascido apenas de uma orientação da “Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher”, lançada pela ONU em 1979, mas sim da luta do movimento feminista no país. Para investigar essa hipótese, ela faz uma descrição do contexto de abertura do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, aludindo ao fato de que, em 1982, as feministas paulistas elaboraram uma plataforma com reivindicações dos movimentos e a apresentaram ao candidato pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), André Franco Monteiro (BLAY 1987, p. 44 apud SANTOS, 2006, p. 416), que foi eleito e aceitou a proposta das mulheres do partido para criar o referido Conselho. Santos lista as dificuldades enfrentadas: não era uma instância 68 suprapartidária, como se pretendia, mas sim ligada ao PMDB; ele operou como um órgão sem autonomia financeira e política e sem poder executivo (SANTOS, 2006, p. 424). Ainda em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher junto ao Ministério da Justiça, como uma instância consultiva e deliberativa. Para a historiadora Celi Pinto (2003, p. 72), o Conselho teve uma real atuação como órgão de articulação das demandas do movimento feminista e de mulheres, tratando de questões ligadas à sexualidade e ao direito reprodutivo, entre 1985 e 1989. Na visão da autora, sua maior e mais bemsucedida intervenção aconteceu junto à Assembleia Nacional Constituinte, que teve um grande êxito nas diversas demandas do movimento que foram incorporadas à Constituição de 1988 ou, como Schumaher e Vargas explicam que: [...] investiu numa campanha publicitária que incluía TV, out-doors, enfim, todos os recursos da mídia e, paralelamente, organizou ou ajudou a organizar em todo o país debates, encontros e seminários para a discussão das propostas, culminando na realização de um Encontro Nacional que encaminhou a Carta das Mulheres aos Constituintes. Acompanhou de perto o trabalho de todas as comissões, mantendo um canal permanente com as mulheres nos estados, informando do andamento das propostas e criando um verdadeiro lobby nacional, o lobby do batom, como ficou conhecido (SCHUMAHER; VARGAS, 1993, p. 359). As autoras reiteram que o Conselho acabou influenciando a abertura de outros conselhos nas esferas municipais e estaduais. Porém, o CNDM foi sendo enfraquecido com a perda de sua autonomia financeira e política. O mesmo deixou de ter orçamento próprio e passaram a ser indicadas como conselheiras e para a direção mulheres que tinham pouca tradição com o movimento feminista. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, a situação permaneceu a mesma. Em 2002, foi criada a Secretaria dos Direitos da Mulher (SEDIM) que, no ano seguinte, já na gestão do então presidente Luís Inácio Lula da Silva, tornou-se a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). Segundo Lourdes Bandeira e Hildete Pereira de Melo: [...] inspirada no principio de igualdade de condições entre homens e mulheres, a SPM propõe estratégias para o desenvolvimento de políticas para as mulheres, baseada no princípio da transversalidade, ou seja, da incorporação da perspectiva de gênero e raça nas ações desenvolvidas por todos os órgãos do governo federal (BANDEIRA; MELO, 2010, p. 38). 69 Retomarei a discussão específica sobre essas instâncias institucionais no próximo capítulo. Neste momento, é importante ter em mente a relação delicada em integrar o movimento feminista e compor espaços juntos com o governo. É o que explica Celi Pinto: [...] pois a forma de recrutamento das mulheres para ocupar posições em conselhos ou em outros órgãos estatais é definidora da relação do movimento com o Estado e da independência do primeiro em relação ao segundo. Se o recrutamento ocorre a partir do Estado, a tendência é que partido e movimento venham a se confundir, resultando daí que, por mais feministas que sejam as mulheres recrutadas, elas acabarão ficando de alguma forma comprometidas com as propostas de governo. De outra sorte, se o recrutamento realiza-se a partir dos movimentos, há em princípio a possibilidade de se construir um espaço mais independente. Ora, se a última alternativa parece ser a mais democrática, é também a mais difícil de ser concretizada. A alternativa do recrutamento por correligionárias de partido tem sido a regra e acarreta problema de autonomia e independência (PINTO, 2003, p. 71). Em sua perspectiva, o nascimento do CNDM e o enfraquecimento ou, nas próprias palavras, morte virtual, foram bastante condicionadas por esse cenário. Além desse conflito entre feminismo e institucionalização, o movimento ainda vivenciou anteriormente, na década de 1970, uma relação delicada com a questão de classe, pois num contexto em que se lutava pelo fim da ditadura, o feminismo era visto por muitos dos militantes como um desvio da luta maior – a de classes. Schumaher e Vargas trazem um grande dilema que perpassou a relação do movimento feminista com o Estado, mas que também perpassa a dos diversos movimentos sociais: [...] é fundamental compreender a "faca de dois gumes" que a institucionalização das demandas feministas comporta. Se por um lado a criação dos conselhos trouxe e traz para o cenário nacional o debate público sobre os direitos da mulher e a questão da igualdade, dando-lhe visibilidade e legitimidade, por outro, seu poder de intervenção efetivo mostrou não dar conta de permear a estrutura do Estado para a implantação de políticas consequentes. É bem verdade que, no que se refere a políticas públicas de interesse social, o Estado Brasileiro tem demonstrado uma ineficiência generalizada (SCHUMAHER; VARGAS, 1993, p. 361). Em relação a essa fase, a cientista social Maria do Carmo Delgado explica que: [...] a criação dos conselhos da mulher visava à construção de mecanismos para viabilizar uma atuação integrada para as políticas governamentais, questão central para a alteração do padrão de intervenção do Estado. A fórmula que se propôs pretendia formar um organismo híbrido, ao mesmo tempo estatal e mantendo características de atuação autônoma; que, 70 funcionando como uma estrutura de governo, não se identificasse totalmente com ele [destaque da autora] (DELGADO, 2007, p. 83). A reivindicação pelo reconhecimento institucional das demandas do movimento feminista perante o Estado tem a ver com o que foi discutido no presente capítulo sobre a íntima relação entre a esfera pública e a privada. Em 1987, foi criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DEAM) em São Paulo em decorrência das reclamações das mulheres devido ao atendimento prestado nas delegacias comuns, que não estavam preparadas para atendimentos específicos de violência de gênero, contando, inclusive, com delegados e não delegadas. Trata-se de um avanço frente a um Estado que, na referida década, foi palco de uma série de ações e conquistas do movimento feminista. Segundo Sueli Carneiro (2003, p. 118): “[...] um dos orgulhos do movimento feminista brasileiro é o fato de, desde o seu início, estar identificado com as lutas populares e com as lutas pela democratização do país”. A relação do movimento feminista com o Estado foi o mote para a realização da pesquisa que integra a presente tese. Partilho da perspectiva colocada por Yumi Garcia dos Santos (2006) de que a criação dos Conselhos foi uma reivindicação do movimento feminista brasileiro, porém a perspectiva colocada por Schumaher e Vargas (1993) diz mais no sentido dos tensionamentos e crises internas e externas a esses espaços. Nos capítulos 4 e 5, quando discutirei os dados, abordarei o que pude apreender na pesquisa de campo. Segundo Clara Araújo, as ações do movimento feminista, nas duas últimas décadas do século XX, estiveram voltadas para o empoderamento26 e autonomia das mulheres, além de demandas para sua inserção nas instâncias decisórias já existentes (ARAÚJO, 2012, p. 251). O conceito de poder, nesse sentido, inspirado nos ideiais de Foucault, passou a ser visto não apenas como dominação, mas também como algo que habilita e libera. Essa forma mais propositiva de encarar o poder tornou-se importante a partir de meados da década de 1990 com a Quarta Conferência Mundial de Mulheres, também conhecida como Conferência de Beijing, que aconteceu em 1995 na China. Deliberou-se sobre a incorporação do enfoque de gênero em todos os projetos de desenvolvimento por órgãos e agências da Organização das Nações Unidas (ONU), objetivando a promoção de uma maior participação e o empoderamento das mulheres (SADENBERG, 2015, p. 17). Segundo consta no relatório do referido evento: 26 Destaque de Araújo. 71 [...] é essencial projetar, implementar e monitorar, com a plena participação das mulheres, eficaz, eficiente e reforçando-se mutuamente políticas e programas sensíveis ao gênero, incluindo políticas de desenvolvimento e programas, em todos os níveis que promovam o empoderamento e promoção das mulheres [tradução própria] (UNITED NATIONS, 1996, p. 3). Cabe ressaltar que, pela primeira vez, foi incorporada a perspectiva de gênero e empoderamento. Esse significa: [...] o empoderamento não é apenas o direito de ter liberdade política. O empoderamento é o direito de ser independente; para ser educada; para ter escolhas na vida. O empoderamento é o direito de ter a oportunidade de escolher uma carreira próspera; para possuir propriedade; para participar nos negócios; para prosperar no mercado (UNITED NATIONS, 1996, p. 196). As resoluções das Conferências têm um papel importante na condução das políticas públicas nos diversos países signatários. Essa mudança significou o entendimento de que, para se alcançar o empoderamento, seria necessário se pensar nas implicações sociais do gênero e não mais apenas das mulheres. Cabe ressaltar também que a Conferência de Beijing marcou a construção da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), da qual o Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE), movimento feminista que estudei para esta tese, faz parte. Abordarei com detalhes sobre o FMPE no capítulo 3, sobre o campo de pesquisa. Clara Araújo (2012, p. 254-255), ao fazer a leitura acerca do “State Feminism”27, abordado por Amy G. Mazur e Dorothy E. McBride (2008), aponta que a perspectiva foi explorada academicamente por meio do referido conceito e politicamente teve um papel decisivo para se explicar as estratégias e experiências na esfera do poder institucional e nos níveis de representação política, além de influenciar na abertura de instituições especializadas e/ou responsáveis por políticas de igualdade de gênero ou na construção de uma agenda política mais afirmativa. As tensões se revelavam no momento de formular as demandas feministas, na dificuldade em construir uma perspectiva de participação fora da especificidade feminina parecem ter sido traduzidas. Outro ponto relevante é o debate sobre: o que é o Estado, o que se quer dele e como relacionar as demandas dos movimentos feministas com as políticas públicas tornou-se central à medida que proposições e demandas por participação foram postas por feministas pró-participação no Estado [destaques de Araújo] (ARAÚJO, 2012, p. 255). 27 Na tradução livre, seria “Feminismo de Estado”. Porém, como não existe esse termo em português, optei por manter o original (“State Feminism”). 72 As teóricas Amy G. Mazur e Dorothy E. McBride explicam o termo: O Feminismo de Estado capta o surgimento de um novo conjunto de relações entre o Estado e a sociedade e introduz uma visão de gênero da ação do Estado para a análise empírica e comparativa. Baseia-se na expectativa de que os governos democráticos, para serem bem-sucedidos, podem e devem promover o estado e os direitos das mulheres em relação aos homens, no entanto, esses direitos são definidos em contextos culturais específicos e devem alterar as hierarquias baseadas no gênero que contribuem para a persistência de desigualdades baseadas no sexo. Em outras palavras, o conceito baseia-se na premissa de que as democracias podem e devem ser feministas [tradução própria] (MAZUR; MCBRIDE, 2008, p. 244). É uma definição nominal para as ações das agências de políticas para as mulheres no intuito de incluir as demandas dos movimentos de mulheres e atores no Estado para produzir resultados feministas tanto nos processos políticos quanto no impacto social ou em ambos (MAZUR; MCBRIDE, 2008, p. 254). Trata-se de um termo usado principalmente nos países nórdicos, onde as feministas estavam mais dispostas a se envolver com o Estado. É uma forma de discutir e analisar como o Estado pode incorporar políticas de igualdade de gênero e, do termo, surgem questionamentos sobre o que influencia ou não essas ações, se é a pressão dos movimentos de mulheres ou a presença de mulheres compondo as instância estatais. O termo não é utilizado na Ásia nem na América Latina. As autoras supõem que: [...] uma grande limitação sobre a utilidade do Feminismo de Estado para estudar políticas de gênero não ocidentais é a natureza contaminada do termo "feminismo". Para muitos não ocidentais, o feminismo como ideologia está associado a uma abordagem etnocêntrica específica que impõe uma visão estreita, sem perguntar às pessoas envolvidas quais mudanças para as mulheres são feministas e quais estratégias alcançarão a igualdade de gênero. Na mesma perspectiva, para alguns analistas, o conceito está associado ao imperialismo ocidental e à dominação cultural. Essa dupla constituição do feminismo - o fato de que não é culturalmente significativo em certas configurações e o fato de que isso pode trazer uma grande bagagem política com ele - explica a impopularidade com os estudiosos e os praticantes fora do Ocidente. Na verdade, a política de todos os mecanismos de políticas das mulheres das Nações Unidas é simplesmente não usar o termo. Como resultado, nenhum dos documentos políticos da ONU, estudos financiados pela ONU ou relatórios da ONU que mencionam o feminismo. Em vez disso, a "igualdade de gênero", "igualdade entre homens e mulheres" e "o avanço das mulheres" são os termos aceitos e aceitáveis [Tradução própria] (MAZUR; MCBRIDE, 2008, pág. 266). 73 Optei por me referir ao termo porque, mais uma vez, percebi que carecemos de produções referentes à Teoria Política através de uma perspectiva feminista e que as discussões entre o movimento feminista e o Estado ainda precisam ser mais tematizadas sociologicamente e de produções nossas, a partir das experiências locais. Por exemplo, qual o significado que um órgão como a Secretaria de Políticas para as Mulheres tem para a implementação e efetivação das políticas públicas para este segmento? O fato de o órgão ter sido criado na gestão do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República e de ter sido imediatamente extinto com o início do impeachment, quando Dilma Rousseff foi afastada pelo Senado para ser investigada pelo suposto crime de responsabilidade fiscal, é bastante significativo de as políticas de igualdade de gênero não serem prioritárias do governo que assumiu, do vice-presidente Michel Temer. Precisamos, portanto, de produções que discutam a relação do movimento feminista com o governo nas duas últimas décadas. Nesse debate, surge a pergunta: o que se esperar do Estado? Discorrer sobre o que se espera do Estado é sobretudo refletir acerca da ocupação das instituições representativas, como as instâncias políticas ou órgãos que estejam, de certa forma, relacionados à criação ou implementação de políticas públicas. Vera Soares (2004, p. 15) aponta que as mulheres foram excluídas de muitos benefícios da democracia, pois ao se manter numa lógica que as confina ao espaço doméstico, elas são identificadas, basicamente, com identidades relacionadas à maternidade ou, ainda, quando estão fora de casa, como demandantes de ações comunitárias. Nesse contexto, na perspectiva da autora, os movimentos de mulheres tiveram um papel fundamental ao mostrar a necessidade de se construir outro tipo de relação entre homens e mulheres, uma nova ordem social mais plural e democrática. Para isso, o Estado tem um papel importante na condução dessas mudanças (SOARES, 2004, p. 115). Cabe ao Estado, por exemplo, fornecer equipamentos públicos como escolas em tempo integral, creches etc. para que as mulheres consigam exercer o trabalho remunerado, já que o doméstico, muitas vezes invisibilizado, é imposto a elas de uma maneira compulsória. O Estado não pode mais ignorar as desigualdades de gênero e os efeitos na vida das mulheres ou alegar que muitas dessas questões são da esfera privada. As políticas voltadas à equidade devem enfrentar os eixos centrais que constroem a desigualdade cotidianamente, ou seja, a falta de autonomia pessoal e econômica, a desigualdade na divisão sexual do trabalho, na família, a autonomia do corpo e a sexualidade, o racismo e os preconceitos e 74 romper com o silêncio e a invisibilidade das vozes das mulheres (SOARES, 2004, p. 117). Para a construção das políticas, é preciso, sobretudo, ouvir as mulheres e encará-las como sujeitos de direitos ou, como afirma Marta Farah (2004, p. 129), é muito importante que, para além das ações estatais dirigidas às mulheres, seja incorporado um olhar de gênero em todas as políticas públicas. Assumo, aqui, o pressuposto de que a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) foi um marco para o movimento feminista no país e isso ganha uma importante dimensão neste trabalho pelo fato de que o ciclo de conferências analisadas ter sido marcado pela mudança dessa concepção por parte dos governos. Primeiro, pela fusão ministerial promovida ainda na gestão de Dilma Rousseff28; segundo, pela posterior redução do órgão a uma pasta do Ministério da Justiça promovida por Michel Temer, quando ainda estava como presidente interino. Mais ainda, pelo fato não só da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres ter sido marcada pelo processo do afastamento de Dilma Rousseff, mas, de sua abertura ser marcada pelo discurso da presidenta e da então secretária Eleonora Menicucci e encerrada por esta como integrante do movimento feminista, portanto, sociedade civil, pois naquele dia já havia sido publicada a sua exoneração. Esses fatos mostram como o contexto político esteve completamente ligado à criação, à garantia e, posteriormente, à extinção de um órgão responsável diretamente pelas políticas para as mulheres e nos faz pensar sobre quem são os sujeitos que ocupam os espaços de poder. No caso aqui situado, sobre a relação de mulher e poder, Celi Pinto lança algumas perguntas para provocar o debate: [...] uma das questões mais centrais quando o tema é a presença da mulher na arena pública de decisão em termos gerais ou na política é a seguinte: “que mulheres queremos nos cenários políticos?” Todas as mulheres, independente de classe, posição política, comprometimento com as questões de reconhecimento das minorias sem poder? Ou estamos lutando para elegermos, nos parlamentos e nas posições-chave de poder, mulheres feministas que defendem as grandes causas do movimento? (PINTO, 2012, p. 275) Para a autora, o fato de haver mulheres na política não quer dizer que elas tenham sido eleitas a partir de uma plataforma feminista. 28 Em outubro de 2015, a então presidenta Dilma Rousseff promoveu uma reforma ministerial que, dentre diversas mudanças, a SPM acabou por se fundir à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e à Secretaria de Direitos Humanos (SDH) num único órgão: o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. 75 Mesmo assim, é muito mais provável que as demandas por direitos das mulheres sejam difundidas por mulheres do que por homens, independente da posição política, ideológica e mesmo de inserção no movimento feminista (PINTO, 2012, p. 276). Ela aduz a hipótese de que, se metade das 513 vagas na Câmara dos Deputados fosse ocupada por mulheres, é provável que houvesse uma maior discussão sobre o aborto, pois o cenário revelaria um campo de forças muito diferente do visto hoje de minoria feminina. Celi Pinto indaga: [...] I) A democracia liberal representativa tal como existe no Brasil tem potencial para incorporar novos sujeitos? II) Quais são os limites e possibilidades da reforma política? III) Quais são os limites e as possibilidades de um programa de inclusão política? IV) Quando é imperativo repensar o público como um espaço de emancipação? (PINTO, 2012, p. 284). A autora responde que a democracia liberal, tal como a existente no Brasil, apresenta limites estruturais à inclusão de novos sujeitos e, com as mulheres, não poderia ser diferente. Porém, não é possível colocar a responsabilidade da ausência das mulheres na política unicamente nos limites da democracia liberal. Quanto à reforma política, Celi Pinto argumenta que, nos moldes como é pensada, focada na moralidade e aumento da eficácia dos agentes políticos, certamente não vai mudar a estrutura de poder que afasta as mulheres da esfera política. Sobre as últimas questões, ela responde: [...] pensa-se que urge um programa de inclusão das mulheres na vida política, que não pode ser entendido como confecção de cartilhas ou campanhas publicitárias, mas um programa para dar voz às mulheres e construir espaços para que elas falem. Dar a palavra às mulheres, sem construir novas relações de poder. Essa certamente não é a ação suficiente, não é o caminho das pedras, porque não há este caminho, mas certamente é essencial. Não é difícil fazer isso. Trata-se daquelas ações que dependem da vontade política e de arcar com as consequências da desorganização que pode causar. Finalmente, gostaria de concluir afirmando que é imperativo repensar o espaço público como um espaço de emancipação, diria de emancipações no plural, do quarteirão que a política do controle da peste bubônica29 tem limitado às mulheres historicamente no que pese suas grandes e disputadas vitórias (PINTO, 2012, p. 286-287). 29 A autora faz uma analogia às ideias de Foucault que, na obra “Les anormaux”, exemplifica historicamente duas relações de poder: a tentativa de controlar a lepra e à da peste bubônica, ambas na Idade Média. Enquanto a primeira teve um caráter de exclusão e rejeição dos portadores da doença, a segunda foi de inclusão, com uma espécie de reorganização da cidade para se vigiar os doentes. Segundo Pinto (2012, p. 278-279), a metáfora da lepra é bastante ilustrativa do que as mulheres vivenciaram. “Ao ser confinada à casa, paradoxalmente a mulher 76 Ao voltar aos fatos históricos, é possível ver que as décadas de 1980 e 1990 assistiram ao surgimento de uma série de organizações nãogovernamentais (ONGs), fundadas por pessoas de diferentes áreas que viam a possibilidade de atuarem profissionalmente em prol das causas feministas. Tais instituições contaram, principalmente, com financiamentos internacionais ou, muitos casos, estatais, numa espécie de terceirização do serviço. Celi Pinto aponta alguns problemas: [...] esse modelo de funcionamento, ainda que provado ser muito econômico, traz uma séria limitação: muitas vezes, as ações das ONGs são pautadas pela agenda das fundações internacionais em função dos critérios estabelecidos para a dotação de fundos. Outra questão presente nesse tipo de organização é a institucionalização. Mesmo quando uma ONG surge a partir de militantes de um movimento social organizado, os compromissos que ela assume para sua própria sobrevivência transformam completamente o caráter da sua militância. A feminista não deixa de ser feminista no momento em que cria ou se associa a uma ONG, mas passa a falar de um lugar institucional que a diferencia de outras feministas que estão em outras instituições (PINTO, 2003, p. 96). Cristina Buarque e Semira Adler Vainsencher, no artigo “ONGs no Brasil: da filantropia ao feminismo”, remontam às origens do significado de ONGs, que se referem a 1948, quando foi o criado o Sistema Internacional de Cooperação ao Desenvolvimento pela ONU. Foi nomeado: “[...] um amplo espectro de agentes, parcialmente destituídos de interesses econômicos e voltados para a promoção de mudanças sociais, com destaque para o Terceiro Setor” (BUARQUE; VAINSENCHER, 2002, p; 6). Na década de 1980, segundo as autoras, o termo adquiriu o sentido de “[...] agente articulado entre os programas de desenvolvimento e as políticas sociais” (BUARQUE; p VAINSENCHER, 2002. 6). No Brasil, as ONGs integram os novos movimentos sociais30 e são extremamente diversas quanto às temáticas. As estudiosas ressaltam também que a presença das ONGs sinaliza na direção de garantir, dentro da democracia representativa, um lugar para a democracia participativa. Nessa, há espaço para, enfim, as questões de gênero era expulsa dos muros da cidade, entre os quais o mundo público se conformava. Ela, simplesmente, não existia. Quando a constituição de 1891 estabeleceu que todos os cidadãos brasileiros alfabetizados e maiores de 18 anos eram eleitores, ficou claro para o conjunto da população de homens e mulheres e para o regramento jurídico do país que as mulheres não podiam votar” (PINTO, 2012, p. 279). 30 Segundo Robert Brym et al, os novos movimentos sociais surgiram na década de 1970 e têm como novidade os seus objetivos, os tipos de pessoas que eles atraem e o seu potencial de globalização. São novos em relação ao que se entendia antes por movimentos ligados à luta de classes, que era vista como a principal causadora de tensões e articulações coletivas. Há estudiosos que os chamam por “movimentos identitários”, compreendidos por exemplo, pelo feminismo, os direitos humanos, a paz, o meio ambiente, os homossexuais etc. Há, portanto, uma pluralidade de atores políticos e de pautas de reivindicações (BRYM et al, 2006, p. 521-522). 77 serem levadas em consideração (BUARQUE; VAINSENCHER, 2002, p. 16). É o caso do campo de estudo desta tese, não só nos conselhos de direitos, mas no Fórum de Mulheres de Pernambuco, onde estão presentes as ONGs que lidam com as questões feministas e de gênero nas instâncias de democracia participativa. Celi Pinto acrescenta que, enquanto determinadas ONGs, como o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)31 e Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento (Agende)32, atuam na esfera da alta política, há entidades que organizam os movimentos de base, como é o caso da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) (PINTO, 2003, p. 100). Criada inicialmente com o intuito de levar as mulheres para a Conferência de Beijing, depois do evento, passou a fiscalizar o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil através da Plataforma de Ação de Pequim. Em 1999, reuniu em Natal integrantes de 800 grupos de 24 estados. Em 2000, organizou uma plataforma feminista para as eleições (PINTO, 2003, p. 100-101). Em 2011, lançou um balanço das políticas públicas para a igualdade referente aos anos de 2003-2010, que foram marcados pelas duas gestões do expresidente Luis Inácio Lula da Silva (ARTICULAÇÃO..., 2011). Hoje, a AMB está presente em vários estados através de fóruns, redes núcleos, dentre outras e tem em sua composição nove frentes de luta: pelo fim do racismo; por políticas públicas; pelo fim da lesbofobia; pela democratização do poder; pelo fim da violência contra as mulheres; por trabalho e previdência; por justiça socioambiental, pela legalização do aborto e pela democratização do sistema político. Cito aqui as frentes de luta porque, como o FMPE faz parte da referida articulação, é importante que saibamos as áreas de atuação para melhor entendermos as reivindicações frente ao Estado, bem como os sentidos acerca das Conferências de Políticas para as Mulheres. Cabe ressaltar que a AMB integrou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) quando foi feita a pesquisa de campo desta tese (entre junho de 2015 e maio de 2016) e que isso está interligado ao contexto político que o Brasil vivenciava. Em junho de 2016, a mesma se retirou do Conselho junto com mais integrantes de quatro movimentos feministas e duas conselheiras do notório saber devido ao afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff pelo Senado Federal e que, posteriormente, concretizou-se em seu 31 ONG com sede em Brasília que existe desde 1989 e que se pauta nos princípios do feminismo, direitos humanos, democracia e igualdade racial. Disponível em: <www.cfemea.org.br>. Acesso em: 26 jan. 2018. 32 ONG que funcionou de 1998 a 2012 e cuja sede estava situada em Brasília. Tinha como estratégia a articulação e o fortalecimento das organizações de mulheres na promoção e defesa (também conhecido por advocacy) para a garantia de uma ação política eficiente na sensibilização de agentes governamentais e na influência sobre processos de tomada de decisão a partir de uma perspectiva de gênero e visando a implantação de políticas públicas de igualdade e a garantia do cumprimento, pelo Brasil, dos compromissos firmados nos tratados e conferências internacionais (BANDEIRA; VASCONCELOS, 2002). 78 impeachment. Os movimentos alegaram uma série de motivos, dentre eles o de que o impeachment configurou um ataque à institucionalidade democrática (CONSELHO..., 2016). Trabalharei mais detalhamente a questão do contexto político e da relação com os movimentos feministas nos capítulos 4 e 5 quando da análise dos dados. Sobre os movimentos feministas, Pinto reflete que: [...] se, por um lado, as ONGs formadas por mulheres altamente profisionais e especializadas influenciam diretamente parlamentares e atuam junto aos ministérios, por outro, no sentido da implementação de políticas públicas, 800 grupos de mulheres reunidos conseguem votar uma plataforma para os candidatos em uma eleição. Pode-se concluir que há uma capilaridade nesse processo participativo que em muito extrapola os limites dos espaços tradicionais de participação política e tende a agir para pressioná-los (PINTO, 2003, p. 100-101). Esse debate é de interesse na presente tese pelo fato de que tanto os conselhos de direitos da mulher estudados - do Recife e de Pernambuco – são compostos por ONGs quanto o Fórum de Mulheres de Pernambuco é formado por organizações e coletivos feministas. Carmen Silva, recorrendo a Margareth Rago, destaca a criação nas décadas de 1970 e 1980 de organizações feministas que tinham relações com movimentos sociais e organizações políticas de esquerda. Segundo ela: No Nordeste, os primeiros grupos feministas deste período se organizam em Recife, Ação Mulher, e em João Pessoa, Maria Mulher. Realizam, em articulação com outros grupos, quatro Encontros Feministas do Nordeste, sendo o primeiro em 1980. Do Ação Mulher, emergem as primeiras organizações políticos profissionais: o SOS Corpo Grupo de Saúde da Mulher e a Casa da Mulher do Nordeste, ambas sediadas no Recife. Do Maria Mulher, surge a Cunhã Coletivo Feminista. Esses coletivos, além de atuarem politicamente como parte do movimento feminista, se voltam para a pesquisa e educação popular com mulheres nos bairros de pereferia e na zona rural, em especial nas áreas de sexualidade, saúde e trabalho (SILVA, 2016, p. 71). A Casa da Mulher do Nordeste Cabe foi fundada em 1980. O SOS Corpo, atualmente, tem como parte do seu nome “Instituto Feminista para Democracia” e foi criado no ano seguinte, em 1981. Chamei a atenção para ambas as instituições pelo fato de integrarem o FMPE e, assim, conhecer quem são as entidades que fazem parte do movimento que será estudado na presente tese. Feita toda essa discussão, temos subsídios para passarmos ao 79 debate sobre as políticas públicas para as mulheres e as próprias conferências do referido segmento. Sintetizando, esse capítulo foi estruturado de uma forma que levasse o leitor ou a leitora a se situar sobre que perspectiva teórica vai guiar esta tese. Frente a isso, foi colocado o debate da teoria feminista pós-estruturalista. A partir do capítulo 4, trarei a discussão pósestruturalista a partir do viés da democracia. Para chegar nele, no entanto, precisei colocar o olhar do feminismo. Ficou claro que quando abordar sobre o sujeito, estarei falando de “posições de sujeito”, tal qual Laclau e Mouffe (2015) trabalham e sem o peso do essencialismo e do universalismo (MOUFFE, 1999a; BUTLER, 1998, 2010; SCOTT, 1999). As questões postas no tópico 2, sobre Teoria Política Feminista, podem parecer familiares ou mesmo óbvias para quem está lendo, pois as desigualdades aqui relatadas são bastante comuns numa sociedade tão patriarcal quanto a brasileira. Porém, o que essa perspectiva teórica faz é trazer para o campo acadêmico esses problemas para indagar-se acerca do que os permeiam. O tópico foi pensado no intuito de refletirmos juntos e juntas sobre, frente a realidades ainda tão desiguais, quais são as reivindicações dos movimentos feministas no país e quais são os sentidos atribuídos às Conferências de Políticas para as Mulheres, estando ligado ao item seguinte. As questões que inspiram as análises na Teoria Política Feminista são as que levam o movimento social no Brasil ao seu surgimento, na década de 1970, e às suas lutas, seja contra a ditadura militar, seja pela anistia, pela redemocratização e, posteriomente, pela aprovação de suas propostas na Constituição de 1988 e, até hoje, continua as impulsionando. É isso que nos leva à próxima discussão acerca da reivindicação por políticas públicas e sua relação com as conferências. 80 3 Políticas públicas para as mulheres e as conferências Feita a discussão acerca da perspectiva teórica feminista aqui utilizada, bem como das raízes do movimento feminista no Brasil e de sua relação com o Estado, inicio neste capítulo uma discussão sobre os significados das políticas públicas de gênero e, especificamente, de políticas para as mulheres, mote das conferências analisadas na presente tese. Esse debate se faz necessário para se entender qual é a relação entre as reivindicações dos sujeitos políticos que integram a sociedade civil e a incorporação das mesmas às ações governamentais. As próprias conferências de políticas públicas são entendidas como um espaço de participação da sociedade na formulação de políticas públicas por diversos segmentos, ou seja, é uma forma de inserir as demandas na agenda governamental ou, pelo menos, de influenciá-la. É preciso discutir por que se fazem necessárias políticas específicas para este segmento. Assim, teremos subsídios para entender os processos discursivos que constituem o objeto de estudo desta tese. Primeiro, é importante sabermos as diferenças e conexões entre políticas de gênero e políticas para as mulheres. Enquanto as primeiras colocam em xeque as relações de poder entre homens e mulheres, as segundas estão focadas em questões específicas que atingem o referido segmento. É relevante essa discussão para compreendermos o que as integrantes dos diferentes espaços pesquisados (Conselhos dos Direitos da Mulher do Recife e de Pernambuco, bem como o Fórum de Mulheres de Pernambuco) expressam por políticas públicas, pois, a depender da concepção da política, é possível que, ao invés de se combater as desigualdades de gênero, acabem por reforçá-las. Por exemplo, ao essencializar o papel atribuído às mulheres como cuidadoras ou responsáveis pela criação dos filhos. Além disso, o presente capítulo objetiva trazer à tona a discussão sobre o histórico de criação dos organismos de políticas para as mulheres e a sua relação com a implementação de políticas. Esse debate é de extrema importância para compreendermos qual é o papel das Conferências de Políticas para as Mulheres. Nessa discussão, faz-se necessária também a abordagem do contexto político em que o Brasil tem estado inserido e que tem impactos diretos em políticas para os segmentos chamados de “minorias”, como é o caso das mulheres, dos negros, da população lésbica, gay, bissexual e transexual (LGBT). É impossível não abordar esse contexto, pois a pesquisa de campo aconteceu entre junho de 2015 e maio de 2016, tendo sido marcada, portanto, pelo processo de preparação e do desfecho do 81 impeachment contra a presidenta eleita Dilma Rousseff. Cabe destacar que a IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres foi marcada por seu último discurso público antes do afastamento pelo Senado Federal, que aconteceu no dia seguinte, em 11 de maio de 2016. Essa discussão será o mote para o capítulo seguinte, que versará acerca da construção do corpus de pesquisa. 3.1 O papel do Estado brasileiro e as políticas públicas Desde o período do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, muito se tem visto sobre reformas e cortes no orçamento governamental em áreas como saúde e educação através da Emenda Constitucional de número 95, aprovada em dezembro de 2016 e que ficou conhecida por congelar os investimentos nas referidas áreas por 20 anos ou ainda a reforma trabalhista. Essas mudanças colocam em evidência o debate acerca do papel do Estado como aquele que deve assegurar os direitos sociais e o bem estar da população. Nesse contexto, é importante entender as diferenças de concepções de seu papel pelas diferentes doutrinas políticas. Para os liberais, por exemplo, a referida instituição não deve planejar a economia, mas sim garantir condições para que exista uma sociedade igualitária, como a manutenção da ordem e a garantia de que as leis sejam cumpridas (Instituto Liberal do Rio de Janeiro, 1995, p. 4 apud GROS, 2004, p. 152). A autora resume a perspectiva da seguinte forma: As propostas concretas de políticas sociais dos institutos para o Brasil devem respeitar algumas determinações, entre elas: a redução do gasto público; a reorientação dos recursos para os investimentos sociais, sobretudo aqueles consumidos pela população mais pobre; e a ênfase na capacidade para o trabalho no sentido de propiciar a incorporação dos mais pobres no processo econômico. Essas determinações regem as propostas de políticas para a previdência, a saúde e a educação (GROS, 2004, p. 153). Trata-se de uma abordagem que visa retirar do Estado a função de prestador de serviços, passando-a à iniciativa privada. Já a socialdemocracia se configurou a partir das primeiras décadas do século XX na Europa como uma alternativa à contestação revolucionária ao capitalismo, a qual era defendida por comunistas históricos e representou um ajuste do capitalismo que pudesse ser favorável aos trabalhadores ao invés de combater frontalmente o sistema. De acordo com Marco Aurélio Nogueira (2015, p. 68), a socialdemocracia, ao avançar politicamente e conquistar governos, converteu-se em um ator 82 de peso e contribuiu de modo decisivo para modelar o capitalismo e impulsionar a criação do Estado de bem-estar. O autor reitera que: A própria ideia social-democrática evoluiu com o tempo. Oscilou, por exemplo, entre esforços de nacionalização/estatização das empresas e de socialização da propriedade privada e posturas mais flexíveis e tolerantes com o mercado, entre o planejamento estatal e o keynesianismo clássico, com a adoção de medidas anticíclicas e políticas de pleno emprego (NOGUEIRA, 2015, p. 69). A partir da década de 1980, o modelo perdeu força em meio às fortes modificações nos Estados, nos sistemas políticos e nas políticas de proteção social em virtude da reorganização global do sistema capitalista no fim da Guerra Fria. Nesse modelo, as políticas públicas são vistas como uma intervenção estatal com o intuito de se resolverem situações sociais tidas como problemáticas, levando-se em consideração “[...] o peso de diferentes aspectos da economia, da estrutura social, do modo de vida, da cultura e das relações sociais” (NOGUEIRA, 2015, p. 71). Tratou-se da “[...] institucionalização de formas sustentáveis de articulação entre trabalho e bem-estar” (NOGUEIRA, 2015, p. 73). Com o seu enfraquecimento, impôs-se gradualmente o neoliberalismo e, com ele, a ameaça aos serviços sociais. As mudanças no contexto internacional, vinculadas à globalização e reorganização do sistema capitalista, têm forte influência em países do chamado Terceiro Mundo, como o Brasil e se apresenta por meio de políticas de ajuste estrutural, fruto de acordos assinados entre os governos e as Instituições Financeiras Multilaterais (IFMs). São condições para empréstimos junto ao Banco Mundial, ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e bancos regionais, a exemplo do Banco Interamericano para o Desenvolvimento (BID) (FRANCH; BATISTA; CAMURÇA, 2003, p. 16). Ou, ainda: Tais políticas seguem um padrão semelhante que compreende, entre outros aspectos, a redução da responsabilidade social do Estado, a ênfase na estabilidade da economia, a abertura dos mercados na estabilidade da economia, a abertura dos mercados nacionais para o capital internacional e a privatização das empresas estatais (FRANCH; BATISTA; CAMURÇA, 2003, p. 15-16). As autoras ressaltam que essas políticas afetaram a organização do trabalho e fora de casa, a organização da produção e distribuição da riqueza, além de outros aspectos do cotidiano. 83 [...] os efeitos das mudanças provocadas pelo ajuste estrutural não são iguais para todas as partes nem para todas as pessoas. Em geral, as elites econômicas beneficiam-se com essas políticas, pois elas abrem novas oportunidades de negócios para as economias desenvolvidas com custos mais baixos e lucros maiores. Já as classes médias e as populações mais pobres de todos os países experimentam uma considerável piora nas suas condições de vida, além do crescente desrespeito aos seus direitos econômicos, sociais e culturais (FRANCH; BATISTA; CAMURÇA, 2003, p. 17). Tais políticas se consolidaram como modelo econômico na década de 1980 e, inicialmente, foram adotadas pelos países europeus, passando posteriormente aos latinoamericanos e é de interesse no presente trabalho por, desde a década de 1990, regerem as políticas no Brasil por meio dos ajustes estruturais exigidos para serem concedidos os empréstimos. Os efeitos foram vivenciados já na gestão de Fernando Collor e consolidados nas de Fernando Henrique Cardoso. As consequências geradas por esse tipo de política puderam ser sentido ainda no início do governo de Luis Inácio Lula da Silva. O pressuposto básico das políticas de ajuste – ou seja, a crença em que essas políticas se baseiam – é que as necessidades da economia estão à frente das demandas dos grupos excluídos ou em desvantagem. Isso é assim porque, para o ideário neoliberal, a ideia de justiça social é uma ideia irrelevante e o direito à participação política (que é o meio pelo qual se organizam as demandas dos grupos sociais) é muito menos importante que os interesses de mercado (FRANCH; BATISTA; CAMURÇA, 2003, p. 26). Segundo as autoras, a proposta de lei orçamentária à época seguiu as determinações do Ajuste e do FMI, com a prioridade do pagamento da dívida interna e externa em detrimento de outros gastos, além de reduzir os investimentos e as despesas com programas sociais. É importante ressaltar os princípios que regem essas políticas e que estão alinhados com o modelo neoliberal de gerir o país: As principais medidas que conformam as políticas de ajuste são: desregulamentação dos mercados, abertura comercial e financeira, privatização do setor público de serviços, reforma do Estado, flexibilização do mercado de trabalho e estabilização monetária, todas voltadas para a liberalização da economia (FRANCH; BATISTA; CAMURÇA, 2003, p. 32). É sabido que esse ideário é o de diversos partidos e de políticos brasileiros e que, mesmo nos governos vistos como de esquerda, como os de Lula e Dilma Rousseff, do Partido 84 dos Trabalhadores, houve muita pressão de diversos setores para que o país continuasse na dependência do FMI ou, ainda, que se aprovassem reformas de cunho liberal. Na perspectiva da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), graças às mobilizações, elas não passaram. A primeira Reforma da Previdência do governo Lula realizou-se, em 2003, com base nos mesmos princípios neoliberais de retração de direitos, focada no regime dos servidores públicos. Os movimentos de mulheres e feministas tomaram parte da luta pela universalização do direito à previdência social [....] Em 2007, a segunda proposta de Reforma da Previdência no governo Lula, sob o falso argumento do déficit previdenciário e do envelhecimento da população, colocou em ameaça os direitos já conquistados em 1988 e, principalmente, os das mulheres. Dentre as propostas em discussão, colocadas na pauta pelo governo, com forte apoio do empresariado e da mídia comercial, estava a mudança no regime de pensões, o fim da diferença de idade entre homens e mulheres para acesso à aposentadoria, a desvinculação do valor da aposentadoria rural do salário mínimo e, ainda, a transferência desse direito para a política de assistência social (ARTICULAÇÃO..., 2011, p. 55). De acordo com a AMB, na segunda proposta de reforma, os movimentos de mulheres não tiveram vaga no Fórum Nacional da Previdência Social, criado em 2007 e que reunia diversos setores para discutir a temática. Após mobilizações junto à Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), os movimentos conseguiram uma vaga na condição de quem apenas observa. Como alternativa, os movimentos de mulheres se articularam no Fórum Paralelo e Itinerante das Mulheres em Defesa da Previdência Social, que durou durante todo o período do oficial, de abril a outubro de 2007. “Como resultado, conseguimos barrar a proposta e resistimos à destituição de direitos. A proteção social do trabalho informal e doméstico, porém, não avançou” (ARTICULAÇÃO..., 2011, p. 56). No entanto, ainda na gestão de Dilma Rousseff, não se conseguiu impedir as consequências negativas, como a reforma ministerial que aconteceu em outubro de 2015, em que se extinguiram oito ministérios, 30 secretarias e três mil cargos comissionados33. Isso remete ao que foi publicado em 2001 e segunda edição em 2003, mas que continua atual: Os movimentos sociais, sobretudo os movimentos de mulheres, vêm denunciando há tempos que as políticas de ajuste empobrecem rapidamente as mulheres. O aumento da pobreza vê-se estimulado pelos cortes na área social, que sobrecarregam o cotidiano das mulheres com a execução de 33 A quantidade de ministérios passou de 39 para 31. Os órgãos extintos foram: Secretaria de Assuntos Estratégicos; Ministério das Relações Internacionais; Secretaria Geral; Gabinete de Segurança Institucional; Secretaria Micro e Pequena Empresa; Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres; Secretaria de Políticas de Promoção à Igualdade Racial; Ministério dos Direitos Humanos. Além da extinção e fusões, houve trocas dos que estavam à frente dos órgãos (ENTENDA..., 2015). 85 trabalho não remunerado, diminuindo seu tempo para aumentar sua própria renda e da família (FRANCH; BATISTA; CAMURÇA, 2003, p. 32). As autoras acrescentam que, com as políticas de ajuste estrutural, o Estado abandona progressivamente as suas atribuições e um dos efeitos é o “alargamento” das funções da família, que absorvem para si os custos dos cortes nas políticas sociais, principalmente da saúde e da previdência; As mulheres acabam assumindo o ônus do cuidado, que é socialmente colocado como “atribuição natural feminina”. Conforme abordaremos mais adiante, vê-se o papel do Estado no combate ou, por outro lado, no reforço às desigualdades de gênero. Olhar para esse contexto, vivenciado sobretudo na década de 1990, nos faz compreender o quanto as lutas por direitos e políticas sociais são marcadas por avanços, mas também por tentativas de recuos. No caso do Brasil, é interessante perceber que a Constituição de 1988 é a que mais sofreu emendas em toda a história constitucional brasileira para garantir que o Ajuste fosse desenvolvido no país. Outra maneira de governar ignorando os pactos sociais, os mecanismos democráticos e a insatisfação popular é usando Medidas Provisórias (FRANCH; BATISTA; CAMURÇA, 2003, p. 41). É importante ressaltar que o contexto de risco em relação à perda de direitos das mulheres fez parte do início do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Eu estava, na condição de pesquisadora, na III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em dezembro de 2011, e pude presenciar diversos boatos em torno do fechamento da SPM. Em seu discurso, Dilma Rousseff afirma que não havia possibilidade alguma disso acontecer e que se tratavam de inverdades divulgadas pelos jornais e que o compromisso do governo era aprofundar as políticas de igualdade de gênero no país (BRASIL, 2013a, p. 11). Na publicação divulgada pela AMB durante o evento, lê-se que: Estamos às vésperas da anunciada reforma ministerial do Governo Dilma, com propostas e “senões” sendo colocados no debate para justificar propostas de rebaixamento do status das secretarias especiais, inclusive do Ministério da Mulher/SPM. Além do mais, os cortes de gastos deste ano, a possibilidade de reedição da Desvinculação das Receitas da União – DRU e a redução do orçamento para 2012 das secretarias especiais, em debate no Congresso Nacional, estão fragilizando as políticas para a igualdade e de justiça social (CAMURÇA, 2011, p. 12). 86 Sílvia Camurça chama a atenção, inclusive, para o espaço cedido aos fundamentalistas e antifeministas a partir da Carta ao Povo de Deus, escrita por Dilma Rousseff na ocasião da eleição presidencial de 2010, em que ela discorre, dentre diversos aspectos, sobre o papel das igrejas em defesa da família e da sociedade. A então candidata expressa que cabe ao Congresso Nacional definir questões de temas que envolvam valores éticos e fundamentais, muitas vezes contraditórios, como formação familiar, aborto, uniões estáveis e outros temas e deixa claro em uma de suas últimas frases: Assim sendo, meus amigos, quero terminar reafirmando minha posição de que qualquer ação só é eficaz com determinação e fé e que é a esperança que motiva a nossa caminhada. Rogo a Deus que me dê forças para cumprir minha missão, para que juntos possamos transformar nossa paixão em ação em favor desse nosso Brasil que está nascendo (ROUSSEFF, 2010). Se Lula, através da Carta ao Povo Brasileiro, sobre a qual falarei mais adiante no presente capítulo, deixou claro sua pretensão de conciliação de classes, Dilma Rousseff parece ter demonstrado uma tentativa de mostrar aos setores mais tradicionais, representados pelas religiões, que não havia motivo para pânico, pois ela não iria se meter em questões polêmicas no plano dos valores da sociedade. O problema para os movimentos feministas e de mulheres é que são pontos que as atingem diretamente. A luta pela legalização do aborto, histórica para muitos coletivos, não contaria com o apoio de uma mulher à frente do comando do país, assim os casamentos homoafetivos também pareciam não ter uma aliada. É interessante perceber que, ironicamente, foram essas forças religiosas uma das responsáveis pela sua destituição do cargo. Basta conferir que, na votação que definiu a abertura do processo do impeachment na Câmara dos Deputados, ouviam-se muito dos votantes discursos do tipo: “por Deus, pela minha família, eu voto sim”. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, concluído em agosto de 2016, o que se tem visto é justamente o uso de Medidas Provisórias, bem como Projetos de Emendas Constitucionais para promover o que se configura como reforma liberal no Brasil sem precisar passar pelo crivo das urnas. Isso ficou bastante evidente por meio da reforma do Ensino Médio, posta inicialmente via Medida Provisória n° 346/2016 e posterior Lei n° 14.415/2016; a Emenda Constitucional n° 95/2016, que congelou os investimentos em saúde e educação por 20 anos; a reforma que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho sob a Lei n° 13.467/2017; essa lógica de encolhimento do Estado permaneceu com a tentativa de se colocar a reforma da previdência que, por não ganhar adesão o suficiente para ser aprovada 87 pelo Legislativo, acabou sendo adiada por tempo indeterminado. Esse contexto explicita as disputas em torno do que se entende pelo papel do Estado na implementação de uma série de políticas sociais, dentre elas, as que interferem em alguma medida nas desigualdades de gênero. É importante termos esses panoramas em mente para que seja feita a leitura das reivindicações dos movimentos de mulheres e feministas no processo de construção das conferências de políticas para o referido segmento. A garantia de direitos se dá através de políticas públicas que, segundo Celina Souza (2006, p. 24), apesar de existirem diversas concepções sobre, a mais conhecida é a de H. Laswell, um das referências em estudos de Comunicação, que diz que decisões e análises sobre política pública implicam responder quem ganha o que, por que e que diferença faz. A autora situa que: [...] definições de políticas públicas, mesmo as minimalistas, guiam o nosso olhar para o lócus onde os embates em torno de interesses, preferências e ideias se desenvolvem, isto é, os governos. Apesar de optar por abordagens diferentes, as definições de políticas públicas assumem, em geral, uma visão holística do tema, uma perspectiva de que o todo é mais importante do que a soma das partes e que indivíduos, instituições, interações, ideologia e interesses contam, mesmo que existam diferenças sobre a importância relativa destes fatores (SOUZA, 2006, p. 25). Souza (2006, p. 22) explica que as políticas públicas, enquanto área de conhecimento e disciplina acadêmica, nasceram nos Estados Unidos, não tendo uma relação com as bases teóricas do papel do Estado. A ênfase, portanto, é dada aos estudos sobre a ação dos governos. Já na Europa, a área das políticas públicas surgiu como um desdobramento das teorias explicativas sobre o papel do Estado e se concebe uma das suas importantes instituições, o governo, como o produtor, por excelência, de políticas públicas. Essa segunda abordagem é particularmente importante nesta tese porque, conforme vimos no capítulo anterior, o movimento feminista no Brasil tem uma ligação íntima com a luta pela anistia e pelo fim da ditadura militar e, posteriormente, pela redemocratização e Constituição. É um movimento social que tem raízes nas lutas políticas travadas pela esquerda e que demandou políticas de Estado. Isso ficou bastante nítido, por exemplo, no processo constituinte e na Conferência de Beijing, em que o país foi signatário da perspectiva de gênero em suas políticas e, durante a primeira gestão do governo Lula, através das reivindicações pela criação de um órgão específico com status de ministério para criar e implementar as políticas para as mulheres. Mas, mesmo que o movimento feminista lute por políticas por parte do Estado, é preciso 88 sobretudo estarmos atentos ao fato de que muitas políticas dependem de governos. Isso é observável nas gestões anteriores e posterior aos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff na Presidência da República: naquelas, não havia um órgão de política para as mulheres e, nessa, o ministério responsável foi extinto imediatamente após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff para as investigações no Senado Federal, que culminaram no seu impeachment. A autora pontua que as políticas públicas têm repercussão na economia e nas sociedades e, por isso, qualquer teoria que as abordem precisa explicar as inter-relações entre Estado, política, economia e sociedade. Pode-se, então, resumir política pública como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar o governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A formulação de políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real (SOUZA, 2006, p. 26). Evelina Dagnino (2004, p. 195) argumenta que uma das dimensões de crise latinoamericana é discursiva, decorrente do que ela denomina como “confluência perversa” entre o projeto neoliberal que se estabeleceu nos países e o democratizante participatório, que emergiu dos regimes autoritários e dos esforços nacionais de aprofundamento da democracia. Em sua perspectiva, ambos os projetos exigem uma sociedade civil ativa e propositiva. Nisso reside a perversidade, pois os efeitos não são evidentes de uma maneira imediata e se revelam diferentes do que se poderia esperar. Por um lado, a constituição dos espaços públicos representa o saldo positivo das décadas de luta pela democratização, expresso especialmente –mas não só– pela Constituição de 1988, que foi fundamental na implementação destes espaços de participação da sociedade civil na gestão da sociedade. Por outro lado, o processo de encolhimento do Estado e da progressiva transferência de suas responsabilidades sociais para a sociedade civil, que tem caracterizado os últimos anos, estaria conferindo uma dimensão perversa a essas jovens experiências, acentuada pela nebulosidade que cerca as diferentes intenções que orientam a participação. Essa perversidade é claramente exposta nas avaliações dos movimentos sociais, de representantes da sociedade civil nos Conselhos gestores, de membros das organizações não governamentais (ONGs) envolvidas em parcerias com o Estado e de outras pessoas que de uma maneira ou de outra vivenciam a experiência desses espaços ou se empenharam na sua criação, apostando no potencial democratizante que eles trariam (DAGNINO, 2004, p. 198). 89 A autora remete aos anos 1990 para argumentar que havia uma inflexão nas relações entre o Estado e os setores da sociedade civil que estavam comprometidos com projeto participativo democratizante. Diferente da década de 1980, havia uma aposta de ação em conjunto com o Estado (DAGNINO, 2004, p. 201). Um exemplo claro disso foi a relação entre as organizações não-governamentais (ONGs) e o Estado, em que aquelas passaram cada vez mais a cumprir uma função que caberia a esse. Com a lógica de enxugamento das funções estatais, típico do neoliberalismo, elas acabaram sendo vistas como as parceiras ideais. Isso gera uma situação que pode ser considerada complicada: de um lado, as ONGs são financiadas por agências internacionais, ficando de certa forma com uma autonomia política comprometida; de outro, do Estado, que as contratam como prestadora de serviços. Porém, são dependentes da sociedade civil, setor da qual se intitulam representantes, ou de setores sociais de cujos interesses são representantes. Segundo Dagnino, suas atuações acabam traduzindo fundamentalmente os desejos de suas equipes diretivas, ainda que estejam bem intencionadas (DAGNINO, 2004, p. 204). Isso está relacionado ao que ficou conhecido como “onguização” dos movimentos sociais e que foi trabalhado no primeiro capítulo desta tese. Tal situação aponta para um deslocamento de sentido de representatividade, que pode ser evidenciada, no caso das ONGs, na situação em que o Estado as vê como representantes da sociedade civil em determinadas áreas. “Esse deslocamento da noção de representatividade não é inocente nem em suas intenções nem em suas concepções políticas” (DAGNINO, 2004, p. 204). A autora dá o exemplo do Conselho da Comunidade Solidária, que foi criado na gestão de Fernando Henrique Cardoso e ficou conhecido como o Centro das Políticas Sociais em seu governo, em que os representantes da sociedade civil eram indivíduos com alta “visibilidade”34 na sociedade, convidados para compor como artistas de TV, pessoas que escreviam com frequência na mídia impressa (DAGNINO, 2004, p. 205). Essa discussão é interessante aqui por dois fatores. O primeiro é que muitas entidades que compõem o Fórum de Mulheres de Pernambuco são ONGs e que, inclusive, nasceram nas décadas de 1980 e 1990 e que têm financiamentos internacionais. É possível questionarmos se, ao invés de os movimentos sociais terem se tornados ONGs – o que ficou conhecido por “onguização” dos movimentos sociais - , não ocorreu o contrário – as ONGs se transformaram em movimentos sociais. Por exemplo, Articulação de Mulheres Brasileiras, que é uma instância do movimento feminista, por exemplo, é composta por diversas ONGs, como o SOS Corpo (Recife), o CFemea (Brasília) e o Cunhã (João Pessoa); a Sempreviva Organização 34 Destaque de Evelina Dagnino. 90 Feminista (São Paulo) compõe a Marcha Mundial das Mulheres; diversas ONGs constroem a Articulação Recife de Luta, que atua na elaboração do Plano Diretor da Cidade do Recife. O segundo aspecto é de que os Conselhos dos Direitos da Mulher de Pernambuco e o nacional têm três vagas reservadas para conselheiras de notório conhecimento em questões de gênero, que são indicadas pelas próprias conselheiras (BRASIL, 2014b). Levanto a reflexão sobre a legitimidade de representação num contexto de assento no conselho, instância do controle social, dar-se dessa forma ou, dito de outro modo, quais são os parâmetros que definem quem tem notório conhecimento na área. Dagnino (2004, p. 205) dá a esse fenômeno o nome de “deslocamento da noção de representatividade”, que está ligado diretamente à noção de participação. Para ela, a mesma também passou pelo deslocamento e, de um lado, era vista a partir de uma perspectiva privatista e individualista, através da ideia da solidariedade. Por outro lado, muitas instituições passam a assumir funções e responsabilidades de implementação de políticas públicas, que deveriam ser do Estado. Ficaram conhecidas por “organizações sociais”35, denominação dada na Reforma Gerencial do Estado, em 1995. Tratou-se de uma maneira de designar a forma de participação da sociedade civil nas políticas públicas, instituídas pela Constituição Federal de 1988. Além disso, a sociedade civil é excluída dos poderes de decisão, reservados ao “núcleo estratégico”36 do Estado (DAGNINO, 2004, p. 206). A pesquisadora, por fim, trabalha a noção de cidadania como também tendo passado pelo deslocamento ou, mais especificamente, pela apropriação neoliberal. Esta perspectiva se contrapõe à noção construída a partir do final da década de 1970 e início da seguinte. Como afirma a autora, esta noção de cidadania estava: Inspirada na sua origem pela luta pelos direitos humanos (e contribuindo para a progressiva ampliação do seu significado) como parte da resistência contra a ditadura, essa concepção buscava implementar um projeto de construção democrática, de transformação social, que impõe um laço constitutivo entre cultura e política. Incorporando características de sociedades contemporâneas, tais como o papel das subjetividades, o surgimento de sujeitos sociais de um novo tipo e de direitos também de novo tipo, bem como a ampliação do espaço da política, esse projeto reconhece e enfatiza o caráter intrínseco da transformação cultural com respeito à construção da democracia. Nesse sentido, a nova cidadania inclui construções culturais, como as subjacentes ao autoritarismo social, como alvos políticos fundamentais da democratização. Assim, a redefinição da noção de cidadania, formulada pelos movimentos sociais, expressa não somente uma estratégia política, mas também uma política cultural (DAGNINO, 2004, p. 206-207). 35 36 Idem. Idem. 91 A noção de cidadania passa a ser constituída pela de direitos, que já incluía os formais, mas também o direito à autonomia sobre o próprio corpo, à proteção do meio ambiente, à moradia etc., além de não apenas o direito à igualdade, mas sobretudo o direito à diferença. Outra característica é que essa nova cidadania requer agentes políticos ativos que definem o que consideram ser seus direitos e lutam pelo seu reconhecimento enquanto tal. Em sua concepção, é uma cidadania dos excluídos, dos não cidadãos. É transcendida uma reflexão central no conceito liberal: [...] A reivindicação ao acesso, inclusão, participação e pertencimento a um sistema político já dado. O que está em jogo, de fato, é o direito de participar na própria definição desse sistema, para definir de que queremos ser membros, isto é, a invenção de uma nova sociedade (DAGNINO, 2004, p. 207-208). Desta forma, cidadania não está limitada às relações com o Estado, mas sim dentro da própria sociedade. Segundo Dagnino, essas noções nortearam não só as práticas políticas dos mais variados movimentos sociais, mas as mudanças institucionais, a exemplo da Constituição de 1988. Porém, com a interferência neoliberal no Brasil, o conceito passou pelo processo de deslocamento, sendo associado ao mercado. Tornar-se cidadão passa a significar a integração individual ao mercado, como consumidor e como produtor. Esse parece ser o princípio subjacente a um enorme número de programas para ajudar as pessoas a “adquirir cidadania”, isto é, aprender como iniciar microempresas, tornar-se qualificado para os poucos empregos ainda disponíveis, etc. Num contexto onde o Estado se isenta progressivamente de seu papel de garantidor de direitos, o mercado é oferecido como uma instância substituta para a cidadania (DAGNINO, 2004, p. 209). A autora dá o exemplo dos direitos trabalhistas, que, em nome da livre negociação entre patrões e empregados, estão sendo flexibilizados, pois são vistos como obstáculos ao livre funcionamento do mercado. A ameaça a esses direitos fez parte mesmo nas gestões consideradas de esquerda na Presidência da República e, no segundo mandato de Dilma Rousseff, tornou-se ainda mais explícita em sua tentativa de manter a governabilidade ao ceder ministérios para pessoas com trajetórias ligadas ao neoliberalismo, como Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, em janeiro de 2015. Levy já integrou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e também fez parte do governo de Fernando Henrique Cardoso. Podemos ver essa tentativa também na nomeação de Gilberto Kassab, do Partido Social Democrático (PSD), indicado para o Ministério das Cidades. Ambos os exemplos são de pessoas ligadas ao que se considera como centro-direita no país. Esse contexto de tentativa de conciliação de 92 interesses impactou diretamente nos órgãos de execução de políticas para as minorias, como a população negra e as mulheres. Isso ficou bastante claro recentemente com o cancelamento de mais de R$ 21 milhões do orçamento destinado ao Programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência” através de Medida Provisória de 10 de abril de 2018. Isso atingiu, inclusive, as verbas destinadas à construção da Casa da Mulher Brasileira37 e de Centros de Atendimento à Mulher nas Regiões de Fronteira Seca, no município de Niterói (no Rio de Janeiro). O mesmo procedimento de cortes aconteceu com as áreas de pesca e aquicultura; agricultura familiar; reforma agrária e governança fundiária; Sistema Único de Saúde; transporte aquaviário; transporte terrestre; Ministérios dos Transportes, Portos e Aviação Civil. Por outro lado, programas de democracia e aperfeiçoamento da gestão pública; agropecuária sustentável; esporte, cidadania e desenvolvimento; desenvolvimento regional e territorial; desenvolvimento e promoção do turismo tiveram seus orçamentos suplementados num total de mais de R$ 260 bilhões retirados dos demais programas (BRASIL, 2018). Esse é um dado interessante de que áreas são prioritárias para o governo, cabendo destacar que as políticas para as mulheres não estão entre elas. Evelina Dagnino explica que é a formulação de políticas sociais com respeito à pobreza e à desigualdade em que se evidenciam de forma mais explícita os avanços dessas versões neoliberais de cidadania: Com o avanço do modelo neoliberal e a redução do papel do Estado, as políticas sociais são cada vez mais formuladas estritamente como esforços emergenciais dirigidos a determinados setores sociais, cuja sobrevivência está ameaçada. Os alvos dessas políticas não são vistos como cidadãos, com direitos a ter direitos, mas como seres humanos “carentes”, a serem atendidos pela caridade, pública ou privada. Ao serem confrontados com essa visão, reforçada pela escassez de recursos públicos destinados a essas políticas e pela gravidade e urgência da situação a ser enfrentada, setores da sociedade civil chamados a participar em nome da “construção da cidadania” com frequência subordinam sua visão universalista de direitos e se rendem à possibilidade concreta de atender um punhado de desvalidos (DAGNINO, 2004, p. 211-212). 37 É um centro que integra diversos serviços de atendimento à mulher em situação de violência, como acolhimento e triagem; apoio psicossocial; delegacia; Juizado; Ministério Público, Defensoria Pública; promoção de autonomia econômica; cuidado das crianças – brinquedoteca; alojamento e central de transportes (ESPAÇO..., 2015). As duas primeiras unidades foram de Campo Grande, em janeiro de 2015 e Brasília, em junho do mesmo ano, ainda na gestão de Dilma Rousseff. As outras unidades são Curitiba (junho de 2016) e São Luís (novembro de 2017). 93 Embora Dagnino tenha escrito o texto em 2004, isso ficou bastante evidente na criação do Programa Criança Feliz, que é: “[...] de caráter intersetorial, com a finalidade de promover o desenvolvimento integral das crianças na primeira infância, considerando sua família e seu contexto de vida” (BRASIL, 2016b). O público-alvo do Programa são gestantes, crianças de até seis anos e suas famílias, que sejam beneficiárias do Programa Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada. O referido programa, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e coordenado pela primeira-dama Marcela Temer, ao não ter como foco alterar a concentração de renda ou problemas mais estruturais dessa família, pode ser associado a uma política assistencialista e que considera a mulher apenas pelo olhar da maternidade, no que configura, conforme veremos, uma política que não está direcionada às relações de gênero, mas apenas às mulheres, contribuindo para que desigualdades de gênero permaneçam inalteradas. É possível ver a seguinte fala da primeira-dama no lançamento do Programa: Cada vez que beijamos nossos filhos pequenos, que conversamos com eles, cada vez que os carregamos nos braços, lemos uma história ou cantamos uma canção de ninar, estamos ajudando no seu desenvolvimento (ARAÚJO, 2016). Trata-se de um deslocamento do sentido de políticas públicas. Vê-se a responsabilidade dos cuidados com a criação de uma maneira privada. Pelo Programa, cabem unicamente às famílias as responsabilidades com as crianças e, ao Estado, é dado o papel de atuar como suporte dessa criação. Não se fala, por exemplo, do dever do Estado em ofertar creches para as crianças de zero a cinco anos, conforme disposto na Lei Ordinária Federal nº 9.394/96, conhecida por (Lei de Diretrizes Básicas da Educação) (BRASIL, 1996). Todos esses deslocamentos parecem estar articulados por um eixo mais amplo, a cuja identificação mais precisa ainda pretendemos chegar, que propõe uma despolitização dessas três noções, referências centrais das lutas democratizantes, e, assim uma redefinição das próprias noções de política e de democracia estabelecidas e conquistadas por essas lutas. Assim, o projeto neoliberal operaria não apenas com uma concepção de Estado mínimo, mas também com uma concepção minimalista tanto da política como da democracia. Minimalista porque restringe não apenas o espaço, a arena da política, mas seus participantes, processos, agenda e campo de ação. Assim, o encolhimento das responsabilidades sociais do Estado encontra sua contrapartida no encolhimento do espaço da política e da democracia. Ambas devem ser limitadas ao mínimo indispensável. Como no Estado mínimo, esse encolhimento é seletivo e suas consequências são o aprofundamento da exclusão exatamente daqueles sujeitos, temas e processos que possam ameaçar o avanço do projeto neoliberal (DAGNINO, 2004, p. 212). 94 Num contexto em que as políticas públicas para minoria voltam a ser vistas a partir do prisma do assistencialismo, bastante comum ao projeto neoliberal, torna-se evidente por que a criação de órgãos específicos de implementação e execução de políticas se deu justamente numa gestão dita de esquerda, na figura de Luís Inácio Lula da Silva, e que apresentava uma concepção de governo de conciliação entre os setores empresariais e a classe trabalhadora. O anúncio de sua concepção de governo foi feito na “Carta ao Povo Brasileiro”, lançada na campanha eleitoral em 2002 em que se lê o seguinte trecho: Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país (LEIA..., 2002). Uma parte do que Dagnino denomina por “confluência perversa” pode ser vista através da referida carta, Lula já anunciava como se daria a gestão caso fosse eleito. Na avaliação da Articulação de Mulheres Brasileiras, entre 2003 e 2010, período do petista à frente do país: A disputa entre as forças neoliberais e antineoliberais seguiu acirrada. Contudo, de forma recorrente as mulheres continuaram a ser convocadas a participar da execução de políticas públicas com baixo custo, que não avançaram na universalização de direitos das mulheres, portanto não contribuíram para a transformação de suas vidas. Constatamos que a implementação real de políticas para mulheres, nessa correlação de forças adversa, teve um limitado poder de democratização do Estado, resultou em vários equívocos, além de enfrentar a esperada resistência. Em nome das políticas para mulheres, setores conservadores promoveram um renascimento do “primeiro damismo” e das políticas para as “mulheres carentes”, que supostamente apenas têm carências e nunca direitos (POLÍTICAS..., 2011, p. 22). Essa colocação, bastante crítica, está relacionada à concepção de um período como “governo de contradições” e nos faz refletir sobre os sentidos de políticas para as mulheres e as possibilidades de existência do princípio norteador de gênero, isto é, políticas que, de alguma forma, questionem e enfrentem as desigualdades entre homens e mulheres. 95 3.2 Políticas públicas de gênero e para as mulheres no Brasil Vê-se que o contexto de “colocar o governo em ação”, no qual está envolvida a formulação e implementação das políticas públicas, não é algo simples e, sobretudo, que envolve uma série de concepções de políticas e de interesses. Diante disso, é possível levantar o debate sobre disputas e conflitos que, inclusive, será muito caro para entendermos os discursos acerca das políticas para as mulheres, objeto de estudo do presente trabalho, pois parto do pressuposto de que as articulações discursivas são hegemônicas e, por isso, antagônicas. Está em questão uma série de conflitos. Isso remete ao relato sobre a experiência vivida pela pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Cecília Sadenberg e sua equipe que, na década de 1990, esteve por dois anos em 13 municípios do semiárido da Bahia. No texto “Gênero e políticas para as mulheres no Brasil: reflexões em torno de uma experiência doída” (2015), ela descreve os problemas e divergências que podem acontecer na implementação de determinadas políticas públicas. Ela remonta às conferências realizadas pela ONU no México (1975), Dinamarca (1980), Quênia (1985) e China (1995). Embora a perspectiva de gênero tenha sido discutida nas duas primeiras, foi em Beijing que se deliberou pela incorporação desse enfoque em todos os programas e projetos de desenvolvimento apoiados por órgãos e agências da ONU, a fim de se promover a maior participação e empoderamento das mulheres (SADENBERG, 2015, p. 17). A autora chama a atenção para a Plataforma de Ação de Beijing ser o primeiro documento que faz a mudança da perspectiva “Mulher em Desenvolvimento”38 – orientada por uma perspectiva liberal, que visava que as mulheres tivessem iguais oportunidades nos processos de desenvolvimento – para a de “Gênero e Desenvolvimento”. A primeira abordagem não considerava as estruturas de poder patriarcais relacionadas às desigualdades entre homens e mulheres. As questões referentes à raça e à classe também não estavam contempladas. Por outro lado, com a nova perspectiva, tem-se que: A Plataforma [de Ação de Beijing] se refere especificamente à equidade de gênero39, estabelecendo que semelhanças e diferenças entre mulheres e homens devem ser reconhecidas e valorizadas, sendo que mulheres e homens 38 Original: Women in Development (WID). Sadenberg faz a distinção entre “igualdade” e “equidade de gênero”. “A noção de igualdade de gênero se refere à igualdade de direitos, responsabilidades e oportunidades entre mulheres e homens e meninas e meninos. Note-se que o oposto de “igualdade” não é “diferença” e sim “desigualdade”, portanto “igualdade” aqui não significa que homens e mulheres sejam iguais, mas que seus direitos, responsabilidades e oportunidades não devem ser diferenciadas em função do sexo de cada um [...]. A noção de equidade de gênero reconhece que as diferenças entre os sexos são transformadas, na prática social, em desigualdades de gênero. Reconhece, assim, a necessidade de programas específicos e políticas compensatórias que possam criar as condições para uma efetiva igualdade de gênero, contribuindo, também, para o empoderamento das mulheres” (SADENBERG, 2010, p. 4950). 39 96 devem gozar de status, reconhecimento e consideração iguais e de condições iguais para realizar seu potencial e ambições, participar, contribuir e se beneficiar dos recursos e desenvolvimento social, bem como desfrutar de liberdade, qualidade de vida e resultados iguais (UNITED NATIONS, 1995 apud SADENBERG, 2015, p. 17). A autora reflete que, nos mais de quarenta anos de atuação como antropóloga feminista na militância em diversos campos de ação, como no movimento de mulheres, academia, consultoria em projetos internacionais e na formulação, implementação e monitoramento de políticas para as mulheres no Brasil, observou que raramente houve “uniões felizes”40 entre teoria e práxis (SADENBERG, 2015, p. 13-14). É o que explica: “Nesse campo de disputas entre perspectivas distintas e distintos atores sociais e institucionais, muitas vezes os objetivos maiores se perdem, dando lugar à pequenez, limitando as possibilidades de alcance das metas traçadas” (SADENBERG, 2015, p. 14). A perspectiva de gênero adotada na Plataforma de Ação de Beijing implicou na transversalização do enfoque de gênero nos planos políticos. Apesar de a intenção das feministas ter sido combater as desigualdades entre homens e mulheres, o termo acabou se “massificando” nos projetos e políticas, perdendo-se a perspectiva relacional das desigualdades e a noção de estruturas de poder (SADENBERG, 2015, p. 18). Ela dá o exemplo de sua própria experiência na consultoria que desenvolveu no semiárido baiano e ao qual recorro no presente texto. O relato de Sadenberg (2015) diz respeito às tensões e aos conflitos vividos no âmbito do Programa de Assessoria em Gênero (PAGE), entre 1998 e 2000, do Projeto Gavião, de desenvolvimento rural implementado por um órgão do governo do estado da Bahia e que teve financiamento do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrário da Organização das Nações Unidas (FIDA/ONU). Sadenberg faz parte do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA), e integrou a equipe responsável por elaborar um trabalho de assessoria ao referido Projeto. Ela e as demais integrantes percorreram 13 municípios no semiárido baiano, no centro-sul do estado, e encontraram um cenário de extrema desigualdade de gênero, com altas taxas de analfabetismo entre as mulheres, elevada carga de trabalho doméstico, além do que desempenhavam na roça e que era desvalorizado ou invisível por ser atribuído à força dos homens e, de um modo geral, elas se depararam com um cenário típico do patriarcado. Sem dúvida, fazia-se necessário investir em um trabalho de sensibilização que desconsertasse mentalidades tradicionais, que transformasse as relações 40 Aspas de Sadenberg. 97 de gênero dominantes e que possibilitasse um processo contínuo de aprendizado político e participativo na construção de uma cidadania real para as mulheres. Tal convicção nos motivou a elaborar e desenvolver o PAGE na Região do Gavião (SADENBERG, 2015, p. 22). Ela aponta ainda diversos fatores que evidenciavam o quanto era necessário abordar e equidade de gênero e isso estava em consonância com o FIDA/ONU, que atendia às exigências da Plataforma de Ação de Beijing. Porém, a equipe se deparou com a concepção da coordenação do programa de que trabalhar com gênero seria o mesmo que trabalhar com mulheres ou, ainda, houve a compreensão equivocada de que o que estava sendo feito era feminismo, o que levou a diversos conflitos entre os dois grupos – as integrantes do NEIM/UFBA e a direção do Projeto Gavião. O trabalho de assessoria colocava para equipe técnica a incompatibilidade entre o desenvolvimento e permanência das mulheres numa situação de subordinação ou, dito de outra forma, levava para os espaços o debate acerca das desigualdades de gênero. Nos dois anos em que participaram do projeto, realizaram quatro seminários de sensibilização e capacitação para uma equipe de 32 técnicos, dos quais apenas sete eram mulheres; elaboraram cartilhas, manuais e outros materiais de treinamento para o trabalho com enfoque de gênero (SADENBERG, 2015, p. 27). Segundo o seu relato, a maior parte dos homens da equipe do projeto teve resistência nas ações que tocassem de alguma forma nas hierarquias e relações de gênero no ambiente doméstico. Ela comenta que os homens do projeto só apoiaram a introdução do enfoque de gênero por ser uma imposição do financiador e, quando se falava em gênero, a perspectiva era a das mulheres em desenvolvimento (MED), o que significava incrementar a participação feminina no projeto, mas sem tocar nas relações de gênero (SADENBERG, 2015, o. 28). Em sua concepção: Contribuir para o empoderamento de mulheres significa mexer com os padrões tradicionais de relações de gênero nessas comunidades e, portanto, envolve lidar com as diferentes formas de resistência que surgirão, e não apenas por parte dos homens envolvidos. Por certo, mulheres têm medo de mudanças e resistem a tentativas de perturbar relações de gênero, mesmo quando isso possa trazer mudanças em seu benefício (SADENBERG, 2015, p. 28). Isso nos faz ver além de uma concepção institucional e procedimental das políticas públicas e perceber que estamos diante de disputas de sentidos e de projetos políticos. Ao mesmo tempo, esse mecanismo revela questões acerca de um debate mais amplo das políticas públicas em âmbito nacional. É o que explica o texto publicado pela extinta Secretaria de Políticas para as Mulheres, em que se vê: 98 As políticas públicas traduzem, no seu processo de elaboração e implantação – mas, sobretudo, em seus resultados – formas de exercício do poder político, envolvendo a distribuição e redistribuição de poder e de recursos. Sistematizam o papel das tensões e do conflito social nos processos de decisão e na partição e repartição de custos e benefícios sociais (BRASIL, 2012, p. 2). As políticas públicas são selecionadas pelos dirigentes públicos, que recebem as demandas da sociedade civil, como sindicatos, movimentos sociais, organizações não governamentais etc. Os processos de reivindicações não são simples tampouco harmoniosos. Envolvem muitas disputas em torno do que deve ser prioritário como política pública em meio a uma diversidade de sujeitos políticos oriundos de diferentes espaços e com interesses distintos. Esse aspecto é de grande importância na presente tese pelo fato de que as conferências são um instrumento de participação social na discussão e encaminhamento do que deve se tornar política pública para determinado segmento, no presente caso, das mulheres. Conforme veremos ainda neste capítulo, há conferências de políticas públicas para diversas outras áreas, como saúde, educação, assistência social, pessoas com deficiência, pessoa idosa etc. Portanto, ao abordar as conferências de políticas para as mulheres, não posso me furtar do debate sobre o sentido e a necessidade das políticas públicas. Ao se formular e implementar uma determinada política pública, está-se admitindo a necessidade de um aparato estatal para resolver determinado problema ou garantir direitos sociais que seriam negados diante da falta de um reconhecimento por parte do governo ou do Estado. Celina Souza (2006, p. 25) assinala que o papel da política pública na solução dos problemas é uma das definições e que críticos à mesma argumentam que é ignorada a essência da política pública, o embate em torno de ideias e interesses, já que são superestimados aspectos racionais e procedimentais das políticas públicas. No âmbito desta tese, considero os aspectos de negociação entre os diferentes sujeitos políticos, sejam os representantes governamentais ou da sociedade civil, levando em consideração os embates e conflitos, mas também encaro a política pública como fruto de reivindicações por melhorias sociais, portanto, parte da solução de uma série de problemas. Conforme se viu no capítulo anterior, as lutas dos movimentos de mulheres e feministas perante o Estado, a partir da década de 1980, fizeram com que as questões de desigualdades de gênero entrassem na pauta estatal. A Constituição de 1988 é um exemplo de como as reivindicações das mulheres foram integradas na mesma. Até a década de 1970 e, 99 ainda, na de 1980, havia uma desconfiança muito grande da sociedade civil acerca da relação com o Estado. Marta Farah explica que, com o avanço da democratização, foram formuladas propostas de políticas públicas que contemplassem as mulheres numa perspectiva que levasse em consideração as questões de gênero (FARAH, 2004b, p. 130). A autora reitera que: O eixo de uma ação governamental orientada pela perspectiva de gênero consiste na redução das desigualdades de gênero, isto é, das desigualdades entre homens e mulheres (e entre meninos e meninas). Falar em reduzir desigualdades de gênero não significa negar a diversidade. Trata-se de reconhecer a diversidade e a diferença – entre homens e mulheres – mas atribuindo a ambas “igual valor”, reconhecendo, portanto, que suas necessidades “específicas” e nem sempre “iguais” devem ser igualmente contempladas pela sociedade e pelo Estado [destaques de Farah] (FARAH, 2004b, p. 127). Diante disso, as ações governamentais, as políticas públicas e os programas desenvolvidos pelos governos, se não estiverem atentos às desigualdades de gênero, podem acabar reforçando-as ao invés de combatê-las. Para que isso não aconteça, é preciso, na perspectiva de Farah (2004b, p. 129), que: 1) se reconheça esse tipo de desigualdade e que o mesmo pode ser reduzido; 2) o combate à desigualdade de gênero seja integrado à agenda governamental junto ao combate a outras formas de desigualdade; 3) sejam identificadas como e onde as desigualdades se manifestam, bem como quais seus impactos. Assim, podemse planejar estratégias de ações; 4) a identificação concreta de como as desigualdades de gênero se manifestam permite encontrar prioridades de ações; 5) se incorpore um olhar de gênero41 a todas as políticas públicas. A autora (FARAH, 2004b, p. 130) explica, ainda, que a constituição das mulheres como sujeitos políticos se deu inicialmente por meio das mobilizações em torno da luta pela redemocratização e de questões ligadas à esfera da reprodução. Nesse contexto, foram mobilizadas questões específicas ligadas às condições de ser mulher, tais como violência contra a mulher, direito à creche, saúde da mulher, sexualidade, contracepção e desigualdade salarial. Essas pautas convergiam com o que o movimento feminista estava questionando, isto é, relações de poder entre homens e mulheres. Nessa fase, foram implementadas as primeiras políticas com recorte de gênero, que: [...] são políticas públicas que reconhecem a diferença de gênero e, com base nesse reconhecimento, implementam ações diferenciadas para mulheres. Essa categoria inclui, portanto, tanto políticas dirigidas a mulheres – como ações pioneiras do início dos anos 80 – quanto ações específicas para 41 Destaque de Farah. 100 mulheres em iniciativas voltadas para um público mais abrangente (FARAH, 2004a, p. 51). Marta Farah (2004a, p. 51) dá o exemplo da criação do primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina, em 1983, em São Paulo e, posteriormente, em outros estados do país. O referido ano também foi marcado pela mobilização que levou à instituição do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e o de 1985, como já abordado no capítulo anterior, marcou a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Nesse âmbito de reivindicações e mudanças, ao tratar sobre “O desafio da transversalidade de gênero nas políticas públicas”, Lourdes Bandeira (2005) propõe uma análise do Plano Plurianual (PPA) (BRASIL, 2003a) referente aos anos 2004-2007 que, pela primeira vez, adotou a questão da igualdade de oportunidades (de gênero, de raça, de etnia, de pessoas com necessidades especiais e de cidadania). Foi proposta a garantia de que o recorte transversal de gênero estivesse presente nas formulações e implementação das políticas públicas no país. Nesse contexto, em sua leitura, a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, durante o governo Lula, em 2003, representou um significativo avanço da luta feminista pelo fim da desigualdade de gênero. A partir disso, a autora verificou em que medida constam no PPA políticas que respeitem a transversalidade de gênero e que possam, dessa forma, garantir que a igualdade de gênero possibilite a redução da pobreza. De acordo com Bandeira: Por transversalidade de gênero nas políticas públicas entende-se a ideia de elaborar uma matriz que permita orientar uma nova visão de competências (políticas, institucionais e administrativa) e uma responsabilização dos agentes políticos em relação à superação das assimetrias de gênero, nas e entre as distintas esferas do governo. Esta transversalidade garantiria uma ação integrada e sustentável entre as diversas instâncias governamentais e, consequentemente, o aumento da eficácia das políticas públicas, assegurando uma governabilidade mais democrática e inclusiva em relação às mulheres (BANDEIRA, 2005, p. 45). O PPA é uma lei ordinária editada a cada quatro anos. Sua função é estabelecer as diretrizes, os objetivos e metas da Administração Pública, materializadas em Programas e Projetos, que trazem explicitadas suas ações e indicadores de avaliação. A elaboração do PPA deve ser feita pelo poder Executivo e enviada para o Congresso Nacional até o dia 31 de agosto do primeiro ano presidencial. O Congresso Nacional tem até o final do mesmo ano para analisá-lo e realizar as mudanças necessárias antes de aprová-lo. Está contido no Ciclo 101 Orçamentário junto à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA). Tratam-se de leis que são elaboradas pelas diferentes esferas do Poder Executivo (municipal à federal) e, posteriormente, submetidas e apresentadas à apreciação e aprovação do Poder Legislativo. Segundo a publicação do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea): [...] a participação social quando da elaboração do PPA é fundamental, pois é no PPA que @s governantes apresentam estratégia de desenvolvimento, suas diretrizes e concepções, expressando o norte político que pretendem adotar na formulação e implementação das políticas públicas nos quatro anos de mandato (VIEIRA et al..., 2007, p. 5). No texto, diz-se que é na referida Lei (PPA) que as diretrizes aprovadas nas conferências são materializadas em programas e ações, ou seja, pode ter influência da sociedade. Por isso, questiona-se acerca de quais propostas das conferências foram absorvidas pelo PPA, bem como de que forma o governo resolveu questões conflituosas entre as diversas conferências, como foram tratados os temas transversais de gênero e raça no que dizem respeito às políticas públicas (VIEIRA et al, 2007, p. 8). Uma das críticas que se faz às Conferências de Políticas para as Mulheres é que o calendário não coincide com a discussão e planejamento do PPA. Por exemplo, a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (I CNPM) aconteceu em julho de 2004, quando já havia sido lançado o PPA 2004-2007. A II CNPM foi realizada em agosto de 2007, quando já se estava encaminhando o projeto de lei do PPA 2008-2011 para o Congresso Nacional (VIEIRA et al..., 2007, p. 9). A III CNPM aconteceu em dezembro de 2011, quando já se estava fechando o PPA, que vigorou entre 2012 e 2015. Além disso, no PPA, não existe um orçamento próprio destinado às políticas para as mulheres, o que compromete a implementação das ações que são propostas nas conferências. Vê-se também que: Uma das reivindicações apresentadas pelo movimento social ainda no governo de transição, em 2002, era a necessidade das SPM e SEPPIR participassem da coordenação do processo de construção do PPA de forma a garantir que as questões relativas a gênero, raça e etnia, transversais a todas as políticas públicas, fossem incorporadas desde o primeiro momento através dos manuais, treinamentos e sensibilização dos gerentes. Mas, isso não aconteceu nem no processo de formulação do PPA 2004-2007, nem no PPA 2008-2011, ainda em construção. No manual de elaboração do Plano Plurianual 2008-2011, não consta nenhuma orientação a este respeito e também não se promoveu uma ampla sensibilização dos dirigentes, gestores e gerentes de programas e projetos para tais temas (VIEIRA et al..., 2007, p. 9). 102 Isso pode estar relacionado a formas de não priorizar a execução das políticas para os referidos segmentos. Para se chegar à questão das políticas públicas de gênero, Lourdes Bandeira (2005) faz uma discussão especificamente sobre o significado de gênero, que diz respeito ao conjunto de normas, valores, costumes e práticas através das quais a diferença biológica entre homens e mulheres é culturalmente significada. Para ela, as políticas para as mulheres acabam por se centrar no feminino como parte da reprodução social. Dessa forma: Configura-se, portanto, numa política que enfatiza a responsabilidade feminina pela reprodução social, pela educação dos filhos, pela demanda por creches, por saúde e outras necessidades que garantam a manutenção e permanência da família e não necessariamente seu empoderamento e autonomia (BANDEIRA, 2005, p. 48). Já as políticas de gênero se baseiam numa leitura pós-estruturalista, que chama a atenção para a necessidade de se romper com a homogeneização interna ao campo masculino e ao feminino, reconhecendo a existência de diversidade no interior de cada um, o que requer inevitavelmente que se incorporem à análise outras dimensões das relações sociais, como classe e raça. Segundo ela, as políticas públicas de gênero estão focadas não só na diferenciação dos processos de socialização entre o feminino e o masculino, mas também nos conflitos e negociações que são produzidas nas relações interpessoais que se estabelecem entre homens e mulheres. Envolvem também a dimensão da subjetividade feminina que passa pela construção da condição de sujeito (BANDEIRA, 2005, p. 48). Essas políticas objetivam a ruptura de visões tradicionais do feminino. Além disso, são políticas de responsabilidade de diversos ministérios ou secretarias de governo e não apenas de um único organismo de representação das mulheres. Uma alternativa à especificidade, que pode levar a um processo de “guetização” é a da transversalidade. No entanto, Sonia Alvarez chama a atenção para o risco do potencial de diluir42 o impacto da intervenção feminista no Estado ao se trabalhar essa alternativa (ALVAREZ, 2004, p. 108). Há militantes feministas que veem a transversalização como uma forma de tornar as políticas específicas uma não-prioridade, algo executável se for possível, isto é, não obrigatório. 42 Destaque de Alvarez. 103 Sonia Alvarez aponta que as feministas, mesmo que estejam inseridas em contextos de “governos amigos”43, precisam trabalhar numa perspectiva da contracorrente das práticas e falas do Estado em que estejam participando. Para isso, a autora aborda a necessidade de se refletir sobre a ideia da engenharia institucional e questiona: Como levar processos de transformação cultural e política articuladas dentro e fora do Estado?44(ALVAREZ, 2004, p. 108). Por “dentro e fora do Estado”, ela entende que se tratam das formas de articulação das coordenadorias/assessorias com os movimentos feministas e de mulheres; canais institucionalizados ou não para a interlocução política e controle social dessas coordenadorias, indo além dos espaços de conferências. Em sua perspectiva, é preciso ter clareza da diferenciação entre “governo” e “Estado”45 ao se falar em estratégias feministas perante o poder público, pois mesmo sem políticas específicas ou direcionadas às mulheres, o Estado acaba interferindo na relação entre homens e mulheres. Portanto, não é neutro e “fala de gênero”46, inclusive ao não falar no sentido literal (ALVAREZ, 2004, p. 109). Ela reitera que: “Precisamos, então, estar mais atentas aos efeitos culturais das políticas e falas do Estado – inclusive aquelas produzidas pelas contracorrentes feministas que atuam no bojo do próprio Estado” (ALVAREZ, 2004, p. 110). Esse posicionamento é particularmente interessante porque, no contexto do Recife e de Pernambuco, há um histórico de gestão das coordenadorias e, posteriormente, secretarias da mulher com militantes feministas: em 2010, assumiu a Secretaria Especial da Mulher do Recife Rejane Pereira (VEJA..., 2010), que integrou a coordenação colegiada do Fórum de Mulheres de Pernambuco; em 2013, Sílvia Cordeiro assumiu o mesmo órgão, coordenadora da Organização Não-governamental Centro das Mulheres do Cabo e durante décadas militante feminista (VEJA..., 2012). Em 2015, Cordeiro seguiu para o comando da Secretaria da Mulher de Pernambuco (SecMulher-PE) e quem assumiu o lugar foi Elizabete Godinho, que havia atuado anteriormente como secretária-executiva de Direitos Humanos (ELIZABETE..., 2015). Entre 2007 e 2014, a SecMulher-PE ficou sob a gestão de Cristina Buarque, que também militou por anos no movimento feminista. É interessante observar, nesta pesquisa, em que medida, nas falas dessas gestoras, emergem as preocupações com os problemas de desigualdade entre homens e mulheres. Sobre isso, Vera Soares argumenta que: O papel do Estado é determinante na construção da igualdade, mas não só na regulação das leis que coíbem a discriminação, também como agente de 43 Aspas da autora (Alvarez). Destaque de Alvarez. 45 Aspas da autora. 46 Idem. 44 104 mudanças culturais e das condições de vida das mulheres, na proposição de políticas que incorporem as dimensões de gênero e raça. O Estado nas suas ações não é neutro em relação às desigualdades presentes na sociedade e ao assumir, dentro de sua organização, um lugar para a construção de políticas que visem à igualdade, como são, por exemplo, as coordenadorias ou as secretarias de políticas para as mulheres, também dialoga com concepções que acreditam que a condição de subordinação das mulheres será superada sem que seja imperativa uma ação do Estado, que isto deverá acontecer naturalmente na sociedade. [...] O Estado precisa reconhecer as demandas específicas das mulheres e admitir a existência dessas desigualdades e do seu papel determinante nas ações capazes de combater as desigualdades. Aceitar é um primeiro passo, mas não o suficiente. É indispensável incorporar na sua agenda a construção da igualdade (SOARES, 2004, p. 114). Com as ações dos movimentos feministas, em muitas partes do mundo, os governos se posicionaram favoravelmente ao princípio da transversalidade de gênero nas políticas públicas. Na IV Conferência Mundial das Mulheres, em Beijing, foi enfatizada a preocupação em relação ao fenômeno crescente da pobreza verificada entre as mulheres no mundo. Ficou evidenciado que o número de mulheres vivendo nessa situação aumentou desproporcionalmente em relação ao número de homens, sobretudo nos países do Terceiro Mundo e que a erradicação da pobreza não podia ser alcançada apenas com programas específicos, mas que exigem participação democrática e mudanças na estrutura social, econômica e no âmbito dos governos, de forma a assegurar a todas as mulheres acesso aos recursos, oportunidades e serviços públicos (BANDEIRA, 2005, p. 50). O fracasso na implementação dessas políticas foi visto como uma das principais causas da pobreza entre as mulheres. Segundo Bandeira (2005, p. 51): “A pobreza enfraquece a cidadania feminina e impede as mulheres de assumir ações políticas, interferências institucionais e legais para modificar sua condição”. Dessa forma, as questões apontadas em Beijing visavam a adoção da transversalidade de gênero no combate à pobreza. A “adoção” da perspectiva da igualdade de gênero contempla a leitura, o olhar sobre como as políticas públicas devem ser construídas no trato das relações entre as mulheres e os homens e quais são as repercussões que isto acarreta (BRASIL, 2012, p. 6). Essa incorporação de gênero na agenda estatal brasileira não significou necessariamente a redução das desigualdades de gênero no país. Se uma política focaliza apenas a mulher, como por exemplo, programas direcionados às gestantes ou que não estão focados no direito à creche podem estar apenas reforçando a ideia da mulher como a cuidadora e, portanto, das desigualdades de gênero, sobre as quais foram faladas 105 anteriormente. Para que problemas desse tipo não aconteçam, é necessário que as políticas estejam integradas. É o que explica Vera Soares: Por exemplo, ao atuar no mercado de trabalho, ampliando as possibilidades de emprego das mulheres, é preciso pensar nas condições para que haja uma articulação entre sua vida profissional e doméstica, ou seja, é preciso atuar também na oferta dos serviços de atenção às crianças. A mesma situação aplica-se às políticas de combate à violência, que devem estar integradas às ações de apoio às mulheres vítimas de violência com medidas que permitam sua autonomia econômica. As políticas públicas precisam deixar de tratar de forma segmentada os direitos da cidadania (SOARES, 2004, p. 115). Podemos ver uma conexão com esse pensamento através da argumentação de Maria Lúcia da Silveira: Para que as desigualdades de gênero sejam combatidas no contexto do conjunto das desigualdades sociais, pressupõem-se práticas de cidadania ativa para a concretização da justiça de gênero, sobretudo pela responsabilidade do Estado de redistribuir riqueza, poder, entre regiões, classes, raças e etnias, entre mulheres e homens etc. (SILVEIRA, 2004, p. 66). Esse debate tem a ver com o sentido de emancipação relacionada à desigualdade de gênero. A autora ressalta que os discursos e políticas do Estado em diferentes esferas assumam a noção de inclusão como horizonte, deslocando a ideia e a prática de uma cidadania ativa e crítica como articuladora de seu discurso, suas práticas e de suas políticas (SILVEIRA, 2004, p. 66). Em sua perspectiva, embora a inclusão seja uma condição imprescindível em contextos excludentes, como é o brasileiro, é preciso: [...] que não seja uma capa que recobre políticas compensatórias neoliberais que não se articulam com o resgate da universalidade das políticas sociais e de uma prática de cidadania empreendida pelos sujeitos sociais, dentre eles as mulheres (SILVEIRA, 2004, p. 66). Diante disso, a autora indaga em que medida a inclusão social das mulheres é suficiente para acabar com as desigualdades as quais elas se encontram inseridas. Para responder a essa pergunta, ela dá o exemplo de uma proposta do Ministério da Educação que, inspirado no modelo do Banco Mundial, almejava criar um programa de bolsas para as mães cuidarem de seus filhos de até três anos de idade, fazendo, assim, que não precisassem de creches, no que configura como a “mãe crecheira” (SILVEIRA, 2004, p. 67). Da ótica da alteração das desigualdades de gênero, a proposta acima caminha em sentido contrário, reforçando-a, pois reafirma a mulher como responsável exclusiva da educação dos filhos, confina a mulher ao papel de cuidadora, restringindo-a ao papel de mãe, já que ao receber uma bolsa para 106 cuidar, como substituta da ausência de creches públicas, pretende compensar essa ausência desse equipamento social colocando-a como beneficiária de um recurso que visa “incluir” as suas crianças. “Inclusão”, aliás, bastante questionável também do ponto de vista educacional, já que pressupõe a permanência isolada da criança em casa (SILVEIRA, 2004, p. 67-68). Percebe-se, diante disso, que, para elaborar e se implementar políticas públicas relacionadas às questões de gênero, é preciso, sobretudo, que se tenham em mente as perspectivas de poder entre homens e mulheres, bem como as consequências da separação entre esfera pública e privada, como foi posto no primeiro capítulo, a qual gera a valorização do trabalho produtivo, associado aos homens, em detrimento do reprodutivo, da esfera doméstica, colocado às mulheres. Essa questão é reconhecida em âmbito governamental. Isso está relacionado ao que se espera do papel do Estado como o que vai encarar as desigualdades de gênero como um problema de sua competência para resolver. É o que podemos ver no texto elaborado pela SPM: [...] é importante distinguir entre o que são políticas que têm a perspectiva da igualdade de gênero e aquelas que têm por alvo preferencial as mulheres; essa ‘divisão’ não significa que não estejam relacionadas. Em outras palavras, não é o fato de as mulheres serem centrais em determinadas políticas ou programas para que sua centralidade esteja assentada em uma perspectiva ou enfoque de gênero, ou seja, na construção da igualdade e no combate às discriminações. Por exemplo, políticas que reforçam o papel tradicional das mulheres como mães e cuidadoras dos filhos e das pessoas idosas, sem dar alternativas e/ou suporte para estas funções, não são políticas que buscam transformar o papel tradicional das mulheres – ou seja, não contribuem para transformar as relações de gênero (BRASIL, 2006. p. 4). A partir das definições tiradas na Conferência realizada em Beijing, reformulou-se no Brasil a agenda de políticas com a constituição das questões de gênero, com diretrizes nas áreas de: violência, saúde; meninas e adolescentes; geração de emprego e renda (combate à pobreza); educação; trabalho; infraestrutura urbana e habitação; questão agrária; incorporação da perspectiva de gênero por toda política pública (tranversalidade); acesso ao poder político e empowerment47 (FARAH, 2004a, p. 58). Dessas, cabe destacar a da saúde por ter sido marcada pela: 47 No Brasil, foi traduzido para empoderamento. Cecília Sardenberg distingue duas abordagens básicas quanto ao conceito de empoderamento na perspectiva das mulheres. Uma delas está relacionada à visão liberal, que compreende o empoderamento das mulheres a partir de um olhar atomístico, de crescimento individual. Em contrapartida, ela trabalha o “empoderamento para a libertação”, que coloca a questão das relações de poder como eixo central. “Nessa perspectiva, o empoderamento de mulheres é entendido tanto como um processo por meio do qual as mulheres conquistam autonomia e autodeterminação, quanto como um instrumento para a erradicação das estruturas patriarcais. Ou seja, é um processo instrumental não apenas para a transformação social, como também para um fim em si próprio, na medida em que implica na libertação das mulheres das 107 [...] implantação efetiva do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) com o desenvolvimento de ações de atenção à saúde em todas as etapas da vida da mulher, incluindo cuidados com a saúde mental e ocupacional, ações voltadas ao controle de doenças sexualmente transmissíveis, de prevenção do câncer e na área do planejamento familiar, de forma a superar a concentração dos programas exclusivamente na saúde materno-infantil (FARAH, 2004a, p. 57). Trata-se, portanto, de uma perspectiva abrangente de ver a mulher sob diversos aspectos. O entendimento da mulher como mãe a partir de políticas focalizadas está em desacordo com tal diretriz. Sobre isso, Farah (2004a, p. 59) cita exemplos como o Projeto Casulo (São José dos Campos), Mãe Canguru (Pernambuco), que à época analisada, eram programas de atendimento a gestantes e recém-nascidos que tinham como objetivo diminuir a mortalidade infantil. Ela cita outros casos de Programas de Saúde da Família na Paraíba e Santa Catarina que tinham ações dirigidas a gestantes e recém-nascidos. Esses programas e subprogramas acabavam por eleger as grávidas e seus filhos como grupos de risco ao focalizar as políticas sociais. A autora reitera que: Na perspectiva da agenda de gênero, tal ação focalizada, embora se justifique pelos elevados índices de mortalidade materna e infantil no Brasil, deveria se articular a uma política mais abrangente, de atenção integral à saúde da mulher, que a contemplasse em todas as etapas da vida, envolvendo também uma ampliação do leque de questões contempladas, de forma a incluir temas como sexualidade e planejamento familiar (FARAH, 2004a, p. 59-60). Essa análise é interessante porque, em Pernambuco, um dos programas de governo é o Programa Mãe Coruja, que foi criado em 2007 pelo decreto de n° 30.859 e que tem como objetivo reduzir a morbimortalidade materna e infantil e estimular o fortalecimento dos vínculos afetivos entre mãe, filho e família. O Programa está presente em 105 municípios do estado (PROGRAMA..., 2003). Na perspectiva de feministas, trata-se de uma concepção problemática. Durante a pesquisa de campo, estive presente na reunião de preparação das delegadas eleitas para a Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres, no Recife, que aconteceu no dia 31 de agosto de 2015 e pude registrar uma das falas de uma militante feminista e conselheira em que se dizia: Uma das coisas que a gente vem criticando é que: vocês já notaram que as políticas de saúde para as mulheres têm nome de bicho? É Rede Cegonha, Mãe Coruja, Mãe Canguru. Ou seja, enquanto nós fomos tratadas como animais, dificilmente vão olhar a gente como seres humanos e aí não vão correntes da opressão de gênero. Tal abordagem é consistente com a organização de mulheres para ações coletivas, sem, contudo, menosprezar a relevância do empoderamento feminino em termos individuais” (SADENBERG, 2015, p. 19). 108 tratar a gente como seres humanos que precisam de uma política que nos garanta o bem-estar. A questão do nome da política é simbólica, mas ela é fundamental. Antigamente, tinha o materno-infantil. O materno-infantil privilegiava sempre o infantil. Agora, a gente tem as políticas Mãe Coruja, Mãe Canguru, “Mãe não sei o que lá” e a gente não consegue com essa política baixar o índice de mortalidade materna, não é? (DIÁRIO DE CAMPO48, 31/08/2015). Vê-se através desse trecho uma crítica à forma de encarar a mulher de uma maneira muito focada e não integralizada, conforme prevê o PAISM e vinda justamente de um sujeito político do movimento feminista. Isso reforça o meu interesse em entender que sentidos as militantes atribuem às políticas e o que elas priorizaram nesse processo de debate e das conferências, como a questão central desta tese, de como as políticas são discursivamente construídas num campo político disputado por diferentes concepções de gênero, Estado etc. A fala também me remeteu à pesquisa de Farah (2004a), que analisou iniciativas de gênero nos programas de saúde; de combate à violência contra a mulher; de geração de emprego e renda e combate à pobreza e concluiu que: A maior parte das iniciativas analisadas mostra, porém, convergências com a agenda de gênero e com as prioridades definidas pelos movimentos de mulheres e por movimentos feministas nas últimas décadas. Na conformação dessa agenda, identifica-se uma tensão entre duas vertentes. A primeira vê a mulher sobretudo a partir de sua função na família, devendo as políticas públicas ‘investirem’ nas mulheres pelo efeito multiplicador que tal ação pode ter sobre a família e sobre a sociedade como um todo. Entre as iniciativas analisadas, programas da área de saúde, com foco no segmento materno-infantil, aproximam-se em geral dessa perspectiva. Uma segunda vertente – hegemônica na agenda dos movimentos de mulheres no Brasil – tem por base a perspectiva de direitos. Segundo essa vertente, trata-se de garantir a ampliação do espaço da cidadania, pela extensão de direitos a novos segmentos da população e pela inclusão desses novos segmentos na esfera do atendimento estatal (FARAH, 2004a, p. 66). A autora reitera que a inclusão da questão de gênero nas ações governamentais ocorreu devido à ação de diversos sujeitos, estando ou não organizados, como ONGs, partidos, movimentos sociais, mas também atores locais e regionais, constituindo processos de democratização relacionados à formulação e implementação de políticas públicas (FARAH, 2004a). 48 Destaco que utilizei o diário de campo em todos os espaços em que estive presente na condição de pesquisadora. Em espaços abertos e públicos, como o que trago o relato, utilizei gravador (“reunião aberta de preparação para conferência”). Por isso, recorri ao diário de campo e completei com a transcrição da fala. Nas reuniões fechadas, como não me senti à vontade para pedir para gravá-las, anotei o máximo que pude. Há mulheres que me conhecem dessa época e que me associam “àquela que estava sempre anotando no caderno”. Sobre esse fato, discorrerei no capítulo 3. 109 Silveira (2004, p. 71) ressalta que, para que se caminhe em direção à institucionalização de organismos de governos, como coordenadorias e secretarias de políticas para as mulheres, que sejam capazes de articular as políticas com o objetivo de diminuir as desigualdades de gênero: [...] é importante consolidar instrumentos de elaboração de políticas públicas e mecanismos que possibilitem tornar permanentes ações que construam um Estado democrático também do ponto de vista do gênero (SILVEIRA, 2004, p. 71). Para isso, segundo a autora, é imprescindível que sejam retomados os princípios feministas como parâmetro para a reformulação de políticas de igualdade. Como o campo de pesquisa aqui trabalhado é o da construção do processo de Conferências de Políticas para as Mulheres, cabem perguntas referentes ao que se entende por esses espaços que têm como objetivo reunir representantes do governo e da sociedade civil para debaterem em torno do que entendem como prioridade nas políticas públicas. Questiono: o que se sobressai nas reuniões analisadas? Que projetos políticos estão envolvidos? Segundo Silveira: [...] o caráter sistêmico das desigualdades de gênero exige uma intervenção do Estado para superá-las que, porém, não se incumbirá dessa tarefa sem um sujeito de transformação que o impulsione na direção da igualdade, através de um feminismo em ação, que alimente as práticas de cidadania das mulheres e aprofunde a democratização do Estado (SILVEIRA, 2004, p. 74). Ao refletir sobre a relação entre a participação social e políticas públicas no contexto da presente tese, é possível questionar em que medida no referido campo de estudo verificamos um aprofundamento da democratização do Estado. Essa discussão será feita no capítulo 4 a partir da análise dos dados, mas de antemão, questiono quem são os sujeitos políticos presentes nas reuniões as quais frequentei (as dos Conselhos Municipal e Estadual dos Direitos da Mulher, respectivamente de Recife e de Pernambuco); quem tinha voz e como eram tomadas e divulgadas as decisões. Essas perguntas se fazem necessárias para se compreender qual a relação com o aprofundamento da democratização, pois os referidos Conselhos são instâncias de controle social e exercem as funções de fiscalizadores da implementação e execução das políticas públicas do segmento das mulheres, além de serem a instância de interlocução governamental por meio de representantes de diversas secretarias e a sociedade através das integrantes de comunidades, sindicatos e movimentos. Além disso, junto às secretarias de políticas para as mulheres, são os órgãos responsáveis pela construção das referidas conferências. Portanto, é de papel fundamental no presente trabalho. 110 É possível perceber nas autoras citadas que a demanda por políticas públicas de gênero e para as mulheres é imputada pelos movimentos sociais ao Estado. Isso faz que, num contexto de quebra do regime democrático que significou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, essas políticas, que eram implementadas e executadas nas gestões petistas, fossem descaracterizadas ou simplesmente extintas. Embora ainda que em seu governo já estivesse acontecendo um princípio de desmonte das políticas através da fusão ministerial, no período pós-impeachment isso se tornou mais evidente. É possível conferir os dados orçamentários. Para programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência”, previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual, foram apresentados resumidamente os seguintes valores: R$ 153 milhões para 2016 (BRASIL, 2015); R$ 81 milhões para 2017 (BRASIL, 2016e); R$ 24 milhões para 2018 (BRASIL, 2017). Com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres, o referido orçamento passou a ser gerido pelo Ministério da Justiça e Cidadania. Vê-se uma queda brusca nos valores destinados ao ano de 2016, discutidos e aprovados quando Dilma Rousseff ainda estava à frente da Presidência da República em 2015 e, para 2018, quando Michel Temer já era o presidente em 2017. Esse contexto de cortes nas políticas ficou muito claro quando a IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres foi aberta no dia 10 de maio de 2016 pela então secretária Eleonora Menicucci e encerrada pela mesma dois dias depois na condição de sociedade civil, já que o órgão o qual ela integrava, o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, foi extinto e a mesma exonerada do cargo (BRASIL, 2016d). Isso é de grande interesse para entendermos os sentidos sobre políticas para as mulheres debatidos nos espaços estudados e que envolvem sujeitos políticos oriundos de esferas distintas e nos leva às discussões seguintes acerca dos organismos de políticas para as mulheres e das conferências. 3.3 Os antecedentes da institucionalização das políticas para as mulheres no Brasil Para entendermos o sentido dos organismos de políticas para as mulheres, responsáveis pela implementação e execução das políticas públicas, é preciso entender o que contexto político e econômico em que os mesmos surgem. Diante de uma conjuntura de austeridade vivida na década de 1990 e início de 2000, dez entidades de mulheres e feministas49 organizaram a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, que aconteceu em 49 São elas: Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB); Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR); Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras; Secretaria para Assuntos da Mulher Trabalhadora da Contee; Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalhadora da CUT; Secretaria Nacional de 111 2002, em Brasília, ano em que o voto feminino completou 70 anos. Foi denunciado o que se considerava como o caráter injusto da estratégia econômica nacional, que era a redução de gastos nas políticas sociais estatais, abertura dos mercados ao comércio internacional, privatização dos órgãos públicos. Conforme já abordei aqui ao remeter às políticas de ajuste, na perspectiva da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), o resultado dessa forma de gerir as políticas foi a aceleração do processo de concentração de renda, o que levou ao aumento da pobreza e o consequente crescimento da exclusão social. Diante disso: As participantes da Conferência de Mulheres Brasileiras, que aprovou a Plataforma Política Feminista (PPF), denunciaram o caráter injusto dessa estratégia e afirmaram a necessidade e a importância de políticas públicas afirmativas para a geração de renda e emprego, a superação da pobreza e a garantia de bem-estar, bem como a interrupção das privatizações, a promoção da reforma fiscal, de debates e mecanismos para prestação de contas sobre a dívida pública e de transparência. A PPF aponta também o caráter patriarcal, racista e elitista do Estado brasileiro, reivindicando sua democratização e a promoção da justiça social (ARTICULAÇÃO..., 2011, p. 15). A Plataforma Política Feminista está baseada nas desigualdades de classe, raça e gênero. Trata-se de um documento onde estão presentes os desafios urgentes a serem enfrentados pela sociedade e pelo Estado para que se assegurasse a concretização do que havia sido conquistado pelas mulheres e que se buscasse o que faltava alcançar (PLATAFORMA..., 2002, p. 5). Karla Galvão Adrião aponta que: A PPF é um documento propositivo, de conteúdo amplo e diversificado, construído a partir de uma perspectiva feminista de questionamento da sociedade e de se repensar como sujeito político. Seu texto contém análise e desafios para a sociedade, para o Estado e para outros movimentos além do próprio feminismo. As ênfases da Plataforma estão traduzidas em cinco capítulos, tratando desde os temas da democracia política, da justiça social e a inserção do Brasil no contexto internacional, até a democratização da vida social e da liberdade sexual e reprodutiva. Nos diferentes capítulos, articulam-se as especificidades da dupla estratégia da luta do feminismo brasileiro com vistas ao reconhecimento das diferenças e dos novos movimentos de mulheres, e à conquista da igualdade, da redistribuição de riquezas e da justiça social (ADRIÃO, 2008, p. 138). Em sua visão, trata-se de um instrumento de articulação democrática com o Estado, objetivando a construção de políticas públicas que minimizem as desigualdades. A autora (ADRIÃO, 2008) relata que a PPF foi construída a partir da mobilização de 5200 ativistas de Mulheres do Partido Socialista Brasileiro; Rede de Mulheres no Rádio – Secretaria; Rede Nacional de Parteiras Tradicionais; Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; União Brasileira de Mulheres (UBM) (ARTICULAÇÃO..., 2011, p. 15) 112 movimentos de mulheres, mobilizadas para o debate em 26 conferências estaduais, entre março e maio de 2002. A conclusão do processo se deu em 06 e 07 de junho do mesmo ano, quando cerca de 2 mil mulheres estiveram presentes em Brasília para a realização da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (ADRIÃO, 2008, p. 139). Adrião avalia que: Com a Plataforma Política Feminista, os movimentos de mulheres reafirmam seu potencial de contestação, mobilização e elaboração política e, estrategicamente, posicionam coletivamente os conteúdos de seus discursos plurais frente ao contexto político brasileiro, reafirmando sua autonomia de pensamento, projeto e ação (PLATAFORMA..., 2002, p. 2). É interessante perceber que tanto o evento final quanto as etapas antecessoras aconteceram em pleno período de preparação para a campanha eleitoral de 2002, em que estava em jogo a continuidade do projeto político-econômico neoliberal implementado pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso através do candidato José Serra, economista, integrante do mesmo partido, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), ou a possibilidade de mudança na figura do torneiro mecânico Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse contexto, os movimentos feministas e de mulheres conseguiram se articular em torno de propostas unificadas do que esperavam de um governo e lançaram a PPF, na qual apresentam 269 pontos, nos quais estão contidas análises e desafios. Baseada nos princípios colocados na PPF, a AMB apontou sérios problemas nas duas gestões de Lula (2003-2010): No enfrentamento das desigualdades vividas pelas mulheres, mudanças relevantes ocorridas entre 2003 e 2010 em termos de políticas e do orçamento público devem-se ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM). O desenvolvimento tanto do primeiro quanto do segundo Plano se deu numa arena política tensa e complexa. Os resultados contraditórios obtidos são reveladores dos esforços empreendidos e dos obstáculos encontrados. Apesar dos dois documentos, é possível afirmar que as políticas públicas, em seu conjunto, no governo Lula não foram concebidas a partir da perspectiva de enfrentamento das desigualdades vividas pelas mulheres. O desequilíbrio de poder entre o Ministério do Planejamento e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) era evidente. Os PNPMs não foram parte integrante do Ciclo Orçamentário. Foram um instrumento paralelo, que tentou criar vínculos com o planejamento das políticas e o orçamento público, mas encontrou muitas dificuldades (ARTICULAÇÃO..., 2011, p. 46). Diante da vitória de Dilma Rousseff, na eleição de 2010, a entidade aponta o desafio de “[...] gerar compromissos públicos que apoiem os processos de transformação social que o feminismo mobiliza” (ARTICULAÇÃO..., 2011, p. 69), que são os movimentos feministas e 113 de mulheres que fazem as denúncias de violência, injustiças e desigualdades que as mulheres enfrentam cotidianamente. Cabe destacar que, em 2002, na gestão de FHC, foi instituída a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (SEDIM), subordinada ao Ministério da Justiça. Foi criada através da Medida Provisória 37 de 08 de maio de 2002, convertida na Lei 10.539 de 23 de setembro de 2002, porém não regulamentada. Essa não normatização da estrutura e funcionamento da SEDIM implicou na falta de clareza do papel que o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher desempenharia face à novidade que representava a criação da referida Secretaria (CABRAL, 2002, p. 4). Segundo a autora, a finalidade da SEDIM não havia sido explicitada e acabava sendo bastante semelhante ao Conselho também em suas competências (CABRAL, 2002, p. 3). Em sua análise, como integrante de uma organização feminista, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea), ela enfatiza que: Os movimentos feministas e de mulheres não têm uma proposta, acordada e consensuada, sobre que espaços de poder queremos nos governos e como queremos participar destes espaços. Some-se a isto, a radicalidade na defesa da autonomia do movimento, os medos de sermos usadas apenas para dar legitimidade a ações governamentais, e os questionamentos sobre a forma, e até sobre a validade, de nossa entrada no jogo político duro dos homens que comandam as estruturas governamentais. Por outro lado, é inquestionável que os mecanismos institucionais de defesa dos direitos das mulheres são resultantes de uma grande luta das mulheres, uma conquista nossa e não vamos querer um mecanismo institucional fraco, sem poder político efetivo e sem condições de atuar junto aos outros ministérios e entidades governamentais (CABRAL, 2002, p. 5). A autora reitera a sua abordagem com as reivindicações dos referidos movimentos: Queremos um órgão com orçamento próprio que propicie condições para a realização do seu trabalho, o que não acontece até hoje, ainda que, em termos orçamentários, o CNDM tenha conseguido ampliar seus recursos a partir do ano de 2000. Queremos um órgão que envolva a sociedade civil na definição das políticas públicas e que seja um organismo politicamente forte e com condições efetivas de atuar e promover a igualdade de gênero considerando as desigualdades étnico-raciais (CABRAL, 2002, p. 5). Através do Programa do Governo Lula, constata-se que a Secretaria Especial da Mulher seria vinculada de forma direta à Presidência da República, mas não deixou explícito como se daria a participação dos movimentos feministas e de mulheres nessa estrutura (CABRAL, 2002). A partir do debate acerca do papel do Estado, é possível perceber o caráter conciliatório adotado por Lula em relação aos interesses dos setores empresariais e da classe trabalhadora. O novo governo eleito e, sobretudo, apoiado por diversos setores dos 114 movimentos sociais, pareceu atender às reivindicações dos movimentos feministas e de mulheres ao criar, através da Medida Provisória 103, de 1° de janeiro de 2003, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com status de ministério. Em 2010, através da Lei n° 12.314, foi instituído que a pessoa que estivesse à frente da SPM se tornaria ministra de Estado e não mais secretária50. Isso conferiu uma posição mais destacada ao órgão e ao que ele simbolizava nas políticas para o referido segmento. Cabe destacar também os trechos da Lei n°10.683 de 28 de maio de 2003, que discorre acerca da organização da Presidência da República e dos Ministérios: Art 1o A Presidência da República é constituída, essencialmente, pela Casa Civil, pela Secretaria-Geral, pela Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, pelo Gabinete Pessoal e pelo Gabinete de Segurança Institucional.[...] § 3o Integram ainda a Presidência da República: [...] III - a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres;[...] Art 22. À Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres compete assessorar direta e imediatamente o Presidente da República na formulação, coordenação e articulação de políticas para as mulheres, bem como elaborar e implementar campanhas educativas e antidiscriminatórias de caráter nacional, elaborar o planejamento de gênero que contribua na ação do governo federal e demais esferas de governo com vistas à promoção da igualdade, articular, promover e executar programas de cooperação com organismos nacionais e internacionais, públicos e privados, voltados à implementação de políticas para as mulheres, promover o acompanhamento da implementação de legislação de ação afirmativa e definição de ações públicas que visem o cumprimento dos acordos, convenções e planos de ação assinados pelo Brasil, nos aspectos relativos a igualdade das mulheres e de combate à discriminação, tendo como estrutura básica o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o Gabinete e até três Subsecretarias (BRASIL, 2003b). É importante perceber que o CNDM, órgão que, dentre suas funções, destaca-se a de fiscalizar as ações da referida instituição, teve seu vínculo mudado do Ministério da Justiça para o da SPM, em 2003. Isso deu de volta ao órgão o caráter consultivo e deliberativo. Cabe pontuar como possível problema na esfera de Pernambuco e nacional é que um órgão que teve como uma de suas finalidades o controle social ou a fiscalização das ações das secretarias de políticas de seus respectivos órgãos ter a presidência já definida como a titular da pasta, levando-se em consideração que as decisões são definidas pela presidenta dos Conselhos: como é possível fazer oposição a possíveis ações da Secretaria e, por sua vez, da gestão municipal, estadual e nacional, já que se trata de um cargo de confiança do Poder Executivo 50 Em 02 de outubro de 2016, Dilma Rousseff, para tentar manter o governo com o PMDB, promoveu a reforma ministerial da qual já foi falado aqui. Nela, Eleonora Menicucci, à época Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres passou a ser Secretária Especial de Políticas para as Mulheres, enquanto a então Ministra da Secretaria de Políticas e Promoção da Igualdade Racial, Nilma Lino Gomes se tornou a Ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. 115 dessas esferas? Ou, ainda, como se garante a vivência da democracia se não existe um princípio básico de alternância de poder? Uma das possíveis respostas é o fato de 60% das conselheiras serem da sociedade civil e, portanto, essa equação estaria equilibrada. Porém, a presidenta exerce uma função diferencial ao, por exemplo, ser quem desempata as votações. No “Guia de criação e implementação de Organismos de Políticas para as Mulheres – OPM e de Conselhos de Direitos da Mulher”, verifica-se no modelo de criação conselhos municipais: “Art. 3° - § 1° A Presidenta e a vice-presidenta do CMDM serão escolhidas, preferencialmente, pelo Pleno” (GUIA..., 2016, p. 32). Em nenhum dos conselhos dos direitos das mulheres que estudo, desde o de Recife até o nacional, seguem essa sugestão. No caso do CEDIM-PE, tem-se no regimento: Art. 2° O CEDIM-PE é competente para atuar na forma definida pela Lei n° 13.422, de 04 de abril de 2008, em seu artigo 2° presidido pela Titular da Secretaria Especial da Mulher de Pernambuco, segundo o artigo 4°, inciso I, alínea “a” da referida lei (PERNAMBUCO, 2008b, p. 1). Já no regimento interno do CNDM, é possível ver: “Art. 3° - §1º – O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher será dirigido por: I) - uma Presidenta, que será a Ministra Titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres [...]” (BRASIL, 2008a, p. 1). Levantar essas questões me faz ver as contradições das instâncias democráticas no Brasil e é de extrema importância para fazer uma leitura das conferências de políticas públicas para além da definição entusiasta da democracia participativa. Os conselhos, conforme já foi relatado no presente trabalho, constroem as conferências junto com as respectivas secretarias. É transmitida a ideia de que o evento está sendo pensado e realizado também pela sociedade civil. Isso, inclusive, foi uma grande marca das gestões petistas à frente do Executivo Nacional, conforme veremos neste capítulo ao falar especificamente das conferências. Porém, é preciso problematizar nos casos estudados como se dava a relação do governo com a sociedade civil através de questões relacionadas às dinâmicas das reuniões (onde e quando aconteciam), quais as pautas abordadas, quem tinha o poder de influenciar e decidir, além da forma como eram tomadas as decisões. Tais aspectos farão entender os processos de construção do evento em Pernambuco. Coloco o trecho presente no “Guia de Criação e Implementação de Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres – OPM e de Conselhos de Direitos das Mulheres”, lançados pelo CNDM e SPM: Como órgão colegiado de natureza consultiva, deliberativa ou consultiva e deliberativa, as conselheiras devem contribuir na elaboração de políticas para as mulheres, fiscalizar, controlar e monitorar o cumprimento de ações constantes no Plano de Políticas para as Mulheres visando assegurar a efetiva igualdade entre mulheres e homens na sociedade. Devem, também, 116 acompanhar a implementação e execução de políticas públicas voltadas às mulheres no seu estado ou municípios (GUIA..., 2016a, p. 18) Em que medida encontrarei na pesquisa de campo os princípios de fiscalização, controle social, monitoramento, bem como contribuição na construção das conferências nos conselhos estudados? A representação da sociedade civil no Conselho deve expressar a pluralidade e diversidade das entidades e dos movimentos feministas e de mulheres. E a representação governamental deve considerar as ações de interesse das mulheres desenvolvidas pelas secretarias estaduais e municipais (GUIA..., 2016a, p. 20). Outro elemento importante a se analisar é sobre a transparência das ações do Conselho. Pela Lei n° 12.527/2011, conhecida por Lei da Transparência, confere-se que: Art. 3o Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública [destaques meu] (BRASIL, 2011). Pelos trechos em destaque, constata-se o direito de qualquer cidadã ou cidadão a ter acesso à informação pública. As atas das reuniões se enquadram nessa categoria. Porém, as mesmas no Recife e em Pernambuco não são disponibilizadas na internet tampouco de uma maneira simples presencialmente. Enquanto pesquisadora, precisei recorrer às Ouvidorias das Secretarias da Mulher municipal e estadual para ter acesso a elas. Cabe destacar que, das datas solicitadas, mais de dois anos depois das reuniões, não estavam prontas todas as atas na sede do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher no dia 24 de novembro de 2017, quando estive presente para gravar os arquivos. Retomarei essa discussão nos capítulos 4 e 5, mas nesse momento já é possível perceber problemas nessa estrutura do controle social. Abaixo, coloco o depoimento da então ministra Eleonora Menicucci (2012-2016): Há exatamente uma década, a igualdade de gênero foi colocada no centro das políticas públicas. Os direitos deixaram de ser temas dispersos, para se tornarem foco da ação de governo para inclusão social, superação de desigualdades e conquista de cidadania. Isso se realiza pela liderança da SPM em ação articulada com diferentes ministérios (MENICUCCI, 2003). 117 Coloco esse trecho com o intuito de chamar a atenção para o aspecto do discurso da transversalidade como uma maneira de se construir e implementar as políticas públicas do referido segmento. A transversalidade como orientadora de todas as políticas públicas é um dos princípios norteadores da Política Nacional das Mulheres, além da autonomia das mulheres em todas as dimensões da vida; da busca da igualdade efetiva entre mulheres e homens em todos os âmbitos; do respeito à diversidade e combate a todas as formas de discriminação; do caráter laico do Estado; da universalidade dos serviços e benefícios ofertados pelo Estado; e, por fim, da participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas (BRASIL, 2013b). Sobre esse princípio, temos que: Insere-se assim, no âmbito dessas políticas, o paradigma da responsabilidade compartilhada: não cabe apenas ao organismo de políticas para as mulheres promover a igualdade de gênero, mas a todos os órgãos dos três níveis federativos. Para tanto, o PNPM é implementado com base na transversalidade, tanto do ponto de vista horizontal (entre os ministérios) quanto do vertical (porque ele responde nos níveis estadual, distrital e municipal às conferências realizadas nesses âmbitos e também porque precisa da parceria dos governos estaduais, distrital e municipais para melhores resultados) (BRASIL, 2013b, p. 10). No contexto de uma secretaria específica, com status de ministério ligada diretamente à Presidência da República, a transversalidade é colocada como uma vantagem na implementação das políticas públicas para as mulheres, pois: “[...] não cabe apenas ao organismo de políticas para as mulheres promover a igualdade de gênero, mas a todos os órgãos dos três níveis federativos” (PLANO..., 2013b, p. 10). Dessa forma, a função da SPM passa a ser também a de uma instituição que coordena o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM)51, organizando os trabalhos, além de acompanhar e avaliar os seus resultados. É importante destacar que, além da criação da SPM, outra mudança no primeiro mandato de Lula foi a vinculação do CNDM à própria secretaria, passando a ter orçamento vinculado à mesma e a ser encarado como uma instância de controle social da própria instituição responsável pelas políticas para as mulheres (BRASIL, 2008b). 51 É importante ressaltar o Decreto n° 5390/2005, que criou o Comitê de Articulação e Monitoramento do PNPM, sendo integrado por três representantes do CNDM – preferencialmente da sociedade civil – e 33 de diversos órgãos governamentais (BRASIL, 2005). É significativo que a criação desse mecanismo seja justamente no dia 08 de Março, Dia Internacional da Luta das Mulheres, pois é uma data em que movimentos feministas e de mulheres se reúnem em diversas partes do país para reivindicar seus direitos e chamar a atenção da sociedade para a persistência das desigualdades de gênero. O Comitê é um mecanismo que pode ser associado a uma tentativa de não deixar as propostas de políticas apenas num plano teórico e fazer que as mesmas sejam implementadas pelos diversos órgãos que compõem o governo. A questão que pode ser ressaltada aqui é acerca do quantitativo de integrantes da sociedade civil e do governo. Trata-se de uma diferença de dez vezes mais da segunda em detrimento da primeira. Questiono se não teria se dado aí uma maior importância à articulação das políticas do que ao controle das mesmas. 118 Previsto na Constituição Federal de 1988, os conselhos cumprem o papel importante numa democracia participativa. São nesses espaços que a sociedade civil representada nas organizações não-governamentais, sindicatos e movimentos sociais teriam o poder de influenciar e fiscalizar o trabalho dos órgãos executivos. Da mesma forma, deve ser o ambiente de escuta e de negociação do governo. Falarei mais detidamente nisso no capítulo 3 desta tese, em que apresentarei o campo de pesquisa, mas cabe aqui destacar a ligação do CNDM com a democracia no país. Com o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff e a destituição da secretária da SPM Eleonora Menicucci, além do rebaixamento da SPM para uma pasta do Ministério da Justiça, sete conselheiras escreveram uma carta de renúncia ao órgão em junho de 2016, conforme pontuei no capítulo 1 desta tese. Nela, justificaram que não reconhecem governo provisório por considerá-lo ilegítimo: O governo interino e ilegítimo colocou no primeiro escalão do poder executivo somente ministros homens e brancos, de partidos da coalizão golpista, muitos dos quais envolvidos em esquemas de corrupção e com posições marcadamente contrárias ao avanço dos direitos humanos e do desenvolvimento do País, assim como, a ameaça ao Estado Democrático de Direito. E para completar, não só acabou com o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, como transferiu para o Ministério da Justiça as atribuições da Secretaria de Políticas para as Mulheres e nomeou para a pasta uma pessoa com postura contrária aos direitos sexuais e reprodutivos, agenda historicamente defendida pelas feministas (CONSELHO..., 2016). Duas das conselheiras eram representantes do notório conhecimento e as demais da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB); Marcha Mundial das Mulheres (MMM); Rede Mulher e Mídia (RMM); Rede Economia e Feminismo (REF) e Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). A última é composta, dentre outros coletivos, pelo Fórum de Mulheres de Pernambuco, um dos espaços estudados nesta tese. É interessante já perceber que, no contexto do impeachment vivenciado no período da pesquisa que desenvolvi, a postura da entidade foi de nomeá-lo como golpe e essa percepção passou a nortear todas as ações do movimento, não apenas depois do afastamento da presidenta eleita, no dia 12 de maio de 2016, mas também antes, quando já havia a expectativa que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, aceitasse o pedido de impeachment que havia chegado ao Congresso, protocolado pelos juristas Miguel Reale, Janaína Paschoal e Hélio Bicudo, em setembro de 2015. Na carta de renúncia ao CNDM, as ex-conselheiras enfatizam: Não reconhecemos este Governo e, portanto, com ele não dialogaremos. Acreditamos que a participação nos conselhos de controle social tem como objetivo primordial democratizar o Estado e avançar na garantia de direitos. 119 Em um governo instituído pelo desrespeito à Constituição e ao voto popular e, portanto, à institucionalidade democrática, não existe possibilidade de diálogo (CONSELHO..., 2016). No entendimento delas, houve uma quebra do regime democrático e estar ali significaria legitimá-lo, seria ser conivente com a retirada de direitos que o novo governo representava. Cabe destacar que essa não foi a primeira renúncia ao CNDM. Na fase final da gestão de José Sarney na Presidência da República, o ministro da Justiça determinou alterações que comprometiam a autonomia e o orçamento do Conselho, além de terem sido rejeitadas as indicações das representações dos movimentos de mulheres para composição do órgão (PONTES; DAMASCENO, 2017). As autoras acrescentam que: A presidenta Jacqueline Pitanguy reage a essas medidas apresentando a sua renúncia, que é acompanhada pela renúncia de todas as conselheiras representantes da sociedade civil. As presidentas de Conselhos Estaduais criam então um Fórum Nacional de Presidentas de Conselhos da Condição Feminina e Direitos da Mulher, em 1989 (PONTES; DAMASCENO, 2017, p. 3). Trata-se de um fato, inclusive, pouco colocado nos relatos acerca desse período de atuação do Conselho e que revela uma necessidade de olhar para o órgão e sua história frente aos diferentes governos. A renúncia é um posicionamento político e um recurso de demonstração de não pactuar com algo que consideram ilegítimo. 3.4 Organismos de Políticas para as Mulheres Para entendermos as conferências de políticas para as mulheres, é necessário conhecermos os órgãos que as constroem em conjunto com os conselhos de direitos das mulheres. Os primeiros são os organismos de políticas para as mulheres, entendidos como uma ferramenta para formular e implementar as políticas públicas em cada entidade federativa. No contexto da transversalização das políticas para as mulheres, cabe aos OPMs articularem as ações com os demais órgãos para que a política seja encarada como uma responsabilidade integral do governo e não apenas de um setor. Como uma forma da transversalização posta em prática, é possível destacar os mecanismos de gênero nos órgãos governamentais, que: 120 Em linhas gerais, o Mecanismo é um espaço de articulação para a elaboração de políticas para a igualdade de gênero nas ações de cada órgão governamental; é um espaço para inserção da perspectiva de gênero nos órgãos para que os mesmos possam incorporar tal perspectiva na formulação e na implementação de suas políticas e ações (BRASIL, 2013c, p. 1). Segundo Karla Galvão Adrião: As mulheres chegaram no século XXI acumulando um aprendizado sobre organização, na prática do diálogo com outros segmentos sociais e políticos, bem como com os poderes públicos federal, estadual e municipal. Formular, propor e monitorar políticas públicas com o enfoque de gênero é, hoje, tarefa permanente dos movimentos de mulheres, o que tanto requer o uso de mecanismos de controle social cada vez mais efetivos, quanto uma presença maior e mais ativa das mulheres (ADRIÃO, 2008, p. 135-136). Já foram colocadas aqui as lutas e reivindicações dos movimentos de mulheres e feministas frente ao Estado, sobretudo, a partir da década de 1980. Nesse contexto, é importante ressaltar que: A incidência em políticas públicas surge como um desdobramento estratégico da demanda histórica do movimento feminista por direitos. Se por um lado a garantia por direitos se expressa nos marcos legislativos reguladores da vida social, por outro, sua implementação apenas se torna viável quando políticas públicas são formuladas e executadas com esse objetivo. Para tanto, alguns elementos-chave são necessários: instâncias do Estado que assumam a responsabilidade pela formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas, instâncias de participação social que façam o controle social do trabalho governamental e permitam o diálogo permanente entre governos e sociedade civil; marcos programáticos e legais que orientem as políticas públicas e orçamento destinado às políticas para as mulheres (MADSEN, 2014, p. 49-50). Com a perspectiva de: Alterar, de alguma maneira positiva, a situação de desigualdade na qual vivem as mulheres, com ênfase no campo de trabalho ou, mais amplamente, das possibilidades de autonomia econômica e no campo da participação política, este é o objetivo principal deste projeto (SILVA, 2014, p. 14). Sete organizações feministas executaram, entre 2011 e 2014, o projeto “Mais Direitos e Mais Poder para as Mulheres Brasileiras” junto à Secretaria de Políticas para as Mulheres. Foi realizado em diversas etapas, dentre elas, a formação sobre incidência em políticas públicas e o orçamento de políticas para as mulheres para as gestoras e as militantes dos movimentos feministas e de mulheres durante os ciclos orçamentários anuais (Lei de Diretrizes Orçamentária – LDO e Lei Orçamentária Anual – LOA), e o processo de elaboração do PPA. 121 O objetivo principal era: [...] o fortalecimento das instituições governamentais de políticas para as mulheres nos níveis local e nacional, bem como o fortalecimento dos movimentos feminista e de mulheres no Brasil, de modo a garantir a continuidade da implementação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (VIEIRA et al, 2014, p. 71). Percebe-se que políticas públicas envolvem não apenas o sujeito político estatal, mas sim que elas devem ser idealizadas por ambos, Estado e sociedade, e que, sobretudo, é preciso que passem pela fiscalização. Mas, isso só é possível com uma sociedade civil consciente de seu direito e papel de fiscalizadora. Segundo Vieira et al. (2014, p. 81): “[...] não há políticas para as mulheres sem orçamento. Portanto, torna-se central monitorar o orçamento público e garantir recursos para as políticas para as mulheres”. Elas reiteram que: A articulação entre a trajetória do movimento de mulheres e as alterações mais abrangentes na relação Estado-Sociedade, ocorrida no país nas últimas décadas, fortaleceu-se significativamente nos últimos dez anos. As lutas e conquistas pela transparência pública, pela ampliação e qualificação dos espaços participativos e pela defesa de democratização do processo orçamentário foram, seguramente, adensadas pela atuação das organizações feministas nesse sentido (VIEIRA et al., 2014, p. 82). A proposta colocada pela SPM era que fosse criado um mecanismo de gênero em cada órgão do Governo Federal para que, assim, fossem atendidas as questões das mulheres em todas as ações. A orientação era de que poderia se constituir através de uma secretaria, diretoria, coordenação-geral, coordenação, núcleo, assessorias, comitê, devendo estar vinculado à secretaria-executiva e ao gabinete do ministro ou da ministra. É possível perceber o significado simbólico e prático da existência de uma secretaria com status de ministério voltado especificamente para as mulheres. As políticas, ao menos no plano das ideias, ganhou uma dimensão de prioridade, pois estão no alto escalão do governo, no mesmo patamar de questões estruturantes. Enquanto mecanismo de participação e de diálogo entre governo e sociedade civil, faz-se ainda mais necessário um estudo que aborde as relações internas no processo de construção das Conferências de Políticas para as Mulheres, bem como dos sentidos atribuídos acerca das mesmas pelo Fórum de Mulheres de Pernambuco, uma das principais instâncias do movimento feminista no estado. 122 3.5 Conferências de Políticas Públicas e o caso específico das mulheres As conferências de políticas públicas, junto com o Orçamento Participativo e os conselhos nacionais, compõem os principais mecanismos da política participativa no país e se tornaram um importante instrumento tanto para o Estado quanto para a sociedade civil52. Convocadas pelo Presidente da República, contam com a participação dos três níveis da federação e de representantes dos grupos sociais ligados à área da conferência. Apesar de acontecerem desde o início dos anos 1940, tiveram uma grande expressividade no primeiro mandato do “Governo Lula”53. Leonardo Avritzer e Clóvis Souza (2013, p. 11) pontuam que, das 128 conferências nacionais realizadas desde a época de Vargas, 87 (67,96%) ocorreram entre 2003 e 2012, período de gestões petistas. Segundo estimativa, neste período, foram mobilizadas cerca de 7 milhões de pessoas, nas conferências dos diferentes setores, o que significa 10% da população adulta. Os autores explicam que a importância das conferências nacionais pode ser apreciada pela capacidade de estabelecer pontos de impedimento sobre determinadas políticas do governo, como foi o caso do veto à introdução das “fundações estatais do direito privado” na prestação de serviços da saúde, que aconteceu nash 13ᵃ e 14ᵃ Conferência Nacional de Saúde. No caso das Conferências de Políticas para as Mulheres, tratam-se de espaços consultivos ou, em outras palavras, propositivos, pois as propostas aprovadas são encaminhadas para os diversos órgãos do governo, incluindo o próprio Congresso Nacional. Os autores ressaltam que: “Assim, seja em sua capacidade propositiva, seja em sua capacidade de veto, as conferências se tornaram uma arena central de discussão em diferentes áreas de políticas públicas” (AVRITZER; SOUZA, 2013, p. 11). Eles definem as conferências da seguinte maneira: [...] É possível propor uma delimitação do que são conferências nacionais: constituem uma forma participativa de criação de uma agenda comum entre Estado e sociedade que ocorre a partir da convocação do governo federal. Elas possuem etapas preparatórias e geram um documento publicado e encaminhado pelo governo. Têm impacto, ainda que diferenciado, nas 52 O mecanismo das conferências públicas foi criado na gestão do ex-presidente Vargas, pela Lei nº378, de janeiro de 1937, com o intuito de facilitar o conhecimento do Governo Federal sobre as atividades relacionadas à saúde e à educação, realizadas em todo o país, e de orientá-las na execução dos serviços locais de saúde e da educação, bem como na comissão do auxílio e da subvenção federais (BRASIL, 1937). Tratavam-se, portanto, de encontros entre o governo federal e os governos estaduais, não envolvendo, portanto, a sociedade, tal como atualmente. 53 A Constituição de 1988 prevê a participação e o controle social como integrantes da ordem social (BRASIL, 1988). O formato atual das conferências cujo objetivo é ser um encontro do governo e da sociedade civil é oriundo do referido texto. A partir da nova configuração, o intuito passa a ser a discussão e deliberação entre os diferentes sujeitos presentes acerca das variadas temáticas. É importante ressaltar que: “Ainda que o governo federal tenha a prerrogativa de convocar as conferências nacionais, algumas delas estão previstas em lei e sua convocação pelo governo federal é obrigatória. Esse é o caso da Saúde, da Assistência Social e do recém criado Sistema de Segurança Alimentar” (AVRITZER, 2013, p. 125). 123 políticas públicas coordenadas pelo Executivo e nos projetos de lei apresentados no Congresso Nacional (AVRITZER; SOUZA, 2013, p. 12). Os autores ressaltam, ainda, que é possível dizer que as conferências nacionais, como processos participativos, expressam em suas diferentes dinâmicas (a depender da área) a diversidade de mobilização e institucionalização das áreas de políticas públicas em que são realizadas (AVRITZER; SOUZA, 2013, p. 13). É o caso do segmento das mulheres, que passou por institucionalização há pouco mais de uma década. Avritzer (2012) avalia que a questão que pode ser ressaltada é o aumento das conferências nacionais, o que mostraria o fato de que existe uma política participativa no nível do Governo Federal centrada nos referidos eventos nacionais. Portanto, esse é um dos espaços que o governo e a sociedade civil formulam propostas de políticas públicas voltadas para os referidos segmentos. Nas conferências, surgem diversos embates devido a interesses distintos. A sociedade civil que, na concepção do teórico Jürgen Habermas (2003), é formada por movimentos, associações e organizações livres, não-estatais e não-econômicas, tendo como propósito fundamental captar os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, ao mesmo tempo que os transmite às instâncias de tomadas de decisão, é bastante plural e abarca uma serie de entidades com diversos propósitos. Podemos situar, assim, as conferências nacionais como parte integrante da política participativa no Brasil que, até 2002, restringia-se a experiências locais por meio dos conselhos e orçamentos participativos municipais. Segundo a publicação “Democracia participativa: nova relação do Estado com a sociedade” (BRASIL, 2011), a nova forma de governar, adotada pelos mandatos do Partido dos Trabalhadores, teve como elemento-chave a adoção de políticas participativas. A ideia central era de que a participação social era legítima e legitimadora. A interação entre a democracia representativa e a participativa fortalece o processo de desenvolvimento nacional, que passa a ser lastreado não só pela governabilidade política, mas também pela chamada governabilidade social, ou seja, passa a contar com o respaldo dos setores interessados na ampliação da cidadania (BRASIL, 2011b, p. 9). Existem estudos que estão preocupados com a capacidade de influência nos poderes (POGREBINSCHI, 2013; POGREBINSCHI; SANTOS, 2011; SILVA, 2012) ou, em outras palavras, de inclusão (PETINELLI, 2011) que apontam resultados concretos nas políticas. 124 Isso reforça a importância do estudo que realizo para esta tese, pois para além de pensar se as decisões foram ou não incorporadas pelos poderes, é de grande relevância problematizar essas tomadas de decisão e refletir a partir da concepção da existência de articulações políticas e de construção de hegemonia nesses espaços. Ao analisar a incorporação de deliberações das conferências nacionais de aquicultura e pesca; políticas para as mulheres e políticas de promoção da igualdade racial na agenda das políticas públicas do governo federal, Viviane Petinelli chega à seguinte conclusão: De maneira geral, é possível afirmar que as conferências públicas não apenas têm influenciado a formação da agenda de políticas públicas do governo federal, como também o têm feito de maneira relativamente eficiente, uma vez que parte expressiva das propostas aprovadas tem sido incorporada nos programas do governo federal (PETINELLI, 2011, p. 248). Mesmo não sendo o foco aqui a incorporação pelos governos das propostas aprovadas nas conferências, a conclusão da autora reitera a importância de se estudá-las. Os pesquisadores Leonardo Avritzer, Cláudia Faria e Isabella Lins enxergam os eventos nacionais em conexão com os processos participativos locais (AVRITZER; SOUZA, 2003, p. 11). Em 2011, a estudiosa Claudia Feres Faria, junto com uma equipe de pesquisadores, esteve presente em três conferências nacionais: a da Saúde, da Assistência Social e de Políticas para as Mulheres (FARIA, 2012). Foram analisadas as diferentes etapas dos eventos: municipal, estadual e nacional como um sistema integrado de participação, deliberação e representação. Em artigo de autoria própria, Faria sublinha que: [...] As democracias requerem não só instituição, mas também participação e contestação, não só processos locais, mas também nacionais e transnacionais. O grande desafio passa a ser como coordenar essas diferentes práticas em diferentes espaços (FARIA, 2012, p. 4-5). Em relação às análises feitas por Faria, o que mais nos chamou a atenção foi o fato de que, dentre as três analisadas, a III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que aconteceu entre os dias 12 e 15 de dezembro de 2011, foi a mais conflituosa tanto em termos de manifestações como de contestação54. A autora pontua a presença de discussões confusas, 54 A autora não especifica que manifestações seriam essas. 125 muito emocionais55, além de conflitos e da diversidade discursiva nos Grupos de Trabalho e na Plenária. Porém, apesar disso, era necessário que se chegasse ao uso da negociação deliberativa para que certos “consensos”56 fossem atingidos57. Essas negociações são muito importantes para esta pesquisa, pois os autores que iremos trabalhar abordam formações de consensos na democracia como frutos de articulações contingentes, temporárias e conflituosas. Segundo os estudiosos Leonardo Avritzer e Clóvis Henrique Leite de Souza (2013, p. 17), “[...] pode-se dizer que as conferências nacionais, enquanto processos participativos, expressam em sua dinâmica a diversidade de mobilização e institucionalização das áreas de políticas públicas em que são realizadas”. Na percepção de Avritzer, parece claro, de um modo geral, que existe pouco conhecimento sobre as conferências nacionais, seja do ponto de vista das características políticas, seja do ponto de vista de seus efeitos sobre as políticas públicas. Diante desse cenário, foi realizada uma pesquisa empírica em 2011 junto a 2200 respondentes para entender o padrão de participação inclusive que, segundo a hipótese que foi confirmada, surgiu no nível local e foi se expandindo para o nacional58. Uma das perguntas do survey dizia respeito se as conferências seriam marcadas pelo confronto de ideias. Segundo o autor: “A resposta a esta pergunta sugere de fato uma dimensão deliberativa na medida em que 79,0% dos respondentes afirmam que as conferências são de fato marcadas por fortes confrontos” (AVRITZER, 2012, p. 18). Se o entendimento da deliberação de Avritzer está relacionado diretamente às ideias de Jürgen Habermas, com forte debate de ideias, constato um conceito que pode ser inadequado para analisar empiricamente esses fenômenos considerados uma inovação democrática e que foi objeto de muitas dúvidas no início do presente estudo. A ideia inicial, colocada ainda no projeto de tese, foi a de que esta pesquisa tomasse, como base teórica, a democracia radical e plural, apresentada anteriormente, mas também da democracia deliberativa, pois eu acreditava que as conferências poderiam ser entendidas 55 Como também estava na III CNPM na condição de observadora/pesquisadora, pude presenciar situações desse tipo, como a que mobilizou o plenário inteiro em torno da aprovação do termo “descriminalização” ou “legalização” do aborto. O momento, bastante tenso, foi marcado por gritos e até choros. 56 O consenso, neste trabalho, será colocado entre aspas porque de acordo com o referencial teórico que utilizamos, que são autores vinculados ao pós-estruturalismo, o que vemos são articulações em torno de pontos nodais e que formam cadeias de equivalência. São, portanto, muito mais consensos temporários e contingentes. 57 As próprias representantes da SPM não tinham uma posição homogênea e o que presenciei foi um momento bastante tenso. Isso aconteceu também em alguns GTs. 58 Thamy Pogrebinschi também fala disso: “Não apenas as conferências nacionais transcendem as fronteiras geográficas do espaço local, como também superam os seus limites substantivos. Ao facultar que a participação se exerça em escala nacional, as conferências nacionais favorecem que os interesses nelas representados também o sejam, o que garante que o procedimento conduza ao seu principal escopo: a formulação de diretrizes para políticas públicas nacionais [...] As conferências nacionais têm, assim, a potencialidade de fazer de problemas locais soluções nacionais”. 126 como esfera pública. Trata-se de uma rede adequada para a comunicação de conteúdo, tomadas de posição e opiniões (HABERMAS, 2003, p. 92). Reproduz-se através do agir comunicativo, estando em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana. Como resultado das discussões e da ação comunicativa, isto é, da troca de ideias com o intuito do entendimento mútuo, o que se vê é a formação da opinião pública ou de consensos em torno de diversas questões. O estudioso português João Pissarra Esteves (2003, p. 28) pontua que nem sempre o consenso vai ser alcançado, porém, espera-se que se possa chegar a estabelecer um compromisso aceitável. Dessa forma, percebe-se a centralidade da racionalidade no público e podemos constatar por que se conduz a esfera pública no sentido proposto por Habermas. Para esse, o requisito de se dizer que uma ação é racional é o de ser suscetível de fundamentação e crítica. Para discutir o conceito, o autor se baseia em Joshua Cohen, que caracteriza o processo deliberativo através dos seguintes postulados: as deliberações realizam-se de forma argumentativa, sendo marcadas pela inclusão e pela abertura do espaço, além da liberdade em relação às coerções internas e externas. As tomadas de posição são, dessa forma, movidas exclusivamente pela força não coercitiva do melhor argumento. O autor acrescenta que as deliberações políticas devem levar em conta a decisão da maioria, abrangendo todas as matérias possíveis de regulação, tendo em vista o interesse de todos (COHEN, 1954 apud HABERMAS, 2003, p. 30). Segundo Lígia Lüchmann: [...] a democracia deliberativa vai dar centralidade à questão da participação com base em uma nova concepção acerca da legitimidade política. Acusando as fragilidades da democracia representativa e a redução da legitimidade do processo decisório ao resultado eleitoral, a democracia deliberativa advoga que a legitimidade das decisões políticas advém de processos de discussão que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e do bem-comum, conferem um reordenamento na lógica de poder tradicional (LÜCHMANN, 2007, p. 143). A autora argumenta que esta corrente sustenta os modelos participativos, pois o critério de legitimidade deles está baseado na ideia de que as decisões políticas devem ser tomadas pelos que estejam submetidos a elas por meio do debate público. 127 Com efeito, no plano teórico, as diferenças com relação ao modelo da democracia representativa são marcantes, já que incorpora a participação da população no processo de discussão e de tomada de decisões políticas. Tendo em vista a inevitabilidade da representação (na participação), a efetividade destes princípios de controle social vai ocorrer depõe meio de diferentes práticas de participação e representação (p&r), cujas características, no tocante à representação, visam a superar os limites da representação eleitoral (LÜCHMANN, 2007, p. 144). Ao mostrar as diferenças entre os dois modelos, a autora estuda os formatos de funcionamento dos conselhos gestores e orçamento participativo e aponta que a dimensão da participação está atrelada à da representação. A primeira constitui em chave da representação (LÜCHMANN, 2007). Frente a isso, o lançamento das Conferências de Políticas para as Mulheres teve o intuito de formular diretrizes para nortear as políticas públicas para o referido segmento numa perspectiva da igualdade de gênero. Essa leitura poderia ser feita para as conferências de políticas públicas se fosse usado o referencial teórico proposto pela autora e aqui colocado na vertente habermasiana. Trata-se, inclusive, de um viés bastante utilizado em relação aos estudos sobre democracia participativa no Brasil, conforme autores que abordamos neste item (AVRITZER, 2012; AVRITZER; SOUZA, 2013; FARIA, 2012; PETINELLI, 2011). Trata-se de uma perspectiva com um forte viés normativo e inadequada para análise de processos empíricos, como os que estudo. O consenso na leitura dos autores com os quais trabalho é conflituoso, fruto de articulações discursivas e hegemônico. Vê-se, portanto, que a racionalidade está no centro da abordagem deliberativa e, pelo fato de as conferências se tratarem de espaços de negociação, poderia ser uma teoria adequada aqui. Porém, ao longo da pesquisa de campo, percebi que a mesma não responderia aos objetivos do presente trabalho, pois as negociações revelavam muito mais dimensões afetivas e articulatórias entre os diferentes sujeitos do que propriamente uma troca argumentativa no sentido habermasiano. Essa constatação está bastante próxima das críticas que Mouffe faz às abordagens dos teóricos deliberativos (não só de Habermas, mas de John Rawls). Para ela, ao privilegiarem a racionalidade nas relações sociais, deixa-se de lado a dimensão afetiva das paixões, as desigualdades de poder e, portanto, dos conflitos (MOUFFE, 2005). A abordagem habermasiana está relacionada a uma dimensão da democracia descolada da realidade brasileira e me deixaria presa a buscar um consenso com base nesses aspectos pontuados acima. Já as perspectivas da teoria democrática e da feminista aqui trabalhada me permitem compreender que aspectos políticos estão em jogo nas conferências e, principalmente, responder a questão central desta tese, que ao invés de buscar os consensos, está focada na 128 compreensão dos processos discursivos que podem ou não levar aos consensos, sabendo que serão contingentes e conflituosos. Por ser um fenômeno democrático novo, os estudiosos parecem estar focados em aspectos normativos ou numa visão mais institucional do que propriamente em questões que possam ser críticas à eficácia das conferências ou da efetividade das propostas colocadas. É o caso, por exemplo, de Cláudia Feres Faria (2012) e Leonardo Avritzer (2012), ambos do Departamento de Ciência Política, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de Thamy Pogrebinschi (2013), do Instituto de Estudos Sociopolíticos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A UFMG, inclusive, teve um acentuado destaque através da produção de materiais de pesquisa sobre a democracia participativa e na organização de cursos a distância de formação de conselheiros. Estou de acordo com a afirmação de Avritzer e Souza: A análise das conferências traz elementos que podem renovar o debate a respeito da democracia. É perceptível que as conferências têm um potencial democratizante no Brasil, expresso em alguns aspectos, a saber: ampliação da relação do governo com a sociedade, em especial na elaboração de agendas para as políticas públicas: estabelecimento de novas arenas para a discussão de questões de sujeitos políticos historicamente excluídos; e estímulo a ações coordenadas entre os diferentes membros da Federação. Com isso, a análise das conferências também pode trazer questões à pauta da teoria democrática, em particular, no que tange à escala da participação, ao debate entre maiorias e minorias nas democracias e à relação entre participação e representação (AVRITZER; SOUZA, 2013, p. 17-18). Mesmo não utilizando a teoria da democracia deliberativa nesta tese, tal como Avritzer e os demais autores abordados neste item o fazem, concordo com a importância do estudo das conferências sobretudo a partir de um ponto de vista de relações mais internas, numa abordagem microsociológica da política através dos autores pós-estruturalistas Chantal Mouffe e Ernesto Laclau gt para que seja possível questionar de que forma se constrói a participação e a representação, bem como em que medida se pode falar de inclusão de minorias. Nas palavras de Avritzer, é possível observar um entusiasmo em relação aos referidos processos: As conferências nacionais representam um fortalecimento do marco participativo presente na Constituição de 1988. De acordo com o texto constitucional, a soberania popular no Brasil pode se expressar tanto pela via 129 da representação quanto pela via da participação. Não existem dúvidas de que nos 15 primeiros anos de vigência do texto constitucional foi estabelecida uma divisão de trabalho através da qual a representação prevaleceu no âmbito do governo federal, ao passo que a participação se fortaleceu localmente pela via dos orçamentos participativos e da participação nos conselhos. Essa divisão de trabalho informal terminou com a chegada do PT à Presidência da República e a enorme ampliação das conferências nacionais (AVRITZER, 2012, p. 21). Thamy Pogrenbischi (2013), Cláudia Feres Faria, Viviane Petinelli Silva; Isabella Lourenço Lins (2012) analisam as conferências como um sistema integrado de participação, representação e deliberação. Ao permitir que mulheres vocalizem as demandas das mulheres, que índios expressem as preferências de índios ou que negros defendam os interesses de negros, as conferências nacionais propiciam que uma representação mais justa seja obtida por meio de uma presença que muitas vezes parece não caber em partidos políticos ou em cotas nos parlamentos (POGREBINSCHI, 2013, p. 244). Essa colocação traz à tona um debate sobre a legitimidade da representação. Karla Adrião (2008) coloca de forma detalhada como a presença ou não de homens como delegados (e votantes) na Conferência Estadual da Mulher de Santa Catarina, em 2004, foi alvo de polêmica. A presença, legítima ou não, de homens delegados foi, portanto, o item mais polêmico na leitura do regimento interno da conferência. Um mal-estar entre alguns segmentos de mulheres foi se ampliando, de uma maneira tal que, após a abertura dos trabalhos da manhã do primeiro dia, foi articulada a inclusão de uma cláusula no regimento interno, que anulava a possibilidade dos delegados homens presentes de “representarem os direitos das mulheres na conferência nacional” (ADRIÃO, 2008, p. 164). O relato da pesquisadora tem a ver diretamente com participação e representação. Na condição de também pesquisadora e de militante feminista, já ouvi o argumento de que o movimento feminista deve ser ocupado pelas mulheres, seu sujeito único, pois os homens já dispõem dos demais espaços de atuação. Seguindo essa lógica, nas conferências de políticas para as mulheres, os homens também não têm legitimidade para participar. Isso, inclusive, é um aspecto que torna o estudo ainda mais importante por ser de um segmento que, até então, não dispunha de um espaço de seu protagonismo e construção. 130 Ao retomar à percepção do entusiasmo, é possível constatá-lo também na colocação de Pogrenbischi: Ao fazer da deliberação pública seu mecanismo de participação, as conferências nacionais convertem-se em instâncias representativas, propiciando que interesses, preferências, ideias e opiniões que escapam aos limites das circunscrições eleitorais sejam vocalizados, além de externados diretamente àqueles que, eleitos pelo voto, podem transformá-los em leis e políticas. Ao serem responsivos às diretrizes das conferências nacionais, os poderes Executivo e Legislativo se fortalecem, exercendo uma representação política mais democrática. As conferências nacionais têm, assim, a vocação de fazer da participação representação (POGRENBISCHI, 2013, p. 244). A tese que a autora defende é que as conferências nacionais contribuíram significativamente para que grupos, tidos como excluídos da representação de seus interesses no processo político brasileiro, tivessem suas proposições incluídas nos poderes Executivo e Legislativo. São esses grupos: negros, mulheres, índios, idosos, pessoas com deficiência, jovens, crianças e adolescentes, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs) (POGRENBISCHI, 2013, p. 245). Trata-se de uma visão bastante otimista sobre a qual não vou me ater neste trabalho, pois além de o foco ser o da capacidade das conferências incidirem propriamente sobre as definições dos poderes ou da implementação de políticas públicas, o formato da discussão que vou desenvolver condiz com apontamentos críticos dessa forma de participação. Em coautoria com Fabiano Santos, Pogrebinschi afirma que as conferências de políticas públicas, enquanto novas práticas democráticas, têm o intuito comum de ampliar a participação dos cidadãos para além do exercício do direito ao voto (POGREBINSCHI; SANTOS, 2011, p. 260). Os autores acrescentam que: O principal pressuposto a nortear tais experiências, portanto, é o de permitir que os cidadãos envolvam-se de forma mais direta na gestão da coisa pública, em particular na formulação, execução e controle de políticas públicas. O efeito esperado com tais práticas, por sua vez, é o de permitir que o exercício da democracia não se esgote nas eleições, propiciando que os cidadãos manifestem suas preferências de uma forma não mediada por partidos e políticos profissionais e por meios outros que não o voto (POGREBINSCHI; SANTOS, 2011, p. 260-261). Conforme pontuei anteriormente, apesar de discordar da visão otimista, ressalto o caráter da participação como uma visão de política que vai além da representação, tão característica do sistema eleitoral. É preciso encarar que, mesmo com falhas no funcionamento, as próprias conferências de políticas públicas, os conselhos e o orçamento 131 participativo constituem formas de incluir a população nas tomadas de decisão junto aos governos. O objetivo desta tese é focar na construção e percepções desse fenômeno, sem ilusões de que constituem um grande acontecimento democrático. Essas diferenças estão ligadas a táticas políticas, visões acerca do papel do Estado, da própria função das Conferências. Frente a isso, cabe aqui ressaltar a importância da análise de relações internas na construção de um evento de tamanha proporção no debate em torno das políticas para as mulheres no país. O lançamento das Conferências de Políticas para as Mulheres teve o intuito de formular diretrizes para mostrar as políticas públicas para o referido segmento numa perspectiva da igualdade de gênero. Segundo a publicação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres: A proposição de uma Política Nacional para as Mulheres59 na direção da igualdade de gênero implica, em primeiro lugar, reconhecer que a organização do Estado, especialmente a sua lógica de formulação de políticas, interfere na vida das mulheres reproduzindo ou alterando padrões de relações de gênero. E, na medida em que reconhecemos que essas relações têm um caráter sistêmico, o alcance de uma Política Nacional deve interferir no sentido das ações do Estado (BRASIL, 2004, p. 11). Assim como foi colocado anteriormente, no presente capítulo, fica evidente a expectativa do papel do Estado no combate às desigualdades de gênero. Isso remonta à própria história do movimento feminista no país, assunto abordado no primeiro capítulo desta tese. É interessante perceber que se trata de um documento oficial do governo intitulado “I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres: proposta de diretrizes para uma política nacional para as mulheres” (BRASIL, 2004), o que mostra que existe uma concepção tanto por parte dos movimentos feministas, a exemplo da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), conforme relatado no presente trabalho, quanto ao órgão responsável pelas políticas para as mulheres. Além disso, denota a própria influência, naquele contexto, do movimento feminista. De uma forma sintética, no presente capítulo, foi feito um percurso teórico do que se espera do Estado para entendermos sobre políticas públicas e, mais especificamente, políticas 59 A Política Nacional para as Mulheres tem um caráter permanente e fornece as linhas para os Planos de Políticas para as Mulheres, que são mais perenes e sujeitos a modificações. Orienta-se pelos princípios de igualdade e respeito à diversidade; equidade; autonomia das mulheres; laicidade do Estado; universalidade das políticas; justiça social; transparência dos atos públicos e participação e controle social (BRASIL, 2008b, p. 21). 132 públicas para as mulheres com uma perspectiva de gênero. O que realizo na presente tese não se trata apenas de um estudo que integra as reflexões e análises acerca de experiências de democracia participativa, mas também sobre teoria política feminista. A produção do pensamento crítico não apenas sobre conferências em si, mas, principalmente, que abordem o contexto político que as marcou é de grande importância não só acadêmica e política, mas também para a militância feminista e de órgãos governamentais envolvidos nesse processo. A abordagem das Conferências de Políticas para as Mulheres está relacionada ao segmento que, mesmo existindo há décadas como movimento social, até 2002, ainda não tinha passado por uma esfera institucional desse tipo, apesar de o CNDM existir desde 1985, mas durante boa parte do tempo atrelado a instâncias de outra área. Entender como acontecem os processos discursivos que permeiam os espaços de construção desses eventos, no Recife e em Pernambuco, é fundamental para a compreensão do que estava sendo priorizado e de que forma foram construídas as articulações políticas em determinado contexto no país. Essa abordagem vai mostrar como os movimentos feministas e de mulheres se posicionaram frente aos princípios e pressupostos da Política Nacional para as Mulheres e pode ser vista como expressão do reconhecimento de que as políticas para as mulheres são de responsabilidade de todos os órgãos que compõem o governo, caracterizando, conforme foi abordado, a transversalidade. Avritzer argumenta que parece claro que, de um modo geral, existe pouco conhecimento sobre as conferências nacionais, seja do ponto de vista das características políticas, seja do ponto de vista de seus efeitos sobre as políticas públicas (AVRITZER, 2012, p. 9). E, mais especificamente, no caso das políticas para as mulheres é que os debates e estudos ainda são poucos, visto que a Secretaria de Políticas para as Mulheres foi uma experiência relativamente recente. Diante do contexto político e econômico o qual a população brasileira tem passado, com uma série de cortes nas políticas tidas como de minorias, dentre elas a das mulheres, faz-se ainda mais necessário um estudo acerca das articulações políticas nos espaços de construção das conferências. Diante do exposto neste o no capítulo anterior, passo à descrição do campo de pesquisa, as reuniões dos Conselhos Municipal e Estadual dos Direitos da Mulher – Recife e Pernambuco e do Fórum de Mulheres de Pernambuco para entender de que forma os questionamentos feitos ao longo das páginas vão ser respondidos. Para isso, serão mostradas as categorias de análise com base na Teoria do Discurso, a partir dos escritos dos pós-estruturalistas Chantal Mouffe e Ernesto Laclau. 133 4 Reflexões metodológicas e as categorias analíticas O objetivo deste capítulo é, inicialmente, fazer uma reflexão acerca da ciência a partir de olhares feministas. Há autoras que argumentam que a ciência tradicional é androcêntrica, privilegia os homens em detrimento não só das mulheres, mas das pessoas negras e pobres. Tratam-se, em suas falas, de perspectivas dualistas e hierárquicas de ver o mundo e lidar com a ciência, trabalhando a partir de dicotomias: razão x emoção; objetivo x subjetivo; corpo x mente etc., em que o primeiro está associado aos homens e o segundo às categorias subalternizadas, as mulheres, os negros etc. A partir da crítica a esses modelos, questiona-se, por exemplo, a quem serve o conhecimento e quem faz ciência. Discute-se como fazer para que as mulheres sejam sujeitos do conhecimento e, para isso, defende-se que se faça uma ciência feminista, que está calcada em princípios de objetividade e reflexividade fortes. A partir da desconstrução da ciência tradicional, faz ver que a ciência não é algo à parte do contexto cultural e nos leva a refletir, inclusive, sobre a relação dos pesquisadores e pesquisadoras com o campo do estudo e os sujeitos estudados. Diante disso, o feminismo está no centro desta tese no sentido de que as teorias abordadas levam em consideração as relações de poder a que homens e mulheres estão imersos no cotidiano. Essas relações levam às desigualdades, que são fundamentais no presente trabalho, pois as próprias políticas para as mulheres e as conferências de políticas públicas podem ser vistas como formas de o Estado brasileiro tentar mudar esse cenário. Refleti bastante se estaria fazendo muito mais uma empiria feminista e constatei que optei pelo fato do feminismo perpassar toda esta tese, desde o pensar a relação entre mulheres e democracia, passando pela escolha de um referencial teórico que trabalhe numa perspectiva mais próxima de disputas políticas e de concepção de desigualdade social, até a minha relação com o campo de pesquisa e, por conseguinte, ao que defenderei da tese propriamente dita60. Estou de acordo, pois, com o que algumas autoras, preocupadas com reflexões em torno da filosofia da ciência, nesta tese representada por Sandra Hading (2004), nomeiam por teoria da perspectiva feminista. Para a autora, no processo de pesquisa, ao se tomar como ponto de partida a experiência de grupos tradicionalmente excluídos, como mulheres, negros e 60 Deixo registrado que tenho consciência de que este texto foi construído coletivamente por meio das reuniões de orientações, do grupo de estudo, das interlocuções com as integrantes no campo de pesquisa, das e dos colegas que fizeram questionamentos e críticas nos congressos em que estive presente, bem como nas interlocuções com os professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. 134 negras, gays, lésbicas etc., a objetividade é maximizada. Dito de outra forma, é preciso incluir fatores sociais da produção do conhecimento e partir de uma localização explicitamente social no processo de pesquisa, fatores bastante combatidos e evitados pelo método científico ocidental para se promover uma reflexividade forte, que é pré-requisito para a objetividade forte (HARDING apud HIRSH; OLSON, 2009). Por isso, vejo como fundamental esta tese ser escrita na primeira pessoa do singular, pois como mulher, ainda que tenha desfrutado de muitos privilégios ao longo da minha vida, parto de uma experiência de diversas opressões e de apostas de transformações sociais a partir dessas experiências. Não poderia escrever de forma diferente após onze meses imersa na pesquisa de campo nos Conselhos de Direitos da Mulher e Conferências de Políticas para as Mulheres e, posteriormente, por ter me tornado integrante do Fórum de Mulheres de Pernambuco. A observação participante foi o método que julguei mais adequado para eu conhecer a fundo o campo de pesquisa, sabendo quem eram as integrantes, as pautas abordadas, os destaques, os encaminhamentos e, sobretudo, para ter uma noção mais próxima do que estaria envolvido nas disputas de sentidos. Os onze meses, entre junho de 2015 a maio de 2016, foram marcados por: cinco reuniões do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher-Recife; 11 reuniões do Fórum de Mulheres de Pernambuco; sete reuniões do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de Pernambuco; 11 reuniões da Comissão de Organização da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres – Pernambuco; duas reuniões de organização e preparação para Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”; acompanhamento de cinco pré-conferências no Recife e uma conferência livre no presídio feminino Colônia Penal Bom Pastor; acompanhamento de sete conferências no Estado, dentre as quais três na Região Metropolitana do Recife; acompanhamento da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres e, por fim, a IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em maio de 2016 em Brasília, finalizando, assim, a pesquisa de campo. Todos esses espaços me resultaram em centenas de imagens e num diário de campo de mais de 350 páginas contidas num caderno pequeno que considero de uma preciosidade inestimável. Nele, coloquei tudo o que podia anotar das falas e expressões, mas sobretudo das minhas dúvidas, inquietações e angústias de fazer uma pesquisa de campo sobre algo em que tanto acredito, na democracia pelo viés do feminismo, em meio a um contexto político que parecia ser completamente adverso à participação das mulheres na política. Também significou um desafio para voltar ao lugar onde prestei serviços em 2011, a Secretaria Estadual de Política para as Mulheres, na construção das referidas Conferências e, desta vez, não estar mais com o 135 olhar de “deslumbre” frente a algo que, àquela época, via como uma novidade potente. Na condição de pesquisadora, em 2015, a postura era muito mais observadora, de me permitir as dúvidas e o silêncio ao invés do mero entusiasmo. É importante a reflexão acerca das dificuldades e do que significa ter me inserido no campo feminista para esta pesquisa e, sobretudo, para as ideias que desenvolverei nos capítulos seguintes em que analisarei propriamente os dados e desenvolverei a tese a partir do que eles me dizem. Ter mergulhado no campo me permitiu construir um vasto material de pesquisa que me fará, no capítulo seguinte, analisar os dados de que disponho à luz dos princípios da Teoria do Discurso, trabalhados por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, iniciados na obra “Hegemonia e Estratégia Socialista”, em 1985, e, posteriormente, aprofundada pelo filósofo argentino (LACLAU; 1990; 2011; 2013). Neste capítulo, interessa-me compreender as lógicas de equivalência e diferença, que são centrais para entender as articulações discursivas. As mesmas serão centrais na análise que será feita nos capítulos seguintes e nos revelarão o que esteve em disputa na construção das conferências de políticas para as Mulheres no Recife e em Pernambuco. É importante destacar que a ideia inicial estava relacionada ao estudo dos eventos e não necessariamente à construção dos mesmos. Por isso, fui a diferentes conferências para tentar entender as possíveis diferenças entre elas. Mas, no decorrer da pesquisa de campo, percebi que, além de não ser possível estudar sozinha os eventos por toda sua magnitude, os espaços de construção deles, sejam nos espaços dos conselhos dos direitos das mulheres, em que estava governo e sociedade civil, ou nos do movimento social, aqui representado pelo Fórum de Mulheres de Pernambuco, diziam muito mais do que eu estava buscando, que eram as articulações discursivas ou, ainda disputas em torno dos sentidos de políticas para as mulheres. 4.1 A pesquisa científica a partir do olhar feminista Sandra Harding afirma que a epistemologia responde à pergunta de quem pode ser sujeito do conhecimento, trata também sobre as provas às quais as crenças devem ser submetidas para serem legitimadas como conhecimento e aborda que tipo de coisas podem ser conhecidas (HARDING, 1987a, p. 3). A filósofa estadunidense faz alguns questionamentos a partir dessa definição: podem as mulheres ser sujeitos do conhecimento? As provas devem aplicar-se apenas a experiências e observações masculinas? As verdades subjetivas podem ser consideradas como conhecimento? (HARDING, 1987a, p. 3). Segundo Harding: 136 As feministas argumentam que as epistemologias tradicionais sistematicamente excluem, com ou sem intenção, a possibilidade de as mulheres serem sujeitos ou agentes do conhecimento; argumentam que a voz da ciência é masculina e a história foi escrita do ponto de vista dos homens (dos que pertencem à classe ou raça dominantes); argumentam que sempre se pressupõe que o sujeito de uma oração sociológica tradicional é homem. É por isso que se tem proposto teorias epistemológicas alternativas que legitimem as mulheres como sujeitos do conhecimento [tradução própria] (HARDING, 1987a, p. 3). Diante dessa colocação, recorro aqui às autoras que podem estar associadas à epistemologia feminista para que seja possível problematizar uma série de questões ligadas a formas de se pensar e fazer ciência que podem ser consideradas sexistas. Um dos principais alvos de reflexão e crítica das cientistas feministas é a forma como o mundo está dividido em dicotomias conceituais e sociais: público versus privado; masculino versus feminino; objetivo versus subjetivo; poder versus amor; razão versus emoção; cultura versus natureza; universal versus particular; ativo versus passivo; transcendente versus imanente etc. (KELLER, 1991; NARAYAN, 1997; SADENBERG, 2002; MAFFIA, 2002). Essas dicotomias são características da razão cartesiana, característica do pensamento iluminista, conforme aponta Sadenberg (2002, p. 95). Esta autora reitera que, para as feministas, esses dualismos estão calcados em diferenças de sexo e nas desigualdades de gênero, pois os primeiros conceitos são associados aos homens (público; objetivo; poder; razão; cultura; universal; ativo), os segundos estão ligados às mulheres (privado; subjetivo; amor; emoção; natureza). As feministas apontam ainda que a Ciência Moderna é androcêntrica e o sujeito universal dessa ciência tem sido o homem branco ocidental (SADENBERG, 2002, p. 96). Ou, ainda: Ser objetivo faz parte do estereótipo da mente masculina. Ser subjetivo faz parte do estereótipo da mente feminina. Ter raciocínio universal se atribui aos homens – sem dúvida que foi criticado em toda a história da filosofia e das ciências a mulher não ter mais que raciocínio para assuntos particulares. A razão é uma qualidade especificamente masculina, enquanto a emoção é uma qualidade especificamente feminina. Dessa maneira, vemos então que os pares estão sexualizados e que formam um estereótipo de masculinidade e feminilidade. Vemos também, que a coluna da esquerda tem valores epistemológicos, e a coluna da direita não tem valores epistemológicos. E vemos também, que existe uma hierarquização desses pares. Significa dizer que, como costuma ocorrer na história do pensamento, toda diferença vai ser resolvida em uma hierarquia. Não é simplesmente dizer que os homens sejam diferentes das mulheres, e sim que se estabeleça entre eles uma hierarquia, como se estabelece entre qualquer sujeito ao qual se atribui uma identidade e aqueles outros que se deixa na alteridade – sujeitos esses dos quais as mulheres são um paradigma (MAFFIA, 2002, p. 35). 137 Lourdes Bandeira (2008) argumenta acerca da crítica feminista ao conhecimento científico, questionando alguns dos pressupostos que nortearam a produção do conhecimento científico, a exemplo da ideia de neutralidade, universalismo, objetividade e aponta também o caráter masculinista. Isso não significa que as mulheres tenham sido excluídas, mas que existem resistências a sua inclusão. É pressuposto um sujeito universal homem, tal qual Sadenberg (2002) reitera. Essa postura crítica, inclusive, vai ao encontro do referencial teórico adotado nesta tese. Não só a teoria feminista pós-estruturalista como a Teoria do Discurso têm como pressupostos a desconstrução do sujeito universal, tão caro à Modernidade. Neste sentido, a crítica feminista pós-estruturalista nos faz negar os binarismos tratados pela ciência. Bandeira salienta que se trata da introdução de novas perspectivas analíticas que exprimem novos paradigmas à produção do conhecimento e a construção de novos campos de saber e poder. [...] sua contribuição [da crítica feminista] diz respeito à abertura para as alteridades, ou seja, enfatiza-se a negação de qualquer perspectiva essencialista e binária, contemplando o espaço das experiências femininas plurais constitutivas da experiência social da modernidade e o surgimento de novas temáticas e categorias derivadas de tais experiências. Vale destacar que a teoria feminista, ao incorporar as alteridades, não se restringiu com exclusividade às mulheres, mas também absorveu outros sujeitos omitidos pelas grandes discursividades iluministas (BANDEIRA, 2008, p. 221). A crítica feminista trouxe à tona o alerta sobre o fato de que o conhecimento científico não é algo objetivo, desconectado do contexto cultural dos atores sociais. Ou seja, não está à parte dos cenários de diversos tipos de desigualdades sociais. Diante disso, reitero que esta pesquisa está entrecortada pelo olhar de gênero, isto é, pela percepção de que existem não apenas desigualdades entre homens e mulheres, mas que os processos discursivos analisados no presente trabalho são marcados por disputas políticas e lutas sociais, inclusive entre diferentes grupos de mulheres, em torno dos sentidos de políticas públicas que sejam mais adequadas à melhoria da vida das mulheres. Seguindo as ideias Sadenberg (2002, p. 113), posso dizer que me inspiro na passagem do “fazer ciência enquanto feminista” para o “fazer uma ciência feminista” no sentido de que faço o possível para que a minha produção acadêmica tenha o olhar para as diversas questões ligadas a gênero e à luta das mulheres para mudar os contextos de desigualdades. Segundo a autora: [...] pensar em uma ciência feminista – ou em qualquer outra possibilidade de ciência politizada – requer, como primeiro passo, a desconstrução dos pressupostos iluministas quanto à relação entre neutralidade, objetividade e conhecimento científico. Requer, portanto, a construção de uma 138 epistemologia feminista - de uma teoria crítica feminista sobre o conhecimento –, que possa autorizar e fundamentar esse saber que se quer politizado (SADENBERG, 2002, p. 91). Faço o esforço, neste trabalho, de resignificar os pressupostos de neutralidade e objetividade da ciência a partir da própria pesquisa de campo, que abordarei adiante ainda neste capítulo, da minha inserção nesse campo e, consequente, descoberta como feminista. Por agora, cabe reiterar a crítica feminista à ciência, bem como as mudanças geradas ao longo das décadas. Sandra Harding mostra que o entendimento do “fazer uma ciência feminista” não é um consenso. Para correntes pós-modernas, esse entendimento de ciência não é possível. Ela remonta a duas versões: a primeira diz que, em qualquer momento da história, existem muitos “saberes subjugados”61que entram em conflito e que não são refletidos nas histórias dominantes que a cultura conta sobre a vida social. Dessa forma, não se pode falar numa ciência feminista ou numa sociologia feminista, mas sim de muitas histórias que mulheres diferentes contam acerca dos diversos conhecimentos que possuem (HARDING, 1987b, p. 188). A segunda crítica, protagonizada pela teórica do feminismo negro bell hooks62, diz que o que torna o feminismo possível é que as mulheres podem se unir em torno de diversas formas de dominação dos homens. Não é o fato de que as mulheres partilham de certos tipos de experiência de opressão patriarcal de raça, classe e cultura. Dessa forma, não poderia haver “um”63 ponto de vista feminista como o gerador de histórias verdadeiras sobre a vida social, mas apenas críticas e oposições feministas a falsas histórias. Harding reitera que, de acordo com essa perspectiva, Não poderia haver ciência feminista porque a oposição do feminismo às histórias de dominação localiza o feminismo em uma posição antagônica em relação a qualquer tentativa de fazer ciência - androcêntrica ou não [tradução própria] (HARDING, 1987b, p. 188). A partir das duas abordagens, Harding questiona se as feministas devem desistir dos benefícios políticos que podem ser acumulados a partir da produção de uma ciência social nova, menos enviesada. A autora responde que é precipitado desistir de algo que nunca se teve e que apenas os que tiveram acesso aos benefícios do Iluminismo podem desistir dos mesmos (HARDING, 1987b, p. 189). Estou de acordo com a autora, sobretudo, quando diz 61 Aspas de Harding. A autora usa o seu nome em letras minúsculas como uma forma de chamar a atenção para suas ideias e não para si mesma. 63 Destaque de Harding. 62 139 que precisamos estar atentas aos impulsos fundamentais da busca pelo conhecimento e da ciência ao mesmo tempo em que os transformamos em fins feministas. A partir das ideias postas por Sadenberg (2002), é possível questionar se fazer uma ciência feminista não seria contraditório com os princípios de neutralidade e objetividade da ciência. Londa Schienbieger reitera que a ciência é uma atividade humana e deve servir a todos, homens e mulheres (SCHIENBINGER, 2001, p. 334). Portanto, não se trata de entrar em contradição com os princípios, mas sim de resignificá-los para que os sujeitos do conhecimento sejam homens e mulheres. A própria corrente teórica à qual eu estou filiada, o pós-estruturalismo, está de acordo com o questionamento desse sujeito universal e, por que não dizer, masculino do conhecimento. Diante disso, Sadenberg questiona: Como dar procedimento aos nossos afazeres políticos e científicos se os princípios que os autorizavam anteriormente são agora questionados? Que estratégias epistemológicas poderão melhor avançar a produção feminista de um conhecimento politizado? (SADENBERG, 2002, p. 101-102). Para responder a tais questões, a pesquisadora recorre a autoras da área conhecida como epistemologia feminista, como Sandra Harding e Dorothy Smith, cujas ideias também abordarei neste capítulo. Seu argumento central é o de que, quando “fazemos ciência usual” como feministas ou, ainda, quando criticamos a ciência a partir de uma perspectiva feminista, estamos fazendo uma ciência feminista64 (SADENBERG, 2002, p. 113). A filósofa indiana Uma Narayan explica que: A epistemologia feminista sugere que integrar a contribuição das mulheres ao domínio da ciência e do conhecimento não constituirá uma mera adição de detalhes; não ampliará meramente a visão, mas resultará numa mudança de perspectivas, nos capacitando a ver um quadro bem diferente. A inclusão das perspectivas das mulheres não significará simplesmente uma maior participação delas na prática atual da ciência e do conhecimento; mudará a própria natureza dessas atividades e sua autocompreensão (NARAYAN, 1997, p. 276-277). Ela acrescenta que a epistemologia feminista é uma manifestação particular de uma percepção mais geral de que as experiências das mulheres enquanto indivíduos e seres sociais, bem como as contribuições ao trabalho, à cultura e ao conhecimento, a história e os interesses 64 Destaque próprio. 140 políticos têm sido sistematicamente negligenciados pelos discursos dominantes em diferentes campos (NARAYAN, 1997, p. 276). Dessa forma, em sua argumentação, é fundamental o papel das perspectivas advindas das diferentes experiências. Como feminista indiana, ela demarca a sua perspectiva como não-ocidental, levando em consideração diversas questões culturais e formas de olhar para os problemas de gênero. A partir disso, questiona acerca da possibilidade e legitimidade de pessoas que não sofrem determinados tipos de opressão serem aliados no compartilhamento dessas perspectivas e percepções. Ela responde da seguinte maneira: Nosso comprometimento com a natureza contextual do conhecimento não exige que afirmemos que aqueles(as) que não integram esses contextos nunca poderão ter algum conhecimento sobre eles. Mas esse comprometimento nos permite, sim, sustentar que é mais fácil e mais plausível65 para os oprimidos(as) ter uma percepção crítica sobre as condições de sua própria opressão do que para os(as) que vivem fora dessa estrutura. Aqueles(as) que realmente vivem as opressões de classe, raça ou gênero defrontam-se com as questões que essas opressões geram numa variedade de situações diferentes. A compreensão e as respostas emocionais causadas por essas situações são um legado com o qual confrontam qualquer nova questão ou situação (NARAYAN, 1997, p. 285). O posicionamento da autora me faz refletir acerca da minha condição como mulher branca, de classe média, que, ao longo da vida, teve acesso a uma educação de qualidade, chegando, inclusive, a estudar fora do Brasil, em Portugal e na Inglaterra. Eu me propus a estudar, inicialmente, processos discursivos entre representantes do governo e da sociedade civil nas negociações sobre políticas para as mulheres no contexto de conferências de políticas públicas. Ao longo dos meus 32 anos de idade, tive o privilégio de não vivenciar contextos de privação ou de negligência extrema do Estado, como pude ver o contexto de tantas de mulheres vindas da periferia, negras e que sofrem com uma polícia opressora e com falta da garantia de direitos humanos mais básicos. Cito dois exemplos num universo de dezenas de outros que fazem que me veja como uma mulher de privilégios e, ao mesmo tempo, como alguém que pode fazer algo acadêmica e politicamente para transformar os contextos de desigualdade. Um deles é da primeira reunião que fui do Fórum de Mulheres de Pernambuco, no dia 09 de julho de 2015. Cheguei à sede da Organização Não-Governamental SOS Corpo, onde acontecia a reunião, já um pouco atrasada, pois antes estava na reunião ordinária do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e me causou um certo choque a diferença entre os espaços. Enquanto no CEDIM-PE, havia muitas mulheres brancas, diversas que trabalham para os órgãos estaduais e as que aparentam gozar de privilégios de classe, as que integram o 65 Destaques de Narayan. 141 FMPE e que estavam ali eram majoritariamente negras, de periferia (pelas falas delas, notei isso) e de gerações distintas. Isso está relacionado ao que Carmen Silva, em sua tese de doutorado em Sociologia, em que estudou o feminismo na Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), coloca como perfil das integrantes da reunião do Comitê Político Nacional do referido movimento que, à época da pesquisa, em 2014, contou com a presença de 61 mulheres de agrupamentos locais de 17 estados. Embora tenha sido apenas uma amostra, a vivência no movimento me faz ver que não são dados desconectados da realidade de boa parte das integrantes. A estudiosa aponta que a maior parte delas, 67,2%, declaram-se pretas, pardas ou negras; 34,30% pertencem à classe baixa-pobre-periférica-popular-trabalhadora; 65% tinham entre 30 e 60 anos, o que mostra uma grande quantidade na fase adulta (SILVA, 2016, p. 227-228). Ela acrescenta que: Inquiridas sobre a sua identidade política, a maioria afirmou ser o feminismo a sua referência, à exceção de seis respondentes que não o fazendo, utilizaram o termo “mulheres” como parte de sua elaboração. Aparentemente é uma resposta óbvia já que este movimento constrói sua identidade coletiva em termos feministas, porém não pode ser visto como óbvio uma vez que muitos setores acadêmicos, governamentais e partidários não associam, de forma tão nítida, o feminismo e a política, e tampouco o feminismo e mulheres populares. Quero dizer com isto que, para estas mulheres, majoritariamente negras e populares, está dado que o movimento feminista é uma forma de fazer política, o que faz com que demarquem claramente suas identidades políticas individuais a partir desse pressuposto (SILVA, 2016, p. 231). Quando adentrei a sala, a fala que estava sendo feita já me causou um impacto. Era de uma mulher que relatava sofrer porque é pobre, negra e mora em comunidade. Segundo ela, a polícia, quando chega lá, trata as mulheres por “raparigas”, “putas” e que ela sabia bem como elas são tratadas no bairro e que o “bicho pega”. Ela reitera que sua fala não é nem de revolta ou indignação, mas de medo. Logo em seguida, a responsável por coordenar a reunião explicou que a pauta era a preparação para as conferências (desde as municipais até a nacional) e que, naquele momento, estava sendo feita uma análise da conjuntura política de Pernambuco e do Brasil. Ela perguntou se nós, que chegamos atrasadas, queríamos nos apresentar naquele momento ou depois. Então, fomos nos apresentando ali e eu, muito sem graça, “Meu nome é Gabriela, faço doutorado em Sociologia na UFPE e estou estudando as conferências” (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Como, depois da fala daquela mulher, que tanto me impactou, eu falaria da minha condição de doutoranda sem refletir sobre tudo o que ela significa em termos de privilégios? Aquela situação já era um indicativo de que essa 142 pesquisa não passaria pela minha vida sem me transformar em uma socióloga feminista, levando em consideração que o impacto que tive foi, sobretudo, em decorrência dos privilégios dos quais tenho desfrutado como mulher branca e de classe média. Estudar um tema ligado a duas áreas nas quais eu acredito que estejam relacionadas às transformações sociais, democracia e feminismo, faz parte de uma escolha de estar inserida em espaços que me coloquem em contextos diferentes dos que vivenciei durante boa parte da vida e a decisão de ir a espaços onde acontecem as discussões políticas com sujeitos distintos, sejam os que estão no governo ou fora dele, está relacionada a esse desejo por conhecer outras realidades. A segunda situação aconteceu na Conferência Livre realizada pela Secretaria da Mulher do Recife na Colônia Penal Feminina Bom Pastor no dia 08 de setembro de 2015. Foi uma das situações mais chocantes da minha vida. Nunca havia estado dentro de um presídio e esse fato, por si só, já poderia me marcar. A Secretaria da Mulher realizou o evento para, nas palavras de suas representantes, debaterem o que se considerava importante em relação às políticas públicas tanto para as mulheres privadas de liberdade quanto para as que estavam fora daquele espaço. Noventa mulheres foram divididas entre quatro eixos propostos pela Secretaria de Políticas para as Mulheres: I) Contribuição dos conselhos de direitos da mulher e dos movimentos feministas e de mulheres para efetivação da igualdade de direitos e oportunidades; II) Estruturas institucionais e políticas desenvolvidas para mulher no âmbito municipal, estadual e federal: avanços e desafios; III) Sistema político com participação das mulheres e igualdade; IV) Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres (BRASIL, 2016, p. 5). Fui para um dos quatro grupos, onde havia uma representante da Secretaria da Mulher responsável por mediar a discussão. Ela perguntou se as mulheres ali presentes – cerca de 20 – tinham entendido o que elas disseram quando estavam na sala maior – o refeitório - e a resposta foi “não”. Ela falou sobre as ações do órgão e explicou que há pesquisas que mostram que, em relação aos presídios masculinos, as mulheres, quando presas, são, muitas vezes, abandonadas pelas famílias e pelos companheiros. Aquela colocação foi o “pontapé” para que começassem os desabafos sobre negligências de diversas ordens: alimentação, lazer, saúde, trabalho, dentre outras queixas. Copio aqui algumas frases que me marcaram: “Sabe o que mais revolta a gente? Eu falo pelo coletivo. No presídio masculino, eles têm direito a tudo e a gente não”; “Teve epidemia de diarreia aqui porque a galinha estava crua”; “Nesse feriado [7 de setembro], podia ter sido aberto aqui. Mas, não. Ficamos, como sempre, presas”; “A água que a gente dá descarga e toma banho é a mesma que a gente bebe”; “Quem tem 143 dinheiro compra água mineral, quem não tem, toma da torneira”; “Toda semana, a gente tem diarreia aqui. A minha filha deixou os remédios aqui e, quando eu peguei, estavam faltando. De uma cartela de 30 comprimidos, só tinham 20”; “Se continuar do jeito que está, não só eu como outras vão sair piores!”; “A gente é privado de tudo. Jogaram a gente aqui e nos esqueceram” (DIÁRIO DE CAMPO, 08/09/2015). No meio desse debate, a representante explicou que a Secretaria conta com recursos mínimos e começou a fazer uma explanação sobre as ações governamentais para as mulheres. Uma das participantes logo a interrompeu e perguntou: “Sim, isso é para quando nós sairmos. E o que tem para nós, presas?”. Ela respondeu que, realmente, no texto de 12 páginas que ela tinha, não havia nenhuma proposta para elas, mas que poderiam ser construídas ali. Fiquei me questionando como falar em direitos das mulheres ou de Lei Maria da Penha se aquelas mulheres ali tinham seus direitos humanos mais básicos negados. Há diversas outras situações que registrei no diário de campo e que não coloco aqui por não ser o foco. Mas, a frase que sintetiza o que eu ouvi naquela tarde é: “A senhora acha que, com esse massacre66, a gente vai sair melhor daqui? Vai não!” (DIÁRIO DE CAMPO, 08/09/2015). E o massacre, além de estar presente em suas falas, podia ser constatado explicitamente através da seguinte situação: antes de sair, reparei no aviso colado na porta da sala, em que se lia “Por favor, não insista. A água da sala de aula é somente para as alunas”. Era referente ao garrafão de água mineral que havia ali dentro para quem estava na escola e que não havia nos demais espaços em que as encarceradas ficam. Ou seja, só confirmava a denúncia delas de que sequer direito à água potável elas tinham respeitado, ferindo, portanto, o direito à dignidade, contido na Constituição Federal (BRASIL, 1988). Faço esse relato para dizer o quanto foi uma situação difícil e angustiante e que me fez questionar o que eu, como sujeito político, poderia fazer. Ao longo da pesquisa de campo, percebi o quanto não havia distinção entre a pesquisadora e a cidadã que permite se afetar pelos mais diversos problemas sociais e, nesse caso, gritantes contextos de desigualdade de gênero. Isso, conforme argumentarei posteriormente, não significa um risco para a objetividade forte, tão importante para um trabalho científico. O choque relatado nesses dois exemplos e em tantos outros contidos no diário de campo fez que me visse como uma mulher privilegiada por ter uma trajetória de vida de benefícios de diversas ordens, mas ao mesmo tempo, colocou-me numa constante reflexão enquanto sujeito coletivo na condição de mulher numa sociedade machista e patriarcal e que carrega uma série de marcas de opressões de gênero. 66 Destaque meu. 144 O aspecto em comum na opressão pode ser uma das conclusões da epistemologia feminista de que significa uma “vantagem epistêmica”. Uma Narayan refuta essa ideia: A teoria feminista tem de ser moderada no uso que faz dessa doutrina da "dupla visão" — a afirmação de que os grupos oprimidos têm uma vantagem epistêmica e acesso a um espaço conceitual crítico maior. Certos tipos e contextos de opressão certamente podem corroborar a verdade dessa asserção. Outros parecem não fazê-lo e, mesmo se propiciarem espaço para visões críticas, poderão também excluir a possibilidade de ações que subvertam a situação opressiva (NARAYAN, 1997, p. 289). Em sua visão, não é algo tão simples e o fato de se ter acesso a contextos diferentes e incompatíveis não é garantia de que resultará dele uma postura crítica por parte do indivíduo (NARAYAN, 1997, p. 287). Diante disso, reitero que o fato de eu ser mulher e partilhar de uma série de opressões não me proporciona uma vantagem epistêmica, mas sim o que defenderei como perspectiva feminista, trabalhada por Sandra Harding (1987). A historiadora polonesa Ilana Löwy (2000) problematiza a universalidade da ciência, do saber e dos valores universais, colocando que pode excluir e esconder situações de dominação. Essa problemática pode ser associada também à racionalidade e à objetividade. Como alternativa aos problemas que a universalidade, a racionalidade e a objetividade dos saberes pode trazer, ela defende uma perspectiva que me parece mais real, que é a da aceitação dos conhecimentos “situados”. Conforme a autora explica: Os pesquisadores que trabalham na interseção entre os estudos de gênero e os estudos de ciência quiseram delinear os contornos de uma ciência diferente, enraizada em conhecimentos parciais e situados. Inscritos na ação e nas redes densas de interações, tais “conhecimentos situados” são produzidos por indivíduos que tomam posição por um certo mundo e recusam outros. Longe de serem transcendentes, completos e “próprios”, eles são, por isso mesmo, localizados, parciais e “contaminados”. Uma ciência fundada sobre conhecimentos situados pode ser apresentada como a única alternativa aos dois perigos simétricos: o totalitarismo de uma visão única e sua imagem especular, o relativismo. Ela alimenta sua força no fato de que reflete nossa posição real no mundo – não a de sistemas pensantes imateriais que produzem uma “visão de nenhures”, mas a de pessoas de carne e osso, frágeis, mortais e, portanto, desprovidas da possibilidade de um controle “definitivo” sobre o que quer que seja (LÖWY, 2000, p. 38). Diante disso, encaro que a produção que estou desenvolvendo nesta tese parte de um conhecimento situado, pois além de ter me tornado integrante do campo de pesquisa, estive 145 inserida ao longo de boa parte da minha vida acadêmica, desde 2005, em contextos de movimentos sociais, o que me faz olhar para o movimento feminista de uma maneira familiar. Além disso, fiz parte da equipe de organização da III Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres de Pernambuco, realizada em outubro de 2011. Muitas das pautas ou formas de agir nos diferentes espaços estudados, as reuniões dos Conselhos de Direitos da Mulher e as do FMPE, não me eram estranhas. O histórico nesses lugares, inclusive, foi fundamental para uma relação de confiança com as mulheres, pois me viam como alguém já conhecida. O que Löwy aborda é semelhante à teoria da perspectiva feminista, trabalhada por Sandra Harding, que pressupõe a existência de uma obrigação epistemológica e ética de grupos dominantes teorizarem, de forma rigorosa, sobre suas posições como sujeitos de conhecimento socialmente situado (HARDING apud HIRSH; OLSON, 2009). Em entrevista concedida a Elizabeth Hirsh e Gary A. Olson (2009), Harding defende que uma pesquisadora precisa alcançar uma reflexividade forte como um pré-requisito para uma objetividade forte. Ambas as características estão relacionadas a um método mais forte. Em sua perspectiva, o fato de que o observador muda e interage com aquilo que é observado e isso não é necessariamente negativo para os resultados da pesquisa. Pelo contrário, pode, inclusive, ser usado de uma maneira positiva, tratando-se de compreender que é possível que usemos os recursos do lugar de onde falamos para que alcancemos uma objetividade e um método mais forte para que, assim, consigamos uma reflexividade forte (HARDING apud HIRSH; OLSON, 2009). Isso vai na contramão à ciência cartesiana, dualista, em que a subjetividade é vista como um empecilho para a confiabilidade e qualidade da pesquisa. Harding explica que ter um conhecimento socialmente situado ou usar o lugar de onde se fala como recurso implica que: A objetividade forte requer que nós desenvolvamos um olhar crítico em relação aos esquemas conceituais e quadros de referência que perfazem a nossa localização social. Quais os meus pressupostos como alguém que vem da filosofia analítica angloamericana neste momento da história e que é treinada no positivismo lógico? Como isso me faz enquadrar as questões e projetos que são, de fato, menos que maximamente objetivos, que são restringidos por minha localização social particular? Assim, o primeiro conjunto de questões permite que a pessoa fortaleça a reflexividade, que use a reflexividade como um recurso, que faça aquela análise, que olhe para os esquemas conceituais de uma área. Não é tanto “Eu, Sandra Harding, mulher branca...”, mas isso é uma questão. O problema, de forma mais geral, é “como os esquemas conceituais que eu estou usando foram moldados de forma a se adequarem aos problemas das mulheres brancas no Ocidente?” (HARDING apud HIRSH; OLSON, 2009). 146 Dessa forma, reflito como minha condição de mulher branca, inserida num ensino superior público, num país extremamente desigual sob diversos aspectos, e que teve acesso a uma formação de cientista social a partir de autores e autoras majoritariamente do norte global e como isso reflete no meu fazer científico. As teorias utilizadas no presente estudo são europeias e estadunidenses, portanto, dos países historicamente dominantes. A partir dessa compreensão, faço o esforço para desenvolver a objetividade forte, tal qual defende Harding na entrevista concedida a Hirsch e Olson: Aqueles de nós que estamos em tais posições dominantes estamos em posição dominante: nossas vozes têm muito poder, e isso é um recurso. É triste que o mundo seja organizado hierarquicamente, que nós tenhamos relações de poder; mas dado que temos, eu acho que aquelas pessoas que têm salas de aulas nas quais ensinar e cujos artigos são aceitos em revistas do mundo inteiro, e cujos editores publicam seus livros, constituem um recurso local que nós podemos usar de formas científica e politicamente progressivas (HARDING apud HIRSH; OLSON, 2009). Harding defende que um método feminista forte é uma abordagem política e ciência e política sempre estiveram íntima e intrinsecamente relacionadas. Refletindo a partir das ideias colocadas neste capítulo sobre o meu campo de pesquisa em específico, não considero que apenas mulheres poderiam fazer esse tipo de estudo. Não estou tratando aqui de experiências e subjetividades do ser mulher. Mas, o fato de ser uma pesquisadora imersa em um campo de estudo ocupado por mulheres certamente significou uma abertura dos espaços e das pessoas para uma relação de confiança comigo. A presença de um homem a acompanhar as reuniões do Fórum de Mulheres de Pernambuco poderia gerar um incômodo e constrangimentos ali. Karla Adrião (2008, p. 18) afirma que, na condição de integrante de uma ONG que trabalha com masculinidade, o Instituto Papai, localizada no Recife e que integra o Fórum de Mulheres de Pernambuco, vislumbrou problemáticas internas ao movimento, as quais ela denominou de “questão em torno de sujeito político-feminista”: Sendo, portanto, uma mulher feminista que trabalhava com o público masculino, foram se configurando, para mim, tensões em torno da própria identidade feminista e dos posicionamentos feministas frente ao espaço atual de ações junto aos homens, tendo ou não estes como parceiros (ADRIÃO, 2008, p. 18). Ela narra três situações, sobre as quais relato duas, junto ao FMPE nas quais essa questão veio à tona: 1) a legitimidade do Papai compor a coordenação colegiada do movimento, já que é uma ONG que trabalha com homens; 2) a possibilidade de homens terem 147 assento no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que estava em vias de se reestruturar, em 2003 (ADRIÃO, 2008, p. 18-19). Como pesquisadora que se inseriu no movimento feminista, pude perceber o quanto é polêmica a questão da presença dos homens. Desde julho de 2015, quando passei a frequentar as reuniões do FMPE, nunca vi um homem e a representação do Instituto Papai se deu durante todo esse tempo por uma mulher. Das reuniões dos conselhos, não posso dizer o mesmo. Acredito que, sendo mulher ou homem, poderia ser olhada com estranhamento, mas, na condição de alguém que está na academia, gozaria de uma condição de privilégio. Essas situações me fazem refletir sobre minha condição de mulher ao longo de todo o campo de pesquisa e me leva a outras autoras envolvidas numa corrente que se pode denominar como epistemologia feminista. Compreendo que o que faço ao longo deste trabalho parte principalmente de minhas experiências como mulher no dia-a-dia em uma luta constante contra os machismos em suas diversas esferas – inclusive, acadêmicas – e, sobretudo, como militante dos movimentos sociais. Ao estar em espaços ditos “mistos”, ocupados por homens e mulheres, as nossas exclusões tornam-se muito claras para mim. Pautas específicas, como a luta em torno da legalização do aborto ou de reivindicação de creches, muitas vezes são deixadas de lado em nome de uma luta colocada como “maior”, que é a de classes. É justamente por ser uma mulher imersa no contexto de lutas sociais que me fez olhar para o processo do impeachment da presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff e enxergar que se tratava de um golpe de Estado que, dentre diversos fatores, havia fortes componentes machistas e misóginas. Ao mesmo tempo em que via aquilo tudo na posição de uma militante feminista, realizava a pesquisa de campo nas conferências e exercia a função de pesquisadora. Percebi claramente que não há como separar essas duas esferas, mas conforme relatarei posteriormente neste capítulo, tive algumas crises com esses papéis, que foram oriundas de uma formação que, de certa forma cartesiana, coloca-nos como algo negativo partirmos de nossas experiências no mundo para pensarmos as próprias perspectivas como sociólogos e sociólogas. Para refletir sobre isso, é sempre útil recorrer a Wright Mills no clássico texto “Sobre o artesanato intelectual”, em que o autor argumenta que os mais admiráveis pensadores da comunidade acadêmica não separam seu trabalho de suas vidas (MILLS, 2009 p. 21). Nós, sociólogos e sociólogas, estamos constantemente em reflexão, isto é, não somos, por exemplo, 8h por dia profissionais, mas todo o tempo, em diversas situações que, para outras pessoas podem passar despercebidas, despertam em nós uma série de questionamentos. Para que o artesanato intelectual seja possível, é preciso se exercitar a imaginação sociológica, sobre a qual o autor afirma: 148 A imaginação sociológica permite ao seu possuidor compreender o cenário histórico mais amplo em termos de seu significado para a vida interior e a carreira exterior de uma variedade de indivíduos, no tumulto de suas experiências diárias, tornam-se muitas vezes falsamente cônscios de suas posições sociais. Nesse tumulto, busca-se a estrutura da sociedade moderna, e dentro dessa estrutura formulam-se psicologias de uma variedade de homens e mulheres. Por esses meios, a inquietação pessoal de indivíduos é concentrada em dificuldades explícitas e a indiferença de públicos é transformada em envolvimento com questões públicas (MILLS, 2009, p. 84). O autor reitera que o analista social clássico tem como tarefa e promessa apreender a história e a biografia e a relação entre as duas na sociedade (MILLS, 2009, p. 84). Trata-se de uma abordagem da qual eu mais me identifico. A vontade e decisão de estudar a temática desta tese está relacionada a duas áreas que me mobilizam bastante e que me despertam diversos questionamentos cotidianamente: mulheres e democracia. Ao longo desses anos de doutorado, trabalhei muito no sentido de aprimorar o artesanato intelectual e de estimular a minha imaginação sociológica. Esse é um dos fatores que me levam a refletir sobre o meu olhar e o meu papel no campo de estudo. Sandra Harding resume o que, em minha concepção, trata a epistemologia feminista: Uma vez que nos comprometemos a usar a experiência das mulheres como um recurso para gerar problemas científicos, hipóteses e evidências, para projetar pesquisas para mulheres e colocar o pesquisador no mesmo plano crítico que o sujeito de pesquisa, os pressupostos epistemológicos tradicionais não podem mais ser feitos. Essas agendas levaram cientistas sociais feministas a fazerem perguntas sobre quem pode ser um conhecedor (somente homens?); que testes as crenças devem passar para serem legitimadas como conhecimento (somente testes contra as experiências e observações dos homens?); que tipos de coisas podem ser conhecidas (podem "verdades subjetivas", aquelas que somente mulheres - ou apenas algumas mulheres - tendem a chegar, contam como conhecimento?); a natureza da objetividade (requer "perspectiva"?); a relação apropriada entre o pesquisador e seus sujeitos de pesquisa (o pesquisador deve ser desinteressado, desapaixonado e socialmente invisível ao sujeito?); Quais devem ser os propósitos da busca do conhecimento (para produzir informação para os homens?) (HARDING, 1987b, p. 181). Embora não usem o mesmo nome, Dorothy Smith (1987) e Sandra Harding (1987b) convergem no que entendem por fazer ciência a partir das mulheres. Enquanto a primeira usa “perspectiva das mulheres”, a segunda nomeia “perspectiva feminista”. Uno os dois neste trabalho, pois na condição de mulher imersa no meio científico, proponho uma pesquisa com um olhar de quem questiona as desigualdades de gênero e reflete sobre a posição das mulheres na sociedade. 149 4.2 A observação participante e o campo de pesquisa Para discorrer acerca do método utilizado nesta pesquisa, sinto a necessidade de voltar alguns anos e fazer um reexame do que era a ideia inicial do estudo. Acredito que, ao fazer isso, proporciono uma ideia mais detalhada para que o leitor ou a leitora possa entender além da afirmação de que “esse método é o mais adequado para responder ao problema de pesquisa”. Quando ingressei no doutorado de Sociologia, em 2014, a proposta era estudar as negociações entre representantes da sociedade civil e do governo nas conferências de políticas para as mulheres. Ainda imbuída da teoria habermasiana da ação comunicativa, enxergava aquele espaço como uma esfera pública, isto é, aberta e permeada pela livre troca de argumentos com a finalidade do entendimento mútuo. É a partir da esfera pública que se alcançam as dimensões e princípios normativos presentes na concepção de democracia deliberativa, trabalhada pelo filósofo alemão (HABERMAS, 2003). Julgava que, em algum momento, os debates levavam a consensos nas propostas de políticas públicas. Mas, como já tinha estado em conferências de políticas para as mulheres67, sabia que eram permeadas por conflitos. Diante disso, o problema de pesquisa já partia do pressuposto de que, em meio aos conflitos, buscava-se o consenso e eu me perguntava como esse processo ia se construindo e o que estava em questão. Para realizar o estudo, desde o começo, me propus a me inserir no contexto de conferências em Pernambuco, entendendo que não se trata apenas de um evento, mas de um processo que vai sendo construído e articulado desde a convocação, feita pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, meses antes de sua realização. Frente a isso, passei a frequentar inicialmente as reuniões do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e do Fórum de Mulheres de Pernambuco, conforme aprofundarei mais adiante. Agora, interessa explicar qual o papel que a observação participante exerce nesse tipo de trabalho e como a experiência no campo de estudo foi fundamental para redimensionar o problema de pesquisa. Busquei me focar no que eu estava propondo a investigar e, assim, ter subsídios para refletir de maneira mais adequada sobre o referencial teórico utilizado. Mesmo com o problema inicial atrelado às teorias trabalhadas por Laclau e Mouffe, por meio da democracia radical, e de Habermas, com o modelo deliberativo, não poderia prescindir de um mergulho 67 Em 2007, fui relatora em grupo de trabalho na II Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres de Pernambuco (II CEPM-PE). Em 2011, prestei serviço para a Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres, também em PE, junto à organização da III CEPM e tive a oportunidade de participar como observadora da III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, no mesmo ano, em Brasília. 150 no campo de estudo. Isso me permitiria perceber as inter-relações entre os sujeitos presentes nos diversos espaços e, sobretudo, observar o que estava em questão ali, o que era ou não priorizado e de que forma isso se daria. A resposta a diversas questões seria viável através de uma observação interna e atenta aos espaços. Posso citar algumas delas: que projetos políticos estavam sendo defendidos; quem teve o poder majoritário de articulação; quem são os sujeitos políticos que organizam as conferências; quais foram as propostas apresentadas; que implicações o contexto político teve para os processos de disputas internas e nas articulações discursivas em torno das políticas públicas para as mulheres; o que se sobressai nas reuniões analisadas. Pensar em como obter respostas dessas questões me fez, inicialmente, remeter à etnografia, pois seria o que me permitiria ter acesso aos espaços e sujeitos políticos presentes. Segundo Michael Angrosino: Etnografia significa literalmente a descrição de um povo. É importante entender que a etnografia lida com gente no sentido coletivo da palavra, e não com indivíduos. Assim sendo, é uma maneira de estudar pessoas em grupos organizados, duradouros, que podem ser chamados de comunidades ou sociedades. O modo de vida peculiar que caracteriza um grupo é entendido como a sua cultura. Estudar a cultura envolve um exame dos comportamentos, costumes e crenças aprendidos e compartilhados do grupo (ANGROSINO, 2009, p. 16). Inicialmente, a minha ideia era fazer uma descrição dos espaços estudados, bem como do que acontecia ali. Para isso, levei gravador, câmera e o diário de campo no intuito de registrar o máximo possível. Porém, ao longo da pesquisa e das orientações, deparei-me com a falsa concepção de etnografia como método, que foi esclarecida por meio do texto da antropóloga Mariza Peirano, onde pode ser lido: Uso esse exemplo conhecido para ressaltar mais uma vez o fato fundamental de que monografias não são resultado simplesmente de “métodos etnográficos”; elas são formulações teórico-etnográficas. Etnografia não é método; toda etnografia é também teoria. Aos alunos sempre alerto para que desconfiem da afirmação de que um trabalho usou (ou usará) o “método etnográfico”, porque essa afirmação só é válida para os não iniciados. Se é boa etnografia, será também contribuição teórica; mas se for uma descrição jornalística, ou uma curiosidade a mais no mundo de hoje, não trará nenhum aporte teórico [destaque da autora] (PEIRANO, 2014, p. 1). Diante disso, compreendo que não utilizo uma teoria etnográfica tampouco faço uma pesquisa de campo inspirada nela. Utilizei, portanto, da observação participante como meio para me inserir no contexto em que estava estudando e entender as relações internas a eles. Conforme argumenta Uwe Flick: 151 Em geral, essas abordagens [etnografia e observação participante] enfatizam o fato de que as práticas apenas podem ser acessadas por meio da observação, uma vez que as entrevistas e as narrativas somente tornam acessíveis os relatos das práticas e não as próprias práticas. A alegação que normalmente é feita é que a observação permite ao pesquisador descobrir como algo efetivamente funciona ou ocorre. Em comparação com essa alegação, as apresentações em entrevistas compreendem uma mistura de como algo é e de como deveria ser, a qual ainda precisa ser desvendada (FLICK, 2009, p. 203). A observação me fez perceber que não apenas o problema de pesquisa precisaria ser reformulado, como também tive a noção de que o próprio processo de construção das conferências seria mais viável em termos metodológicos do que os eventos em si, que são amplos e os sujeitos estão mais dispersos. Ao compreender que as reuniões eram permeadas sobretudo por embates, compreendi que faria muito mais sentido a abordagem proposta por Laclau e Mouffe, que compreendem que os indivíduos ou grupos, oriundos de diversos segmentos sociais, chegam a pontos em comum numa lógica de equivalência, que envolve antagonismos e consensos temporários. Estes são pressupostos que constituem a Teoria do Discurso, base para o entendimento da democracia radical e plural. Os autores chamam a atenção para a como a construção discursiva tende a ocultar os antagonismos – inerentes à prática política - e afirmam que deve ser analisado o conjunto de práticas e discursos que constituem os espaços políticos (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 211). Portanto, se o discurso é uma tentativa de fixar um sentido, seria adequado investigar o cotidiano de discussões e disputas em torno da construção dos mesmos nos diferentes espaços estudados. Neste sentido, cabe aqui discorrer acerca de cada um deles. Antes, é importante ressaltar os objetivos específicos desta pesquisa: identificar estratégias de organização e de articulações; analisar de que forma os discursos dos diferentes grupos, com suas reivindicações emergiram nesses espaços e como se construíram as articulações políticas entre eles; observar quais as pautas e propostas foram colocadas pelos sujeitos políticos e analisar os processos discursivos na construção de equivalências na consolidação das propostas. Julgo necessário que os leitores e as leitoras saibam exatamente os espaços que compuseram um campo de pesquisa tão vasto e longo quanto o que percorri. Segue abaixo a seguir: 152 Quadro 1 – Lista dos espaços que fizeram parte do campo de pesquisa Fonte: Diário de campo. Elaboração própria. * Participei dessa conferência como uma forma de fazer um “pré-campo” no intuito de, ao estar no evento de abrangência nacional, ficar atenta a questões que seriam importantes na Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que de fato fazia parte do meu campo de pesquisa e que aconteceria apenas duas semanas depois. Incluí na tabela para passar uma noção de todo o percurso que fiz no referido período. 153 Diante de tantos espaços que frequentei, tive que restringir o que realmente interessa ao problema de pesquisa e aos objetivos desta tese. Portanto, marquei com “sim” (31) os que serão utilizados para a análise que será feita no capítulo seguinte. No entanto, isso não significa que não utilizei as observações do diário de campo como um todo, pois recorro a trechos de momentos que não entrarão propriamente na análise dos próximos capítulos, mas que são fundamentais na discussão que desenvolvo. Para embasar as informações sobre os conselhos dos direitos das mulheres, recorri à análise documental por meio de atas de reuniões, listas de presença, lei de criação e regimentos dos mesmos. 4.2.1 Observação junto ao Fórum de Mulheres de Pernambuco O Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE) é uma articulação do movimento feminista que existe desde 1988, agrega integrantes de mais de 90 organizações e coletivos feministas no Estado e, especificamente, na Região Metropolitana do Recife (RMR), tem a participação de mulheres de mais de 20 entidades, além de feministas autônomas (que não estão ligadas às referidas instituições)68. É um dos principais movimentos do Estado e tem uma história de embate perante os governos. Nacionalmente, integra a Articulação de Mulheres Brasileiras e, no plano internacional, a Articulación Feminista Marcosur. Diante do que considera a efervescência e diversidade do campo feminista pernambucano, a pesquisadora Alinne de Lima Bonetti nomeia Recife de a “Meca” feminista do Nordeste (BONETTI, 2007). Ao relatar o depoimento de uma ativista paraibana, de renome nacional, a autora coloca que o Recife recebeu mais investimentos de agências de cooperação internacional porque tinha mais grupos antigos do que os demais locais no Nordeste. A autora reitera que a cidade se tornou o foco de investimentos políticos e materiais: “O reconhecimento da centralidade e importância de Recife para o feminismo da região pelos diferentes grupos do Nordeste corrobora a sua característica de cidade polo também do feminismo” (BONETTI, 2007, p. 73). Se, para Bonetti, o Recife é a “Meca” do feminismo no Nordeste, o Fórum de Mulheres de Pernambuco, é a principal referência da “Meca” feminista, segundo ela mesma coloca. A articulação foi criada após o IX Encontro Nacional Feminista de Garanhuns, que aconteceu em 1987, a partir da iniciativa de articular os diferentes grupos que existiam em 68 Cabe destacar que, em sua criação, o FMPE era formado por instituições, grupos e feministas e, assim, funcionava a partir de uma lógica representacional. No período em que fiz a pesquisa de campo, em 2015, a designação já era de que o FMPE era formado por mulheres, sejam integrantes de instituições ou não e aberto a todas as interessadas. Ao perguntar às ativistas quando ocorreu essa mudança, muitas não sabem precisar. 154 Pernambuco vinda de uma feminista histórica e uma das fundadoras da ONG SOS Corpo e de uma militante do movimento popular de mulheres69 (BONETTI, 2007, p. 78-79). O contexto da época era da Assembleia Nacional Constituinte, que teve forte presença do movimento feminista e de mulheres, conforme vimos no primeiro capítulo desta tese. Podemos ver na convocação para a primeira reunião, que aconteceu no dia 15 de junho de 1988: Amigas: o que nos move a escrever é o desejo de conversar sobre inúmeras dificuldades e incertezas que o momento político nacional nos coloca. Esta conjuntura reforça alguns impasses cruciais ao movimento de mulheres, no que diz respeito a sua organização e aquisições. São exemplos: as dificuldades de garantir nossos direitos na Constituinte; o retrocesso em relação ao PAISM que nós já considerávamos como uma aquisição garantida; a situação das delegacias etc.. Por outro lado a nossa ausência prolongada de articulação nos fragiliza ainda mais diante do momento político atual (CARTA DE CONVOCAÇÃO, 1988 apud OLIVEIRA, 2002). Quem escreveu essa convocatória no dia 03 de junho de 1988 foram Maria Betânia Ávila, do SOS Corpo e Maria José Valença Oliveira, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Olinda. Vê-se a preocupação em reunir as mulheres para agir na conjuntura. Podemos identificar uma estratégia de mobilização de mulheres que, posteriormente, deu origem a ações coletivas, como a realização de Vigílias pelo Fim da Violência contra a Mulher, realizadas todas as primeiras terças-feiras do mês durante os anos de 2006 e 2007. Ao me inserir no FMPE, quase 30 anos depois de sua fundação, em 2015, pude perceber com intensidade o quanto a articulação atua frente a uma conjuntura cada vez mais prejudicial às mulheres. Sobre isso, tratarei mais adiante neste trabalho. É interessante perceber a proposta de funcionamento, elaborada a partir do material das três primeiras reuniões e do I Encontro do Fórum de Mulheres de Pernambuco, em 17 de julho de 1988. Lê-se: O Fórum de Mulheres de Pernambuco deverá ser um espaço político para articulação de grupos femininos e mulheres que estejam interessadas na discussão e melhoria da condição da mulher. Para tanto, constituir-se-á em local de: geração e socialização de informações; identificação de necessidades no movimento de mulheres; denúncias; encaminhamento de lutas comuns e de apoio a lutas específicas; militância e formação política da mulher; estímulo ao crescimento e fortalecimento de grupos de mulheres; promoção de eventos que levem à sociedade em geral as questões da Mulher, tanto em sua especificidade como nas suas relações sócio-políticoeconômicas com o Estado e com a sociedade civil (PROPOSTA DE FUNCIONAMENTO, 1988 apud OLIVEIRA, 2002). 69 Bonetti colocou os nomes dessas mulheres, mas como não ficou claro se eram os verdadeiros ou codinomes, optei por não reproduzi-los. 155 Reproduzo esse trecho aqui para evidenciar que, embora hoje em dia não se reforce em documentos essa proposta, trinta anos depois, ela continua sendo colocada em prática nas ações cotidianas do movimento. Pude notar isso na condição de pesquisadora e, depois, como integrante do mesmo. Segundo Bonetti, pode-se perceber que o FMPE surgiu como uma tentativa de coalizões de diferentes forças existentes dentro do campo político local e o que possibilitou a base de sua sustentação foi o aporte do movimento feminista com recursos, materiais ou simbólicos. A autora reitera que houve um esforço em se democratizar a gestão, além de pautar princípios de autonomia do movimento feminista (BONETTI, 2007, p. 82). Sobre a trajetória do movimento, Bonetti relata: Nair Valença, uma das então coordenadoras da coordenação colegiada do FMPE, explicou como se deu o processo: as ONGs que tinham relação com diferentes grupos fizeram articulação para trazê-los para o fórum. O Centro das Mulheres do Cabo [entidade da qual faz parte] trabalhou junto com os grupos de mulheres com quem tem relação na zona da mata, trazendo-as para o Fórum. Já o SOS Corpo, que tinha relação com grupos de mulheres do movimento popular, através do projeto de formação política de lideranças feministas, trouxe esses grupos para dentro do Fórum. De acordo com Nair, essa ação teve êxito em trazer as mulheres do interior, do sertão e da zona mata. Há entre elas um reconhecimento muito grande do Fórum de Mulheres. Mas há a dificuldade de recursos para a participação. E em vista disso, está se pensando num projeto maior para a interiorização [destaques da autora] (BONETTI, 2007, p. 83). O feminismo é algo central no referido movimento. Sobre essa questão, Bonetti reflete que, mesmo sendo um projeto idealizado como coletivo, de todos os grupos de mulheres organizadas, existe uma presença recorrente de determinados sujeitos no campo, dentre os quais em sua visão se destaca o SOS Corpo, uma das entidades que, em suas palavras: “[...] se sobressai pela sua estrutura, recursos e consolidação no campo” (BONETTI, 2007, p. 84). A autora coloca ainda que: Como se pode perceber, o SOS Corpo parece ocupar posição privilegiada neste contexto, com poder de definição de pautas de ação e cuja voz parece ter maior peso. Uma das mais antigas ONGs locais, recebe financiamento de muitas agências de cooperação internacional. Detentora de uma sede confortável e ampla, com estrutura para realização de eventos, possui um acervo bibliográfico de referência na temática feminista e de gênero e oferece salas com infra-estrutura para movimentos sociais sem teto. Sediava, no período da pesquisa, o FMPE, oferecendo espaço físico para as suas reuniões, a secretaria da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e a Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe (Rede LAC). Tem uma grande produção bibliográfica e audiovisual sobre os mais diversos temas de atuação feminista, o que é consoante à prática de estudar, produzir conhecimentos e argumentos para o debate feminista, propalada pelas suas representantes. Frente a essas características, parece encarnar a militância profissionalizada, com recursos, e o sujeito feminista intelectual, que fala em 156 conceitos, que se ouve recorrentemente no campo político feminista mais geral [...] [destaque da autora] (BONETTI, 2007, p. 84). Quando comecei a pesquisa, em 2015, também pude perceber esse papel da organização dentro do Fórum. Da coordenação colegiada da Região Metropolitana do Recife, uma das integrantes, inclusive, fazia parte do SOS Corpo e, em novembro do mesmo ano, quando foi eleita a gestão seguinte, uma das quatro vagas também foi ocupada por uma educadora da ONG. Esse cenário se alterou em 2017, quando a coordenação mudou novamente. Mas, é importante para a pesquisa que realizo aqui o papel que integrantes de uma ONG que produz intelectualmente para o movimento feminista e, ao mesmo tempo, enxerga na atuação política uma prática prioritária no campo da reivindicação por políticas públicas e nas conferências de políticas para as mulheres. Tenho utilizado como referências, ao longo desta tese, diversos textos produzidos pelas integrantes da referida ONG, os quais considero de imenso valor e que revelam bastante das teorias nas quais as que compõem o Fórum de Mulheres de Pernambuco se inspiram em suas práticas. O que pude perceber é que se trata da organização em que a militância feminista faz parte do seu trabalho cotidiano e, por que não dizer, de uma prioridade. Alinne Bonetti (2007) chama a atenção também para um fator que complica as ações dos movimentos: a falta de dinheiro. O SOS Corpo, por meio dos financiadores, é uma das instituições que consegue orçamento para o FMPE. Eu também pude perceber isto ao longo da minha pesquisa de campo. A maior parte das reuniões acontecia no espaço físico da organização e muito do que se fazia era pago com seus recursos. Cheguei a escutar em reuniões mulheres se apresentando e dizendo que tinham ido para “reunião do SOS Corpo” quando, na verdade, era do FMPE. Isso corroborava muito do que eu ouvia do papel central que a organização desempenha no referido movimento. Coloco o papel da ONG para dar subsídios de se entender as reações do FMPE frente às conjunturas que marcaram o campo de pesquisa, bastante conturbadas e adversas às mulheres, mas ao mesmo tempo desafiadoras para o campo do feminismo. Outra característica presente desde o começo diz respeito à institucionalização. Bonetti coloca: Segundo a discussão entre algumas de suas participantes que tive a oportunidade de acompanhar, esse é um tema polêmico, que divide opiniões e sobre o qual nunca se chega a um consenso. Segundo Nair, há diferentes posições: A Casa da Mulher do Nordeste é a favor da institucionalização, mas outros grupos como Loucas de Pedra Lilás e o Uiala Mukaji- Sociedade 157 de Mulheres Negras são contra. É um debate histórico, que nunca se soluciona e toma diferentes formas de acordo com o perfil da coordenação. A atual coordenadora aponta dois níveis de questões que são problematizadas nessa discussão: como manter o Fórum e outro nível é o político [destaques da autora] (BONETTI, 2007, p. 85). Isso, em minha percepção, está relacionado ao debate sobre autonomia do movimento. O que já escutei em reuniões é que, no começo, o funcionamento se dava por representações dos coletivos e organizações. Ou seja, era estabelecido um número X e elas é que iam representar as demais. Segundo o relatório do encontro realizado nos dias 30 de junho e 01 de julho de 2018 sob o título “Política feminista transformando o mundo”, existe essa avaliação: Isso dificultava tomadas de decisão, pois havia organizações mais fortes que outras, havia aquelas que não podiam decidir, pois necessitavam voltar para consultar suas organizações e havia aquelas organizações que colocavam suas representantes lá, mas se despregavam do debate ou não recebiam informações. Enfim, isso dificultava o pertencimento. Hoje, somos um fórum de mulheres, várias atuam também em organizações e coletivos e alguns deles todas do grupo são do fórum, mas o FMPE é um fórum de mulheres (POLÍTICA..., 2018, p. 2-3) As reuniões do FMPE não têm uma periodicidade de acontecer e o movimento se organiza nas cinco regiões do Estado sob os nomes de: Fórum de Mulheres do Arararipe; Fórum de Mulheres do Pajeú; Fórum de Mulheres do Agreste; Articulação de Mulheres da Mata Sul e FMPE-Região Metropolitana do Recife. A coordenação colegiada é composta por 12 integrantes, das quais quatro da RMR e duas por região, que são escolhidas a cada dois anos num encontro estadual. Acompanhei discussões sobre a marca do movimento, que mostrava a imagem de uma das pontes famosas do Recife, a Ponte da Boa Vista, também conhecida como Ponte de Ferro. Argumentava-se que aquela marca não representava mais as mulheres do Fórum por passar a ideia de um movimento urbano, restrito ao Recife. Já havia chegado o momento de mostrar algo estadual, interiorizado. Vi de perto a construção da nova marca, que tinha o objetivo de mostrar as características do movimento: horizontal, aberto a quem quisesse integrar, marcando seu caráter diverso, intergeracional, dentre outras questões. Havia um pedido também que fossem colocadas as cores da Articulação de Mulheres Brasileiras, movimento em nível nacional, sobre o qual vou abordar posteriormente: verde, laranja e roxo. A primeira lembra a justiça socioambiental, a segunda a luta antirracista e a terceira o feminismo. Bonetti (2007), durante sua pesquisa, pôde observar duas temáticas centrais para o FMPE: violência contra as mulheres e aborto legal e seguro. O primeiro tornou o movimento 158 bastante visível e é dessa fase que me vêm à memória as imagens de luta feminista, quando eu ainda estava na graduação de Comunicação Social, estudava no centro do Recife, na Universidade Católica de Pernambuco e estagiava num dos principais jornais da cidade. A pauta do movimento também estava presente em sala de aula: fui aluna de uma integrante do FMPE e, já em 2007, nutria uma curiosidade pelas transformações a partir do feminismo. A ex-assessora de comunicação do movimento, Nataly Queiroz, observa que: No mês de janeiro de 2006, diante de um quadro de 40 mulheres assassinadas em 30 dias e mais de 1.200 em três anos, o FMPE iniciou uma ação mensal de mobilização intitulada Vigília pelo Fim da Violência contra a Mulher. A iniciativa teve como objetivo denunciar a falta de políticas públicas eficientes na prevenção e enfrentamento à violência sexista e promover o debate público acerca da temática. Além de atos públicos no centro do Recife, na Zona da Mata e no Sertão, as Vigílias, da forma como foram concebidas, deveriam sensibilizar toda a sociedade sobre os fatores culturais, políticos e sociais que fazem de Pernambuco um dos estados com maior índice de violência contra a mulher, segundo dados do Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde (QUEIROZ, 2009, p. 33). Entre 2006 e 2009, foram realizadas 34 vigílias em diversas partes do Estado. A ação foi incorporada pela Articulação de Mulheres Brasileiras, que a realizou em mais de 20 estados no dia 25 de novembro, em 2008 e 2009, que é o “Dia internacional da não-violência contra a mulher” (VALONGUEIRO, 2009, p. 11). Isso nos mostra a capacidade de influência nacional de um tipo de ação que começou localmente. Hoje, apresenta em sua organização coletivas e frentes de luta, como formação; enfrentamento à violência contra a mulher; justiça socioambiental; saúde, direitos sexuais e reprodutivos e aborto; enfrentamento ao racismo; comunicação e cultura (FÓRUM..., 2016, p. 1). Para trabalhar essas diferentes áreas e, ao mesmo tempo, dar visibilidade às desigualdades de gênero na sociedade, o movimento utiliza de estratégias semelhantes às da AMB, que são: mobilizações (como atividades itinerantes, vigílias feministas, “apitaços”, atos públicos, passeatas etc); ações diretas (a exemplo de fechamento de vias, intervenção em espaços públicos); encontros (reuniões, seminários, debates, intercâmbio, oficinas e cursos) e publicações (DOCUMENTOS..., 2010, p. 23-24). Sinto a necessidade de abordar a minha inserção nessa parte do campo de estudo. Conforme coloquei acima, tinha uma forte lembrança do FMPE nos anos em que, entre várias outras atividades, realizava as vigílias no centro do Recife, onde eu estava presente no cotidiano por estudar nessa localidade e por estagiar no bairro Recife Antigo. Era, portanto, uma referência em minha formação, como mulher, e que já estava inserida nos movimentos sociais. De 2005 a 2008, participei ativamente do movimento estudantil na Unicap e na 159 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde eu cursava Ciências Sociais. Mas, fazer parte de movimento misto, isto é, formado por homens e mulheres, era bastante diferente do que um dia eu entenderia por movimento de mulheres e, mais especificamente, feminista. As questões que estavam em voga eram muito mais relacionadas às lutas gerais, como reforma universitária, melhorias no curso etc. do que específicas às mulheres. No próprio movimento estudantil, havia analogias extremamente machistas e as mulheres eram colocadas nas funções que os homens não queriam exercer, como escrever as atas das reuniões ou entregar convocações de assembleias. Porém, em âmbito de movimento misto, muitas vezes passam despercebidas em nome de uma “luta maior”. Referencio essa parte de minha trajetória porque considero que o meu percurso acadêmico tem sido de muitas inquietações com as desigualdades sociais. Essas, inclusive, constituíram o fator central para pensar no problema de pesquisa da presente tese, conforme abordei na introdução. Passados os anos e, já início do doutorado, em 2014, o FMPE continuava sendo uma referência para mim de movimento feminista no estado. Tive a sorte de conhecer uma de suas integrantes numa disciplina que cursei como aluna especial no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, em 2013. Posteriormente, também tive contato com ela nas reuniões do grupo de estudos Sociedade Brasileira Contemporânea, pois tínhamos o orientador em comum. O contato com Carmen Silva, integrante do SOS Corpo e do FMPE, foi fundamental para que eu perdesse o medo e a vergonha de adentrar aquele espaço. Como já havia formalizado a observação participante nos Conselhos Municipal e Estadual dos Direitos da Mulher, respectivamente do Recife e de Pernambuco, por meio de envio de solicitações aprovadas pelas conselheiras, acreditava que precisaria fazer o mesmo com o movimento. Como sabia da minha pesquisa, Carmen me avisou que o Fórum iria começar a abordar a questão das conferências de políticas para as mulheres. Era junho de 2015 e eu perguntei a ela se precisaria enviar algo comunicando que eu estaria ali na condição de pesquisadora. Ela respondeu da seguinte forma: “o FMPE é um movimento social, um movimento feminista, suas reuniões são abertas às mulheres que queiram participar” (DIÁRIO DE CAMPO, 29/06/2015). Entendi o recado e, no dia 09 de julho, fui à primeira reunião, conforme fiz o relato anteriormente no presente capítulo. Aconteceu na sede do SOS Corpo, como muitas outras em que estive presente. Foi feito um debate político muito intenso e as mulheres pareciam ter consciência do papel político das conferências. Ao mesmo tempo, notei que já não se acreditava mais nesse instrumento de democracia participativa. Saí de lá animada com a pesquisa, mas me sentindo de certa forma perdida por não conhecer muitas delas e sem saber como estabelecer esse contato. Peguei o contato com uma das integrantes, que também 160 era conselheira do Recife e pedi para ela intervir por mim junto ao Conselho Municipal da Mulher do Recife para que tomassem uma posição sobre o meu pedido de acompanhar as reuniões (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Fazer isso significava, para mim, reforçar que estava ali na condição de pesquisadora e tentar me aproximar dela para mostrar que poderia confiar em mim. Aquela reunião também me fez perceber que o que eu estava propondo como pesquisa empírica fazia sentido. A pessoa que estava coordenando naquele momento teve um cuidado didático de explicar o que era conferência de política pública e o que se esperava daquela edição. Ela questionou e respondeu: “O que é um sistema? É um conjunto de elementos interconectados” ao se referir ao Eixo I proposto pela Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres “Sistema de Políticas para as Mulheres com controle social”. Era uma novidade, inclusive, daquela edição do evento. Segue outra que pude registrar e que é bastante significativa para a presente pesquisa: [...] que conferência nós queremos? Que conselhos nós queremos? Qual é a nossa estratégia? Vamos ocupar ou não? Por que os conselhos estão hoje ocupadíssimos por pessoas conservadoras” (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Vi que havia posições muito críticas ao referido espaço de participação, mas que as mulheres ali presentes estavam debatendo sobre estratégias políticas. Essa foi a primeira de seis reuniões em que estive presente entre julho e novembro de 2015, período que antecedeu a realização da IV CEPM-PE. Houve outras reuniões nesse período, mas que não acompanhei porque tinha outro compromisso ou não fiquei sabendo a tempo. Essa, inclusive, foi uma dificuldade que enfrentei: sentir-me invisível algumas vezes nesse espaço. Não sabia ao certo quem eu poderia procurar para me avisar das reuniões seguintes. Havia também um fator que poderia ser impeditivo de uma relação de confiança com elas: em 2011, como prestei serviços na Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres, algumas delas me associavam a alguém do governo. Porém, essa confiança foi sendo construída ao longo do tempo nas atividades junto a elas. Discorrerei sobre isso no tópico acerca da minha posição de pesquisadora, mais adiante. Cabe ressaltar que o FMPE está ligado nacionalmente à Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), que reúne diversos movimentos de mulheres e feministas e que: [...] surge com um caráter amplo de articulação da diversidade de organizações preexistentes. Isto ocorre a partir de um processo articulatório de preparação à participação do movimento brasileiro na Conferência de Beijing. As suas referências iniciais são aquelas construídas para o documento do movimento feminista brasileiro, que deu base para a sua atuação na Conferência. Posteriormente, em 2002, ela alinha este marco de referência a partir de outro processo articulatório que gerou a Plataforma 161 Política Feminista [....]. Neste último período, a AMB promove um novo alinhamento e define-se como um movimento feminista antissistêmico, entendido como antipatriarcal, anticapitalista e antirracista. Nesta trajetória, a sua composição interna vai sofrendo alterações, nas quais se registra um grande crescimento do número de mulheres de classes populares (SILVA, 2016, p. 168-169). O debate que deu origem à articulação aconteceu em 1995. O processo de debate e organização para a ida a Beijing também resultou na criação de espaços organizativos dos movimentos de mulheres em diversos estados, como fóruns (SILVA, 2010). Após a volta da Conferência, houve uma reunião da AMB e havia o posicionamento de encerrá-la, pois havia sido cumprido o objetivo da mobilização para o evento. Porém, a posição majoritária das presentes foi pela sua continuidade e, no mesmo encontro, acertou-se que a AMB voltaria para o monitoramento da Plataforma de Beijing no Brasil (SILVA, 2016, p. 17). Ainda na década de 1990, foi convocada uma reunião nacional que aconteceu em Natal, Rio Grande do Norte, no intuito de organizar a interlocução com o Estado brasileiro, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, para o monitoramento da referida Plataforma e a exigência de políticas públicas. Na ocasião, foi decidido que seria construída uma aliança com os demais movimentos de mulheres e feministas para se criar uma plataforma própria das mulheres brasileiras, que posteriormente ficou conhecida como “Plataforma Política Feminista”. Da nova estratégia de articulação, nasceu a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras. O procedimento adotado foi o mesmo: articulam-se reuniões nacionais amplas, com representações de todos os estados e de todas as articulações e movimentos de mulheres que desejassem participar; construiu-se uma carta de princípios e um roteiro básico, que subsidiaram o processo de debates em todos os cantos do país; e realizaram-se conferências estaduais em 25 dos 26 estados da Federação e no Distrito Federal, totalizando uma participação de 5212 mulheres, muitas delas participantes de agrupamentos locais. Da conferência nacional, participaram cerca de 2 mil mulheres escolhidas nas conferências estaduais. Além da AMB, estiveram envolvidas na comissão organizadora nacional nove articulações nacionais do movimento de mulheres. Essa conferência, organizada autonomamente pelo movimento, sem participação do governo, é um marco importante na história do feminismo no país [destaque meu] (SILVA, 2010, p. 20). Dou destaque à última frase porque, em Pernambuco, no final de 2015, os movimentos feministas também organizaram um evento autonomamente – Conferência Livre Pela Vida das Mulheres - e que, como pesquisadora, também considero que foi de grande importância 162 na história do feminismo naquele determinado contexto político no país e, mais especificamente, no estado. O contexto de construção da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (2002) era de muitas dificuldades para as mulheres num cenário de políticas neoliberais adotadas por FHC, como abordei no capítulo 2. Nesses momentos, surgem estratégias de resistência e enfrentamento. Como metodologia de ação, em texto publicado em 2010, a Articulação estava seguindo as seguintes estratégias: Realizar ações orientadas ao Estado – incidência política sistemática sobre o Estado e seus governos, imprimindo uma agenda de disputa de propostas nos espaços de debate, formulação, decisão e controle social de políticas públicas, tanto as políticas sociais, como as políticas econômica e de desenvolvimento; Realizar ações orientadas à sociedade – atuação sobre a cultura política, as instituições e relações sociais, de modo a fazer o enfrentamento da ideologia e das práticas de dominação, exploração, opressão (DOCUMENTOS..., 2010, p. 22). Para isso, são organizadas mobilizações, ações diretas, encontros e publicações. Hoje, atua por meio de nove frentes de luta: Frente de luta justiça socioambiental; Frente de luta pela democratização do poder; Frente de luta de combate ao racismo; Frente de luta por políticas públicas; Frente de luta contra a lesbofobia; Frente contra a violência contra as mulheres; Frente de luta pela legalização do aborto; Frente de luta trabalho e previdência social e Frente de luta pela democratização do sistema político. Para o período de 2014 a 2016, foram elencadas como prioritárias as seguintes lutas: a) enfrentamento ao racismo; b) democratização do poder; c) direito ao aborto; d) políticas públicas (FRAZÃO, 2017, p. 1). É interessante perceber que duas delas foram priorizadas justamente no meio de um contexto de quebra do regime democrático por meio do impeachment da presidenta Dilma Rousseff que, embora tenha se concretizado em maio de 2016 por meio do seu afastamento definido pelo Senado Federal, já apresentava indícios em 2015, quando foi enviado o processo pedindo a sua saída, em que o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, dava sinais de que iria aceitá-lo. Além disso, a luta por políticas públicas também tem vivido um contexto extremamente complicado. As próprias conferências de políticas públicas passaram por uma redefinição diante do contexto político. Se, nas edições anteriores, o formato estava atrelado à proposição de políticas, nas últimas conferências, o cenário foi marcado pela luta contra os retrocessos e, na edição nacional, pela manutenção do mandato da presidenta eleita. No evento, foi entregue uma carta em defesa do que colocavam como “[...] o mandato da primeira 163 e única mulher que venceu duas eleições” (CARTA..., 2016, p. 1). Trata-se de um documento escrito por diversos movimentos de mulheres e feministas e aprovado na plenária final da IV CNPM. No fim do texto longo, em que se leem diversas reivindicações em torno da manutenção do mandato: “Pela democracia! Por nós! Por todas as mulheres! Por todo o povo brasileiro! DILMA FICA” (CARTA..., 2016, p. 2). Sobre a relação da AMB com as políticas públicas, Carmen Silva avalia: O balanço da atuação da AMB no processo de Conferências de Políticas Públicas é, em geral, visto como positivo e necessário por suas integrantes, embora exista internamente a crítica de que a atuação em defesa dos direitos, por meio das políticas públicas, dota esta articulação de uma perspectiva mais institucionalista do que movimentalista. Entendo que foi o vínculo da AMB com as mulheres populares, a presença constante deste segmento em seus fóruns de decisão e nos espaços de formação política, que fez com que este caminho fosse adotado. Diferente dos movimentos feministas, que atuam em países cujos governos adotaram as políticas de bem-estar, no Brasil o movimento feminista, na perspectiva da AMB, necessitava travar batalhas políticas em torno das condições de vida de todas as mulheres, em especial das mulheres de classes populares, razão que confere importância à atuação no campo das políticas públicas (SILVA, 2016, p. 220). Foi no cenário das conferências que tive o primeiro contato com a AMB, em 2011, ao ver as mulheres do grupo cearense Tambores de Safo, que tocavam o tempo todo do evento. Num dos momentos críticos de votação acerca da “legalização” ou “descriminalização” do aborto na plenária final, o grupo entrou no auditório onde estava acontecendo, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, e sua expressão me pareceu bastante marcante como uma forma de se protestar que não fossem as convencionais por meio de atos nas ruas ou alto-falantes, por exemplo. Os chapéus coloridos utilizados pelas ativistas também me chamavam a atenção. “O que significa esse chapéu, que cada uma usa de uma forma diferente?”, eu me questionava. Quase cinco anos depois, já na IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, aquele chapéu tinha ganhado um sentido para mim de minha identidade com o movimento e, ao mesmo tempo, de saber que ali estava a expressão nacional do FMPE. Falarei sobre essa questão da identidade quando chegar ao tópico em que abordo a minha relação com o campo de estudo. Interessa aqui fixar que o FMPE é um movimento que extrapola as fronteiras do estado, tendo incidência nacional. Trata-se de uma entidade organizada politicamente e que tem uma trajetória de reivindicações e, ao mesmo tempo, enfrentamento ao Estado. Mostravase, portanto, um lócus de discussão e luta política adequado para que eu entendesse as 164 disputas e articulações em torno do sentido de políticas públicas. Entre julho e novembro de 2015, frequentei sete reuniões em que se falou diretamente sobre as Conferências de Políticas para as Mulheres, período marcado pela realização das etapas municipais e estadual, que aconteceu em dezembro do mesmo ano. De janeiro a maio de 2016, estive em cinco reuniões, mas como o foco de análise aqui se restringirá às etapas do Recife e de Pernambuco, não utilizei essa segunda parte por se referir à edição nacional, que culminou em maio. 4.2.2 A observação nos Conselhos Municipais e Estadual dos Direitos da Mulher – Recife e Pernambuco O Conselho Municipal da Mulher do Recife foi criado através da Lei N° 16.849 de 03 de abril de 2003 (RECIFE, 2004) e se constitui como “[...] órgão permanente do Poder Público Municipal para o controle social e de atuação no âmbito de toda a municipalidade [...]” (RECIFE, 2004, p. 1). São 24 conselheiras titulares e 24 suplentes e sua composição é chamada “tripartite”, pois é composto por representantes do poder público municipal, da sociedade civil e das servidoras municipais. A primeira categoria dispõe de seis vagas, indicadas pelo prefeito do Recife. A sociedade civil é dividida entre seis membros de entidades gerais de defesa dos direitos das mulheres e seis representantes das Regiões Político-administrativas (RPAs), também conhecidas como as mulheres dos bairros ou comunidades. O restante das vagas, seis, é destinado às trabalhadoras municipais. As duas últimas categorias são eleitas na Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres. O mandato é de dois anos, podendo haver reeleição. Percebi conflitos em torno das servidoras pelo fato de elas serem colocadas como sociedade civil na Conferência Municipal da Mulher, mas ao mesmo tempo, estarem dentro da esfera de trabalho no município e, por isso, as que criticam alegam que elas podem defender a gestão e que o seu local de atuação política deve ser os sindicatos de sua categoria. As servidoras, por sua vez, argumentam que os sindicatos não a representam e que elas não têm vínculo algum com a gestão. Seu funcionamento se dá a partir da seguinte composição: I) Pleno; II) Coordenação colegiada; III) Comissão de recebimento de denúncias sobre violação dos direitos das mulheres; IV) Comissões temáticas e grupos de trabalho, implantadas de acordo com a demanda do conselho (RECIFE, 2004, p.1). A composição do Pleno deve garantir a paridade da sociedade civil com os demais segmentos. Cabe ressaltar, como formulado no: “Art. 4° O Pleno do Conselho Municipal da Mulher é o fórum de deliberação máxima conclusiva, 165 configurado por reuniões ordinárias e extraordinárias [...]” (RECIFE, 2004, p. 2). A coordenação é partilhada entre três conselheiras, sendo uma representante da Secretaria da Mulher do Recife e as demais eleitas em reuniões do Pleno. Do funcionamento, cabe destacar: Art. 14° VII – As deliberações do Conselho só serão aprovadas quando obtiverem os votos da maioria absoluta das Conselheiras Titulares ou das Suplentes que as estiverem substituindo na reunião do Pleno (RECIFE, 2004, p. 4-5). A maioria absoluta significa 13 conselheiras. É o que se ouve falar como o conhecido “quórum”. Destaco esse trecho para dizer que esse não foi um problema na esfera municipal, já na estadual percebi isso como algo além de complicado, um sintoma de problemas de funcionamento do Conselho. Sobre isso, falarei mais adiante. Quadro 2 – Reuniões do Conselho Municipal da Mulher – Recife Fonte: Listas de presença das reuniões fornecidas pelo Conselho municipal. Elaboração própria. * O segmento sociedade civil se divide em RPAs e entidades gerais. ** Reunião extraordinária para se discutir sobre o regulamento da VI Conferência Municipal da Mulher do Recife. Vemos que existe uma forte presença das entidades gerais em defesa das mulheres, que são compostas, por exemplo, por movimentos feministas, centrais sindicais, os próprios sindicatos, instituições de um modo geral. O quantitativo ultrapassa, inclusive, o número de titulares, estando presentes nas reuniões também as suplentes. Existe um indicativo de fraca presença das mulheres de bairro, das Regiões Político-administrativas (RPAs) que, mesmo com a presença das suplentes, ainda não ultrapassa a metade das seis vagas. O mesmo acontece com as servidoras. Ainda em relação ao Conselho Municipal, a Comissão de Recebimento de Denúncias sobre Violação dos Direitos das Mulheres é composta por quatro conselheiras que são eleitas por maioria simples, isto é, das presentes no Pleno e deve se reunir ordinariamente uma vez 166 por mês (RECIFE, 2004, p. 4). Frequentei quatro reuniões ordinárias e uma extraordinária entre agosto e novembro de 2015. Para estar presente nesse espaço, não tive dificuldades, pois enviei a solicitação assinada pelo meu orientador e a mesma foi apresentada às demais conselheiras, que aprovaram o pedido. No primeiro dia de reunião, 06 de agosto de 2015, a representante da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres disse quem eu era e o que eu estava fazendo ali e todas as conselheiras presentes se apresentaram, falando o nome e a instituição que representavam. Isso foi muito útil para mim por dois aspectos: foi um reconhecimento do que eu estava fazendo ali, dando legitimidade ao meu estudo e, ao mesmo tempo, ajudou-me a conhecer o perfil das conselheiras, já que precisaria em algum momento saber o nome e as instituições para entender seus lugares de fala e as disputas internas. Porém, não tive a mesma facilidade para participar da Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres do Recife. Fui informada de que não haveria vaga para observadora, apenas convidadas. Quando cheguei ao local, no dia 10 de setembro de 2015, não consegui fazer credenciamento, pois meu nome não constava na lista. Ao questionar isso a uma das funcionárias da Secretaria Municipal, ela disse que eu não iria me credenciar, pois não havia vagas para observadoras. Quando falei que precisava dos documentos, como caderno de propostas ou regimento, a resposta foi de que poderiam ser enviados por e-mail. Fiquei bastante frustrada, pois não tive problema em nenhuma outra das seis conferências às quais assisti. Posteriormente, tivemos uma conversa e expus o significado que o credenciamento ganhava ali: a legitimidade do trabalho que eu estava construindo. O que me causou espanto foi na reunião seguinte à conferência, antes dessa conversa entre nós, essa mesma funcionária dizer para as conselheiras que iria ser feita a avaliação do evento e que, no final, “a pesquisadora iria fazer a sua análise”. Isso não aconteceu porque ninguém mais mencionou e nem eu ficaria à vontade de falar ali, pois minha visão não seria tão otimista quanto as demais, já que partia de um olhar analítico e, naquele contexto, bastante crítico. Tive quase a mesma dificuldade na IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres, pois também se falou que não haveria vagas para pesquisadoras, apenas convidadas. O mesmo não aconteceu porque uma conselheira da sociedade civil, que já me conhecia havia quatro anos, fez uma defesa aberta do meu papel ali e de que é uma tradição das conferências ter a presença de pesquisadoras, que isso é uma contribuição para os sujeitos políticos. Na reunião seguinte, ainda levei a solicitação do meu orientador, mas depois da fala dela, uma das representantes da SecMulher disse que ninguém faria objeção à minha presença. 167 Já no âmbito estadual, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de Pernambuco (CEDIM-PE), é um órgão colegiado de natureza deliberativa e integra a estrutura básica da Secretaria da Mulher do Estado de Pernambuco (SecMulher-PE). Foi instituído pela Lei N° 12.622, de 02 de julho de 2004, modificada em 04 de abril de 2008 pela Lei N° 13.422 (PERNAMBUCO, 2008a). Destaca-se: [...] a finalidade de contribuir para formular e propor diretrizes de ação governamental voltadas à promoção dos direitos das mulheres e atuar no controle social de políticas públicas de igualdade de gênero [...] (PERNAMBUCO, 2008b, p. 1). É composto de forma paritária por 27 conselheiras titulares e sete suplentes. Das primeiras, temos: 12 representantes governamentais indicadas pelo titular de cada órgão70, 12 da sociedade civil, que participam de um processo seletivo junto ao Colégio Eleitoral formado por entidades habilitadas perante a SecMulher-PE, e três conselheiras de notório conhecimento das questões de gênero e atuação na luta pela promoção e defesa dos direitos das mulheres (PERNAMBUCO, 2008a). Essas são indicadas e eleitas pelas representantes governamentais e da sociedade civil. Diferente do Conselho Municipal do Recife, em que há mulheres de bairros ou sem necessariamente atuação institucional ou em entidades gerais, a sociedade civil no CEDIM é composta de representações coletivas, por meio, por exemplo, de grupos e sindicatos. Não são possíveis outras modalidades (PERNAMBUCO, 2014). Eu já problematizei essa questão no capítulo 2 ao discorrer acerca do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher que também dispõe dessa categoria. Aqui, trago à tona novamente essa questão que, a meu ver, é problemática e impõe uma hierarquia ao espaço. Primeiro, questiono: de onde vêm essas mulheres tidas como referência? Na gestão de 2014-2017, as conselheiras de notório saber eram ligadas às seguintes áreas71: Notório saber 1 (Juíza de Direito Titular da 2ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca do Recife), notório saber 2 (Coordenadora Geral do Comitê Interinstitucional Pró-Mulher Idosa) e notório saber 3 (Médica Sanitarista e Coordenadora da Política Estadual de Atenção à Saúde da População Negra de Pernambuco) (TERCEIRA..., 2014). 70 É indicada uma conselheira de cada uma dos seguintes órgãos: Secretaria de Políticas para as Mulheres (que o presidirá); Secretaria de Planejamento e Gestão; Secretaria de Saúde; Secretaria de Educação; Secretaria Especial de Juventude e Emprego; Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos; Secretaria de Defesa Social; Secretaria de Desenvolvimento Econômico; Secretaria Especial de Cultura; Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente; Defensoria Pública Estadual; Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (PERNAMBUCO, 2008a). Vê-se a diversidade de locais de atuação dessas integrantes. 71 Optei por não expor os nomes delas porque o que importa aqui são as áreas às quais elas estavam ligadas à época da gestão no CEDIM-PE. 168 Essas três mulheres que integraram o CEDIM-PE como notório saber na época em que fiz a pesquisa de campo, entre junho de 2015 e abril de 2016, faziam parte de instituições estatais e duas claramente de profissões de grande prestígio em nossa sociedade: juíza e médica. Pergunto-me que outras opções de referência havia para terem sido escolhidas essas mulheres. Ou, ainda: onde estavam referências do movimento feminista popular na luta em prol dos direitos das mulheres? Questiono ainda: escolher personalidades de “notório conhecimento/saber” não seria indicativo de uma certa hierarquia nesse espaço? Questões como essa me levam a problematizar aspectos da estrutura: I) Pleno; II) Presidência; III) Câmaras técnicas; IV) Comissões e V) Secretaria administrativa (PERNAMBUCO, 2008, p. 3). O primeiro deles é em relação ao “pleno”, que é a instância máxima do Conselho e é composto por 27 conselheiras titulares. Para que as reuniões sejam consideradas deliberativas, é preciso que haja maioria simples do total de 34, ou seja, 18 conselheiras. Destaco que, de seis reuniões em que estive presente entre junho e dezembro de 2015, período selecionado para análise dos dados, apenas duas contaram com o quórum. Ou seja, quatro reuniões não puderam ser deliberativas porque não havia sequer o número mínimo. Porém, uma parte em que escrevi no diário de campo me chamou a atenção acerca da reunião do dia 11 de junho de 2015: Ao falar da tabela com o quantitativo das delegadas que estaria no regimento da IV CEPM-PE, uma funcionária da SecMulher perguntou quem concordava. A maior parte levantou a mão. Porém, achei o processo um pouco atropelado. Pressupôs-se que as conselheiras haviam lido anteriormente por e-mail e, logo após a explicação, foi informado que o regimento seria encaminhado para publicação. Uma coisa que me inquietou antes da reunião foi uma tentativa de atingir a todo custo o quórum. Duas funcionárias da SecMulher chegaram a fazer a contagem com duas conselheiras que estavam no período da manhã, na reunião da comissão de organização, mas como uma delas passou mal, foi para um hospital e a outra a acompanhou. No entanto, chegaram outras conselheiras que preencheram o quórum (o que foi bastante comemorado). Mas, fiquei com alguns questionamentos: se o quórum não tivesse sido atingido, o que teria sido feito? Será que teria havido alguma forma de aprovar o regimento? Será que a falta de respostas ao e-mail em que continha o regimento não significava algo sintomático de que as conselheiras não o leram ou talvez nem tivessem tido tempo de lerem ou, ainda, não tivessem concordado com ele ou não quiseram ter se comprometido nessa esfera virtual? São apenas especulações minhas diante da situação (DIÁRIO DE CAMPO, 11/06/2015). Esse trecho é sintomático de um esvaziamento não apenas de quantitativo de integrantes na reunião, mas também de discussão política em torno do documento que regeu as etapas municipais no Estado. Ao mesmo tempo, a sociedade civil, que, em tese, poderia 169 questionar aquela forma de votação e aprovação, concordou. Havia pressa na divulgação do regimento porque as etapas municipais dependiam dele para acontecerem. Sobre o quantitativo e cada reunião que acompanhei, vejamos: Quadro 3 – Reuniões ordinárias do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – Pernambuco Fonte: Listas de presença das reuniões ordinárias fornecidas pelo CEDIM-PE. Elaboração própria. * São 12 conselheiras titulares e 12 suplentes, além das três de notório saber. No total, são 27 integrantes. ** São as que obtiveram o quórum de 18 conselheiras. Desses números, cabe ressaltar que as representantes da sociedade civil e do governo oscilavam entre metade e um pouco mais que isso. As mais ausentes eram as de notório saber. É importante destacar que as reuniões que atingiram o quórum tiveram como pauta a aprovação do regimento da IV CEPM-PE, no qual constavam as regras para as etapas municipais (11/06/2015) e a eleição das delegadas para a etapa nacional (12/11/2015). Na segunda, a sociedade civil estava quase em seu total. Isso pode ser um indicativo do que seria prioritário. Teremos mais elementos para refletir sobre as reuniões no capítulo seguinte, na análise dos dados. As conselheiras se dividiram no que ficou conhecido como “Comissão de Organização”, composta pela “organização geral”, “mobilização” e “relatoria e temática”. Sobre as reuniões, temos que: 170 Quadro 4 – Reuniões da Comissão de Organização da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres – Pernambuco* Fonte: Listas de presença das reuniões da comissão de organização da IV CEPM-PE fornecidas pelo CEDIM-PE. Elaboração própria. * A comissão organizadora da IV CEPM-PE foi composta por “organização geral”, com seis titulares (três do governo e três da sociedade civil), seis suplentes (duas do governo, três da sociedade civil e uma do notório saber); “mobilização”, com quatro titulares (duas do governo e duas da sociedade civil) e duas suplentes da sociedade civil; “relatoria e temática”, com quatro titulares (duas do governo e duas da sociedade civil) e duas suplentes da sociedade civil. Essas reuniões aconteceram no turno da manhã ao passo que as ordinárias do CEDIMPE eram realizadas à tarde. Percebe-se a predominância das representantes da sociedade civil em todas as reuniões. Por outro lado, havia um quantitativo considerável das funcionárias da Secretária Estadual da Mulher, o que me revela uma prioridade do órgão em relação ao evento. Para tecer comentários analíticos, é preciso, porém, investigar que sujeitos se sobressaíam e que argumentos eram postos nesses espaços. É preciso ressaltar que eu estive presente em mais cinco reuniões da Comissão de Organização, porém não coloquei nessa tabela porque aconteceram fora desse formato de um dia inteiro de reuniões da comissão e depois das ordinárias do Cedim. Além disso, não disponho de listas de presença das mesmas. Porém, o que relatei no diário de campo entrará na análise. O segundo aspecto que ressalto é em relação à Presidência. Estejamos atentas à diferença em relação ao Conselho Municipal, que utiliza a denominação “coordenação colegiada”. Tratam-se de termos com sentidos distintos. Enquanto o primeiro está associado a uma concepção mais centralizadora, na figura de uma pessoa, a presidenta, o segundo remete a uma concepção horizontal. São duas entidades distintas: a presidenta e o pleno. Da forma como está disposto no regimento interno, de 2008, lê-se: 171 Art. 9° § 2° A Presidenta será substituída nas suas faltas e impedimentos por sua substituta legal – Secretária Executiva de Enfrentamento à Violência de Gênero – e, na ausência dessa, pela conselheira da sociedade civil, representante do Fórum de Mulheres de Pernambuco; § 3° A Presidenta e o Pleno serão assistidos por uma Secretária escolhida e designada pela Presidenta, pertencente aos quadros da SecMulher; [...] § 6° Em caso de empate nas decisões, caberá ao pleno a defesa das propostas e refazer a eleição, persistindo o empate, a Presidenta do Conselho, sua substituta legal ou a Conselheira em exercício da presidência, exercerá o direito ao voto de qualidade (PERNAMBUCO, 2008b, p. 4). Destaco algumas questões: em todas as reuniões em que estive presente, quem substituiu a presidenta foi a Secretária Executiva de Políticas para as Mulheres. Em momento algum, ouvi questionamento dessa substituição por parte das conselheiras. Questiono a mim mesma: será que elas tinham consciência desse inciso contido no regimento? Outra questão é que, na gestão de 2014-2017, não havia mais representantes do Fórum de Mulheres de Pernambuco. Tenho ciência de que o referido documento é de 2008, portanto, já está desatualizado há anos, mas me pergunto por que se mantém o nome de um movimento em específico quando se sabe que existem diversos outros. Por que não deixar apenas “conselheira da sociedade civil”? Um aspecto que me inquietou: onde estavam as representantes do Fórum de Mulheres de Pernambuco? Em 2011, quando prestei serviços para a SecMulher-PE, via diversas vezes as integrantes do referido movimento. Eram elas, inclusive, que provocavam e travavam diversos debates nas reuniões. Em 2015, quando voltei na condição de pesquisadora, já não as vi mais e, ao longo da pesquisa, soube que elas decidiram não estar mais nesse espaço, mantendo-se, porém, nos conselhos municipal e nacional. A justificativa era de que não se acreditava mais e permanecer nele era apenas aprovar ou, sob uma perspectiva semelhante, aconselhar as ações do governo do Estado, deixando o conselho, portanto, de ser uma instância de controle e fiscalização. Outro aspecto que ressalto é o inciso 6°, que remete mais uma vez ao centralismo das decisões nas mãos da Presidenta do Conselho. O mesmo sentido pode ser notado nos seguintes trechos: Art. 18 I – a Presidenta apresentará o item incluído na Ordem do Dia e dará a palavra à relatora da matéria; [...] Art. 23 A extinção das Câmaras Técnicas deverá ser aprovada pelo Pleno do CEDIM-PE mediante proposta fundamentada pela Presidenta do Conselho ou, de no mínimo, um terço de duas conselheiras, devendo a mesma ser objeto de resolução (PERNAMBUCO, 2008b, p. 7-9). 172 Vejo uma importância dada à figura da presidenta que é possível me fazer questionar em que medida isso condiz com os princípios democráticos de um órgão que deve formular e propor diretrizes governamentais, mas também exercer o controle social de políticas públicas de igualdade de gênero. É preciso chamar atenção para o fato de que o regimento do CEDIMPE apresenta muitas semelhanças com o do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, inclusive, essa questão da integrante central como a presidenta, que também é a secretária do órgão vinculado ao Poder Executivo, vem à tona com a mesma frequência que na esfera estadual. O regimento do CNDM passou por reformulação em 2003, já na gestão do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República, e o do CEDIM-PE foi reformulado em 2008, no mandato do Partido Socialista Brasileiro à frente de Pernambuco. No CEDIM-PE, ao fazer o pedido de participar das reuniões na condição de pesquisadora, não precisei esperar por resposta da secretária. Enviei a solicitação e a mesma foi lida na reunião do Pleno, que aprovou. Já na esfera nacional, enviei cinco e-mails para a secretária do CNDM nas seguintes datas: 12 de janeiro, 24 de fevereiro e 07 de maio de 2015. No ano seguinte, retomei a solicitação em 18 de janeiro e 23 de fevereiro de 2016. A primeira resposta dizia que quem poderia me responder seria a Ministra e Presidenta do CNDM. Na segunda vez, argumentou-se que a mesma não autorizou a minha participação porque o Conselho ainda estava em processo de organização e definição de datas. Na terceira vez, enfatizou-se que eu precisaria enviar a carta do meu orientador e o projeto da tese para que fosse avaliado e definido se eu seria ou não convidada a participar, conforme está no regimento interno: Art. 7° O Conselho reunir-se-á em sessão pública, com a presença da maioria absoluta de suas integrantes e deliberará por maioria simples §1° Participarão nas sessões do Pleno [...] III - Instituições e pessoas convidadas, que terão direito a voz somente quando autorizadas pelo Pleno [destaque próprio] (BRASIL, 2008c, p. 3). A funcionária que me respondeu sublinhou o “convidadas”, o que me deixou inquieta, pois se as reuniões eram públicas, não precisaria necessariamente de um convite para acompanhá-las, seja simplesmente como cidadã ou na condição de pesquisadora. Enviei os documentos solicitados no dia 18 de janeiro de 2016. Como não obtive resposta, liguei para o telefone indicado e fui instruída a reenviá-lo, o que foi feito no dia 23 de fevereiro. Novamente, não tive resposta. No dia 25 de abril, estava em Brasília para acompanhar a Conferência Nacional de Direitos Humanos e resolvi ir à sede do CNDM. Ao chegar lá, não me deixaram sequer passar da recepção, pois a secretária do mesmo disse que eu precisava ter 173 marcado horário e que estava bastante ocupada. Expliquei que ela não respondia meus e-mails e, por isso, eu fui lá. Disse que faltavam pouco mais de duas semanas para a realização da IV CNPM e que eu não sabia sequer a resposta da minha solicitação para participar como pesquisadora/observadora, a qual encaminhei por meio de uma das conselheiras com quem tinha contato, já que não respondiam meus e-mails. Ela informou que o meu pedido estava na mesa da Ministra para ser analisado. Só soube do resultado três dias depois, quando uma das conselheiras me ligou informando que eu poderia ir. É importante destacar que, no início da pesquisa, a minha intenção era acompanhar as reuniões do CNDM para entender como estavam sendo construídas as conferências nos estados e a nacional. Considero necessário dizer que não tive qualquer dificuldade de inserção nas reuniões do CEDIM-PE. Na primeira em que estive presente, foi-me dada a oportunidade de me apresentar para as demais conselheiras. Sentia uma relação de confiança também comigo ali. Fui chamada para discutir a proposta do regulamento da IV CEPM-PE, o que mostra que havia um respaldo do que eu estava fazendo. Porém, esses aspectos dos regimentos de ambos os conselhos, estadual e nacional, aliados à experiência que tive em Brasília me remetem à pergunta feita no capítulo 2 desta tese: como fiscalizar o governo ou, mais especificamente, as ações da Secretaria da Mulher de Pernambuco nessas condições ou, mais especificamente, num cenário em que a secretária do órgão que deveria ser fiscalizado é a presidenta do fiscalizador e, sobretudo, é indicada pelo representante do Poder Executivo? Outro aspecto que ressalto do regimento do CEDIM-PE é o peso dado às Câmaras Técnicas, que: Art. 21 O CEDIM-PE, de forma a instruir e fundamentar suas deliberações ou ainda promover estudos sobre matérias de seu interesse e competência, instituirá 3 (três) Câmaras Técnicas Permanentes e 2 (duas) Câmaras Técnicas Especiais de caráter temporário (PERNAMBUCO, 2008b, p. 8). As permanentes são: I) Câmara técnica de legislação e normas; II) Câmara técnica de assuntos étnico-raciais; III) Câmara técnica de monitoramento do Plano Estadual de Políticas para as Mulheres – PEPM (PERNAMBUCO, 2008b, p. 9). Não vou tecer comentários sobre o funcionamento das mesmas porque não as acompanhei, mas seria interessante investigar quem são os sujeitos que compõem essas câmaras e em que medida o debate é pautado em aspectos políticos. 174 4.3 Reflexões acerca do meu papel no campo de pesquisa Entendo que a observação participante pode proporcionar às pesquisadoras de gênero e, mais especificamente, de estudos feministas, fontes preciosas não só de informação, mas sobretudo de percepção de questões de ordem subjetiva que não são possíveis de se apreender através de outros métodos de estudo, principalmente, os quantitativos. Os dados mostrados no item anterior por si só dão elementos para reflexões, porém não são suficientes para o que me proponho nesta pesquisa. Os mesmos me evidenciaram a importância de um estudo qualitativo nos espaços de construção das conferências. Se os conselhos de direitos das mulheres foram fruto de lutas dos movimentos feministas e de mulheres, conforme vimos nos capítulos anteriores, o que tem gerado os problemas apontados? Que disputas foram feitas durante o período em que acompanhei? As respostas são possíveis através da análise da forma como os discursos de diferentes grupos emergem nesses espaços para se chegar às cadeias de equivalência, sobre as quais tratarei no próximo ponto deste capítulo. A socióloga italiana Laura Terragni (2005) observa que a experiência das mulheres. no nível em que elas estão constitui o ponto de partida da análise feminista. Conceitos tradicionais associados à ciência defendem que quem faz pesquisa deve manter um distanciamento e objetividade para garantir o registro objetivo do fenômeno estudado. Porém, a autora chama a atenção para o fato de que: Na lógica feminista, o distanciamento do observador não só é considerado ‘impraticável’, mas também como um limite ao processo de conhecimento. A aproximação com o próprio objeto de estudo não apenas parece coerente com as práticas que o feminismo vem desenvolvendo, mas o provar emoções, o saber reconhecê-las e compreendê-las são consideradas como um recurso importante na compreensão do fenômeno estudado (TERRAGNI, 2005, p. 148). O tipo do estudo me permite refletir a fundo sobre minhas expectativas em relação à pesquisa, as minhas experiências e, mesmo, os meus preconceitos como pesquisadora. Cito um exemplo em que me emocionei: ao estar presente na Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”, realizada no dia 07 de dezembro de 2015 no Recife, e organizada exclusivamente por movimentos sociais, vi alguns depoimentos das mulheres de realidades tão distantes da minha, que sempre estive numa condição de privilégio social, como apontei anteriormente neste texto. É o caso do depoimento de uma pescadora que relatou a devastação ambiental que a fábrica da Fiat, tão colocada como sinônimo de progresso, tem gerado no município onde 175 ela vive, em Goiana. A poluição tem atingido o local de pesca das mulheres e estas têm desenvolvido doenças ginecológicas pelo contato com a água. Como ouvir um depoimento desse tipo e não pensar na minha condição como mulher? Como registrar no diário de campo apenas aquela fala sem colocar uma mensagem de indignação por todo o descaso conosco, sujeito coletivo? Harding afirma que: “Uma característica distintiva da pesquisa feminista é que gera as suas problemáticas a partir da experiência das mulheres” (HARDING, 1987a, p. 7). É importante ressaltar que isso não significa que apenas mulheres podem fazer pesquisa feminista. Ao refletir sobre as colocações de Harding, entendo que a observação não só me permite entender os processos discursivos, como Laclau e Mouffe abordam, mas principalmente, compreender esses processos que envolvem diversos sujeitos que, apesar de muitas vezes se identificarem em torno de opressões de gênero e de viver ainda numa sociedade extremamente machista, vivencia desigualdades de formas diferentes. Ao refletir sobre a relação entre mim e o que eu estava estudando, deparo-me com dificuldades ao longo deste percurso. Isso me mostra a importância de fazer uma reflexão metodológica como parte da objetividade forte a qual Harding tanto defende. O estudioso Costanzo Ranci aponta que: O ator social não tem uma função neutra de informações colocadas à disposição pelo pesquisador, mas desenvolve um papel ativo que condiciona o processo cognoscitivo. Ele assume, no curso de uma pesquisa empírica, um duplo papel: de um lado é parte do objeto de estudo do pesquisador, e de outro, enquanto sujeito discursivo, age também como medium entre o pesquisador e a realidade social mais ampla que ele está investigando. Se é dos discursos e das ações dos atores que o pesquisador traz grande parte das informações que lhe são necessárias, o ator social produz, todavia, e transmite seletivamente um tipo de conhecimento e uma interpretação da realidade examinada [destaque do autor] (RANCI, 2005, p. 44). Como a relação, segundo o autor, é inevitável, são necessários procedimentos que evitem distorções excessivas dos dados. No caso desta pesquisa, faço um esforço de ser o mais transparente e detalhista possível. Esse princípio me guiou durante todo o tempo em campo e nas anotações no diário, repleto não apenas do que estava vendo e ouvindo, mas das reflexões que ia desenvolvendoo. O autor reitera que a relação entre quem pesquisa e o ator social pode ser uma fonte de problemas metodológicos, mas ao mesmo tempo, uma oportunidade preciosa de observar aspectos pouco evidentes, além de colocar à prova os próprios esquemas interpretativos graças ao confronto com interpretações de sentido (RANCI, 2005, p. 45). Nos primeiros meses em campo, eu nutria ilusões de neutralidade e, sobretudo, 176 de que era necessário um distanciamento com os atores sociais. Achava que era preciso sempre demarcar minha posição como doutoranda que estava estudando as conferências. Parecia ignorar minha trajetória na militância política através do movimento estudantil e na afinidade com discursos de esquerda e, por isso, o engajamento em períodos eleitorais. Também imaginava que minha aposta na democracia participativa e, por isso, uma certa decepção por ver que o controle social apresentava tantas falhas, não iria estar em questão no campo. Porém, deparei-me com situações que exigiram de mim falar algo e, por que não dizer, posicionar-me diante do que via. É preciso ter clareza que: Em termos gerais, pode-se afirmar que, segundo a imposição da tradição, a pesquisa de campo exige um procedimento que fixe os termos da relação entre pesquisador e ator social. As prescrições metodológicas em que este procedimento é articulado constituem, no seu conjunto, uma forma de controle do ator social (e da sua relação com o pesquisador), com a finalidade de torná-lo confiável e estável, bem como neutralizar a possibilidade que ele influa no processo de investigação. Este controle constitui, além disso, a garantia de que a pesquisa venha a ser desenvolvida sobre a base de critérios científicos, isto é, independentemente dos vínculos e das confusões que dominam nos contextos práticos da vida cotidiana (RANCI, 2005, p. 48). Refletindo um tempo depois sobre o campo de estudo, vejo que, além de não existir neutralidade na pesquisa, o fato de questionar nas reuniões sobre o campo de estudo e, consequentemente, o feminismo e de me tornar parte do mesmo fez ao longo da pesquisa de campo que fosse construída uma relação de confiança das integrantes comigo. O mesmo não era necessário nos espaços dos conselhos de direitos das mulheres, pois o fato de eu estar na academia já era um fator de prestígio e de reconhecimento da minha presença. Esse reconhecimento, inclusive, demorou um tempo para ser conquistado junto ao FMPE. Passei por situações em que me sentia invisível: não me avisavam de remarcações das reuniões ou, mesmo, dos próprios encontros. Porém, havia sinais da confiança sendo construída. Um deles se deu na Conferência Municipal da Mulher, em que uma das integrantes me chamou para conversar sobre as alianças políticas que elas estavam articulando ou, ainda, ao permitirem que eu ficasse até tarde da noite conversando com as conselheiras da sociedade civil e governo enquanto estavam sistematizando as propostas dos grupos de trabalho num único documento, que seria lido no dia seguinte na plenária final. Relato um episódio que se destaca nessa difícil relação: 177 Uma integrante de uma organização feminista fazia parte do CEDIM-PE, em 2011, quando prestei serviços à SecMulher-PE. Ela integrou uma gestão do conselho que, aos meus olhos, era muito marcada por embates com a secretária da mulher à época. Eu, até hoje, sou associada como alguém que trabalhou lá e que, por isso, defendia a Secretaria. Na reunião de hoje, essa ativista me falou uma frase que me deixou balançada positivamente: “É muito bom ver você aqui, viu?”. Eu respondi explicando que gostei tanto das conferências que decidi estudá-las (DIÁRIO DE CAMPO, 201572). Essa situação me mostrou que o campo poderia ser visto sem tanta angústia e de uma forma de olhar para a diversidade dos sujeitos políticos ali presentes e que me senti invisível poderia não ser um problema, como antes eu acreditava. Ou, ainda, que elas poderiam reconhecer que eu estava cumprindo o papel de pesquisadora sem, necessariamente, estarem reforçando isso cotidianamente. Isso, inclusive, era positivo, pois eu sentia ao longo de todos os espaços que minha presença estava se tornando algo comum na rotina delas. Anos mais tarde, em 2018, estava num momento junto ao FMPE e uma integrante da Zona da Mata Sul me olhou e disse: “Eu lembro de vocês nas conferências, estava sempre com um caderno e fazendo anotações”. Lembrei de outras situações em que comentavam comigo que eu vivia escrevendo, não deixava passar nada. Sorri e fiquei pensando que outras pessoas podem fazer essa associação quando me veem. Isso me passa uma sensação de legitimidade ao meu papel no campo. Sobre isso, considero interessante o seguinte trecho: [...] A aceitação do pesquisador por parte dos atores sociais depende, frequentemente, da capacidade do primeiro de conformar-se às regras práticas e às atitudes típicas dos segundos: a conformidade às regras do grupo parece, portanto, constituir uma condição necessária para o bom êxito de uma observação participante, mais do que outros requisitos considerados geralmente importantes como a neutralidade ideológica e a boa capacidade comunicativa (RANCI, 2005, p. 55). Apesar das crises, considero que tive uma boa inserção em boa parte dos espaços por onde passei. Para uma das conferências no interior do Estado, liguei dois dias antes e falei com a responsável pelo organismo de políticas para as mulheres explicando que estava desenvolvendo uma pesquisa e perguntando se poderia participar como ouvinte. Ela prontamente respondeu que sim e que seria bom eu chegar no dia anterior porque começaria cedo e, como eu passaria muitas horas na estrada, seria muito cansativo. Perguntei se havia algum lugar que pudesse me hospedar e ela disse que conseguiria uma “hospedagem 72 Também optei por não colocar a data dessa reunião, pois a conferência sobre a qual falei anteriormente tinha acontecido no dia anterior. 178 solidária” para mim. Prontamente, falou com uma integrante da prefeitura, que me hospedou em sua casa, além de ir me buscar e deixar na rodoviária. Estava em campo há dois meses e, ali, vi que ele poderia me mostrar laços de solidariedade e, sobretudo, de empatia. Para penetrar na mentalidade do ator social é necessário estabelecer uma relação de confiança com ele e utilizar plenamente as próprias emoções como preciosas fontes de informação. A empatia identifica uma relação com o ator social fundada não somente sobre o esforço intelectual, mas também sobre a contribuição emotiva, sobre a capacidade do pesquisador de dar-se conta intuitivamente dos sentimentos do ator social e de interpretar, identificando-se, as experiências subjetivas (ARDIGÒ, 1988 apud RANCI, 2005, p. 57). Essas relações com o campo me transformaram como socióloga e como mulher. Fizeram-me ver que não existe separação entre o que julgava serem duas esferas distintas. A experiência não diz respeito somente ao “objeto de pesquisa”, mas abrange também o pesquisador. Não somente porque o ato de refletir sua própria experiência faz surgir sucessivas interrogações de pesquisa, mas porque tal experiência é inseparável do seu ser, o seu agir e do seu olhar como cientista social (TERRAGNI, 2005, p. 147). A percepção disso me faz olhar para a minha escrita e compreender que faço uma narração reflexiva do que pesquisei ao longo desses anos. Nas palavras de Enzo Colombo: Um tipo de escrita que, mesmo renunciando a um pretenso privilégio de neutralidade científica do pesquisador, não se exime da tentativa de oferecer uma descrição e uma análise o mais possível fiel e documentada das relações e dos acontecimentos assim como foram percebidos e, em alguns casos, construídos pelo pesquisador. Oferecendo detalhes sobre como trabalha o pesquisador, como constrói os próprios dados, sobre as situações de observação; explicitando as questões que orientam a pesquisa, as posições teóricas iniciais; refletindo sobre os erros e sobre os obstáculos encontrados, busca-se não esconder o caráter construído de cada pesquisa (COLOMBO, 2005, p. 282). O autor acrescenta que existe a consciência de que o discurso é inevitavelmente posicionado e parcial, fruto de um olhar sobre a realidade que vem de algum lugar e que esse tipo de escrita se caracteriza por um empenho ético (COLOMBO, 2005, p. 282-283). Isso corrobora o que tenho escrito ao longo do presente capítulo, em que explicito o meu lugar de fala. Nesse contexto, entendendo como a forma mais apropriada, a narração em primeira 179 pessoa do singular me permite explicitar minhas motivações, inquietações, emoções, simpatias etc. Trata-se de um estilo retórico que não se propõe a persuadir o leitor, mas que não se contenta em evocar. O seu objetivo é aquele de apresentar perspectivas que aspiram ser aceitas como merecedoras de consideração e de diálogo. A intenção do narrador reflexivo é aquela de participar de um universo discursivo, de fazer com que sua voz possa ser levada em consideração como ponto de partida plausível para uma reflexão dialógica sobre o social. A narração reflexiva tem como fim não chegar a uma conclusão, mas abrir um debate. Não chegar a uma classificação ou a uma síntese, mas evidenciar a multiplicidade e a polissemia da realidade (COLOMBO, 2005, p. 287). Essa ideia está relacionada ao que Anna Lisa Tota (2005) discorre como a escrita sendo, ao lado da leitura, essencialmente um ato político de construção do texto. Portanto, além de escrever na primeira pessoa, postura bastante criticada pela ciência tradicional, opto por colocar o nome e sobrenome na primeira vez que cito os autores e as autoras e, no final do texto, nas referências. Faço isso porque deixar apenas o sobrenome seguido das iniciais dos primeiros nomes é ser conivente com a masculinização dos sujeitos, fruto da ideia de um sujeito universal tão cara à Modernidade. Explico a partir de um exemplo que já ouvi: “o Mouffe”, “ele – referindo-se a Joan Scott”. Portanto, as referências que compõem essa tese, muito mais do que sujeitos universalizados, são homens e mulheres com seus nomes e sobrenomes. Se um texto sociológico não veicula somente representações dos sujeitos pesquisados ou dos leitores para os quais é destinado, mas prefigura também no seu interior a própria identidade do seu autor, a escrita não é mais interpretável como acontecimento privado; as escolhas retóricas e estilísticas cessam de configurar-se como mero reflexo das concepções epistemológicas ou das idiossincrasias pessoais do autor. Os textos sociológicos tornam-se as arenas discursivas em que a individualidade do pesquisador se entrelaça com os modelos e as práticas institucionalmente codificadas quando se escreve, limita-se a escolher entre opções expressivas legítimas, isto é, entre aquelas retóricas expressivas que a instituição pré-confeccionou para nós. A escrita sociológica torna-se, portanto, não mais somente um ato político de produção de sentido, mas também um ato institucional de produção daquele consenso sobre o qual se fundam as carreiras científicas [destaque de Tota] (TOTA, 2005, p. 312). Alberto Melucci afirma que cada observação é, por definição, sempre uma intervenção, pois o “objeto” social, o ator observado, interage conosco, os pesquisadores e as pesquisadoras (MELUCCI, 2005, p. 318). Isso se tornou muito claro para mim no decorrer da 180 pesquisa e, hoje, já não tenho mais crises. Suspeito que, assim como o campo de pesquisa e os sujeitos com quem tive contato me transformaram ao longo desse tempo, eu também em alguma medida transformei aqueles espaços. Sobre isso, estou de acordo com o que Melucci reflete: [...] o grau de transparência ou de opacidade que a pesquisa comporta em si torna-se também responsabilidade do pesquisador, uma responsabilidade tornada hoje mais clara pelo extinguir-se do paradigma objetivista. Tornar mais ou menos explícita e consciente a modificação do campo que a atividade de pesquisa produz não é somente um problema científico, mas uma questão ética sobre a qual se exercita a escolha das instituições e dos pesquisadores nelas empenhados. Entre o mito de uma objetividade distante e aquela de uma auto-reflexividade total que não poderia mais que envolverse sobre si mesma, coloca-se a atividade concreta da pesquisa. Ela é considerada possível pelos graus diversos de opacidade e reflexividade, que dependem também das escolhas conscientes dos pesquisadores, pelos valores que guiam a atividade de pesquisa, pelas políticas institucionais que governam a produção da consciência social (MELUCCI, 2005, p. 330-331). Vejo como de extrema importância as reflexões sobre o ato de pesquisar e suas implicações sociais, sobretudo, num contexto de estudo ligado às temáticas de democracia e movimentos sociais, especificamente, os feministas. Feita toda essa discussão, passo às categorias que me farão analisar os dados construídos na pesquisa de campo e cumprir com os objetivos desta tese. 4.4 O campo de pesquisa e a base para análise Entendido como se deu o percurso da pesquisa de campo e o meu papel em meio a tudo o que vivenciei e registrei, sinto a necessidade, antes de chegar no capítulo analítico propriamente dito de discorrer acerca da base para análise. Em onze meses de pesquisa, construí uma base de dados imensa, fruto de todos os registros no diário de campo, audiovisuais e de documentos dos governos e os entregues pelos movimentos sociais. Para pensar numa forma de organizar tudo o que tinha e sistematizar as informações de modo que me mostrassem uma metodologia para responder ao problema de pesquisa, recorri às ideias colocadas pelos teóricos pós-estruturalistas centrais nesta tese. Conforme foi colocado no primeiro capítulo, na perspectiva de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, é de fundamental importância a negação da sociedade como um todo fechado, como uma estrutura suturada (LACLAU; MOUFFE; 2015). O que se vê como algo 181 homogêneo, universal é, na verdade, uma tentativa fracassada de se domesticar o campo das diferenças. Eles resumem da seguinte forma: No contexto desta discussão, chamaremos articulação qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos de tal modo que a sua identidade seja modificada como um resultado da prática articulatória. A totalidade estruturada resultante desta prática articulatória, chamaremos discurso. As posições diferenciais, na medida em que apareçam articuladas no interior de um discurso, chamaremos momentos. Por contraste, chamaremos elemento toda diferença não discursivamente articulada [destaque dos autores] (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 178). Os autores remetem a articulações discursivas que, conforme veremos ao longo dos capítulos seguintes, são centrais na análise do campo de pesquisa. Para os referidos filósofos, formações discursivas são entendidas como posições diferenciais que, em determinados contextos, podem assumir um significado de totalidade, conforme foi abordado no primeiro capítulo. Eles ressaltam que, como nenhuma formação discursiva constitui uma totalidade fechada e a transformação de elementos em momentos nunca se dá por completo, a contingência e a articulação tornam-se possíveis (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 180). Diante de toda a discussão feita nesta tese, são fundamentais aqui dois aspectos trabalhados pelos autores: a diferença e a equivalência. Para explicar os termos, Laclau recorre antes à discussão sobre significantes vazios e hegemonia, conforme desenvolvemos no começo desta tese. Ao questionar “por que significantes vazios são importantes à política?”, o autor mostra que o significante vazio, por se referir a uma falta, a uma totalidade ausente, fracassada, está em disputa: Quando falamos de “significantes vazios” [...] queremos dizer que existe um lugar, no sistema de significação, que é constitutivamente irrepresentável. Nesse sentido, ele permanece vazio, mas este é um vazio que pode ser significado, pois estamos lidando com um vazio no interior da significação [destaque do autor] (LACLAU, 2011, p. 166). São eles que constituem o jogo político das disputas e a luta pela hegemonia, pela possibilidade de determinados grupos ou projetos assumirem a função significativa, passando uma falsa ideia de universalidade. Nessas disputas, os elementos dispersos, as diferenças, vão se compondo em momentos. Mas, essa composição não é uma simples soma de posições, pois é central aqui o caráter antagônico do social. Desta forma, no social e, mais especificamente aqui, na esfera da política, estamos diante de fronteiras antagônicas. Nesse contexto, os sujeitos políticos estão disputando os seus projetos, concepções e ideais para assumirem a 182 função significativa dos significantes vazios ou, dito de outra forma, estão buscando um processo de equivalência de suas diferenças. O intuito é de assumir o sentido de universalidade contingente constituído através dos pontos nodais. Laclau e Mouffe refletem que a lógica da equivalência é de simplificação do espaço político, enquanto que a lógica da diferença é de complexificação expansão do mesmo (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 209). Laclau reitera que, embora sejam incompatíveis entre si, a equivalência não opera no sentido de eliminar as diferenças. “Elas, no entanto, precisam uma da outra como condições necessárias para a construção do social. O social nada mais é do que o locus dessa irredutível tensão” (LACLAU, 2013, p. 133). Em sua perspectiva, toda identidade social, portanto, discursiva, constitui-se pelo encontro da diferença e da equivalência. Essas relações são analisadas através dos pontos nodais, constituídos a partir de cadeias de equivalência. Tratamse de pontos discursivos privilegiados, frutos da tentativa dos discursos de deterem o fluxo das diferenças e de construção de um centro (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 187). É importante ressaltar que os conceitos em questão devem ser visto sob o prisma da contingência. Diante disso, em cada espaço que frequentei - o Conselho da Mulher do Recife; Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e Fórum de Mulheres de Pernambuco -, organizei os registros com base em eixos temáticos e, a partir deles, desenvolvo a discussão para entender quem são os sujeitos e os discursos que são construídos. Interessa-me entender o que estava em disputa e quem ou o que se sobressaiu e o que assumiu o sentido de totalidade referente à construção das conferências de políticas para as mulheres em Pernambuco. Entendo que analisar as diferenças e equivalências nos diferentes espaços estudados vai, então, permitir entender os antagonismos, pontos de ruptura e, sobretudo, as articulações discursivas. Ou, de acordo com a teoria do discurso posta por Laclau e Mouffe, compreender quais foram os elementos que se fixaram em momentos. É importante ressaltar que há reuniões em que a pauta não se restringiu às conferências. Portanto, irei me ater aos momentos em que se aborda a referida temática, foco desta tese. Reitero que o material utilizado será o diário de campo, com todas as anotações que fiz ao longo do tempo, os documentos que consegui junto aos referidos conselhos – atas de reuniões e listas de presença-, bem como os materiais entregues nas conferências, como regimentos ou folhetos com propostas. 183 Resumidamente, neste capítulo, tracei um caminho reflexivo através da epistemologia feminista para pensar a relação do feminismo e da ciência. O acompanhamento dos espaços de construção das Conferências de Políticas para as Mulheres em Pernambuco junto a sujeitos governamentais e da sociedade civil me fez mergulhar não só no campo de pesquisa, mas, sobretudo, nas reflexões sobre a minha condição de mulher que desfruta de imensos privilégios numa sociedade extremamente desigual. Diante disso, julguei necessário discorrer acerca do que constitui fazer ciência a partir de um olhar feminista para, então, abordar o método que utilizei para construir o corpus de pesquisa: a observação participante. Ao longo de onze meses, acompanhei cinco reuniões do Conselho da Mulher do Recife; sete reuniões ordinárias do Conselho dos Direitos da Mulher de Pernambuco e dez reuniões de organização da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres; duas reuniões de preparação para Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”; duas conferências livres; cinco pré-conferências do Recife e sete municipais e a IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Como se vê, trata-se de um campo de pesquisa extenso e bastante denso, com muitas questões a analisar. Como entendo que o evento em si – as conferências de políticas públicas – é a conclusão de um processo em andamento, vi que o problema de pesquisa inicial desta tese – a construção discursiva em torno das conferências de políticas públicas para as mulheres – só poderia ser respondido se eu entendesse os espaços anteriores, da construção das conferências. Neste sentido, a observação participante, além de ser o método de pesquisa adequado, foi o que me permitiu compreender as disputas e articulações no seu processo de construção. Também me fez perceber as contingências as quais envolveram esse processo. Fazer pesquisa em meio a uma série de crises políticas, que foram desde as questões ligadas diretamente às mulheres, como os protestos contra Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados, até chegar propriamente ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff não foi um processo fácil para mim. Nesse contexto, considerei necessário discorrer acerca não só da minha relação com o campo, mas de como ele me afetou nesse período. Diante do exposto, discorri acerca de como refleti acerca da análise desta tese. Através das lógicas da diferença e da equivalência nos diferentes espaços, construo como foram se compondo as demandas, os interesses, as posições de poder, dentre outros fatores. Ou, de acordo com o pensamento de Laclau e Mouffe, a análise vai me permitir entender de que forma os elementos se compuseram para darem um aparente sentido coletivo na construção das conferências de políticas para as mulheres. 184 5 As articulações em torno das Conferências de Políticas para as Mulheres no Recife e em Pernambuco Passada a discussão de como foi feita a pesquisa, que integra a presente tese, é o momento de explicar como realizei a análise dos dados construídos ao longo do recorte de seis meses, de um período de onze meses da pesquisa de campo. Frente a isso, é também objetivo do presente capítulo realizar a discussão teórica a partir dos elementos trazidos pelos dados no intuito de responder as questões postas ao longo dos capítulos anteriores. A partir do olhar analítico para as diferenças e equivalências, interessa-me entender que sujeitos ou projetos políticos se sobressaíram ao longo das reuniões e que pontos nodais são possíveis perceber. Ou, do ponto de vista teórico, que discurso conseguiu chegar a se hegemonizar nesses espaços. Frente a isso, farei, inicialmente, uma discussão sobre a pesquisa qualitativa e a forma como construí os dados e a relação com os princípios de uma pesquisa científica. O material que utilizo como fonte dos dados, são o diário de campo, que permite fazer uma codificação e seleção das temáticas a serem analisadas, bem como documentos oficiais, como atas de reuniões, decretos, regimentos e regulamentos das Conferências de Políticas para as Mulheres do Recife e de Pernambuco, e relatórios dos eventos. Os segundos complementam e dão suporte ao que registrei no diário. Outra fonte que dá suporte ao diário são áudios dos eventos públicos, como a preparação para a Conferência Municipal, realizada no dia 31 de agosto de 2015 no auditório da Prefeitura da Cidade do Recife (PCR) ou as próprias conferências. Transcrevo trechos que servem para tornar clara alguma questão discutida nas reuniões. Cabe ressaltar que disponho de áudios de reuniões do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM-PE), disponibilizados pelo órgão mediante pedido feito junto à Ouvidoria da Secretaria da Mulher de Pernambuco. Portanto, também recorrerei a eles. A análise foi realizada a partir de espaços distintos: três reuniões ordinárias e uma extraordinária do Conselho da Mulher do Recife; uma reunião de preparação da VI Conferência da Mulher do Recife; cinco reuniões ordinárias do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – Pernambuco; 11 reuniões da Comissão de Temática e Relatoria da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres – Pernambuco (também conhecida como Comissão de Organização da IV CEPM-PE); por fim, sete reuniões do Fórum de Mulheres de Pernambuco. Após a sistematização de tudo o que havia anotado, estabeleci a divisão dos 185 dados a partir das temáticas que foram abordadas nas reuniões no intuito de desenvolver a análise. A intenção não foi reduzir o que foi discutido a temas, mas sim fazer uma organização do extenso material que construí ao longo de toda a pesquisa de campo. Essa organização temática foi guiada pelas lógicas de equivalência e diferença, consoante à perspectiva de Laclau e Mouffe, e que revelam disputas em torno de discursos e articulações discursivas ao longo do campo de pesquisa. Em outras palavras, após ler tudo o que havia construído, bem como os documentos disponíveis, organizei de acordo com temas, seguindo as diferenças entre eles. Posteriormente, associei cada tema aos discursos que eram equivalentes. Por exemplo, ao tema “orçamento” eu associei ideias como “corte de custos”, “não havia orçamento definido”, “discussão em torno da quantidade de dias da conferência por conta do valor”, “estratégia financeira”. Deixo claro que não se trata de uma análise temática que desloca as enunciações de seus contextos. A divisão em temas se constituiu em uma estratégia metodológica para perceber os assuntos que dividiam mais as posições para, a partir disso, extrair os discursos. Portanto, a análise, a partir da Teoria do Discurso, vai se sobrepor a essa organização dos temas. Ernesto Laclau afirma que toda identidade social é discursiva, é constituída no ponto de encontro das equivalências e diferenças e que as primeiras não conseguem subverter as segundas. Na verdade, as equivalências não tentam eliminar as diferenças. Elas precisam uma da outra na construção do social, que acaba sendo o lócus dessa irredutível tensão (LACLAU, 2013, p. 131-133). Interessa-me, portanto, nessa fase de sistematização do material escrito, olhar para os pontos em que as participantes dos espaços estudados se diferenciaram e se elas construíram ou não equivalências. Feita essa organização dos dados, a análise deles se dá por meio da Teoria Política do Discurso, termo utilizado por Glynos et al (2009) para situar a perspectiva na qual Laclau e Mouffe se encontram num contexto em que há diversos autores que abordam as perspectivas de análise do discurso. Conforme colocam os autores, a chave para entender a relação entre categorias teóricas e os fenômenos empíricos é o conceito de articulação (GLYNOS et al, 2009, p. 12). Frente a isso, é objetivo do presente capítulo fazer a ligação entre a teoria e a empiria a partir do entendimento de que os conceitos centrais trabalhados pelos referidos filósofos pós-estruturalistas, como significantes vazios, significantes flutuantes, antagonismos são fundamentais para chegarmos à compreensão das cadeias de equivalência e pontos nodais. Assim, poderemos chegar, finalmente, à percepção de que articulações discursivas foram sendo construídas ao longo do período em que estive presente nesses espaços. 186 5.1 O material de análise: diário de campo e documentos oficiais Entre junho e dezembro de 2015, estive presente em 31 reuniões de construção e momentos de preparação das Conferências de Políticas para as Mulheres do Recife e de Pernambuco, bem como a Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”, organizada por movimentos sociais. Dessas, interessa, aqui, a análise de 30 reuniões73 com base nas teorias abordadas ao longo dos capítulos anteriores. Deixo claro que o processo de análise, tal como coloca Graham Gibbs (2009), não começa neste capítulo, pois está presente desde a vivência que tive ao longo da pesquisa de campo. Sobre isso, Uwe Flick (2009, p. 339) afirma que o processo da pesquisa como um todo é imprescindível para a verificação da qualidade da mesma. Conforme Gibbs aborda, a pesquisa qualitativa se diferencia por não haver uma separação entre o conjunto dos dados e a análise deles (GIBBS, 2009, p. 18). Isso se tornou ainda mais claro para mim durante o processo de escrita dos capítulos anteriores. A análise guiou boa parte da escrita e, agora, colocarei de uma maneira mais clara o percurso traçado para chegar à discussão propriamente dita dos dados. Considero que o estudo de uma experiência local pode nos trazer subsídios para refletirmos acerca de outros casos em que estejam envolvidos os sujeitos vinculados à sociedade civil e aos governos. Isso se faz necessário, sobretudo, num contexto que vivemos, pelo menos desde 2013, de uma crise de representação, das instituições no Brasil e uma série de questionamentos de que forma a sociedade civil atua (ou deveria atuar) junto ou pressionar o Estado. Frente a isso, a pesquisa feita por meio da observação participante, nos espaços onde esses distintos atores estavam presentes me permitiu a inserção e a compreensão das dinâmicas do jogo político. Podemos ver essa ideia na seguinte passagem de Graham Gibbs: Um compromisso fundamental da pesquisa qualitativa é ver as coisas “pelos olhos dos entrevistados e participantes”, o que envolve um compromisso com a observação de eventos, ações, normas e valores, entre outros, da perspectiva das pessoas estudadas. O pesquisador tem que ser sensível às perspectivas diferenciadas de grupos distintos e ao conflito potencial entre a perspectiva daqueles que estão sendo analisados e os que os estão analisando. Sendo assim, não pode haver um relato simples, verdadeiro e preciso das visões dos entrevistados. Nossas análises são, por natureza, interpretações e, portanto, construções do mundo [destaque próprio] (GIBBS, 2009, p. 23). 73 A única que não analisarei é do Conselho da Mulher do Recife, realizada no dia 05 de novembro de 2015, e que não se falou sobre Conferências de Políticas para as Mulheres. 187 Faço o esforço de trazer o leitor e a leitora o máximo possível para o contexto do que vivenciei ao longo da pesquisa e tenho ciência de que um estudo desse tipo está marcado por minha leitura do mundo e daqueles acontecimentos. Isso faz parte do princípio de reflexividade, conforme abordei no capítulo anterior ao falar de Sandra Harding. Para a autora, é o que leva à objetividade forte. Segundo Gibbs: A reflexividade é a consciência e o reconhecimento do papel do pesquisador na construção do conhecimento. Por trás desses problemas está o reconhecimento de que toda pesquisa qualitativa envolve interpretação e que os pesquisadores precisariam ser reflexivos em relação às implicações de seus métodos, valores, vieses e decisões para o conhecimento do mundo social que criam (GIBBS, 2009, p. 56). Diante disso, a pesquisa qualitativa, além de ter sido adequada para o problema de pesquisa posto nesta tese, é o que tornou possível a descrição densa do que foi o processo que acompanhei de construção das VI Conferência Municipal da Mulher – Recife e da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres – Pernambuco, seja junto às representantes da sociedade civil e às governamentais por meio dos Conselhos de Direitos das Mulheres ou nos espaços exclusivos do movimento feminista através do Fórum de Mulheres de Pernambuco. Tratam-se, portanto, de interpretações dos momentos à luz da teoria pósestruturalista aqui adotada. Para registrar o máximo do que vivenciei nos espaços, estava sempre munida do diário de campo ou, na terminologia de Gibbs, diário de pesquisa. Para alguns, o diário é um documento muito pessoal e reflete sua própria “trajetória” ao longo da pesquisa. Para outros, é um documento muito mais amplo, mais como o que alguns chamam de diário de campo ou de diário de pesquisa, que inclui um comentário cotidiano sobre os rumos da coleta de dados e percepções, ideias e inspirações sobre a análise (GIBBS, 2009, p. 45). O autor remonta ainda às notas de campo, que são os registros no ambiente de pesquisa. No meu caso, ia anotando o máximo possível no momento e, depois, passava tudo a limpo já numa versão mais detalhada, no que pode ser associado à estratégia de “lembrança e organização”, segundo Gibbs (2009, p. 48). Além daquilo que presenciava nas reuniões, também ia colocando as sensações e os momentos de conversa fora dali. Interessavam-me as mais diversas formas de manifestação, através da fala, das expressões faciais, dos cochichos nos meus ouvidos, das conversas paralelas etc. Mesmo que esses registros não sejam 188 explicitados aqui, eles são fundamentais para o que fui construindo de percepção e entendimento daqueles espaços74. Como forma de tornar viável a análise de dados tão extensos construídos ao longo de diversas reuniões com sujeitos distintos, optei pela codificação dos mesmos através de temáticas que me deram a ideia geral do que foi tratado75. Gibbs (2009) aborda a codificação aberta, em que se examina o texto para fazer comparações e perguntas. Considero que foi a forma como olhei para os temas e as colocações associadas a eles. Por exemplo, ao olhar para os dados do Conselho da Mulher do Recife, vi temáticas que foram abordadas por integrantes do governo e da sociedade civil, tais como avaliação das conferências municipais; quantitativo das delegadas para etapa estadual; regimento, dentre outros. A partir dessa constatação dos pontos em comum, observei quais argumentos cada uma das participantes colocava. Isso me permitiu, então, responder as perguntas colocadas ao longo desta tese e que, analisadas em conjunto com as demais respostas dos outros espaços, levar-nos-á à resposta da questão central aqui posta, a de quais os sentidos de conferências de políticas para as mulheres que podemos verificar nesse processo? O intuito, portanto, é buscar os processos discursivos. Feita a definição das temáticas, identifiquei os enunciados e as formas como foram sendo construídas as concepções das conferências e que discursos políticos estavam subjacentes a elas. Dividi cada espaço no sentido de facilitar a escrita e a leitura para, no final, investigar em que medidas encontro cadeias e equivalência em cada esfera: municipal, estadual e a do movimento feminista. As equivalências e diferenças são fundamentais para que possamos compreender que articulações discursivas foram construídas para que o referido evento pudesse acontecer. Esses conceitos nos levam também ao de significantes vazios; significantes flutuantes; antagonismos e, sobretudo, cadeias de equivalência e pontos nodais para, assim, verificarmos como essas disputas aconteceram no caso particular e que discursos se tornam “universais” (LACLAU; MOUFFE, 2015). Segundo Gibbs: Uma das questões mais importantes da codificação é garantir que ela seja a mais analítica e teórica possível. Você deve se afastar de códigos que sejam simplesmente descritivos e assentados nas visões de mundo dos 74 Conforme abordei anteriormente, disponho de áudios apenas das reuniões do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim-PE), pois tive acesso junto ao próprio órgão, cuja secretária grava as reuniões ordinárias, seguindo orientação contida no regimento interno; bem como de eventos abertos, como preparação das delegadas para Conferência Municipal do Recife. Embora não utilize aqui as citações, esses áudios me ajudam a recuperar a memória daqueles momentos. Digo o mesmo em relação às imagens que registrei nos diferentes espaços e que também servem para lembrar as situações de uma forma mais próxima de como ocorreu. 75 Fiz isso manualmente no próprio Microsoft Office Word, sem uso de sofware de análise de dados. 189 entrevistados, preferindo códigos que sugiram formas novas, teóricas e analíticas de explicar os dados (GIBBS, 2009, p. 77). Compreendo, portanto, que ao longo da sistematização dos dados contidos no diário de campo para o computador e a simultânea codificação temática, já estava no processo analítico. Esse momento me despertou, sobretudo, um princípio necessário para se construir um trabalho científico, que é o da transparência dos dados. Como garantir que uma pesquisa que, em sua grande parte, contou com anotações e memória da pesquisadora, além de registros de imagens e de documentos oficiais, cumpra com os referidos requisitos? O fundamental, pelo que tenho verificado ao longo desse trabalho, é recorrer à reflexividade, fazendo um exercício de enxergar o meu papel nesse processo e de tentar ser o mais transparente possível. Também é importante unir o que registrei aos documentos oficiais. Por exemplo, a programação das conferências formaliza o que foi discutido ao longo das reuniões. Se houve embate sobre os nomes para composição da mesa de abertura e resolveram que seriam determinadas pessoas a estarem ali, posso conferir o resultado final, que é o documento oficial. Trata-se de cumprir com o critério de confiabilidade, tão caro à pesquisa científica e constitui a triangulação de dados. Para Howarth (2005), a triangulação é importante para comparar os distintos tipos dados e ver se eles se sustentam entre si. Trata-se de uma forma do olhar para o fenômeno de diferentes perspectivas. Em relação à pesquisa documental, os estudiosos Sá-Silva, Almeida e Guindano (2009) fazem uma distinção em relação à pesquisa bibliográfica. Ambas têm o documento como objeto de investigação. Porém, para a segunda modalidade, o documento pode ser escrito ou não-escrito, como vídeos, filmes, revistas, fotografias ou pôsteres. Eles colocam que, na perspectiva da autora M. M. Oliveira (2007), a pesquisa bibliográfica diz respeito à modalidade de estudo e análise de documentos de domínio científico, tais como livros, periódicos, enciclopédias, ensaios críticos, dicionários e artigos científicos. Como principal diferença entre as duas formas de pesquisa, a autora afirma que: [Bibliográfica] Estudo direto em fontes científicas, sem precisar recorrer diretamente aos fatos/fenômenos da realidade empírica. [...] A documental caracteriza-se pela busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como relatórios, reportagens de jornais, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, entre outras matérias de divulgação (OLIVEIRA, 2007, p. 69 apud SÁ-SILVA, ALMEIDA, GUINDANI, 2009, pp. 5-6). 190 Enquanto a observação participante foi marcada pelo meu olhar de pesquisadora e que estava, boa parte do tempo, recorrendo às anotações no diário de campo, os documentos foram produzidos pelas integrantes daquele processo que eu observava. A triangulação também é uma forma de responder os questionamentos que fiz ao longo desta tese de uma maneira mais adequada, pois os registros documentais me permitem comparar com o que registrei. O acesso aos áudios dos momentos coletivos, como das conferências, também cumprem o papel de aproximar o máximo possível do que observei. Trata-se da maneira que encontrei de ser o mais coerente com a perspectiva da teoria do discurso adotada neste trabalho. Remo Mutzenberg (2002, p. 131-132) afirma que existe o reconhecimento de uma relação complexa entre observador e observado, uma vez que se está lidando com um processo com atores sociais que estão em contínuas mudanças. Neste sentido, a pesquisa se caracteriza como a observação de uma trajetória a partir da qual se estabelecem momentos. Na perspectiva da teoria do discurso impõe-se, necessariamente, a observação longitudinal, na qual o pesquisador possa acompanhar as atividades, as relações, estabelecendo momentos para constituição de um corpus. O observador, assim, teria acesso às práticas articulatórias das e nas relações estabelecidas pelos grupos. Isto demanda um programa de pesquisa extenso e mobilização de diferentes recursos e instrumentos (MUTZENBERG, 2002, p. 132) A partir do que construí ao longo de todo o processo da pesquisa e da sistematização dos dados contidos no diário de campo e no intuito de compreender como, nos termos da teoria do discurso, a relação entre elementos e sua fixação em momentos, criei uma codificação temática para ir simultaneamente descrevendo e analisando à luz da referida teoria o que observei. As temáticas são uma forma de viabilizar o percurso analítico, isto é, a partir dos temas, desenvolvo a análise, mas não me resumo a eles. Cabe destacar, ainda, que é intenção desse estudo o diálogo com outras pesquisas e que traga indicativos de questões que podem estar em outros espaços de democracia participativa, em que estejam presentes representantes da sociedade civil e governo. É importante ressaltar, também, que, por princípios éticos, não colocarei o nome de ninguém. Para me referir às participantes, farei por meio de codinome ou código. 191 5.2 Conselho da Mulher do Recife Inicio este tópico anunciando os temas que me chamaram a atenção sob o ponto de vista dos conceitos que integram a Teoria Política do Discurso, sobretudo na questão dos conflitos e dos antagonismos e da relação entre diferenças e equivalências. Deixo no “Apêndice A” a versão com o resumo de todas as temáticas discursivas que observei durante as reuniões do Conselho da Mulher do Recife entre agosto e outubro de 2015, bem como da reunião preparatória para Conferência Municipal da Mulher, que foi organizada pelo órgão em questão. São eles: 1) Avaliação das pré-conferências e da Conferência Municipal; 2) Questão das servidoras da Secretaria da Educação; 3) Contexto político; 4) Quantitativo de vagas para conferência estadual; 5) Importância da Conferência Municipal. Como o contexto político é constitutivo dos demais, julguei mais apropriado não colocá-lo à parte. Portanto, serão quatro temáticas que me permitirão compreender como as disputas discursivas aconteceram no caso estudado. Num contexto de 20 temáticas, ter selecionado quatro não significa que apenas elas serão analisadas. As demais podem vir à tona também, mas, conforme pontuei, o foco será nelas por trazerem manifestos elementos analíticos propostos pela teoria pós-estruturalista que norteia a presente tese. As referidas temáticas estão presentes também nas atas das reuniões, reforçando, assim, o destaque dentre diversos assuntos que foram discutidos nos encontros. As temáticas revelam também os discursos relacionados e concomitantemente as posições de sujeito. Por exemplo, diferentes sujeitos da sociedade civil, moradoras de comunidades no Recife, trabalhadoras da Prefeitura e militantes de movimentos sociais, em suas diferentes posições de sujeito, articularam entre si a defesa de um documento em repúdio a determinada atitude da Secretaria da Educação do município. As representantes da gestão, por sua vez, em sua posição de sujeito de agente da Prefeitura, assumem o discurso em defesa da instituição. São posições antagônicas, permeadas por disputas em torno do discurso que vai se tornar hegemônico e dar o sentido pretensamente universal de certo acontecimento. O resultado é um silenciamento do protesto da sociedade civil no relatório final da VI CMM e uma ideia de que não houve nenhuma reivindicação, que é feita por meio de moções, conforme abordarei no presente capítulo. O que se vê é uma formação discursiva hegemônica, em que se sobressaem as articulações em torno das posições de sujeito “agentes da prefeitura da cidade do Recife”. 192 5.2.1 Avaliação das pré-conferências e da Conferência Municipal Antes de começar a análise, cabe chamar a atenção para um aspecto já colocado no capítulo 3, mas que precisa ser reiterado, que é a composição do Conselho da Mulher do Recife. São 24 conselheiras titulares, dentre as quais: seis do governo; seis servidoras; seis moradoras das comunidades (ou Regiões Político-Administrativas) e seis integrantes de entidades gerais. É uma composição tripartite, conforme coloquei anteriormente. Nas Conferências de Políticas para as Mulheres, as 18 que não fazem parte do governo compõem o segmento sociedade civil. Quando me refiro às representantes governamentais e da sociedade civil, estou ciente de que não se trata de uma referência homogênea, de mesmas posturas políticas. Poderia colocar, por exemplo, “representante de RPA” para diferenciar qual o segmento, mas só o farei quando julgar que essas diferenciações dentro das posições de sujeito “Governo Municipal” e “sociedade civil” sejam relevantes para esta análise. Porém, é preciso destacar que esses discursos são transversais e podem ser construídos e articulados por diferentes sujeitos. Em três das quatro reuniões acompanhadas, entre agosto e outubro de 2015, foi remetido ao tema da avaliação das pré-conferências e da etapa municipal. As falas das representantes governamentais estavam relacionadas à avaliação positiva das mesmas. Isso foi confirmado na ata da reunião do dia 06 de agosto de 2015, onde se lê: “[Representante da Secretaria da Mulher do Recife] Disse que as pré-conferências estão ocorrendo de acordo com o planejado e que o saldo está sendo bastante positivo” (CONSELHO..., 2015b, p. 1). Houve uma análise de que, mesmo tendo sido fracas do ponto de vista político, conforme as representantes da sociedade civil estavam apontando, os eventos haviam cumprido com o papel por terem sido muito participativos. Quando a representante da Secretaria da Mulher falou que foram fracas, mas que dão conta daquilo a que se propõem, uma das conselheiras da sociedade civil a olhou com semblante de espanto. Havia servidoras e representantes do Fórum de Mulheres de Pernambuco, por sua vez, que se queixavam das dificuldades relacionadas à mobilização das participantes, bem como da despolitização dos espaços. Esses discursos opostos e interpretações diferentes do mesmo evento, nos termos postos pela Teoria do Discurso, são reflexos de posições de sujeitos distintas: de um lado, as representantes da gestão municipal e, de outro, integrantes da sociedade civil disputando o sentido “avaliação das conferências”. Havia uma tensão permanente entre uma perspectiva de realização do evento e outra de politizar o espaço. Essas interpretações assumiam uma aparência antagônica na medida em que a forma como a gestão argumentava parecia que a mera realização do 193 evento já cumpria com o seu objetivo e a sociedade civil alegava que isso não era suficiente. Ao mesmo tempo, o governo alegava também que o papel político de mobilização cabia ao conselho, não à gestão. Percebem-se aí, portanto, tensões entre o que é atribuição de ambos os sujeitos. Dentro do próprio campo do Governo Municipal, é possível que houvesse tensionamentos em torno do sentido da Conferência, pois é composto por agentes oriundas de espaços distintos – havia funcionárias que integram movimentos sociais e as que estavam mais alinhadas a discursos tecnicistas. Na falta de consenso entre os discursos sobre as interpretações acerca do evento, o ponto nodal que assume uma função significativa parece ser o da realização do mesmo, pois foi o que garantiu a eleição de delegadas e definição de propostas para etapa estadual e a consequente escrita do relatório. O debate sobre politização dos espaços – o discurso crítico – acabou por ficar como diferença e não equivalência nessa disputa em torno do sentido. Houve uma tentativa de fixar algumas lutas, como a contra os fundamentalismos como ponto nodal, mas não conseguiram obter êxito. A representante da Prefeitura, frente a isso, admitiu as críticas, mas ainda assim justificou dizendo que o evento cumpriu com aquilo ao qual se propôs. Ao colocar isso, sinalizou a um ponto nodal em que a visão crítica em relação à despolitização ficou fora dessa disputa. O discurso relativo à perspectiva de se cumprir o que estava previsto no regimento ficou como equivalência, assumindo, portanto, a função do pretensamente universal naquele contexto. Foram apontadas, ainda pela sociedade civil, dificuldades enfrentadas no grupo de trabalho sobre violência, pois as participantes não sabiam apontar propostas76. Sugeriram que se fizesse um estudo para entender por que alguns grupos ficavam bastante esvaziados. Esse foi o caso do grupo que acompanhei “autonomia econômica das mulheres”, em que na pré-conferência da RPA 1 estava esvaziado, mas rendeu boas propostas, segundo perspectiva de uma das integrantes do FMPE. Foi colocada uma queixa de que a Secretária da Mulher do município não estava indo às comunidades e que isso estava se refletindo na ausência nas conferências (DIÁRIO DE CAMPO, 06/08/2015). É interessante perceber que não há um consenso sobre o papel do poder público seja nas falas da representante da PCR ou nas das integrantes da sociedade civil. Nos enunciados da primeira, espera-se que a tarefa de mobilizar as mulheres seja do Conselho, enquanto nas das segundas, cobra-se uma postura do Poder Executivo. Há certa 76 Vi situações desse tipo em boa parte das cinco pré-conferências em que estive presente. Notei desconhecimento sobre as temáticas de modo que as facilitadoras precisavam estimular de algum modo a formulação das propostas, seja lendo o texto-base e tentando tirar algo dali ou formulando perguntas para que elas refletissem sobre o tema. 194 ambiguidade de papeis em que cobrar – que seria atribuição da sociedade civil - e mobilizar – que seria do governo - se confundem. Nessa ausência de consenso, um dos discursos exerceu a função hegemônica, que foi colocar à sociedade civil o papel de mobilizar as mulheres na comunidade, quando cabe à sociedade civil a função de fiscalizar a gestão e construir no Conselho o evento. Duas conselheiras da sociedade civil – do FMPE e de RPA - deram ênfase em diferentes reuniões ao distanciamento do próprio Conselho em relação às comunidades, dizendo que não estão chegando “na base”77. A integrante da RPA insistiu na afirmação de que a Secretaria da Mulher do Recife não estava chegando nas comunidades e que sequer se tinha conhecimento sobre o que o órgão faz. É possível indicar um discurso de descolamento da Prefeitura do Recife em relação a suas bases e, mais uma vez, vê-se o discurso crítico à gestão e uma cobrança do papel político do órgão. Um dos sujeitos que fez a queixa é moradora de comunidade e as demais integram uma articulação de organizações e coletivos formados por quem reside ou atua nas comunidades. Essas críticas condizem com a função de controle social do Conselho da Mulher: fazem tanto a autoavaliação quanto fiscalizam o trabalho do órgão responsável pela execução das políticas públicas para determinado segmento. A resposta dada pela representante da PCR é que cada conselheira é responsável pela conferência e que é essencial se apropriar do texto do regimento, que também consta na ata da reunião: [Representante governamental] coloca que há divisão de tarefa pelas Comissões, mas que é importante que todas as integrantes do Conselho tenham conhecimento de todo o andamento e processo de construção da VI CMM, assim como apropriação do Regimento que a orienta (CONSELHO..., 2015b, p. 1) Essa colocação remete a um discurso burocrático do processo, ao passo que integrantes da sociedade civil trazem à tona enunciados referentes ao caráter político do mesmo. Numa das reuniões do FMPE, ouvi de uma integrante do Conselho Municipal que, quando algo dá errado, a Secretária da Mulher coloca a responsabilidade no Conselho, mas ao obter êxito, o bônus é da Prefeitura do Recife (DIÁRIO DE CAMPO, 02/09/2018). São posições antagônicas e que revelam relações de poder, em que o órgão que deve fazer o controle social acaba por ter o seu sentido atribuído pela instituição que deveria ser 77 Termo bastante usado na militância partidária e de sindicatos. Diz-se que é da “base” quem não está na linha de frente da política. 195 controlada. Nesse contexto, existe um “nós” e o “eles” e que a presença de um impede o outro de ser ele mesmo. São fronteiras antagônicas, demarcando as diferentes de identidades, tal como colocam Laclau e Mouffe (2005). Mouffe ressalta, ainda, que “[...] não existe consenso sem exclusão, não existe ‘nós’ sem ‘eles’, e nenhuma política é possível sem que se delimite uma fronteira” (MOUFFE, 2015a, p. 72). Nessa disputa, a sociedade civil termina por, em situações distintas, ficar à margem. Ou, nos termos dos referidos autores, estamos diante de um campo de práticas articulatórias antagônicas que constituíram relações hegemônicas, pois o discurso que se sobressaiu como o sentido da conferência foi o de que ela deu certo por ter cumprido com o formalismo exigido no documento de convocação. Se à realização do evento, como algo que deu certo, foi atribuído o bônus da gestão, o ônus da despolitização foi colocado como responsabilidade do Conselho, logo, principalmente da sociedade civil, que ocupa 75% dos assentos. Tratam-se de discursos que, além de divergentes, apresentam-se como inconciliáveis. O distanciamento da gestão municipal das comunidades foi abordado no contexto de avaliação das pré-conferências e de que havia grupo esvaziado, como o “Eixo IV – Educação não sexista, antirracista, não lesbofóbica e laica”, em que se alegou que era um nome muito conceitual, que não facilitava o entendimento e reconhecimento e se sugeriu que, nas próximas construções temáticas, os títulos fossem pensados de forma mais abrangente, comum e acessível para que se compreenda melhor o assunto (CONSELHO..., 2015b, p. 1). Uma conselheira representante de RPAs observou que essa falta de interesse no conceito é sinal de ausência de diálogo constante com as comunidades e que, se houvesse um trabalho sistemático independente das Conferências, elas teriam se apropriado dos temas, conceitos e discussões (CONSELHO..., 2015b, p. 1-2). Isso está relacionado ao que Sonia Alvarez (2004) coloca ao trabalhar a necessidade de que as feministas precisam trabalhar “dentro e fora do Estado”, numa perspectiva de contracorrente das práticas e falas da referida instituição, como trabalhei no capítulo 2 desta tese. Alvarez argumenta que é preciso encontrar formas de articulação das coordenadorias/assessorias com os movimentos de mulheres e feministas para que haja uma interlocução política e controle social. Os Conselhos da Mulher do Recife e Estadual dos Direitos da Mulher – Pernambuco – poderiam ser vistos a partir desse prisma. Porém, essas e outras situações sobre as quais relatarei mostram que esse princípio de interlocução está dissociado do controle social. Conforme Alvarez (2004, p. 108) e Vera Soares (2004, p. 114) apontam, o Estado não é neutro e, mesmo sem ter o intuito, acaba interferindo nas políticas direcionadas às mulheres. Ao se distanciar das comunidades, assume 196 um papel burocrático e operacional da política e impede que a população seja parte da construção dessas políticas. Essa questão do esvaziamento do referido Grupo de Trabalho (Educação não sexista, antirracista, não lesbofóbica e laica) evidencia que determinados discursos não conseguem entrar na pauta principal da conferência. Isso me faz questionar como um determinado discurso foi hegemonizado em detrimento de outros. Nesse caso, os que se sobressaem são os referentes à saúde e à violência. Não existe a percepção de que o referido GT sobre educação também está relacionado às políticas públicas para as mulheres. É possível levantar a questão de que, no imaginário conservador de uma parcela da sociedade, a educação não deve discutir sobre essas questões, já que há muitos defensores do “Projeto Escola Sem Partido” e do “Fim da ideologia de gênero”, defendido por muitos parlamentares fundamentalistas e religiosos e que argumentam que os professores e as professoras não podem doutrinar ideologicamente seus alunos e que a abordagem de gênero deve ser proibida nas escolas. Essas questões são bastante ilustrativas do contexto em que as conferências aconteceram e podem me ajudar a refletir por que houve o esvaziamento desse GT. Não se trata apenas do nome difícil, como apontaram algumas conselheiras, mas sim de uma conjuntura conservadora que não coloca essas questões como passíveis de discussões em locais públicos. Para muitos defensores dessas leis, cabe à família educar sobre as referidas questões, não o Estado. O Conselho, como sendo integrado por sociedade civil e governo, transmite a ideia de que é construído por ambos os sujeitos, constituindo, assim, uma esfera da democracia participativa e representativa. No entanto, o modo de funcionamento dos casos que estudei não permitem estar de acordo com essa definição. Em espaços onde há posições de sujeito antagônicas, a responsabilidade não é atribuída ao órgão Executivo, mas sim ao do controle social, que não tem a atribuição de implementar políticas públicas. Conforme apontei, essas críticas e as respostas a elas são reflexos da burocratização do espaço e do distanciamento da função do órgão, que deveria servir como um mediador entre a população e a própria Secretaria da Mulher. A integrante da Secretaria da Mulher reafirma o seu entendimento acerca do papel do Conselho: [Representante da Secretaria da Mulher] percebe que o Conselho tem dialogado pouco com a comunidade, mas que falta a própria representação das Conselheiras de RPAs nos encontros do Conselho. Enfatiza que é preciso que haja maior integração de resposta da sociedade civil com a comunidade (CONSELHO, 2015b, p. 2). 197 Vê-se uma relação antagônica. As conselheiras que trazem essas cobranças remetem a papeis diferentes. Cobra-se postura tanto do governo, a partir do momento que se fala da Secretaria da Mulher do Recife, quanto da própria sociedade civil ao se fazer uma autocrítica de que não estão chegando nas bases. Por outro lado, a crítica ao governo é rebatida com o argumento de que a conferência é uma responsabilidade coletiva, silenciando-se, portanto, perante o que se fala da gestão governamental. Esse debate foi retomado na reunião do dia 26 de agosto de 2015, em que uma das integrantes do Fórum de Mulheres de Pernambuco apontou que sentiu dificuldade na articulação dos temas, debates e propostas nos grupos e que ela atribui isso à falta de informação, propriedade e diálogo sobre as questões de gênero e políticas para as mulheres. [Representante do FMPE] Enfatizou a importância de que o trabalho com as comunidades precisa ser amadurecido e praticado de forma mais atuante na próxima gestão [do Conselho] de forma que o debate político e teórico do que é a política para as mulheres seja evidenciado e compreendido. E percebeu que é preciso proporcionar mais consistência temática e política antes de encaminhar as participantes para os grupos de trabalho de forma que as mulheres possam visualizar seus direitos e lutar por eles, percebendo que uma conjuntura política conservadora, como se tem hoje no Congresso dificulta a realização e efetivação das conquistas feministas. Indicou também a necessidade do Conselho construir uma nota de repúdio contra o Congresso e uma conjuntura retrógrada conservadora (CONSELHO, 2015a, p. 1-2). A colocação dessa conselheira nos remete ao que foi discutido nos capítulos 1 e 2 e é característica de um sujeito político inserido nos movimentos sociais e, mais especificamente, no movimento feminista. Ela aponta fatores que não haviam sido colocados até então e sua fala pode ser vista como uma defesa de estratégia política, em que defende o papel do Conselho como um órgão que não faz parte do governo. Notam-se as diferenças de identidades e projetos políticos. Segundo Joan Scott (1999), a igualdade requer o reconhecimento e inclusão das diferenças. Nas reuniões que acompanhei, pude constatar esse reconhecimento, mas nas articulações construídas nesses espaços, os discursos de alguns sujeitos da sociedade civil ficam como diferenças, sendo, portanto, hegemonizados. Por exemplo, apesar de a referida conselheira ter apresentado a proposta de uma moção de repúdio ao Congresso Nacional e ao contexto conservador, não houve adesão. Mesmo o Conselho não sendo um órgão da gestão, as críticas ao próprio processo de conferência não saíam das reuniões. A imagem que se transmitiu do evento externamente foi a de que cumpriu o seu papel. 198 Isso pode estar relacionado com o fato de o FMPE ser composto por diversas organizações e coletivos feministas que têm inserção ou vêm das próprias comunidades. O próprio debate sobre o distanciamento do Conselho Municipal das comunidades estava sendo associado ao tema da participação nas conferências e não havia sido articulado à importância das políticas para as mulheres que, como vimos, na sua reivindicação junto ao Estado brasileiro, os movimentos de mulheres e feministas tiveram um papel fundamental. A necessidade apontada de se construir uma nota de repúdio contra o Congresso e o que se colocou como conjuntura retrógrada conservadora passou despercebida pelas demais conselheiras. Retomarei esse debate e a análise ao falar do contexto político. Cabe ressaltar que, em nenhuma das reuniões do Conselho da Mulher do Recife, a Secretária do órgão e Presidenta do Conselho estava presente, apenas a sua representante, a secretária-executiva da Secretaria da Mulher. A Secretária esteve presente nas préconferências e na etapa municipal. Nas reuniões, notei a ausência também das mulheres das Regiões Político-Administrativas (RPAs). Dos quatro encontros que acompanhei, entre agosto e outubro de 2015, elas chegaram à metade do quantitativo em duas (com a presença de três conselheiras); em uma, só havia uma conselheira e, por último, não havia nenhuma. A discussão ficava basicamente entre as representantes do governo e das entidades gerais, das quais se destacavam a União Brasileira de Mulheres (UBM), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Fórum de Mulheres de Pernambuco. As servidoras estavam em sua maioria presentes, mas nos debates acabavam participando duas delas, das seis vagas que ocupavam. Isso pode ser um indício de que existe uma certa resistência a esse tipo de instrumento de representação e participação. Mas, para fazer uma afirmação dessa com propriedade, seria preciso um estudo mais direcionado a essa relação das conselheiras com a entidade, que não é o foco da presente tese. No entanto, cabe indagar se o fato de haver essa ausência física nas reuniões, de uma parte das integrantes de RPAs nas reuniões e nos debates de uma parcela das servidoras, esteja relacionado a uma não identificação com o discurso hegemônico, prevalecendo, portanto, as suas diferenças. Ao mesmo tempo, é possível que o discurso que consiga fixar as equivalências seja o das entidades gerais. O processo hegemônico, então, exclui as demandas e discursos das integrantes de RPAs e servidoras, que somam 50% da sociedade civil. Ou seja, uma parcela da população que tem sua representação naquele espaço acaba ficando na diferença. 199 Na reunião do dia 26 de agosto, a representante da Secretaria da Mulher respondeu à crítica colocada pela integrante do FMPE sobre o distanciamento do Conselho em relação às comunidades: [Representante da Secretaria da Mulher do Recife] concordou que é fundamental reforçar o debate político e avalia que as pré-conferências foram bastante positivas, mas que a falta de participação nas comunidades é um problema dual, do próprio Conselho, mas que ele não se propõe a fazer o papel do movimento social. Concorda que é preciso que haja muito mais debate político, mas que não depende só da gestão, mas da própria estrutura e representantes do Conselho. Se houve alguma falha política nas préconferências, é uma questão falha do próprio Conselho, visto que os delineamentos, metodologia e estrutura de trabalho foram desenvolvidas e deliberadas em conjunto pelo próprio Conselho (CONSELHO..., 2015a, p. 2). Existe uma avaliação crítica por parte de integrantes do FMPE em relação ao que deveria ser o papel do Conselho da Mulher do Recife, que é encarada pela representante da Secretaria da Mulher como uma queixa sobre a própria gestão da Prefeitura e que há uma defesa da responsabilidade de todas as conselheiras perante o problema. No entanto, não se apontam caminhos alternativos para solucioná-lo e a representante fala em um “problema dual”, o que, no entender de quem lê, remete a dois órgãos – nesse caso, Conselho e Secretaria da Mulher -, mas, só se menciona um deles. Ficam claros os tensionamentos ali presentes entre algumas integrantes da sociedade civil e a representante governamental e as contingências: em determinados momentos, o debate é protagonizado pela gestão e FMPE, em outros, as demais integrantes se inserem, ora numa postura mais combativa, ora mais conciliatória. De um lado, defende-se a gestão através da responsabilização do Conselho e, de outro, integrantes da sociedade civil cumprem o papel de controle social e trazem à tona a necessidade de tratar desse espaço a partir de uma postura política e não apenas burocrática. Os eventos, na avaliação da gestão, cumpriram o seu papel porque acontecerem no dia previsto, contaram com participação da população, encaminharam propostas e delegadas para etapa municipal, No entanto, para uma parte da sociedade civil, esses fatores não são suficientes, pois o elemento discussão política é fundamental no processo articulatório em torno do qual o discurso estava sendo construído. Isso vai ficar mais nítido ao longo do debate em torno dos demais temas. Essa postura mais articulatória é vista na fala sobre outra integrante do FMPE: [Representante do FMPE] falou que é muito importante afirmar e esclarecer as questões de gênero e o quanto é importante o processo da Conferência 200 para as políticas públicas, colocou que as críticas vêm, mas que sempre se tem o que melhorar, e concorda que a responsabilidade é de todas, mesmo diante de diversas dificuldades, houve, sim, muito esforço para dialogar com as comunidades, mas admite que não foi suficiente e que não há conjuntura política favorável para as políticas de gênero, com um Congresso extremamente conservador e retrógrado (CONSELHO..., 2015a, p. 2). Vê-se uma fala bastante semelhante à colocada anteriormente, no sentido de que falam do Congresso conservador e retrógrado. Estas afirmações foram feitas por duas conselheiras que integram o FMPE. A conjuntura é algo central em suas falas e norteia as estratégias delas como sujeitos políticos naquele espaço. Houve pré-conferência com a participação de menos de 30 mulheres78. Por outro lado, foi realizada pré-conferência com 300 participantes, mas que, na fala das próprias conselheiras, não significou uma politização do espaço por terem sido levadas mulheres sem nenhuma discussão política79. As representantes governamentais, por sua vez, sustentaram que, para elas, a conferência havia sido um sucesso e que houve diálogo forte entre as mulheres. Entre integrantes da sociedade civil, também houve avaliação positiva na questão da participação e ressaltou-se que o quantitativo de participantes foi o que se esperava. “As conselheiras Maria e Flor80, entre outras, avaliaram as pré-conferências como positivas, e afirmaram que as mulheres estavam interessadas e participativas” (CONSELHO..., 2015b, p.1). As referidas conselheiras são representantes da sociedade civil, uma integra a Central Única dos Trabalhadores – entidades gerais - e a outra é servidora da Prefeitura da Cidade do Recife. Nessa mesma reunião do dia 06 de agosto, as que compõem o FMPE, que apresentaram posturas muito críticas ao evento, não estavam presentes devido à organização 78 Segundo relatos que ouvi, a pré-conferência da RPA 3.1, realizada no dia 18 de julho de 2015, no bairro Brejo da Guabiraba, contou com 27 participantes porque o evento aconteceu no dia em que havia chegado água na comunidade, o que fez que muitas mulheres priorizassem a busca pela sobrevivência material e demandas mais imediatas. Solicitei o quantitativo de cada pré-conferência à Secretaria da Mulher do Recife via Ouvidoria do município e o que recebi foram os números já somados pela RPA de um modo geral. Por exemplo, em uma RPA que realizou duas conferências, não se consegue saber o quantitativo de cada uma. Os números são: RPA 1: 45; RPA 2: 62; RPA 3.1 e RPA 3.2: 123; RPA 4: 149; RPA 5.1, RPA 5.2 e RPA 5.3: 105; RPA 6.1, RPA RPA.2 e RPA 6.3: 402 (VI CONFERÊNCIA MUNICIPAL..., 2015). 79 Como também estava lá, percebi uma forte movimentação durante o tempo de discussão no Grupo de Trabalho. Algumas entraram na sala onde eu estava e pareciam não saber direito o que estavam fazendo ali ou talvez o objetivo tivesse sido mesmo votar. Uma delas disse que tinha ido para votar e a coordenadora do grupo, conselheira da sociedade civil, respondeu: “veio para votar e participar”. Quando saí da sala, fiquei surpresa com a quantidade de mulheres ali presentes. Ouvi que um partido político havia fretado um ônibus e que uma liderança comunitária havia ameaçado as mulheres a irem para elegerem as delegadas indicadas por ela. Dias depois, essa mesma liderança foi assassinada em circunstâncias não muito claras e a justificativa estava relacionada ao tráfico de drogas, uma versão não muito difícil de se encontrar no contexto brasileiro. Para mim, chamou a atenção o caráter de disputa em torno de quem vai participar do evento. 80 Nome fictício para preservar as identidades delas. No entanto, os verdadeiros nomes, assim como as outras sobre as quais falarei, constam no documento oficial do Conselho, a ata da reunião. 201 das integrantes que iriam no ônibus dois dias depois para Brasília em função da V Marcha das Margaridas, que aconteceu entre 10 e 14 de agosto de 2015. Na reunião seguinte, no dia 26 de agosto do mesmo ano, uma integrante da União Brasileira de Mulheres (UBM) fez uma avaliação das duas pré-conferências que havia participado, argumentando que houve uma mobilização e participação muito boa, mas que não desenvolveram o debate nos grupos de trabalho (CONSELHO..., 2015a, p. 1). Essa mesma conselheira e outras, também governamentais, concordaram que a pré-conferência de entidades gerais gerou bons debates e propostas muito boas, superando as expectativas, apesar de ter enfrentado problemas com uma delegada que tentava burlar os votos em seu favor (DIÁRIO DE CAMPO, 26/08/2015). Uma das representantes do FMPE disse que o Conselho precisa ir às comunidades para dialogar, construir propostas sobre políticas para as mulheres e que essa dificuldade em se discutir mostra que tanto o Conselho quanto a Secretaria da Mulher não têm ido às comunidades. Ela ressaltou que as mulheres sabem pouco da atuação da referida Secretaria. Por isso, é preciso pensar como os dois órgãos podem se aproximar e estar nos bairros para debater acerca de políticas para as mulheres. Ela estava preocupada com a Conferência Municipal e a necessidade de se fazer uma plenária de qualidade porque é um momento importante de discussão sobre políticas para as mulheres, sobretudo num contexto de avanço dos fundamentalismos e de ameaças de cortar a questão de gênero dos planos de educação, além do fechamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres, numa conjuntura, em suas palavras, visível de perda de direitos. Por isso, seria preciso irem organizadas para discutir não apenas as propostas de políticas para o município, mas o próprio contexto político. Ela acrescentou que o cenário é difícil por conta do presidente do Congresso ser inimigo das mulheres e por se aproximar das eleições municipais. Portanto, a Conferência precisaria ter um formato político, pois tem receio de ir apenas para se discutir propostas de políticas e não se pensar em formas de pressão frente ao quadro conjuntural (DIÁRIO DE CAMPO, 26/08/2015). A questão do conservadorismo do Congresso Nacional e da perda de direitos é recorrente nas falas de integrantes da sociedade civil ao mesmo tempo em que as representantes do governo se referem à conjuntura, mas não propõem nada que faça a contraposição ao que estavam acontecendo. O foco estava nos aspectos gerenciais das conferências. Novamente, vê-se a questão da estratégia política. A colocação da referida conselheira da sociedade civil mostra uma visão da conferência que extrapola a realização dela e que precisa estar atrelada ao contexto mais amplo para se pensar em formas de agir e de fazer pressão frente ao que se colocam como riscos de retrocessos. Isso, em sua percepção, 202 reflete a falta da compreensão da população sobre o que são políticas para as mulheres. Foi sugerido que se fizesse uma leitura rápida e pontual do regulamento para que se deixasse o máximo de tempo para o debate político. Isso remete à forma de estratégia política e ficou mais clara a necessidade, com o decorrer de semanas após a conferência, quando a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a de Promoção da Igualdade Racial e de Direitos Humanos foram integradas ao Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos em outubro de 2015. Na reunião do dia 26 de agosto, ela colocou que o risco que corriam era do fechamento da SPM gerar um “efeito bola de neve” nas esferas estaduais e municipais e que isso precisava ser colocado na mesa de abertura do evento. Nessa leitura, ter um órgão específico para o referido segmento ainda era uma garantia mínima de reconhecimento da importância de políticas públicas. A fala dessa conselheira remete ao que vimos nos capítulos 1 e 2 acerca da relação dos movimentos feministas e de mulheres com o Estado brasileiro e da reivindicação por políticas públicas. A conjuntura à época, na fala das integrantes do FMPE, parecia levar a uma necessidade de se discutir o contexto e a Conferência nesse espaço. Isso é indício de um ponto de ruptura com o sentido até então atribuído ao evento de discutir propostas de políticas e fica mais evidente quando elas e uma das representantes da Secretaria da Mulher do Recife fazem a defesa de se priorizar o debate acerca do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, um dos eixos previstos no Regimento da IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, publicado pela SPM no dia 29 de abril de 2015 (BRASIL, 2015b). Era uma forma de lidar com o risco de perder os direitos conquistados. O contexto político e os discursos externos, já de ameaças às políticas para as mulheres, também implicavam numa mudança de perspectiva do papel das conferências. Se havia para as integrantes do FMPE, conforme veremos ao longo do restante deste trabalho, um esgotamento desse instrumento da democracia participativa, não seria viável simplesmente se afastar do espaço, mas sim ressignificá-lo e transformá-lo num momento de articulações frente à conjuntura. Os antagonismos entre “nós” – as militantes feministas – e o “eles” – Governo Municipal – estavam se tornando os elementos constituidores das identidades das referidas feministas nesses espaços. A conselheira representante da Secretaria da Mulher, na reunião realizada em 10 de outubro de 2015, a primeira após a Conferência Municipal, considerou um profundo retrocesso a fusão e que só será percebida o quão negativa no decorrer do tempo. Acrescentou: 203 Que esse processo significa uma grande derrota às lutas históricas feministas e que as gestões públicas funcionam com a pressão dos movimentos sociais, se os movimentos não pressionam a gestão, pouca coisa se transforma (CONSELHO, 2015d, p. 2). Vê-se novamente uma atribuição de responsabilidade aos próprios movimentos sociais. Não se problematizou o contexto de pressão e de tentativa de Dilma Rousseff de manter a governabilidade a todo custo, que acabou resultando na referida fusão ministerial, fruto de uma articulação da oposição que levou a uma crise hegemônica em seu governo. Na Conferência Municipal, não notei um debate mais enfático sobre o contexto que se aproximava de perda de direitos. Como se pensar em propor políticas num cenário de possível extinção da SPM enquanto órgão do primeiro escalão do governo? Vê-se a constatação de papeis divergentes: aos governos cabem gerir a política e aos movimentos sociais a pressão para que elas aconteçam e me faz questionar o que está subjacente a essas tentativas de se evitar os debates. O que constato é que o discurso do gerenciamento foi usado para evitar os conflitos, pois coloca como o objetivo principal a mera realização do evento, tornando hegemônico o discurso da gestão. Por outro lado, outra representante da Secretaria da Mulher do Recife, que não é conselheira, fez uma avaliação de que a sociedade como um todo estava vivenciando um momento de retrocesso muito grande não só da política pública, mas como modelo de sociedade que está posto e comentou que, quando se vê um Congresso dialogando sobre o tamanho da saia de suas parlamentares, constata-se a importância de se sair do papel partidário, de gestão, e assumir o de militante para caminhar juntos em prol de mudanças. Ela falou que tem que se pensar mais no sentido de congregar forças dentro da política (DIÁRIO DE CAMPO, 08/10/2015). Essa representante milita em movimento feminista e isso mostra o que Laclau e Mouffe abordam por posições de sujeito, que são ligadas às questões contingenciais, e, em que, nesse referido momento, ela assume uma fala que acena à necessidade de união num momento em que o coletivo “mulheres” pode ser prejudicado. O referido significante é alvo de constantes disputas e, de acordo com a fala dessa representante, pode estar associado ao discurso de cunho religioso ou à lógica coletiva, isto é, comunitária. Isso reitera o campo de forças em que sujeitos inseridos nos governos – nesse caso, a gestão municipal – estão inseridos, num contexto em que o conservadorismo também é apontado como um problema, no entanto, esse discurso não consegue imprimir uma função significativa no que tange à avaliação da conferência feita por outros sujeitos presentes na reunião. Nota-se a contingência relacionada à disputa de significado em torno do ponto nodal “mulheres” e o que Judith Butler pontua como necessidade de se expandir o que é ser mulher. 204 Neste sentido, o discurso religioso é visto como o “outro”, o que ameaça o discurso das militantes feministas que acompanhei. Em suas perspectivas, é o conservadorismo o discurso antagônico, que deve ser combatido na política, pois para muitas delas é inconciliável com a defesa das políticas para as mulheres. Em outro contexto, essa concepção pode ser diferente, mas naquele, o discurso religioso foi reiteradamente colocado como algo ameaçador. Entre as integrantes da sociedade civil, foi apontado que a eleição das delegadas das RPAs, que iriam para etapa estadual, foi bem discutida, apontando, portanto, outro aspecto positivo na etapa municipal. Por outro lado, houve queixas sobre a falta de um tempo reservado para as representantes das entidades gerais resolverem as suas vagas. Para fazer isso, elas tiveram que abdicar do tempo da leitura das propostas na plenária final para discutirem entre si a definição dos seus nomes. Foram apontadas ainda outras críticas pela sociedade civil, como: o atraso na mesa de abertura; os textos longos, a falta de algumas conselheiras e de brinquedoteca. O último aspecto atinge as mulheres que não dispõem de recursos ou de rede de apoio para deixarem seus filhos e não se levam em conta as questões referentes à separação entre esfera pública e privada, numa sociedade em que a divisão sexual do trabalho ainda é a realidade de muitas mulheres, em que o cuidado da casa e dos filhos permanece de sua responsabilidade. O que está subjacente a isso é a atribuição do cuidado dos filhos às mulheres, que, por sua vez, devem ficar em casa para exercer a função. Portanto, a garantia de uma brinquedoteca é a possibilidade de muitas delas estarem presentes e foi alvo de reclamação também na IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres, em que uma delegada alegou que levou os três filhos porque não tinha com quem os deixar e que era uma falta de respeito da organização do evento não dispor de brinquedoteca (DIÁRIO DE CAMPO, 17/12/2015). O fator atraso da programação impacta diretamente na participação de mulheres que moram distante ou que tenham dificuldade com questões financeiras. Elas dependem de transporte coletivo e voltar depois das 22h se torna algo arriscado. O término da mesa de abertura estava previsto para 19h e, depois, haveria duas palestras magnas de abertura com o tema “Mais políticas e poder para as mulheres” com uma representante da Secretaria de Políticas para as Mulheres e com a única deputada federal de Pernambuco, militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Ouvi de uma delas o questionamento para quem seria aquele momento porque ela sentia que, diante dos motivos expostos, não era para as mulheres de periferia. Isso foi reforçado na reunião do dia 10 de outubro, em que se lê, na ata, uma das representantes da CUT: “[Conselheira] informou que, de acordo com sua análise, o resultado da programação da Mesa de Abertura e, em sequência, a Abertura Magna, não foi 205 satisfatório porque ficou muito tarde e cansativo” (CONSELHO..., 2015d, p. 1). A brinquedoteca também se mostra algo de grande importância para que as mães que não têm com quem deixar seus filhos e filhas possam participar do evento. Esse é um assunto recorrente em muitos espaços políticos e o argumento é que não existe previsão orçamentária para isso, o que reforça as responsabilidades no cuidado dos filhos que são, muitas vezes, atribuídas às mulheres e que já foram alvos de diversas reivindicações políticas, conforme vimos nos capítulos 1 e 2. Houve outras críticas estruturais, como atraso na mesa de abertura, falta de atrações culturais na programação e texto sobre autonomia do trabalho muito longo. A representante do Governo Municipal respondeu que todo evento tem atraso e que não teria como controlar as falas na mesa para que fossem mais curtas; que houve atração cultural, ainda que tenha sido só na abertura. Ela e outra integrante da sociedade civil – servidora – queixaram-se de sentir falta de muitas integrantes do Conselho Municipal. A reunião de avaliação da etapa municipal aconteceu no dia 08 de outubro e as falas foram muito no sentido de elogiar o evento e os problemas foram colocados como aprendizados para outras experiências. Por fim, colocou: [...] que de uma forma geral foi consenso entre todas as conselheiras presentes que a VI Conferência Municipal das Mulheres do Recife foi um sucesso e que seu saldo foi bastante positivo, indo além das expectativas esperadas (CONSELHO..., 2015d, p. 2). Cabe destacar que não havia nem integrantes do FMPE nem das RPAs na reunião de avaliação da VI Conferência Municipal da Mulher do Recife. Além disso, o que se entende por consenso, nesse caso, não leva em consideração as críticas colocadas pelas conselheiras da sociedade civil ao longo da reunião, tampouco nos encontros anteriores em que se falou acerca das pré-conferências. A tentativa de dar uma aparência de totalidade, nos termos de Laclau e Mouffe, está mais de acordo com uma exclusão de posturas mais críticas tanto ao evento quanto à gestão municipal. Estas críticas estão relacionadas aos discursos de uma parcela dos movimentos sociais e de RPAs presentes nas reuniões dos conselhos e denotam o que elas esperam que sejam o papel da gestão municipal. Da forma como foram sendo construídos, denotam divergências e tensões em relação à Secretaria da Mulher do Recife, que também tenta se defender das colocações, reforçando essas divergências de expectativas de papeis que levam a antagonismos. Por um lado, constroem-se estratégias de integrantes da sociedade civil de denunciar o que consideram falhas da PCR e, do outro, por parte da gestão 206 municipal, tenta-se transmitir a imagem de que tudo ocorreu dentro do previsto e que não havia problemas políticos. Isso vai ficar mais claro no tópico seguinte. 5.2.2 Questão das servidoras da Secretaria da Educação Começo este subtópico remetendo à avaliação de uma das servidoras, feita na reunião de 26 de agosto de 2015. Ela colocou que houve grande mobilização para a pré-conferência das servidoras, realizada no dia 30 de julho do mesmo ano. Porém, as vinculadas à Secretaria da Educação não foram autorizadas a participar, sendo, inclusive, alertadas de que, se fossem para o evento, levariam falta e teriam aquele dia descontado do salário. Isso, em sua leitura, causou uma menor participação na pré-conferência. A representante da Secretaria da Educação no Conselho argumentou que não houve nenhum ofício nem nada por escrito a respeito dessa proibição e que iria verificar junto ao órgão. Outra conselheira, integrante da UBM, reiterou que houve informação direta da referida Secretaria junto aos gestores de escola e ao próprio Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco (Sintepe) sobre o veto à participação. Segundo ela, esse tipo de informação dificulta o processo de politização e participação das mulheres. Uma das representantes do FMPE alegou que não é primeira vez que acontece esse tipo de proibição e que é preciso que o Conselho se posicione contra. A segunda representante da UBM fez um fala bastante revoltada com a questão: [...] é um retrocesso haver impedimento da participação das professoras e ADIs81 nas questões políticas, pois são classes que passam por muitas dificuldades, além de possuírem grande importância no papel educativo (CONSELHO..., 2015a, p. 1). Ela disse que não é possível se conviver com esse tipo de postura, pois é contraditória com uma gestão democrática e indicou que o Conselho deveria fazer uma carta de repúdio à Secretaria da Educação. A questão foi respondida pela representante da Secretaria da Mulher do Recife a partir de uma tentativa de justificar a postura do Secretário da Educação. [Representante da Secretaria da Mulher do Recife] Esclarece a questão da dificuldade da participação das professoras e ADIs de que há um calendário escolar a seguir e que as creches não podem ser fechadas, mas que de qualquer forma, a gestão está dialogando juntamente à Secretaria da Educação para que não haja prejuízo a nenhuma das participantes que foram 81 Auxiliar de Desenvolvimento Infantil. 207 à pré-conferência. Mas, enfatiza que não houve nada oficial a respeito desse posicionamento (CONSELHO..., 2015a, p. 2). Uma das integrantes da CUT alegou que não compreende que o Conselho tenha que fornecer nenhuma declaração de dispensa para a participação das servidoras, pois isso é responsabilidade do sindicato da categoria e que uma professora ou duas não vão acabar com o expediente na escola. Elas, por sua vez, alegam que o Sindicato dos Servidores Municipais do Recife (SINDSEPRE) não as representa, o que mostra o quadro de fragilidade na participação política e de uma confusão com o papel do Conselho, pois a impressão que tive, em suas falas, é que o mesmo é visto como uma instituição que vai proteger os seus direitos trabalhistas e não um órgão de controle social em si. Outra representante do FMPE avaliou como encaminhamento para a Conferência Municipal que o Conselho deve fazer uma moção de repúdio ao Secretário da Educação (CONSELHO..., 2015a, p. 2). Da parte das conselheiras integrantes da gestão, alegou-se que é possível que tenha havido um atrapalho de comunicação entre a Secretaria da Educação e os órgãos que a compõem e que é preciso saber quem vai assumir esse atrapalho. Uma das conselheiras argumentou o que expus acima: de que havia instituições que não poderiam ter o seu trabalho interrompido, como as creches. No entanto, não houve impedimento para as professoras, o que diverge com a versão que as servidoras deram. Ao invés de nota de repúdio, ela sugeriu uma moção que seria apresentada na Conferência Municipal e que seria necessário fazer um documento do Conselho direcionado ao Secretário da Educação e alegou que estava sendo feito um trabalho de mobilização junto ao referido órgão para que nenhuma das funcionárias que faltaram tivesse o seu salário descontado. No lado da sociedade civil, sugeriu-se que as servidoras escrevessem uma carta de repúdio. A questão foi levada à VI Conferência da Mulher do Recife por meio de uma Moção82 de Repúdio à Prefeitura da Cidade do Recife, que chegou à Plenária final com o seguinte texto transcrito do áudio: Repúdio ao veto das servidoras, ADIs e professoras à participação na Préconferência da Mulher É inconcebível a postura tomada pela PCR com as servidoras, ADIs e professoras quando no dia 11/08/2015, vetou a liberação das profissionais de participação na Pré-conferência da Mulher, alegando que as mesmas não poderiam se ausentar de suas atividades profissionais em virtude das 82 Para ir à plenária final, a moção, que visa dar destaque a alguma questão (pode ser de repúdio, apoio ou denúncia), precisava alcançar quantidade mínima de assinaturas exigida para ir à plenária final, 25% das 223 delegadas presentes, isto é, 67. 208 dificuldades de funcionamento das unidades escolares, enviando mensagens e ligando para as gestoras afirmando que essa falta não poderia ser abonada com a declaração da Pré-conferência da Mulher, assediando as mesmas com uma atitude injustificável, pois é fato que a PCR teve tempo hábil para a organização de todas unidades, sendo assim, a PCR vem privar o nosso direito enquanto funcionárias públicas e tolher a discussão (DIÁRIO DE CAMPO, 12/11/2015). A leitura dividiu o plenário em relação a quem seria direcionada: à Secretaria de Educação ou à PCR. Estava claro, no entanto, que ela seria aprovada83. A Secretária da Mulher do Recife alegou que a instituição não recebeu oficialmente nenhum documento de participação delas, argumento reforçado pela secretária-executiva. Além disso, argumentou que as professoras foram liberadas, mas existia uma dificuldade junto às ADIs por conta do funcionamento das creches. Em sua versão, o termo generalizado à Prefeitura compromete a própria construção da Secretaria da Mulher, que enviou autorização para que todas as secretarias liberassem suas servidoras. A representante das servidoras indagava se, como funcionária e mulher, não teria o direito de participar e que elas enviaram um ofício 15 dias antes da pré-conferência para que, pelo menos, uma servidora fosse liberada em cada unidade. No plenário, uma das delegadas da sociedade civil argumentou que, nas cinco conferências anteriores, não houve esse problema e que a responsabilidade é da PCR, já que o prefeito escolhe os seus secretários, defendendo a manutenção do texto que, depois de ir à votação, foi aprovado. Portanto, ficou o texto original, de repúdio à PCR (DIÁRIO DE CAMPO, 12/09/2015). Porém, ao ter acesso ao relatório final do evento, constatei que a moção não estava presente. O mesmo aconteceu com outras moções: uma de apoio que foi aprovada e que dizia respeito ao pedido de votação dos deputados federais na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de número 98/2015, que visa assegurar “[...] o mínimo de 10% de cadeiras para cada gênero na primeira legislatura, 12% na segunda e 16% na terceira legislatura, passando a valer o pleito seguinte à sua promulgação” (DIÁRIO DE CAMPO, 12/11/2015). A outra moção estava relacionada ao repúdio à aprovação da Câmara dos Vereadores do Recife do Plano Municipal de Educação que retirou de suas metas os termos desigualdade de gênero e diversidade sexual nas escolas. Ambas foram aprovadas sem polêmica, ao contrário da primeira. Essa questão do Plano Municipal de Educação foi abordada pela representante do FMPE na Reunião Preparatória para Conferência Municipal, realizada no dia 31 de agosto de 2015 ao abordar a conjuntura desfavorável às mulheres. 83 Quando a moção vai à plenária final, pode ser aprovada ou rejeitada. 209 Esse fato evidencia de maneira bastante explícita os conflitos, as tensões e as disputas em torno do sentido atribuído ao papel do Conselho da Mulher do Recife, bem como do Poder Executivo municipal. É possível perceber diferentes posições de sujeito - agentes da Prefeitura, dos movimentos sociais e das servidoras – que revelam o que entendem como papel da PCR. Nesse episódio, fica claro que a representação governamental no Conselho Municipal defende que a gestão não seja atingida, ao passo que os movimentos sociais também se indignam com a situação de tolhimento da participação das funcionárias públicas e as apoiam na construção de um documento de indignação perante o que aconteceu. No entanto, a defesa das entidades gerais é que o segmento não deve esperar do Conselho uma defesa delas como segmento trabalhista, pois isso cabe ao sindicato da categoria. Essa temática nos faz ter uma noção dos antagonismos ali presentes e da construção de um consenso conflituoso em torno da escrita do documento, que acabou sendo silenciado, já que não apareceu no relatório final. Portanto, quem verifica o documento, certamente, não saberá o que está subjacente à ausência de moções e poderá acreditar que nenhuma foi aprovada. Ao conversar sobre essa questão com integrantes do FMPE, fui informada de que houve uma cobrança nas reuniões do Conselho sobre a presença de todas as moções e a justificativa da gestão é que foi um erro de digitação e que seria corrigido. No entanto, tive acesso ao mesmo em dois momentos: em outubro de 2016 - em formato digital - e em outubro de 2018 – em formato impresso. Em nenhum dos dois, saiu qualquer tipo de errata. A ausência das três moções, duas de repúdio e uma de apoio, no documento oficial que diz o que foi discutido na VI CMM aponta para uma possível relação problemática de transparência entre governo e sociedade civil. Ou, ainda, ao não se ter escrito a carta de repúdio por parte das próprias conselheiras da sociedade civil acerca da situação das servidoras da Secretaria da Educação, parte atingida e indignada com a situação, abriu-se margem para que outro sujeito político ocupasse o significante vazio referente a aquele episódio. Nessa disputa de sentido, na possível falta de fiscalização e de cobrança da segunda84, quem se sobressai na função significativa é a gestão. Por mais que se tivessem construído articulações em torno de uma alternativa para não deixar esse episódio na invisibilidade, o antagonismo assumiu a relação hegemônica que excluiu a diferença. O discurso hegemônico, nesse caso, foi o de que não houve moções aprovadas, já que não 84 Cheguei a perguntar, em março de 2016, para uma integrante da CUT como funcionava a aprovação do relatório final e se elas tinham verificado as moções. Ela me respondeu que falaria com outra conselheira e não retomei mais o assunto por não me sentir à vontade diante do que já havia constatado da retirada da moção da versão provisória do documento, que havia acessado anteriormente. Já na escrita da tese, em 2018, solicitei via Ouvidoria do Município a versão final e pude constatar a ausência definitiva da referida moção. 210 constavam no relatório final, ao passo que o que foi votado nas conferências e tão defendido por integrantes da sociedade civil foi ocultado. 5.2.3 Quantitativo de vagas de delegadas para Conferência Estadual A polêmica central da questão das delegadas que iriam para a etapa estadual girou em torno do embate entre integrantes das entidades gerais – lembrando que fazem parte dos movimentos sociais - e servidoras – funcionárias concursadas da Prefeitura da Cidade do Recife - na disputa pelas 28 vagas da sociedade civil e cuja proposta inicial colocada no Regulamento seria: 11 RPAs (40%), 11 entidades gerais (40%) e 6 servidoras (20%). No caso das primeiras, houve a divisão entre FMPE de um lado e CUT e UBM de outro. As do FMPE defendiam que fosse alterado para 14 RPAs (50%), 10 entidades gerais (40%) e 4 servidoras (10%) por conta da proporcionalidade de participação nas pré-conferências, já que foram feitas nove nas diferentes comunidades, enquanto as servidoras e entidades gerais só contaram com um dia do evento. Uma delas – do FMPE - argumentou que seria preciso fazer uma distribuição mais adequada porque estava com medo de haver tensionamento e que seria preciso se trabalhar não apenas com o quantitativo, mas com mobilização porque o critério era político. Seria preciso observar a representatividade, mas também o critério político de mobilização e, para exemplificar, falou-se que houve pré-conferência com mais de 300 mulheres enquanto a das servidoras contou com 40. Ela questionava quem garantia que entidades como CUT e UBM tinham mais mulheres do que as comunidades e repetia que o debate não era de número, mas político e que seria preciso rever as vagas de todos os segmentos da sociedade civil. A conselheira argumentou, ainda, que as entidades gerais fazem o debate mais consistente na política para as mulheres, mas que é preciso pensar nas RPAs (DIÁRIO DE CAMPO, 03/09/2015). A UBM e a CUT e uma representante de RPA – que também é servidora, por sua vez, eram contra cederem suas vagas e propuseram que fossem 14 RPAs (50%), 11 entidades gerais (40%) e 3 servidoras (10%). Nessa configuração, quem abriria mão das vagas seriam as servidoras. O que elas argumentaram era que seria preciso levar em consideração o nível de mobilização e representatividade das entidades gerais e que não daria para compará-las com as servidoras. Essa conselheira, da UBM, falou, ainda, que não estava desvalorizando o segmento das servidoras ou professoras e que sempre defendeu que elas são trabalhadoras e, 211 como tal, precisam passar pelo sindicato85 e que as denúncias que elas levavam sobre condições de trabalho deveriam ser direcionadas a tal entidade. Ela deu ênfase que não daria para levantar a possibilidade de cederem suas vagas e o argumento central era a politização. A integrante do FMPE, por outro lado, falou que não se pode falar da despolitização das mulheres de RPAs e questionou que democracia seria aquela. A conselheira da UBM defendeu o número de 12 para entidades gerais e que as servidoras cedessem uma parte de suas vagas (DIÁRIO DE CAMPO, 03/09/2015). Os argumentos gerais das três referidas entidades eram que o local de reivindicação política das servidoras não era o Conselho, mas o Sindicato dos Servidores Municipais do Recife (SINDSEPRE), o que elas respondiam de que ninguém é obrigado a se sindicalizar e que existia uma perseguição do Secretário da Educação com elas, que dava ordem de cortar o ponto de quem fosse para assembleia ou qualquer outro espaço político. O sindicato, por sua vez, em suas palavras, nada fazia para enfrentar esse tipo de postura (DIÁRIO DE CAMPO, 03/09/2015). As servidoras, por sua vez, diziam que era angustiante verem e falarem assim da categoria e que elas eram muitas e diversas, pois estavam na saúde, na segurança, na educação dentre outros setores e que não se levava isso em consideração. Uma delas fez uma fala bastante emocionada de que as servidoras estavam sendo assediadas e desrespeitadas nos seus locais de trabalho e, ali, estavam tirando o seu direito de participar. Ela reivindicava que era mulher e que a única diferença entre as demais do Conselho Municipal era que tinha prestado concurso público para a PCR. Reiterou também que as servidoras que foram eleitas delegadas ainda corriam o risco de não serem liberadas para as etapas seguintes das conferências e que ela nunca havia sido impedida pelas gestões anteriores à frente da Secretaria da Educação de estar nesses espaços e questionou o que o Conselho estava fazendo por essas mulheres. Vê-se novamente uma visão do Conselho como órgão de proteção à categoria trabalhista e isso é o motivo de conflitos com as demais conselheiras, que alegam que servidoras devem estar na categoria “governo” e não “sociedade civil”. As servidoras alegam que, como não integram 85 Esse argumento de que a entidade que representa as servidoras ser o sindicato da categoria também foi abordada em reunião do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e no Fórum de Mulheres de Pernambuco pela mesma integrante, que fez uma fala muito enfática de que, ao ser colocada como uma categoria dentro da sociedade civil, as servidoras acabam tirando vagas dos movimentos sociais e questionou qual é o direito que as servidoras públicas vão defender (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Porém, as conselheiras do Conselho Municipal, que também são do FMPE, não utilizaram esse argumento. Na reunião do FMPE, uma das integrantes, que também é conselheira municipal, falou que o regimento do Conselho as coloca como sociedade civil, mas nas etapas estadual e nacional, elas disputariam as vagas como sociedade civil, pois não existe categoria de servidoras. 212 cargos comissionados, não estão comprometidas com a gestão (DIÁRIO DE CAMPO, 05/11/2015). No entanto, eu presenciei na reunião de 05 de novembro uma polêmica por conta de uma denúncia sobre um centro de referência em atendimento à mulher vítima de violência e que uma das servidoras não levou adiante com medo de represálias da gestão. Isso me leva a refletir que o fato de integrarem o órgão por si só já revela o antagonismo com as demais integrantes da sociedade civil, que têm um papel de enfrentamento à PCR. Vemos aí as posições de sujeito e como elas podem variar diante do contexto ou, dito nos termos de Laclau de Mouffe, no interior da estrutura discursiva. Elas cederam três vagas contanto que as entidades gerais fizessem o mesmo com uma, ficando 15 RPAs, 10 entidades gerais e 3 servidoras. A sugestão foi reforçada pelas integrantes do FMPE, que argumentaram que o quantitativo de mulheres de comunidade era muito maior do que as entidades e que seria preciso estar atento para essa questão e os possíveis conflitos. Representando a UBM, a conselheira justificou que não estavam ali querendo vaga para participar, mas sim para se fortalecer e ir para o debate político contra a onda conservadora e que não queria desmerecer as integrantes de RPAs, mas sim que elas se juntassem às entidades para fortalecer o nível de consciência política. Ela e a outra conselheira representante da UBM defenderam que, ao invés de 11, fossem 12 vagas para as entidades gerais. Trata-se de uma disputa pela representação e que, por sua vez, é pelo poder, pois ter mais vagas para delegadas significa maior legitimidade para determinado projeto político (DIÁRIO DE CAMPO, 03/09/2015). Diante de tudo isso, o que me impressionou na posição de observadora foi que o debate acontecia com conselheiras de entidades gerais e servidoras. A parte sobre a qual elas tanto falavam, as de RPAs, quase não participaram, com exceção de uma. Havia mais duas integrantes, que ficaram em silêncio, o que me faz questionar se elas se sentem parte daquele espaço. No lado do governo, havia uma conselheira que também integra a UBM e entrou na discussão alegando que reduzir vagas das entidades gerais seria perder em qualidade e deu o exemplo da conferência que contou com mais de 300 mulheres e que, em sua leitura, foi despolitizada (DIÁRIO DE CAMPO, 03/09/2015). No final, o FMPE retirou sua proposta e ficou a proposta da UBM e CUT: as servidoras cederam três vagas, que foram para as mulheres de comunidades. A representante governamental questionou se podia admitir a vitória para as entidades gerais e a resposta das demais foi: “para as RPAs” (DIÁRIO DE CAMPO, 03/09/2015). Atendendo ao critério da 213 proporcionalidade de participação nas pré-conferências, a divisão das vagas ficou: uma (RPA 1); uma (RPA 2); três (RPA 3); três (RPA 4); duas (RPA 5); quatro (RPA 6) (CONSELHO..., 2015c, p. 1). Na lógica das equivalências e diferenças, vemos um ponto nodal que remete à ideia de politização. Em meio a significantes flutuantes que passam as mensagens de desvalorização da trabalhadora municipal; de proporcionalidade da participação e de qualidade política, este último acabou assumindo a função significante da disputa em torno das vagas. Por mais que as RPAs tenham ficado com três vagas a mais que as entidades, quem assumiu o sentido do significante vazio “vagas de delegadas” foram essas últimas a partir dos argumentos críticos às servidoras que, mais uma vez, deparam-se com uma articulação hegemônica que as marginaliza. Trata-se de uma disputa pelo sentido político da conferência. A disputa pela representação é algo completamente instável e dependente do contexto. Nesse episódio, as mulheres da UBM e CUT conseguiram se articular para não cederem mais vagas, ao passo que o FMPE recuou de sua proposta e as servidoras perderam suas vagas. Nos processos articulatórios, a diferença que não conseguiu assumir a função equivalencial foi a do FMPE. Diante dos antagonismos presentes dentro dos próprios movimentos sociais, a hegemonia foi a de que as entidades gerais são as que têm mais força no debate político e, por isso, não podem abrir mão de suas vagas. O segmento das RPAs, mesmo sendo mais numeroso, no entanto, acabou por ficar com a imagem de que não agrega tanto a politização. Essa relação hegemônica significa um sentido político da conferência que não está ligado necessariamente à priorização das mulheres do município, mas sim aos movimentos sociais, já que as entidades gerais não estão restritas ao espaço do Recife. Isso pôde ter feito diferença em momentos posteriores, como a etapa estadual e nacional, onde eu presenciei discursos políticos bastante alinhados às disputas em torno da conjuntura. Porém, em outro momento, o cenário podia ser diferente e as articulações discursivas, por sua vez, também apresentariam outro resultado. 5.2.4 Sugestões para Conferência Municipal e sua importância Neste último subtópico, não observei diferenças em si. Considero uma temática em que se pode notar a lógica das equivalências, sobretudo no que diz respeito à importância do evento naquele dado período histórico. Conforme coloquei anteriormente, na reunião de 06 de agosto de 2015, a conselheira representante da Secretaria da Mulher do Recife chamou a atenção para a importância de se debater sobre o Sistema Nacional de Política para as 214 Mulheres, que compõe um dos eixos temáticos proposto pela SPM ao convocar a IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Ela avaliou como o maior desafio a construção de propostas e: [...] que associe questões pertinentes aos diversos âmbitos que se referem ao universo das mulheres e que a estrutura social atual precisa lidar com mais precisão e especificidade em relação à associação de serviços de atendimento às mulheres referente às questões de violência, saúde, controle social etc. (CONSELHO..., 2015b, p. 2). Ela reiterou que não se faz política pública sem recurso nem controle social. Essas colocações estão de acordo com a defesa de uma das integrantes do FMPE, que compôs a mesa na Reunião Preparatória para a Conferência Municipal, realizada no dia 31 de agosto, junto com uma servidora e a secretária-executiva da mulher do Recife. Ela falou: Qual é a função das Secretarias de Políticas para as Mulheres? O que elas devem fazer? Como elas devem ser construídas? Qual é a política que ela deve criar? Qual é a política que ela deve fazer? Tudo isso é uma coisa nova, que a gente está construído agora e que tem 15 anos. Essa conferência tem o papel não só de a gente discutir quais são as políticas que a gente quer, mas quem vai executar essa política, como essa política vai ser executada, como esse organismo de política para as mulheres vai ser estruturada (DIÁRIO DE CAMPO, 31/08/2015). Ela – representante do FMPE - argumentou que, da forma como os organismos de políticas para as mulheres funcionavam, abria-se margem para agirem cada qual de uma forma, sem regras, funções e objetivos. O Sistema, além de assegurar um orçamento para a política, significaria uma estruturação delas, como aconteceu com o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Nessa mesma reunião preparatória, defendeu-se abordar a reforma política e a importância da educação não-sexista e o combate ao racismo. Novamente, a conjuntura veio à tona: Nós estamos numa conjuntura política muito complicada para nós, mulheres, e nós precisamos estar fortes, precisamos mobilizar todas as nossas delegadas nessa conferência para estar para discutir todos esses assuntos (DIÁRIO DE CAMPO, 31/08/2015). Por fim, fez um apelo às mulheres para que mobilizassem as que saíram como delegadas para a etapa municipal, mas não estavam presentes ali. Segundo ela, era preciso que houvesse um compromisso coletivo de quem defende as políticas para as mulheres chamar as 215 demais para participar da conferência. Nota-se que a referência à conjuntura política é trazida à tona durante diversos momentos e se tornou um elemento central no discurso dos movimentos sociais. Pela parte do governo, a secretária-executiva da Secretaria da Mulher do Recife afirmou que a importância da conferência, para além de formular políticas, era defender o que as mulheres conquistaram, em suas palavras, a duras penas (DIÁRIO DE CAMPO, 31/08/2015). Isso nos remete ao ponto de ruptura com o sentido da conferência diante de uma conjuntura ameaçadora para as mulheres, conforme já foi colocado neste capítulo. O evento assume outro caráter ou uma tentativa de estabelecer um ponto nodal, que é de garantir o que já havia sido conquistado, e isso ficou ainda mais claro com o decorrer das etapas. Não abordarei nesta tese, mas cheguei até a etapa nacional, realizada entre os dias 10 e 12 de maio de 2016 em meio ao processo de votação do impeachment da então presidenta Dilma Rousseff e o evento adotou um caráter majoritário de defesa de seu mandato. Houve muitas manifestações ao longo dos três dias de programação e houve delegadas que chegaram a sair em caminhada rumo à Esplanada dos Ministérios para demonstrar apoio a ela, seja no dia da votação (11 de maio) ou quando ela fez o discurso de afastamento, no dia seguinte. Vê-se, diante disso, que o ponto alto dessa discussão acaba por ser a IV CNPM. 5.2.5 Análise geral dos temas O que observei ao longo das reuniões foram avaliações positivas do evento vindas tanto das representantes da gestão da Secretaria da Mulher quanto das conselheiras da sociedade civil. O debate gerou uma discussão sobre o distanciamento do Conselho das comunidades e como isso se refletiu na fraca politização das conferências, conforme apontaram as integrantes do FMPE e uma de RPA. Essa moradora de comunidade chegou a denunciar que não se conhece o trabalho da Secretaria da Mulher. Vi uma relação antagônica que estava relacionada ao que é o papel de cada sujeito político no espaço de controle social. O Governo Municipal, ao avaliar positivamente a realização das pré-conferências e da conferência municipal, está focando no quesito burocrático e estrutural do evento; a sociedade civil, por sua vez, apresenta um discurso voltado à necessidade de se discutir políticas públicas para as mulheres. Diante disso, existe uma disputa, de um lado, em torno do papel que a Secretaria da Mulher do Recife deve desempenhar, de estar mais próxima das comunidades e, do outro, do que deve ser atribuição do Conselho da Mulher do Recife. Da 216 forma como se dá, parece que os ônus do evento são remetidos pela gestão ao Conselho, ao passo que os bônus são referidos como méritos do Executivo Municipal. Isso ficou bastante claro quando eu ouvi de uma delas em que diz que era gestão, Geraldo Júlio era o seu prefeito e não tinha problema nenhum em dizer isso (DIÁRIO DE CAMPO, 05/11/2015). Tratam-se, portanto, de identidades distintas e, nesse caso, antagônicas, pois revelam interesses que levam a articulações hegemônicas, em que determinados grupos são marginalizados em nome de uma totalidade excludente. No caso estudado, estavam em questão o discurso do gerenciamento da conferência – da parte do Governo Municipal – e da reivindicação do papel político – proferido por integrantes da sociedade civil. Da forma como foram construídos, eram inconciliáveis porque, de um lado, colocava-se o esvaziamento político das conferências como algo sintomático de um distanciamento da Secretaria da Mulher do Recife das comunidades e, do outro, atribuía-se a função de mobilizar como tarefa do Conselho Municipal. Nessa disputa, o que se sobressaiu foi a realização da conferência como algo bemsucedido, que elegeu delegadas para etapa estadual e resultou no relatório com propostas de políticas públicas que seriam encaminhados para a organização da IV CEPM-PE e para IV CNPM. Portanto, ainda que tenha havido críticas e protestos da sociedade civil, a visão hegemônica para a sociedade é que o evento cumpriu com o seu papel. Mesmo que todas estivessem integrando o mesmo órgão, a sociedade civil encontra-se em condições diferentes de quem faz parte da gestão municipal e tem papeis políticos distintos. As críticas à despolitização das pré-conferências parecem ter sido entendidas por quem compôs a gestão como uma queixa ao órgão do Poder Executivo. Fazer uma crítica ao evento em si parecia ter sido recebida como uma crítica à Secretaria da Mulher, um dos responsáveis pelo evento e a forma como se fazia para se defender delas era colocando a responsabilidade no coletivo – o Conselho Municipal - e, mesmo assim, reiterando a análise positiva. Esses enunciados se equivalem em dado momento: um que aponta direto para o Conselho as críticas e outro que se defende delas e também as direcionam para o mesmo coletivo. Notam-se visões antagônicas, em que de um lado se fala dos aspectos estruturais da realização do evento e, do outro, o que se sobressai é uma cobrança pelo papel político das Conferências. São sujeitos distintos cobrando o papel do Conselho, um como um órgão que precisa dialogar com a comunidade, outro como corresponsável pela realização das Conferências. Fazendo uma leitura a partir da Teoria do Discurso, percebemos a disputa para significar a “avaliação das pré-conferências e das conferências”. Os elementos – os significados que se 217 encontram dispersos – podem ser vistos através da avaliação positiva da gestão e de alguns setores da sociedade civil de um lado e, do outro, do distanciamento da Secretaria da Mulher em relação às comunidades e da visão crítica das etapas pré e municipal. A forma como os elementos são articulados em momentos é por meio do discurso de que, mesmo tendo sido fracas, o evento cumpriu com o seu papel, discutindo propostas e elegendo delegadas, e que se trata de uma responsabilidade do Conselho da Mulher do Recife. Neste sentido, o órgão perde o seu sentido de controle social e passa a ser executor do evento. O intuito dessa expressão da democracia participativa, as conferências, no entanto, é de unir o governo e a sociedade civil para, juntos, definirem sobre propostas de políticas públicas para os respectivos segmentos. Diante do caso analisado, o que se percebe é que o discurso burocrático-organizacional do evento é priorizado em detrimento da qualidade das discussões políticas. Neste sentido, uma parte da sociedade civil cumpre com o seu papel de denunciar, mas não consegue ter um poder de articulação em torno do ponto nodal avaliação da conferência. Vemos a heterogeneidade dos sujeitos da sociedade civil, fruto de suas distintas posições de sujeito: umas avaliaram positivamente, outras, ao criticarem o evento, apontaram problemas anteriores relacionados ao distanciamento do Conselho e da Secretaria da Mulher do Recife perante as comunidades. Porém, no debate entre elas, os elementos crítica à gestão e à despolitização dos eventos foram articulados ou se equivaleram em torno do ponto nodal que atribuía a realização do evento à responsabilidade do Conselho, como se a Secretaria da Mulher não fosse também protagonista nesse processo. Essa interpretação foi reiterada no subtópico sobre o veto das servidoras da Secretaria da Educação de participarem da préconferência. As falas das representantes do governo foram no intuito de justificar o veto e sustentar de que não houve nada oficial, ainda que soubessem que o mesmo teria acontecido informalmente. Ao se abordar que fosse feito algo para lidar com o fato, sugeriu-se que o Conselho fizesse uma Moção a ser levada na Conferência. Porém, a partir do momento que o texto assumiu um teor de crítica à gestão como um todo, o antagonismo - o discurso da gestão municipal - pareceu ter assumido uma função hegemônica ao não sair a Moção no relatório final. Caberia à sociedade civil, presente no Conselho, fiscalizar o texto, já que quando há críticas ao evento, coloca-se como o mesmo sendo de responsabilidade do Conselho. Porém, quando elas são direcionadas à gestão, parecem ser silenciadas. Cabe ressaltar, inclusive, que as servidoras, no processo de articulação discursiva, mais uma vez, ficaram à margem do sentido de totalidade na discussão das vagas de delegadas para etapa estadual. As relações 218 antagônicas dentro do Conselho constituíram um discurso hegemônico frente a um espaço que, em sua leitura, remete à noção de protetor de seus direitos trabalhistas. Isso me faz ver que o sentido que se sobressai é que o Conselho é um local de participação e reivindicação política em que a questão das trabalhadoras do município não necessariamente está na pauta. A definição das vagas para a etapa estadual deixou esse aspecto bastante nítido. Ao se analisar a importância da Conferência Municipal, vê-se que a conjuntura é um elemento fundamental. Ao contrário das edições anteriores, o contexto já não permitia que apenas formulassem propostas de políticas, mas que, na concepção das conselheiras representantes do FMPE, deveria ser de enfrentamento aos fundamentalismos e a um Congresso conservador ou, dito de outra forma, o ponto nodal estaria relacionado à tentativa de construir um outro discurso a partir da garantia do que já havia sido conquistado. No entanto, esse enunciado não conseguiu romper o discurso da realização do evento nacional, que aconteceu em meio ao processo de impeachment86. As suas defesas de construção do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres se equivalem com à da representante da Secretária da Mulher do Recife. Vê-se outro ponto em torno do qual há articulação. Também notei equivalência – ponto nodal - na crítica feita por uma das servidoras e uma do FMPE à retirada de gênero do Plano Municipal de Educação do Recife, assunto que chegou em formato de moção de repúdio na etapa municipal, mas que não se sabe por que foi excluída do relatório final do evento. Tanto essa questão de enfrentamento à retirada de gênero do referido Plano quanto do Sistema Nacional poderiam ser apostas de mobilização frente a um contexto de ameaças cada vez mais concretas de retiradas de direitos, visto que a SPM estava prestes a deixar de existir enquanto órgão do primeiro escalão do governo e, assim, retroceder-se-ia a antes de 2002, quando não havia nenhuma instituição no Poder Executivo voltada exclusivamente às políticas específicas para as mulheres. Esse contexto de ameaça e de resistência ao que havia sido garantido teve seu ponto máximo na realização da IV CNPM, quando já estava acontecendo o processo de impeachment e o discurso hegemônico era o de defesa da presidenta Dilma Rousseff e das políticas públicas conquistadas de um modo geral durante as gestões petistas. 86 A data inicial da IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres era 15 a 18 de março de 2016. Em fevereiro de 2016, foi alterada para o período de 10 a 12 de maio do mesmo ano (BRASIL, 2016f). Quando estava em Brasília para acompanhar a XII Conferência Nacional de Direitos Humanos, que aconteceu entre 27 e 29 de abril de 2016, logo, duas semanas antes da IV CNPM, soube que foi realizada uma reunião extraordinária com as conselheiras do CNDM para discutirem a possibilidade de cancelamento da conferência diante da conjuntura nacional. Alguns movimentos se posicionaram contrários à realização sob o argumento de que corriam o risco de serem aprovados retrocessos para as mulheres. Outros defenderam que acontecesse porque significaria um apoio à presidenta Dilma Rousseff. Esse segundo sentido, inclusive, cumpriu uma função hegemônica no evento, que foi permeado pelos discursos em sua defesa. 219 5.3 Organização da IV CEPM-PE e Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – PE Assim como no tópico acerca do Conselho da Mulher do Recife, também selecionei temáticas com base nos princípios que integram a Teoria do Discurso. Diante de um total de 29 temáticas, 16 referentes às reuniões ordinárias do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – Pernambuco e 17 da Comissão de Organização da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres – PE, selecionei cinco para desenvolver a discussão e análise. São elas: orçamento; palestras; convidadas e homenageadas; mesa de eleição das delegadas e reforma política/contexto político. Cabe destacar que, quando sistematizei os temas, as “convidadas e homenageadas” ficaram em categorias diferentes e as uni no presente capítulo por suas discussões serem muito semelhantes entre si. A lista com o resumo de todos os temas registrados se encontra no Apêndice. Novamente, recorro ao diário de campo e aos documentos disponíveis: atas, comunicados, encaminhamentos, lista de presença, áudios e qualquer outro registro por escrito. No entanto, só disponho de duas atas de reuniões ordinárias: de novembro e dezembro de 2015, pois as anteriores não foram elaboradas. Reitero que solicitei todos os documentos via Ouvidoria do Estado de Pernambuco em 2017 e 2018 e os mesmos foram disponibilizados pelo CEDIM-PE. 5.3.1 Orçamento O tema orçamento para o evento esteve presente com destaque nas reuniões da Comissão de Organização da IV CEPM-PE. Na primeira em que estive presente, no dia 11 de junho de 2015, já foi colocado por uma das representantes da SecMulher-PE que, até então, não havia nenhum orçamento oficial reservado às conferências e que só havia a palavra do governador que iria garantir a realização da etapa estadual, mesmo não sendo meta prioritária absoluta do governo. Diante disso, foi avisado aos municípios que não contassem com ajuda financeira vinda no Estado e que o que seria garantido era a presença de alguma integrante da SecMulher-PE para legitimar o evento e fazer uma palestra, caso fosse solicitado (DIÁRIO DE CAMPO, 11/06/2015). Sobre esse assunto específico das palestras, retomarei em um subtópico específico. A ideia era, além disso, sempre ter alguém do CEDIM-PE nas conferências, sobretudo, por uma questão de legitimidade dos eventos. Porém, não se sabia como viabilizar 220 financeiramente, já que envolveria deslocamento e outros custos, como alimentação e hospedagem. A alternativa encontrada foi de que a SecMulher-PE se comprometeria a dar carona a quem quisesse ir e, então, buscaria alguma forma de arcar com os demais custos. Uma das integrantes da sociedade civil colocou a preocupação em a SecMulher-PE estar presente nas conferências municipais por uma estratégia de representação e legitimidade do processo. Tratava-se, em suas palavras, de uma estratégia política ter essa representação, assim como a SPM enviava as suas integrantes para as conferências estaduais (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2018). No mesmo dia, essa conselheira da sociedade civil questionou como iria funcionar a Comissão de Mobilização e de Articulação, que, em 2011, foi bastante atuante, com a ida de conselheiras a diversos municípios para articular a realização dos eventos87. Nesta edição, elas não iam mais aos municípios e a tarefa de mobilizar e articular era posta como compromisso do Estado. A pergunta foi reiterada por outra conselheira da sociedade civil, que também indagou como o Conselho iria acompanhar as conferências, já que o órgão também as convoca. A resposta foi que a Comissão de Mobilização era a que iria aos municípios, porém, novamente, essa questão estava atrelada à falta de orçamento. Às conselheiras era dada a possibilidade de acompanhar as etapas municipais, mas os obstáculos materiais faziam que essa possibilidade ficasse apenas no plano das ideias. No entanto, havia um montante previsto na Lei Orçamentária Anual – 2015 de R$ 105.000,00 para “Atividade 4153 - Fomento e Apoio aos Conselhos, Câmaras, Comissões e Comitês dos Direitos das Mulheres” cuja função é: Fomentar e apoiar a criação de espaços de interlocução entre as mulheres e os órgãos da administração pública estadual direta e indireta, demais poderes da república (Legislativo e Judiciário) e órgãos independentes (Ministério Público e Defensoria Pública) (PERNAMBUCO, 2014, p 534). Posteriormente, conforme informação solicitada via Ouvidoria, foi-me respondido que houve dois créditos suplementares de R$ 251.000,00 e R$ 142.591,00, totalizando o orçamento de R$ 498.591,00 para a IV CEPM-PE e CEDIM-PE. O valor já previsto para 2015 de R$ 105.000, sem a suplementação, leva-me a questionar por que se dizia que não seria possível o apoio financeiro para a ida das conferências municipais das conselheiras como um todo, sejam governamentais ou da sociedade civil. A diferença é que essas últimas, 87 Como funcionária contratada para trabalhar na organização da III Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres, pude estar junto das conselheiras nas idas aos municípios para realizar reuniões com gestoras dos Organismos de Políticas para as Mulheres ou, na sua falta, das secretarias que tivessem uma temática mais próxima, como a de Assistência Social. Em minha leitura, a articulação e mobilização eram tratadas como atribuições tanto da SecMulher-PE quanto da sociedade civil através de suas respectivas conselheiras. 221 muitas vezes, não dispõem de recursos de seus coletivos ou movimentos sociais para irem por conta própria, ao contrário de representantes governamentais que dispõem de formas de angariar apoio dos seus órgãos. Ao longo de todas as reuniões, não vi sequer o informe sobre esse valor previsto na LOA. Ao solicitar o orçamento, fui informada de que o montante gasto com o CEDIM-PE foi de R$ 49.900,00. Também não vi, nas reuniões, nada que remetesse a explicar o funcionamento do orçamento público. Ao longo do período acompanhado, também não pude perceber o funcionamento de uma Comissão de Mobilização, ainda que estivesse prevista pelo CEDIM-PE. O que vi eram reuniões das Comissões de Organização Geral, Mobilização e Relatoria e Temática acontecendo em conjunto. Na prática, não constatei uma separação efetiva delas. Na reunião do dia 09 de julho, foi informado que as funcionárias da SecMulher-PE, que trabalham no Recife, iriam às conferências num raio determinado de distância da capital: entre 300 e 400 quilômetros. Mais do que isso, iriam contar com o apoio das subcoordenadoras regionais, pois ficaria muito caro o deslocamento da capital. Isso implicaria que as conselheiras que quisessem ir do Recife não teriam a carona da SecMulher-PE, já que não iria ninguém da capital. As conselheiras que teriam facilidade de estarem presentes seriam as que residiam nas proximidades, ainda assim, sem recurso do CEDIM-PE. Ou seja, quem quisesse ir poderia estar presente como conselheira, mas a questão financeira acabava sendo um expressivo obstáculo para que não estivessem presente. Num cenário de antagonismos, nos termos de Laclau e Mouffe, foi constituído o discurso hegemônico construído pela gestão estadual de falta de recursos e à sociedade civil foram colocados obstáculos que, na falta de uma transparência e de conhecimento de como funciona o orçamento público, acabaram por colocá-la à margem do processo das conferências municipais. O mesmo se observa nas demais questões que passam pelo referido assunto. Como veremos, o orçamento se tornou o discurso de proporcionar o que seria possível ser feito antes e durante o evento. Foi informado que a SecMulher-PE estava aproveitando a realização do Fórum de Gestoras, evento descentralizado em que as representantes dos Organismos de Políticas para as Mulheres dos municípios de Pernambuco se reúnem periodicamente, para visitar os órgãos e articular com os prefeitos sobre a importância da realização das conferências. Foi falado que a própria SecMulher-PE também estava enfrentando uma crise financeira grave e que as funcionárias não recebiam as diárias antes das viagens e que precisavam tirar dos seus próprios recursos (DIÁRIO DE CAMPO, 11/06/2015). Esses relatos trazem implicações do 222 ponto de vista analítico. Primeiro, eu só pude presenciar uma única vez o questionamento feito pela parte da sociedade civil da quantia destinada às conferências de políticas para as mulheres, que foi justamente na primeira reunião. Após esse fato, não presenciei mais indagações sobre o orçamento, apenas afirmações vindas de representantes governamentais. Isso me leva a analisar que, nas disputas de sentidos em torno da construção das Conferências de Políticas para as Mulheres, o orçamento é posto e aceito como algo que não é prioritário ou do conhecimento da sociedade civil Dentro desse campo discursivo hegemônico, o orçamento é visto como algo racional, não passível de uma politização. Trata-se, nos termos de Laclau e Mouffe, de uma ideia de totalidade em que um dos sujeitos – a sociedade civil - fica à margem do processo discursivo. O sentido de que o Estado não dispõe de recursos, então, dá o norte para uma série de outras questões que envolvem e regem o evento. A primeira delas diz respeito ao período de realização do mesmo. O debate que esteve presente em quatro reuniões da Comissão de Organização da IV CEPM-PE, num total de onze, era se seria realizado em dois ou três dias. O mesmo tema saiu apenas em formato de informe nas reuniões ordinárias do CEDIM-PE de que seria realizada em três dias. No dia 11 de junho, o argumento foi de que deveria acontecer durante 3 dias, porém, no primeiro, só seria feita a abertura e o credenciamento das delegadas. Assim, poupariam gastos de aluguel de outros espaços além do auditório principal (DIÁRIO DE CAMPO, 11/06/2015). Acreditava-se que o evento iria acontecer no Centro de Convenções de Pernambuco, localizado no município de Olinda. Posteriormente, explicarei por que o mesmo foi alterado para o Hotel Canarius, em Gravatá, na região Agreste do Estado. Na reunião realizada no dia 13 de agosto, foi colocada a estimativa de R$ 590 mil pelo governador. Porém, os cálculos feitos na SecMulher-PE já giravam em torno de R$ 900 mil, ainda que cortando diversos itens. O governador sugeriu que o evento fosse feito em dois dias para que se cortassem custos. Nesse formato, no primeiro dia, já seria abertura e leitura do regulamento logo pela manhã e, à tarde, começariam as atividades (DIÁRIO DE CAMPO, 13/08/2015). Isso é um indicativo de que a política para as mulheres na disputa das políticas públicas no Estado de Pernambuco não é priorizada, já que o discurso da gestão, seja através do governador ou por meio das falas de grande parte das funcionárias da SecMulher-PE era de que seria feito o que coubesse no orçamento. No entanto, a partir do momento que não havia uma transparência sobre a origem dos recursos nem foi colocado um canal de diálogo do CEDIM-PE com o Governo do Estado, é possível afirmar que a realização da IV CEPM-PE acabou por depender da palavra do governador e, ao sugerir que acontecesse em dois dias 223 para cortar custos, não se leva em consideração o tamanho e abrangência do evento e, sobretudo, a qualidade das discussões. O discurso político, portanto, é ocultado em nome do administrativo e gerencial do evento, caracterizando um formalismo jurídico. Dentre as funcionárias da SecMulher-PE, parecia haver uma visão consensual de que a realização em dois dias poderia ser mais viável. No entanto, uma das funcionárias questionou acerca do que seria cortado se tirassem um dia e argumentou que se perderia em termos de qualidade se o evento fosse realizado nesse formato. Essa funcionária relatou que, na Conferência Municipal do Recife, estava circulando uma moção em que dizia que o Estado de Pernambuco não tinha compromisso com a política para as mulheres porque não ia dar hospedagem para a Conferência Estadual. Ela disse não saber de onde saiu essa versão que o Estado não arcaria com a hospedagem, mas que talvez fosse importante ler o regimento e saber se tem que pagar a hospedagem. A resposta foi que é obrigação do Estado arcar com hospedagem e alimentação das delegadas na etapa estadual, enquanto aos municípios cabe arcar com o transporte (DIÁRIO DE CAMPO, 17/11/2015). A postura dessa funcionária da SecMulher-PE mostra que o espaço governamental também é permeado por disputas em torno dos sentido da Conferência. Percebia que o posicionamento dela em apontar a necessidade de se pensar na qualidade político do evento causava um certo mal estar entre as demais funcionárias, pois era como se ela estivesse colocando em segundo plano o fato de que seria preciso cortar custos. A necessidade de corte no orçamento era constante nas falas e se chegou a cogitar entrar em contato com as universidades para pedir que fossem feitos serviços gratuitos, como o de relatoria, em troca da experiência e aprendizado ou, ainda, o Observatório das Mídias para que se fizessem as fotos. Chegou a ser falado que, se acontecesse em dois dias, poderia começar com uma palestra rápida no primeiro dia, almoçasse e, à tarde, as delegadas fossem para os grupos de trabalho. A resposta imediata veio de uma integrante da sociedade civil, que disse não se poderia começar a conferência sem fazer a leitura do regulamento, que é o que vai determinar as regras para todo o evento. Outra sugestão foi de que delegadas do Agreste poderiam vir para o Recife e retornar no mesmo dia, economizando, assim, com a hospedagem. Havia quem insistisse que seria preciso cortar R$ 200 mil e que um dia a menos significaria cortar de R$ 80 a R$ 90 mil de hospedagem e alimentação (DIÁRIO DE CAMPO, 08/10/2015). Não pude perceber o questionamento da estimativa fornecida pelo governador tampouco uma explicação do valor. Nas palavras das representantes da SecMulher-PE, R$ 590 mil pareciam uma cifra aleatória, em que elas deveriam se encaixar. 224 Porém, o montante gasto com o evento foi ainda menor, R$ 448.691,00 (DIÁRIO DE CAMPO, 08/10/2015). As conselheiras da sociedade civil também não questionaram esse valor e acabaram aderindo ao discurso hegemônico de que deveria cortar custos. Neste sentido, o ponto nodal em torno do qual elas se equivaleram foi do baixo orçamento. Caberia também a elas, portanto, a tarefa de pensar em como economizar. Neste sentido, sugeriu-se buscar parcerias através, por exemplo, de estudantes do curso de Secretariado, para auxiliar no credenciamento e na logística, tendo uma economia de, pelo menos, 50% (DIÁRIO DE CAMPO, 08/10/2015). Nos termos discursivos, trata-se de uma disputa em que se sobressaem os enunciados da escassez e de fazer o que fosse possível. Neste sentido, o discurso de defesa de se pautar a dimensão política do evento ficava como a diferença não-articulada. Não conseguia romper o ponto nodal em torno da falta de orçamento. Cabia, portanto, adaptar-se ao que ficou de orçamento. O discurso de “fazer o que fosse viável” acabou por assumir a função de pretensa universalidade. No dia 28 de outubro, foi falado que o edital de licitação ainda estava no setor jurídico da SecMulher-PE para ser aprovado. Não vi ninguém solicitando para ver o referido documento. Nesse mesmo dia, falou-se que só se definiria como seria a conferência quando se soubesse quanto a empresa vencedora da licitação teria para gastar (DIÁRIO DE CAMPO, 28/10/2015). Na reunião seguinte, no dia 03 de novembro, foi explicado que a equipe da SecMulher-PE fez uma visita ao Hotel Canarius, localizado às margens da BR-232, na altura do município de Garanhuns, na região Agreste do Estado, e que existia a possibilidade do evento ser realizado lá porque seria possível ser feita com R$ 300 mil, já que se tornaria possível agregar a hospedagem, alimentação e a própria conferência no mesmo local. Alegouse que não havia dinheiro e nem tempo para se fazer uma licitação e que, se fosse no Centro de Convenções, seria mais de R$ 600 mil. Com até R$ 300 mil, seria possível fazer uma licitação por meio de tomadas de preço dentro da própria SecMulher-PE. Seria feita outra licitação apenas para os serviços não atendidos pelo hotel (DIÁRIO DE CAMPO, 03/11/2018). Cabe destacar que, nessas duas reuniões citadas, não havia representantes da sociedade civil, que se espera que seja a fiscalizadora de uma questão desse nível que, além do orçamento em si, dizia respeito ao local do evento, ponto sobre o qual discorrerei adiante. Neste sentido, dentre os sujeitos governamentais, havia o consenso sobre o discurso de realização no Hotel Canarius e, na falta de embate com os discursos antagônicos, ficou como a única possibilidade. 225 No dia 10 de novembro, uma das representantes governamentais falou que haviam conseguido uma coisa boa, que era hospedar a sociedade civil no hotel do evento, junto às demais (DIÁRIO DE CAMPO, 10/11/2015). Se já estava previsto no regimento que o Estado arcaria com o evento, colocar a hospedagem dessa forma transmitia a ideia de favor ou de um bônus para a sociedade civil, que enfrentaria dificuldades se não pudesse contar com o financiamento público. Assim, os sujeitos políticos do governo assumiram a mudança do local de realização do evento como algo positivo, que resolveria os problemas financeiros e logísticos. A sociedade civil também concordou com esse discurso. No entanto, existe uma questão que precisa ser ressaltada: o contexto político que, já àquela época, estava ganhando os contornos do que se concretizaria posteriormente como impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff. No próprio evento estadual, dentre as moções aprovadas, duas foram de repúdio: uma ao impeachment e outra ao cantor recifense João do Morro por ter feito uma música em que desrespeitava e agredia a então presidenta. Segundo escutei nas conversas informais com militantes feministas, existia a possibilidade de se realizar algum ato político ou protesto ao lado do Centro de Convenções, chegando à Avenida Agamenon Magalhães, uma das principais vias do Recife, e, assim, as mulheres chamariam a atenção da população para o que estava acontecendo no país. É importante lembrar que, no mesmo mês, em dezembro de 2015, o pedido de impeachment de Dilma Rousseff foi aceito pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. A realização da IV CEPM-PE no hotel localizado às margens da BR-232 inviabilizaria qualquer tentativa de realizar um protesto com alcance social. Desta forma, a articulação discursiva em torno do local do evento foi construída a partir do discurso de viabilidade em termos financeiros e da possibilidade de hospedar todas as participantes – incluindo a sociedade civil. Da forma como o tema orçamento foi trabalhado, quase não deixava margem para qualquer tipo de outra abordagem sob o risco de ouvir que não havia outras possibilidades. O discurso em torno do corte de custos envolvia diversos aspectos: desde a quantidade de homenagens – e, consequente, confecção de placas -, à busca por parcerias e, principalmente, à quantidade de dias de realização do evento. Esse foi o significante em disputa por todos os sujeitos presentes nas reuniões. A sociedade civil defendia os três dias e, dentro do próprio governo, havia quem também alegasse que a qualidade das discussões políticas dependia de mais tempo e fazer em dois dias seria algo que poderia comprometer o aspecto político. Porém, a posição recorrente governamental era pela realização do que fosse viável diante do orçamento. Nessa disputa, quem exercia o papel de determinação era, na verdade, o governador do Estado. Em todas as reuniões em que estive presente, o discurso era de que o governador tinha dado a palavra de 226 que ia conseguir o orçamento e que a referida Conferência era meta prioritária da Secretaria Estadual da Mulher. A temática orçamento é transversal a outras, conforme veremos ao longo do presente texto. É interessante destacar que a mesma foi pauta de nove num universo de onze reuniões da Comissão de Organização da IV CEPM-PE e em duas num universo de seis do CEDIMPE. Ou seja, foi um assunto debatido sobretudo em espaço organizacional, restando ao Pleno do Conselho os informes. A questão de recursos interferiu também na participação das delegadas de outras partes do Estado. Segundo consta na ata da reunião ordinária do CEDIM-PE, realizada no dia 10 de dezembro de 2015, a última antes da realização da etapa estadual da conferência: Nesse momento, a conselheira [sociedade civil], pediu a palavra para informar que essa questão de viabilização do transporte para deslocamento até o local da realização da conferência está sendo também um grande problema para delegadas de municípios mais distantes, sobretudo do Sertão, que temem em grande número, não conseguirem ir até o local do evento por falta de recursos para o custeio do transporte rodoviário (CONSELHO ESTADUAL..., 2015b, p. 1-2). Em suas palavras, ela denuncia que estava havendo um boicote pesado à participação da sociedade civil por parte dos prefeitos sob a alegação de falta de recursos. Nesse momento, foi denunciado também que muitas gestoras dos OPMs não estavam repassando as informações para as delegadas da sociedade civil e que havia prefeitos que não queriam ter o custo de enviar as delegadas eleitas pelo município. Outra conselheira da sociedade civil alegou que muitos prefeitos não estavam sabendo que precisariam fornecer apenas o transporte e que caberia à SecMulher-PE reforçar o informe (DIÁRIO DE CAMPO, 10/12/2015). Isso contrasta com o que a Secretária da Mulher havia dito na reunião ordinária do CEDIM-PE realizada no dia 13 de agosto a respeito da participação dos prefeitos nas conferências municipais. Em sua perspectiva, estava havendo uma participação expressiva dos prefeitos nas conferências e isso significava uma atenção à pauta das mulheres, o que iria ajudar muito nas políticas públicas dos municípios. Essas posições divergentes são expressivas de antagonismos entre os diferentes sujeitos e que, numa situação em que as delegadas não dispõem de recursos para se deslocarem para o local por conta própria, acabam por serem excluídas do processo. Neste sentido, as denúncias feitas condizem com o papel de fiscalizador do Conselho. Como resposta, vê-se que: 227 Sobre isso, a Presidenta do CEDIM-PE, a Secretária da Mulher informou que a SecMulher-PE irá reforçar as comunicações aos municípios, sobretudo aos prefeitos, para que possam garantir de fato a vinda de suas delegadas até a IV CEPM-PE, conforme previsto no Decreto publicado quando da organização do evento (CONSELHO ESTADUAL..., 2015b, p. 2). Pelo discurso da Secretária da Mulher, passava-se a ideia de que não se tratava de um boicote à participação das delegadas na etapa estadual, mas sim um desconhecimento sobre o evento. Essa situação é ilustrativa de que a participação dos prefeitos se dava num momento oportuno. Quando precisariam participar de outra forma, através do transporte das delegadas, o orçamento se tornava justificativa de sua ausência nesse processo, pois, segundo foi colocado no CEDIM-PE, alegavam que os municípios não dispunham de recursos para isso. Num cenário de desconhecimento sobre como funciona o orçamento público, esse discurso se torna com certa facilidade o hegemônico, silenciando as contestações sob a justificativa de se cumprir com os trâmites burocráticos. 5.3.2 Palestras Dando continuidade à análise através dos temas, passo às palestras, que se dividem em dois momentos: nas conferências municipais e na etapa estadual. No primeiro, foi colocado pelas representantes governamentais que as gestoras dos OPMs solicitaram à SecMulher-PE a realização de uma palestra. Elas, então, pensaram que seria viável construir um modelo padrão, que poderia ser replicado em todos os eventos em que estivessem presentes e qualquer uma estaria apta a realizá-la, sendo da SecMulher-PE, conselheira do governo ou da sociedade civil. A ideia inicial era uma palestra com uma memória de todas as conferências, mas perceberam que a vontade dos municípios era algo a partir do tema da IV CNPM e com o foco da questão política. Como já estavam muito perto do início das conferências (era 09 de julho e a primeira estava marcada para 15), alegaram que construir algo coletivamente no CEDIM-PE iria demandar muito tempo e poderia ser devagar. Lançaram a proposta na reunião da Comissão de Organização que trabalhassem a partir do modelo construído pelas funcionárias da SecMulher-PE e que seria resolvido por meio de e-mail. Foi reforçada, inclusive, a necessidade de interlocução virtual das conselheiras porque a realidade é muito dinâmica. Sugeriu-se, também, fazer um grupo no aplicativo Whatsapp para as comissões (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Nesse momento, questionei-me: e quanto às mulheres que não têm acesso fácil à internet? Há conselheiras que moram em áreas distantes de centros 228 urbanos ou mesmo as idosas que podem enfrentar dificuldades com as tecnologias. Cheguei a ouvir também de se montar uma pasta no Google Drive para colocar os documentos da Conferência. Será que todas elas sabem o que é isso? Essa questão é indicativa de que, no processo de construção de documentos que demandassem o debate e possíveis tensionamentos ou disputas políticas, a forma encontrada para evitar os embates e, assim, favorecer a constituição de um discurso hegemônico foi desviando a discussão para o ambiente virtual, revelando, dessa forma, processos de exclusão de determinados sujeitos políticos. O próprio regulamento interno da IV CEPM-PE havia sido discutido virtualmente. É o que consta na ata da reunião do dia 12 de novembro: [...] [Representante governamental] lembrou a todas que o Regimento88 da IV CEPM-PE tinha sido encaminhado por e-mail e já aprovado, de modo que, para otimização dos trabalhos, prosseguirá à leitura da minuta da programação (CONSELHO ESTADUAL..., 2015a, p. 2). Devido à restrição orçamentária, foi falado que o apoio da SecMulher-PE seria moral e não financeiro. Diante disso, a Secretária da Mulher sugeriu que o órgão contribuísse com as gestoras municipais a partir do levantamento de indicadores locais para que as mulheres que fossem participar tivessem um perfil de sua cidade. Seria, em sua concepção, uma forma de orientar a discussão para as propostas e para não ficar numa “tempestade de ideias que não orienta a lugar nenhum”. São exemplos de indicadores: o município tem sindicato? Participou do Programa Chapéu de Palha? Em sua fala, seria uma forma de as mulheres serem orientadas em relação ao que querem para o município. Nessa mesma reunião ordinária do CEDIM-PE, apenas uma conselheira da sociedade civil argumentou no sentido de alertar para que não levassem muitos dados e tornasse o momento cansativo. Além da questão financeira, o tempo é usado também como elemento restritivo à participação da sociedade civil na construção da palestra. Foi falado que a realização de um modelo padrão permitiria que qualquer conselheira pudesse proferi-la. No entanto, essa afirmação encontra uma dificuldade: se as conselheiras representantes da sociedade civil não estavam conseguindo ir às conferências municipais por falta de recursos, como fariam a palestra? Como se garantir posições de sujeito que não estivessem restritas ao governo de Pernambuco? Cabe ressaltar que os municípios que estavam solicitando esse apoio eram os menores, que não conseguiriam sozinhos realizar o 88 As participantes das reuniões da Comissão de Organização da IV CEPM-PE e do CEDIM-PE intercambiam os termos “regimento” e “regulamento”. No entanto, para fins de tornar clara a diferença, utilizo regimento para me referir ao documento lançado junto ao decreto de convocação das conferências municipais, feito pela Secretaria Estadual da Mulher e divulgado no dia 08 de julho de 2015 (PERNAMBUCO, 2015), e que as rege. Já por regulamento, entendo que é o que texto direcionado à etapa estadual, o que a regula. 229 evento. Dos sete municípios que acompanhei, cinco tiveram suas palestras proferidas por pessoas de destaque na área e que não eram integrantes da SecMulher-PE. Porém, eram municípios de destaque em cada região89 e contavam com a presença de representantes da SecMulher-PE em todos eles. Sobre a participação da referida Secretaria da Mulher, ouvi numa das reuniões do FMPE que a estratégia das conferências anteriores estava presente na atual: articulação do governo do Estado com as eleições municipais do ano seguinte e que a presença da SecMulher-PE nas conferências municipais tinha um propósito que ia além do suporte a elas (DIÁRIO DE CAMPO, 02/09/2015). Isso demonstra posições de sujeito divergentes e antagônicas que revelam projetos políticos distintos. Na disputa em torno do ponto nodal conferência, o que vai estar em questão é o sentido de participação social e políticas públicas. Porém, trata-se de um embate em que o fator financeiro implica em limitações para um dos sujeitos. Nesse caso, a Secretária Estadual da Mulher conta com o aparato estatal e a legitimidade de fazer uma fala de destaque nos eventos sem uma parte das dificuldades que a sociedade civil enfrenta, como disponibilidade de estar ali e arcar com as despesas. As condições de articulações em torno de projetos políticos e políticas públicas, então, são desiguais e comprometem o sentido de governo e sociedade civil decidindo juntos em torno de políticas públicas. Diante do discurso de crise financeira, a sociedade civil e, aqui mais especificamente, através de organizações não governamentais e movimentos feministas, precisa arcar com custos que deveriam ser garantidos pelo Estado. Na impossibilidade de bancar a presença nesses espaços, os sujeitos que assumem a função significativa do CEDIMPE, certamente, são os governamentais ou integrantes da sociedade civil que residam na região onde acontece a conferência e que tenham como se deslocar. O modelo da palestra foi mostrado na reunião da Comissão de Organização, realizada no dia 13 de agosto, e a apresentação falava sobre a importância dos Conselhos na implementação de políticas para as mulheres, as coordenadorias e o quantitativo dos órgãos no Estado. A representante governamental argumentou que o tema da IV CNPM pedia dados. Falou, novamente, que as sugestões de alterações na palestra e no texto-base para Conferência fossem feitos por e-mails. Por outro lado, uma das conselheiras da sociedade civil disse que não tinha pensado que seria apresentada a estrutura da SecMulher-PE, mas sim os temas relacionados à Conferência Nacional. Ela achava, por exemplo, que iam mostrar dados de 89 Na Região Metropolitana do Recife: Olinda, Recife e Ipojuca; No Agreste: Caruaru; No Sertão: Afogados da Ingazeira; na Zona da Mata Sul e Norte respectivamente: Palmares e Vitória de Santo Antão. Desses, as palestras magnas foram proferidas por representante da SecMulher-PE em Palmares e Ipojuca. Nos demais, havia representação, que fez fala, mas não palestra. 230 quantas mulheres vereadores havia no Estado, qual seria o maior problema para se enfrentar naquele momento, já que haviam discutido que seria importante falar sobre a participação política das mulheres. A conselheira disse que achou um material cansativo e que a maioria das conferências acontece em apenas um dia. Além disso, o que estava ali era papel da coordenadora regional, logo, funcionária da SecMulher-PE, não do CEDIM-PE. Foi sugerida uma apresentação menor e que se levantassem os dados de participação na política por região para que as mulheres refletissem sobre o que se precisava melhorar. Foi falado também da importância de se pensar na participação das mulheres na política. Sobre esse assunto, vou retomá-lo no subtópico acerca da reforma política. Na palestra a que pude assistir, na Conferência Municipal de Palmares, realizada por uma representante da SecMulher-PE, vi uma explicação sobre o que eram conferências, o que se esperava delas, os Conselhos dos Direitos das Mulheres, outras estruturas institucionais e questionamentos para refletir, debater e propor o debate (DIÁRIO DE CAMPO, 01/09/2015). Isso está relacionado à interpretação que presenciei numa das reuniões do FMPE de que, da forma como as conferências estavam acontecendo, atendiam ao tema da CNPM, mas não se estava discutindo as políticas dos municípios. Isso, na leitura de quem afirmou, podia estar relacionado ao fato de as gestoras não terem o poder de decisão da política nos municípios onde atuavam e, por isso, colocarem a responsabilidade de se fazer política para a SecMulher-PE. Foi acrescentado que as conferências municipais e estaduais pareciam ser pensadas exclusivamente como acúmulo de propostas de políticas públicas e eleição de delegadas para etapa nacional (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Essas questões revelam uma visão procedimental do evento e não do seu papel político para aquela localidade. Isso vai ao encontro da avaliação positiva feita pela representação da Secretaria da Mulher do Recife no Conselho Municipal da Mulher: a de que dizer que o evento cumpriu com o seu papel é enxergá-lo a partir de uma perspectiva de discutir propostas e eleger delegadas para etapa seguinte. Da forma como o modelo de palestra havia sido pensado remontava a repasses da própria SecMulher-PE, ou seja, era uma defesa do discurso governamental. O movimento social analisado, o FMPE, traz a necessidade do debate em torno do que se espera de políticas públicas. São discursos divergentes e que implicam em articulações distintas, conforme veremos no decorrer deste e do próximo capítulo. A segunda parte relacionada à palestra diz respeito à etapa estadual. Havia uma palestra magna com o tema “Mais direitos, participação de poder para as mulheres” e cada um 231 dos cinco grupos de trabalho90 contava com uma palestra introdutória sobre aquele tema, de cerca de 20 minutos, no intuito de fomentar o debate. A sugestão da Secretária da Mulher foi que fosse dado um roteiro dos pontos a serem abordados por quem fosse fazer as palestras no intuito de guiar sobre o que gostariam de focar. Na sociedade civil, uma das conselheiras afirmou que seria preciso ver o que havia passado pelas conferências municipais, como educação e segurança para orientar as palestrantes. Outra conselheira também da sociedade civil disse que a Comissão de Organização poderia pensar e discutir com quem fosse fazer a palestra. Quem fez a sugestão dos nomes foram as representantes da SecMulher-PE nas reuniões da Comissão de Organização da IV CEPM-PE e do CEDIM-PE, alegando que são pessoas de referência na área e o objetivo seria trazer questões pertinentes. É o que consta na ata da reunião do dia 12 de novembro: Mais à frente, durante a leitura dos Eixos Temáticos, [Representante da SecMulher-PE] lembrou às conselheiras que as sugestões de nomes para palestrantes foram apontadas a partir da rede de contatos que as servidoras e servidores da SecMulher-PE possuíam e que podiam ser, quando não ratificadas, aprimoradas pelo Conselho (CONSELHO ESTADUAL..., 2015a, p. 2). Não cito os nomes para não expor as palestrantes, porém é de fundamental importância chamar a atenção para o fato de que todas tinham alguma inserção direta ou já fizeram parte dos governos municipais e estadual e não foi solicitado principalmente à sociedade civil para que dessem sugestões. Como o trecho citado aponta, quem pensou nos nomes não foi a sociedade civil e cabia a ela, naquele momento de reunião, confirmá-los ou aprimorá-los. Questiono: quem definiria os critérios do que seria o aprimoramento? Ainda que existisse uma ideia de que as reuniões seriam espaços propositivos, o que eu pude ver foi que funcionava como momentos de aprovação de resoluções colocadas pelo governo e, ainda que o debate fosse feito via e-mail, não se estendia aos encontros presenciais. Isso revela uma correlação de forças desigual, em que um dos lados, a sociedade civil, é colocada como uma convidada a quem cabe dar sugestões, mas não pode interferir substancialmente no processo. Uma das conselheiras da sociedade civil criticou que as palestrantes fossem do governo e 90 Eram cinco eixos, inspirados no regimento da IV CNPM: Eixo 1 – Estruturas institucionais e políticas públicas desenvolvidas para as mulheres: a) Descentralização e interiorização; b) Financiamento da política de gênero; Eixo II – Diretrizes para a Política Metropolitana; Eixo IV – Acesso a direitos e intersetorialidade; Eixo V – Mulheres: participação, poder político e autonomia econômica (IV CONFERÊNCIA ESTADUAL..., 2015, p 4). 232 disse que, da forma como estava, configurava uma “conferência chapa branca”, expressão que remete a uma parcialidade do espaço, à manipulação (DIÁRIO DE CAMPO, 10/11/2018). Sendo assim, retomo as perguntas feitas no primeiro capítulo desta tese: Quem tem direito à voz? Quem consegue ter participação nas tomadas de decisão? Da parte das conselheiras da sociedade civil, uma delas avaliou que não havia problema em se colocar palestrantes do governo, pois se tratavam de pessoas de referência para mobilizar e trazer questões interessantes para o debate. Ela reiterou que a escolha de palestrantes normalmente é feita com as que têm mais identificação e mais experiência na área. Reitero as questões postas no primeiro capítulo no que tange à representação: Como é definido quem vai representar ou, dito de outra forma, quem está apto a representar? Que projetos políticos estão envolvidos? Quem diz os sujeitos políticos que são referências naquela área? À sociedade civil, parece ter ficado a possibilidade de discutir o conteúdo das palestras, mas a definição de quem estaria no destaque, como a figura das palestrantes, não lhe foi oferecida nas reuniões presenciais. Portanto, os interesses a serem representados foram os de quem conseguiu articular as palestras como ponto nodal e, por sua vez, a noção de pessoas aptas a estarem naquela posição de destaque. Uma das representantes do governo chegou a sugerir na reunião de 10 de novembro que fosse colocada uma dupla de palestrantes do governo e da sociedade civil para dar a oportunidade desta última participar. Isso reforça a ideia de que a sociedade civil passou da posição de organizadora, através dos assentos no Conselho Estadual, à de convidada. Essa concepção implica em diversas questões de protagonismo e ao discurso hegemônico que, no caso aqui estudado, foi atribuído ao governo de Pernambuco. A Secretária da Mulher, na reunião ordinária do CEDIM-PE, no dia 10 de dezembro, colocou que as pessoas que foram chamadas para proferirem as palestras estavam comprometidas com a luta das mulheres, com as políticas públicas e com a causa feminista. Complementou dizendo que não havia nenhuma inimiga do segmento (DIÁRIO DE CAMPO, 10/12/2015). Um aspecto me chama a atenção: o sujeito que define quem segue esses critérios colocados pela Secretária da Mulher e presidenta do CEDIM-PE são justamente as funcionárias da SecMulher-PE, conforme foi colocado no trecho contido na ata da reunião. Isso revela mais um reflexo de que, no contexto analisado, não houve uma construção paritária entre sociedade civil e governo na IV CEPM-PE. Ou, de acordo com a Teoria do Discurso trabalhada por Laclau e Mouffe, quem teve o poder de articular, de estabelecer uma relação entre elementos de forma que fixasse em momentos e modificasse assim o sentido da IV CEPM-PE foram as representantes governamentais. Essa articulação significou a 233 hegemonia de um setor diante de outro. Neste sentido, passou-se a ideia de totalidade em que a sociedade civil que ocultou as diferenças da sociedade civil e que a inseriu num processo, mas a deixou sem voz. Para a palestra magna, feita no segundo dia da conferência, 17 de dezembro, logo após a leitura e aprovação do regulamento, foi pensado um nome “de peso”. Uma das representantes governamentais disse que estavam abertas a sugestões. Porém, a partir do momento que colocaram o nome, que era a principal homenageada da Conferência, não houve objeções. Tratava-se de quem ocupou anteriormente a Secretaria da Mulher de Pernambuco, desde a sua abertura, em 2007, até 2014. Era uma pessoa de notável referência. No entanto, era alguém que integrou o governo. Questionei-me por que a mesma pessoa ocuparia duas posições de destaque naquele evento: a homenagem principal e a palestra magna e pela indicação desse sujeito político não ter sido feita pela sociedade civil. Isso reforça que foi o evento protagonizado pelos sujeitos governamentais e que a sociedade civil atuou como uma coadjuvante. Isso remete ao próximo subtópico acerca das convidadas e homenageadas. 5.3.3 Convidadas e homenageadas Em relação às convidadas, havia 20 vagas disponíveis. Na reunião ordinária do CEDIM-PE, ocorrida no dia 12 de novembro, pouco mais de um mês antes da realização da etapa estadual, foi colocado pela representante da SecMulher-PE que as funcionárias que estavam na organização precisavam ter o mínimo de autonomia para indicar os nomes caso as indicadas em reunião não pudessem estar presentes. Como resposta, uma das integrantes da sociedade civil defendeu que, se os nomes indicados não pudessem, as conselheiras deveriam ser consultadas por telefone. A Secretária da Mulher sugeriu que fosse convidada a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres e todas as gestoras do Nordeste, o que ela mesma riu depois dizendo que parecia loucura, mas que ela queria convidar pessoas de poderes com os quais elas lidam para dar sustentação à política. Depois, ela colocou que seria preciso ter ciência do perfil da pessoa que se queria convidar e que havia uma quantidade limitada de vagas. Uma das conselheiras da sociedade civil também defendeu a presença da ministra a partir da ideia de que ao estar presente significava o reconhecimento de fato e de direito da conferência por parte do Governo. Neste sentido, foi uma equivalência com a proposta colocada pela SecMulher-PE. Na ocasião, acrescentaram-se mais dois nomes de integrantes de organizações não governamentais que integram o FMPE, pois podem fazer a diferença. A 234 mesma conselheira defendeu que pesquisadoras tivessem lugar garantido, pois ter alguém fazendo pesquisa sobre elas era um motivo de orgulho e uma forma de retratar a institucionalidade delas91 (DIÁRIO DE CAMPO, 12/11/2015). Na última reunião, antes da IV CEPM-PE, a representante da SecMulher-PE falou de sugestões de dez convidadas. Exceto eu, como pesquisadora e nome defendido por uma integrante da sociedade civil, as demais eram indicadas pela SecMulher-PE. Foi falado também que havia duas gestoras que pediram para participar, uma de Tocantins e a outra de Abreu e Lima, da Região Metropolitana do Recife. Ou seja, seria a possibilidade de mais duas agentes governamentais e isso poderia ser o indicativo de posições de sujeito que seriam construídas no evento. Por outro lado, uma das integrantes da sociedade civil colocou que as 20 vagas eram do Conselho e que qualquer conselheira poderia dispor das mesmas. Ela defendeu que fossem destinadas vagas de convidadas às participantes da Conferência Livre de Pernambuco “Pela Vida das Mulheres”, realizada por seis coletivos e movimentos de mulheres e feministas no Recife no dia 07 de dezembro com a participação de 162 mulheres oriundas de 24 municípios (FÓRUM..., 2015a). A conselheira alegou que as que fizeram a Conferência Livre, incluso ela, tiveram o objetivo de melhorar as propostas de políticas públicas da esfera municipal à nacional e que seria importante convidá-las. A Secretária da Mulher discordou e disse que, se sobrassem vagas, poderiam ser convidadas as que participaram das conferências livres, mas que não era uma obrigação. Não presenciei, no entanto, nenhuma outra contestação sobre os nomes sugeridos pelo próprio Governo (DIÁRIO DE CAMPO, 10/12/2015). Esses fatores mostram, nos termos colocados pela Teoria do Discurso, que, diante dessas posições de sujeito, havia discursos antagônicos. De um lado, a sociedade civil exigia alguma influência na indicação dos nomes e, de outro, utilizava-se o argumento da falta de vagas para fazer que elas desistissem das indicações. Cabe destacar que, no relatório final da IV CEPM-PE, consta que o total de participantes foi de 518 mulheres, entre delegadas da sociedade civil, do poder público estadual e municipal, convidadas e imprensa. Desses, 470 eram delegadas, sendo 219 da sociedade civil, 177 do poder municipal e 74 do estadual (PERNAMBUCO, 2016, p. 14). Se subtrair esses números, é possível perceber que havia 48 não delegadas que podem nem 91 Até essa data, não havia garantia de que eu poderia participar como observadora no evento. Assim como na Conferência Municipal do Recife e na Nacional, a justificativa era falta de recursos. Mesmo estando presente nos eventos, vivenciei dificuldades de diversas ordens que me remeteram a uma falta de reconhecimento do meu papel ali. Além do caso relatado a respeito da etapa municipal no capítulo 3, na IV CNPM, só tive a resposta de que poderia participar duas semanas antes e, no credenciamento, não me deram nenhum material, pois observadora não receberia. No fim do primeiro dia, depois de eu muito insistir e dizer que era necessário para o que eu estava fazendo ali, disseram que me entregariam. Passei a leitura do regulamento, por exemplo, lendo a partir do documento emprestado de outras delegadas, o que dificultou a atividade que estava desempenhando naquele momento. 235 terem sido colocadas na condição de convidadas, mas funcionárias do órgão, por exemplo. No entanto, não vi em nenhuma reunião em que estive presente a discussão sobre quem não estaria enquadrada como convidada. São quase 30 vagas, portanto, que não passaram por definição em reuniões e podem ser indicativos da relação hegemônica construída pela SecMulher-PEem relação aos pedidos feitos pela sociedade civil para indicar os seus nomes. Sobre essa questão, envolvendo as vagas, é interessante observar que, no relatório da IV CEPM-PE, constam apenas duas conferências livres no estado de Pernambuco: a Conferência Livre de Abreu e Lima, realizada no dia 30 de novembro de 2015 na Câmara dos Vereadores, com 45 participantes com o tema “Enfrentamento à violência contra a mulher”; a segunda foi a Conferência Livre de Fernando de Noronha, realizada no dia 14 de dezembro de 2015 no Centro de Geração de Renda, com 41 participantes e tema “Políticas Públicas: Saúde, Direito da Mulher e Moradia” (PERNAMBUCO, 2016, p. 23). A ausência da Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”, no relatório, pode ser devido a dois fatores: a coordenação do evento pode não ter enviado o relatório para a organização da etapa estadual e/ou essa não a reconhece como integrante desse ciclo de conferências. A de Abreu e Lima foi feita num espaço governamental – a Câmara dos Vereadores –, e a de Fernando de Noronha teve articulação da SecMulher-PE, conforme eu presenciei durante as reuniões do CEDIM-PE. Ou seja, elas são chamadas livres provavelmente pelo formato como foram convocadas e por não elegerem delegadas, mas estão vinculadas aos governos. Já a “Pela Vida das Mulheres” foi organizada exclusivamente por movimentos sociais e suas participantes são integrantes da sociedade civil. A ausência no relatório oficial significa um esquecimento dessa etapa, um não-reconhecimento de um evento realizado e protagonizado pela sociedade civil. É a diferença que fica à margem do discurso de conferências livres. Assim como foi visto no Conselho da Mulher do Recife, há um indicativo de uma relação hegemônica de um sujeito sobre o outro. Vou me debruçar acerca desse assunto no próximo capítulo, que é fechamento desta tese. Uma das conselheiras da sociedade civil mais uma vez assumiu a posição de sujeito de movimento social ao argumentar que deveriam convidar mulheres que construíram a referida Conferência Livre e que exercem um papel político importante para o referido segmento. Ela reiterou que as convidadas são mulheres comprometidas com a política e defendeu que elas pudessem indicar alguém de sua organização que fizesse a diferença na vida das mulheres, mas que não tinham saído como delegadas. Como resposta, uma conselheira da sociedade civil respondeu positivamente, dizendo que gostaria de indicar alguém. Foi colocado, por 236 outra integrante da sociedade civil, que o intuito de haver convidadas não seria apenas de observação, mas de contribuição e que o seu interesse era o de construir uma discussão política e propostas para a Secretaria da Mulher. A mesma ponderou, ainda, que, diante da conjuntura, seria muito difícil conseguir fazer uma conferência que construísse políticas públicas para as mulheres, pois além de o contexto ser imoral para o segmento, estava destruindo a presidenta e que foi eleita muito pelo empenho dos movimentos de mulheres. Por isso, em sua concepção, não deveria concentrar em quem é governo ou sociedade civil. Seria uma conferência de todas as mulheres, já que os próprios OPMs foram conquistas delas. Trata-se de uma defesa de articulação em torno do sujeito “mulheres”, mas que pudessem contribuir com a discussão política naquele momento. Diante disso, é uma defesa mais específica do que a feita pela SecMulher-PE. Esta argumenta que seja alguém de destaque na área das políticas para as mulheres, num discurso mais institucionalizado. A integrante de movimento social, por sua vez, ressalta a importância da contribuição para o contexto político. Vê-se um discurso mais institucionalizado e outro mais politizado. No entanto, ainda que a sociedade civil conseguisse indicar mulheres, de acordo com esses critérios, só restavam três vagas de convidadas, pois as demais foram, em sua grande parte, ocupadas pelas homenageadas ou suas representações, ou seja, indicações da SecMulher-PE (DIÁRIO DE CAMPO, 10/12/2015). Ou seja, prevaleceu o discurso institucionalizado. Outra conselheira da sociedade civil colocou a preocupação de o evento ser esvaziado e reiterou a proposta de uma das conselheiras para que se pensassem em pessoas dentro dos coletivos que demonstrassem a intenção de levar propostas de construção das conferências. Uma quarta conselheira da sociedade civil disse entender essa proposta, mas que no Conselho já existiam representações de mulheres e que havia dois fatores impeditivos de se convidar as integrantes de coletivos: o orçamento e o limite de 20 vagas, colocadas no regimento. Portanto, em sua leitura, não poderiam destinar vagas ociosas dos municípios para as convidadas, conforme proposta de duas conselheiras. Ela também defendeu que o convite às participantes das conferências não oficiais – livres – é algo positivo porque elas podem contribuir (DIÁRIO DE CAMPO, 10/12/2015). Vê-se que quem tem o poder de articular as que estão aptas a representar não é a sociedade civil, pois, embora as representantes governamentais tenham definido as 17 vagas de convidadas, as três que restaram ser definidas precisavam seguir critérios definidos em certa medida pela SecMulher-PE. A observação que coloquei referente às 48 mulheres que estiveram presentes, além das delegadas, estão relacionadas a essa questão. Para a sociedade civil, parecia haver empecilhos em relação às 237 indicações, o que fazia que seus discursos ficassem à margem do ponto nodal e não conseguissem romper as barreiras colocadas pelo sujeito antagônico – as agentes governamentais. Mas, o Governo Estadual podia fazê-las e apenas informar às conselheiras, assumindo, assim, as convidadas como seu ponto nodal. Uma quinta conselheira da sociedade civil também defendeu que as convidadas deveriam ser mulheres que levassem contribuições, sobretudo, diante do contexto político e que deveria se pensar na qualificação da conferência. Ela também defendeu que fossem destinadas vagas às participantes das conferências livres (DIÁRIO DE CAMPO, 10/12/2015). A Secretária da Mulher defendeu o sistema de representação, pois não caberiam todas as indicações (DIÁRIO DE CAMPO, 10/12/2015). Vê-se que se tratou de uma estratégia para transmitir a ideia de que foi um processo em que todas tinham igual poder de indicar quem gostariam que representasse e, assim, não se transmitia a ideia de relações de poder. No final da discussão, foi indicado que as funcionárias da SecMulher-PE, que estavam na organização do evento, iriam entrar em contato com as indicações de convidadas, as participantes das conferências livres. Na ata da referida reunião, consta: [...] [Representante da SecMulher-PE] prosseguiu no repasse dos informes sobre a IV CEPM-PE, dando ao conhecimento das conselheiras que, das vinte vagas previstas para serem ocupadas por convidadas (incluindo as homenageadas ou, na ausência delas, suas representantes), restavam três vagas nesses espaços remanescentes. [Conselheira da sociedade civil] sugeriu que essas vagas fossem ocupadas por representantes de organizações da sociedade civil de mulheres que têm assento no CEDIM-PE, mediante sorteio. Sobre isso, a [Secretária da Mulher] interveio e sugeriu, em contraponto que essas vagas fossem ocupadas por representantes de conferências livres, a exemplo da que aconteceria em Fernando de Noronha no próximo dia 14. Nesse sentido, [Conselheira da sociedade civil] acatou a sugestão e elogiou a ideia, sobretudo a de inclusão entre as convidadas uma representante de Fernando de Noronha, reconhecendo a necessidade de conferir visibilidade à organização das mulheres na ilha (CONSELHO ESTADUAL..., 2015, p. 2). Notei uma inconsistência entre o que registrei no diário de campo e o que foi colocado na ata. A conselheira da sociedade civil insistiu que as vagas fossem destinadas às organizações integrantes do CEDIM e às participantes das conferências livres, conforme relatei anteriormente. Essa mesma conselheira é uma defensora da institucionalização em Fernando de Noronha e reiterou a importância de haver uma representação do município. Porém, a Secretária da Mulher não defendeu que as vagas fossem destinadas às participantes 238 das Conferências Livres como um todo. Ela enfatizou que deveriam convidá-las caso sobrassem vagas. O que parece é que, naquele momento, ela tentou fazer uma crítica ao Fórum de Mulheres de Pernambuco, um dos movimentos que organizou a Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” e que a referida conselheira da sociedade civil faz parte. Na fala da Secretária, seria possível que as participantes da Conferência Livre não quisessem estar presentes na etapa institucional (a CEPM-PE) e que já haviam aprovado propostas e enviadas à Comissão de Organização da CNPM. O que se falou sobre Fernando de Noronha foi em formato de informe de que haveria Conferência em Fernando de Noronha e que seriam assinados o decreto de criação da coordenadoria da mulher e a nomeação da coordenadora. Portanto, seria uma etapa livre atrelada a um caráter governamental do evento. Houve a sugestão de indicação de uma representante de Fernando de Noronha como convidada, que foi aprovada. Porém, não pude perceber elogio à ideia por parte dessa conselheira da sociedade civil. O que se vê nessa situação, assim como na esfera municipal, é que as posições de sujeitos revelam discursos de caráter burocrático-organizacionais e de representação política. Isso diz respeito ao tema seguinte sobre as homenageadas. Mas, de antemão, traz algumas questões. Das 20 vagas, sobraram apenas três para que o CEDIM-PE, como um todo, resolvesse, ou seja, para que 27 conselheiras titulares chegassem num entendimento. A sociedade civil se articulou em torno do ponto nodal “contribuição política” para o evento diante de um contexto político delicado, de possível impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A Secretária da Mulher utilizou os discursos de limite de vagas e da necessidade de representação. São discursos que, no decorrer do debate, assumiram um caráter antagônico, pois a contribuição política foi associada, sobretudo, à participação na Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”, convocada por movimentos sociais expressivos no Estado de Pernambuco. Nesse contexto, apresentou-se como um discurso antagônico ao mais burocrático da organização, colocado diversas vezes pela SecMulher-PE. Eram discursos que remetem à politização, de um lado e, do outro, às questões formais e operacionais do processo e que levaram a uma definição posta no documento oficial – a ata da reunião – que remete às vagas para conferências livres, mas ressaltando a edição de Fernando de Noronha. Diante das posições de sujeito divergentes, o consenso – conflituoso – se deu em torno da reivindicação da sociedade civil de destinar as vagas das convidadas às participantes da referida conferência livre. Porém, ainda assim, não houve um reconhecimento da realização da Conferência Livre 239 “Pela Vida das Mulheres” na ata da referida reunião nem no relatório final da IV CEPM-PE, conforme sinalizei anteriormente. Considero que a temática “homenageadas” está ligada à das convidadas no sentido de que, além das primeiras fazerem parte das vagas destinadas às segundas, ambas tiveram suas indicações feitas majoritariamente por integrantes da Secretaria Estadual da Mulher. Na reunião da Comissão de Organização da IV CEPM-PE, no dia 08 de outubro, foi sugerida, por uma das integrantes da SecMulher-PE a homenagem à Cristina Tavares, ex-deputada federal falecida em 1992. Porém, uma das conselheiras da sociedade civil argumentou que ela já havia sido homenageada em muitos outros espaços. Depois, a mesma integrante do Governo sugeriu a homenagem a Mauriceia, uma liderança comunitária do bairro do Ibura, no Recife, e que havia sido assassinada poucos dias depois da participação da Pré-conferência da Mulher, que aconteceu em 08 de agosto de 2015. Alegava-se que ela fez diferença na vida das mulheres daquela localidade. Porém, o que ouvi em espaços do Fórum de Mulheres de Pernambuco foi que ela era uma pessoa autoritária e que causou muitos danos à população local por meio de ameaças e violência e que a mobilização para referida pré-conferência, que contou com 300 mulheres, foi feita dessa forma (DIÁRIO DE CAMPO, 2015). Na reunião da Comissão de Organização, no dia 10 de novembro, foi colocada a possibilidade de, ao invés de ser homenagem, fosse feita uma menção honrosa numa alusão à militância dela (DIÁRIO DE CAMPO, 10/11/2018). As funcionárias da SecMulher-PE pareciam não saber dessa versão e sustentaram a homenagem ao longo dos encontros. A ideia de colocá-la numa posição de destaque pode ter a ver, inclusive, com alguma questão político-partidária. Como eu também estava na pré-conferência onde ela se elegeu delegada para a etapa estadual, ouvi versões que havia interesses partidários em pagar ônibus para buscar as mulheres em casa e levá-las à conferência e que Mauricéia estava à frente disso. Já na Conferência da Mulher do Recife, não vi essa proposta de homenagem sendo cogitada. No Conselho Municipal, estavam mulheres que a conheceram. Na reunião da Comissão de Organização da IV CEPM-PE, realizada no dia 13 de outubro, além do nome de Cristina Tavares, foi colocado, como sugestão de homenagem, o de Cristina Buarque, ex-secretária estadual da mulher. A ideia era homenagear outras pessoas, o que foi respondido por uma das integrantes da SecMulher-PE que isso significaria mais gastos, pois haveria o custo com placas. Essa situação reitera a posição assumida pelas representantes governamentais de um sentido burocrático e de gestão do evento. O orçamento se torna um elemento cerceador até mesmo das próprias indicações do governo. Quanto ao 240 nome de Cristina Buarque, foi sugerido que estivesse no destaque, ainda que não precisasse de uma hierarquia entre as homenageadas (DIÁRIO DE CAMPO, 13/10/2015). Não precisaria de hierarquia entre as demais, porém o nome dela seria o principal, o que mostra uma contradição nesse argumento. A partir do momento em que se coloca uma pessoa em destaque, já existe uma hierarquia. Ela, inclusive, estava numa posição diferenciada, pois foi quem proferiu a palestra magna da conferência, conforme coloquei no subtópico anterior. A homenagem vem a reiterar um destaque que dá uma simbologia de caráter governamental ao evento. Nesse mesmo dia, a única conselheira da sociedade civil que estava presente concordou com a homenagem à ex-secretária (DIÁRIO DE CAMPO, 13/10/2015). Na ata da reunião ordinária do CEDIM-PE, do dia 12 de novembro, consta: Inicialmente, [Representante da SecMulher-PE] informou que a sugestão para a homenageada desta conferência era Cristina Buarque, ex-Secretária da Mulher de Pernambuco, por toda sua trajetória pessoal de militância feminista e atuação à frente da SecMulher-PE, o que foi acatado por todo o Conselho (CONSELHO ESTADUAL, 2015a, p. 2). Vê-se aí o que Butler (2010), Laclau e Mouffe (2015) falam por universalidade e as relações de poder que estão por trás dela. A ideia que foi posta é que todo o Conselho aprovou o nome da homenageada e ainda a partir da justificativa de sua trajetória de vida, profissional e de militância. Porém, na condição de pesquisadora, não vi possibilidades de contestação à indicação. Mais ainda: não notei, no plano presencial, o pedido de sugestões de nomes indicados pela sociedade civil. Se isso aconteceu, foi através de e-mails e, conforme já coloquei nesta análise, as discussões e deliberações através de e-mail revelam algo problemático na condução do referido Conselho. Se as discussões são feitas no ambiente virtual, as reuniões presenciais se mostram como momentos apenas de sua aprovação. Neste sentido, cabe destacar que conselheiras ou determinados projetos políticos são excluídos. Ou, nos termos de Laclau de Mouffe, os elementos não vão ter condições de disputar os pontos nodais ou se fixar em momentos, que são os sentidos em torno da Conferência de Políticas para as Mulheres. Na reunião da Comissão de Organização da IV CEPM-PE, no dia 17 de novembro, foi novamente colocado o nome de Cristina Buarque e que não contaria porque ela “já era da casa”, numa referência à própria Secretaria Estadual da Mulher. Foi sugerido que seriam duas homenagens por região: Cristina Tavares e Aurora Duarte (Agreste); Elizete Silva e Naíde Teodósio (Zona da Mata); Cacique Dorinha e Maria Elena Alencar (Sertão) e Mauricéia Dias 241 e Dona Prazeres (Região Metropolitana do Recife) (DIÁRIO DE CAMPO, 17/11/2015). Como a homenagem principal, ficaria Cristina Buarque. É importante ressaltar que esses nomes foram colocados nas reuniões já em formato de encaminhamento. Não vi nenhuma discussão e nem tensão em torno da definição dos mesmos, o que me leva a pressupor que, se houve alguma possibilidade de discussão, a mesma se deu via e-mail, o que pode não ter contado com uma adesão majoritária, tal como foi a discussão do regimento. Na ausência de uma posição ou controle social da sociedade civil, quem preenche o significante vazio “homenagem” é o Governo Estadual, que é que tem o poder de articular em torno desse ponto nodal. Essa situação revela relações de poder e uma correlação de forças que compromete o intuito do controle social. Isso remete a um discurso hegemônico em que há homenageadas da sociedade civil, mas que são indicadas pela gestão. É uma escolha que prioriza questões institucionais, burocráticas, pois os argumentos é que são pessoas que fizeram alguma diferença na vida das mulheres. Porém, não se discutiu nas reuniões que critérios seriam usados para definir quem fez diferença na vida das mulheres. 5.3.4 Reforma política e contexto político Por parte do Governo Estadual, uma das conselheiras dava bastante ênfase à necessidade da reforma política. Em suas palavras, as mulheres estavam com sede de discutir reforma política, que só votar e eleger mulheres não resolveu os problemas que envolvem o segmento e que existia uma crise de participação e representação. Como resposta, uma representante governamental, que não era conselheira, afirmou que seria preciso capacitar politicamente as gestoras e que as mulheres haviam sido cooptadas pelos governos (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Esses enunciados indicam uma visão burocrática acerca do que a conselheira colocou. Capacitar é tornar o outro capaz a fazer algo. Logo, não se capacita politicamente. O que se faz é formar para a política porque a capacidade qualquer pessoa possui. Política não é uma técnica, mas sim uma experiência. Além disso, a ideia de cooptação, associada à relação do governo com os movimentos sociais nas gestões petistas à Presidência da República, remete a uma falta de autonomia e agência desses sujeitos. Essa fala foi reforçada por uma das conselheiras da sociedade civil que usou as expressões “a gente morreu na organização contra o governo” para dizer que elas não tinham mais força política (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). 242 Uma das conselheiras da sociedade civil falou da importância de se discutir a política com as mulheres no interior, que sofrem muito nesse sentido e que o movimento de mulheres tem muita força. Ela acrescentou que poucas coordenadoras conhecem o trabalho do referido movimento e que têm pouca força junto aos prefeitos e vereadores (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Na reunião seguinte, outra conselheira salientou que as gestoras dos OPMs se fecham e acham que as mulheres de movimento querem tomar os seus lugares (DIÁRIO DE CAMPO, 13/08/2015). É importante lembrar que, como colocado no capítulo 2, os OPMs são órgãos responsáveis pela execução das políticas públicas que tenham o objetivo de garantir direitos, promover a igualdade e incorporar as mulheres como sujeitos políticos (GUIA..., 2016, p. 6). Neste sentido, ao se fechar para a sociedade civil, as representantes do poder público as tratam como inimigas. São relações antagônicas, que Mouffe nomeia como “luta entre inimigos”. Para ela (MOUFFE, 2005), inimigo é aquele cuja opinião deve ser eliminada em nome do consenso. Como alternativa, deveria acontecer a “luta entre adversários”, em que sua opinião, ainda que divergente, vai ser respeitada e contra-argumentada. Trata-se do que a autora defende por modelo do pluralismo agonístico, que entende a confrontação como condição de existência da democracia. Neste sentido, existe uma relação antagonística entre ambos os sujeitos oriundos da sociedade civil e da gestão, em que, na disputa por sentidos, geram-se processos de hegemonização, que estabelecem a dominação de um sobre o outro. A situação colocada na reunião do FMPE reforça a denúncia feita por essa mesma conselheira acerca do que ela considerou como boicote dos prefeitos à participação das delegadas na etapa estadual, conforme coloquei no presente capítulo. Outra conselheira da sociedade civil reiterou dizendo a importância de se eleger mulheres que estejam interessadas nas pautas do segmento (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Já a conselheira do Governo Estadual argumentou sobre a necessidade de participação das mulheres na política partidária que não seria preciso serem eleitas para participarem. Em sua perspectiva, o eixo central de todas as mudanças está no eixo político e a conferência deveria colocar como prioridade essa discussão e o questionamento de quais mulheres no país como um todo iriam estar nos postos de decisão (DIÁRIO DE CAMPO, 13/08/2015). Os sentidos do eixo político para as referidas conselheiras são diferentes na medida em que, para a da sociedade civil, o principal é eleger as mulheres que estejam comprometidas com as lutas das mulheres, ao passo que, para a integrante governamental, o principal é inserir as mulheres na política partidária. Tratam-se de divergências ilustrativas de crises que minorias representativas enfrentam ao se questionar se eleger pessoas negras, com 243 deficiência, LGBT, dentre outros, é suficiente para que tenham posturas comprometidas com as suas causas. A fala de uma das conselheiras da sociedade civil não foi no intuito de se voltar às mulheres que já se encontram em espaços de poder, mas sim às que estão vivendo a política no cotidiano (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Na reunião seguinte, outra do mesmo segmento reiterou que quase ninguém estava sabendo o que era a reforma política que estava sendo posta. Outra conselheira, também da sociedade civil, comentou que as mulheres do interior não tinham informações e acabavam votando nos homens por acharem que eram os únicos capazes e que seria preciso um trabalho das integrantes dos OPMs para mudar esse quadro. Em seguida, outra falou que os próprios partidos não garantem a participação das mulheres, que elas não compreendem que é seu espaço e que a política está nelas, mas o contrário não acontece (DIÁRIO DE CAMPO, 13/08/2015). Vê-se que, dentro da própria sociedade civil, há visões divergentes frente ao problema da baixa participação feminina na política. Enquanto havia conselheiras que apontavam a necessidade de se fortalecer as mulheres de movimentos sócias ou, como elas colocam, da base, pois do contrário não vão conseguir eleger mulheres comprometidas com as pautas específicas, outra sustentava que essa mudança deveria ser impulsionada pelas representantes governamentais (através dos OPMs). Ligada à temática da reforma política estava a da conjuntura. Sobre isso, a Secretária da Mulher alegou que a defesa naquele momento não deveria ser da presidenta Dilma Rousseff em si, mas sim a democracia como forma de se combater o autoritarismo e que era uma conjuntura ameaçadora. Ela fez críticas à presidenta, alegando que errou muito, apesar de não haver nada provado contra, e que a maioria dos eleitores não a apoiaram. Eles defenderam a inserção social, o direito ao Programa Bolsa Família e a ver uma parcela da população negra nas universidades e não necessariamente Dilma Rousseff. Além disso, falou que, se Eduardo Campos não tivesse morrido, o então candidato Aécio Neves, do PSDB, não teria o mesmo quantitativo de votos, em 2014, e cenário político não ficaria tão polarizado (DIÁRIO DE CAMPO, 10/12/2015). Essa fala foi reiterada no próprio evento a partir de críticas a então presidenta. O movimento União Brasileira de Mulheres, por sua vez, levou faixas com dizeres: “#NãoVaiTerGolpe”, “#DilmaFica” e mostrou as posições de sujeito assumidas naquela conjuntura. Isso ficou bastante evidente na IV CNPM, que aconteceu entre 10 e 12 de maio de 2016, em Brasília, justamente concomitante ao período de votação do pedido de impeachment no Senado. A conjuntura, então, foi um fator determinante para que houvesse 244 uma ruptura do sentido das conferências como espaços de formulação de propostas de políticas públicas. Naquele momento, o discurso em defesa dos direitos adquiridos e da manutenção do mandato da presidenta hegemonizou o sentido de universalidade. O discurso em torno defesa de Dilma Rousseff atuou como ponto nodal, de modo que parecia não fazer muito sentido estar na Conferência e não ser atingido por tudo o que estava acontecendo. Desde a abertura do evento, que marcou o último discurso da presidenta antes do seu afastamento, até os momentos de plenária, uma caminhada do Centro de Convenções Ulysses Guimarães até a Praça dos Três Poderes, um trecho de cerca de 4 quilômetros, para acompanhar a votação, bem como o encerramento do evento, todos estavam completamente ligados às questões contingenciais do que estava acontecendo no país e, especificamente, com uma liderança feminina. Não me aterei a essa questão, apesar de ter realizado a pesquisa de campo até esta etapa, mas é importante aqui que estejamos atentos e atentas a como o contexto se tornou mais presente com a aproximação de dezembro, quando o pedido de impeachment foi aceito e no que isso significou especificamente para as mulheres, sobretudo, as que fazem parte dos movimentos sociais. 5.3.5 Análise geral dos temas Ao fazer uma análise geral dos temas referentes à Comissão de Organização da IV CEPM-PE e ao CEDIM-PE, vejo a emergência, durante boa parte do tempo, de antagonismos frutos das diferentes posições de sujeito que, por sua vez, emergiram a partir de distintos discursos. Através de uma análise das temáticas como elementos, conforme postulam Laclau e Mouffe, é possível perceber que eles foram se articulando em torno do ponto nodal Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres. Esse ponto nodal, decorrente de disputas entre os diferentes sujeitos presentes na construção do evento, está relacionado à concepção do orçamento como fator que limita a realização do evento. Na ausência de conhecimento sobre como funciona o orçamento público, não se questiona de que forma são definidos, por exemplo, os valores ou quanto o CEDIM-PE dispunha naquele determinado ano, informação, inclusive, disponível online através da LOA. Na falta de conselheiras que questionassem, exceto uma, o orçamento se tornou o ponto nodal em torno do qual se articularam diretamente as concepções de escassez de recursos, impossibilidade de se acompanhar as etapas municipais mais distantes do Recife, definição do local do evento e indiretamente escolha das convidadas, das palestrantes e das homenageadas. Em meio aos discursos antagônicos que 245 privilegiaram, de um lado, os aspectos organizacionais do evento e, de outro, a qualidade das discussões políticas, o orçamento se mostrou como um discurso hegemônico, que excluiu as reivindicações políticas. As vagas das convidadas estão interligadas à definição das homenageadas, pois só havia 20 disponíveis, das quais, pelo menos, dez vagas seriam das homenageadas, sendo nove nomes e uma delas precisava levar acompanhante por conta da idade avançada. O meu nome, como pesquisadora, entrou na listagem após uma das conselheiras fazer uma fala enfática sobre a importância de se ter alguém cumprindo essa função no evento. Até a reunião ordinária do dia CEDIM-PE, realizada no dia 12 de novembro de 2015, o que haviam me dito é que eu deveria avaliar se ia com recursos próprios. No entanto, ao entrar em contato com o Hotel Canarius, fui informada de que todas as hospedagens estavam reservadas para o evento. Quando foi repassado em reunião, havia apenas três vagas para serem definidas das convidadas. No dia 10 de dezembro, após longo debate em que estavam claras as posições de sujeito do governo e da sociedade civil, as integrantes desse segmento – sociedade civil defenderam que fossem convidadas mulheres que participaram da Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”, realizada dois dias antes pelos seguintes coletivos: Fórum de Mulheres de Pernambuco, Marcha Mundial das Mulheres, Coletivo de Mulheres Trabalhadoras da CUT/PE, Coletivo Margarida Alves e Coletivo Marcha das Vadias (FÓRUM DE MULHERES DE PERNAMBUCO et al, 2015a) e que reuniu 162 mulheres oriundas de diversos municípios do Estado. A Secretária da Mulher, por sua vez, argumentou que o evento tinha sua importância, mas que deveriam ser chamadas se sobrassem vagas. No entanto, ela defendeu que houvesse uma representação de Fernando de Noronha, onde também seria realizada uma Conferência Livre com representações governamentais, ao contrário da anterior, exclusivamente por movimentos sociais. No debate, os elementos postos pelas conselheiras da sociedade civil se equivaleram em torno da defesa de suas convidadas, o que acabou prevalecendo, ainda que também houvesse vaga destinada à representação do referido arquipélago. Porém, os tensionamentos ficaram evidentes a partir do momento em que foram colocadas críticas aos convites às participantes da referida Conferência Livre sob a justificativa de que elas não apoiam a esfera institucional das políticas. Pelo que já expus e tratarei no restante deste trabalho, fica claro que o FMPE é um movimento social que faz duras críticas aos governos, o que mostra mais que divergências, mas antagonismos à medida que os embates entre essas partes são inconciliáveis. Numa das reuniões em que estive presente, uma das participantes foi enfática em dizer que conselho de direitos não é o 246 movimento social (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Portanto, elas compreendem que o espaço da participação também implica em disputas que podem se tornar processos hegemônicos de um sujeito sobre o outro. As homenageadas foram indicações que já apareceram nas reuniões como definidas. Desconheço a maneira como foram discutidos os nomes, pois é possível que as discussões em torno deles tenham acontecido no meio virtual. O que presenciei foram enunciados em que eram nomes de destaque no Estado e que um deles era uma homenagem diferenciada ou, como registrei, “tamporosa”. Na construção de um sentido universal daquela determinada conferência, esse momento em que se destacam sujeitos que contribuem para as questões ligadas às mulheres foi significado pelo sujeito governamental. O mesmo aconteceu com a definição das palestrantes, todas indicações da SecMulher-PE, Sob a justificativa da Secretária da Mulher de que não havia nenhuma inimiga das mulheres, a sociedade civil acabou acatando as indicações. É importante destacar que, nas conferências anteriores, não houve palestrante nos grupos de trabalho. Na edição que acompanhei, em 2011, as palestras para fomentar o debate aconteciam no plenário, com todas juntas. No formato de 2015, a realização de uma palestra corria o risco de atrasar as próprias discussões das propostas, além de o evento ser tratado, conforme ouvi na reunião do FMPE, como um seminário ou um congresso, sem uma discussão que envolvesse o balanço e o debate em torno das políticas públicas (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Nesse aspecto, o fator que define quem são as pessoas de destaque na área está relacionado a aspectos técnicos que envolvem as políticas, já que são mulheres que já atuaram nos diferentes governos, municipais ou estadual. Neste sentido, o discurso de quem atua nos movimentos sociais não é priorizado e se torna a diferença ao passo que o discurso que se destaca na cadeia de equivalências em torno das palestrantes é do governo a partir dos enunciados de conhecimentos técnicos. Em relação à reforma política, os enunciados da sociedade civil e governo mostram significantes flutuantes em torno da necessidade de se discutir o significante vazio relativo à participação política das mulheres e à necessidade de se pensar em formas de levar o debate sobre a necessidade de elas estarem em posições de poder, já que só eleger mulheres não tem sido suficiente para mudar a sub-representação feminina nem o rumo das políticas públicas. Enquanto para uma conselheira do Governo Estadual, o prioritário era inserir as mulheres nos partidos, para outras, a sociedade civil, isso não seria suficiente, pois se não se fizer uma reforma política que priorize a participação das mulheres, elas não serão eleitas. Além disso, para esse segmento, é preciso eleger mulheres comprometidas com a causa feminista. No 247 entanto, essa discussão corria o risco de se perder na etapa estadual porque, conforme veremos no tópico seguinte, o Eixo III proposto pela IV CNPM - Sistema Político com participação das mulheres e igualdade: Recomendações – não estava sendo abordado na esfera estadual. Neste sentido, ainda que tenha havido uma construção de cadeias de equivalência em torno desse eixo discursivo, ao passar para etapa seguinte, os discursos precisariam ser reformulados para se equivalerem em outros eixos temáticos, com uma discussão mais diluída sobre o sentido exato da participação política. Diante de toda a discussão posta neste capítulo, é possível perceber o quanto as dimensões do social por meio da contingência e da precariedade postas por Laclau e Mouffe estão presentes ao longo do campo de pesquisa. Os mesmos sujeitos do Fórum de Mulheres de Pernambuco estão presentes tanto no Conselho Municipal quanto no Conselho Estadual, ainda que neste não esteja como coletivo maior, e exercem posições diferentes de acordo com o contexto de cada espaço. No Municipal, existia uma atuação mais incisiva e que as foram construir a Conferência da Mulher do Recife. Já na esfera estadual, a conjuntura é outra e, embora a presidenta e a Secretária da Mulher sejam ambas ligadas às gestões do Partido Socialista Brasileiro na Prefeitura e no Estado, pela análise que fiz, parece ser um espaço menos aberto à atuação da sociedade civil. Os espaços estudados mostram diversas formas de antagonismos e disputas em torno dos sentidos para se constituir totalidades discursivas. Nelas, os sujeitos governamentais se sobressaíram no discurso de realização do evento conforme planejado. O FMPE se dividiu entre apostar ou se retirar do espaço do controle social, mas ainda assim participa das conferências e disputa a construção das propostas de políticas públicas. Fez isso como estratégia coletiva, estando presente em municípios distintos no Estado e, de acordo com as reuniões que acompanhei, na Região Metropolitana do Recife. Os sentidos principais para o referido movimento estavam relacionados a marcar posição e se articular junto a outros movimentos e a mulheres de comunidade. As divergências de discurso, em que se destacam totalidades ligadas às lógicas administrativas e políticos institucionais ligadas aos governos e às lógicas de garantia das discussões políticas defendidas pela sociedade civil e, no caso aqui estudado, pelo Fórum de Mulheres de Pernambuco, geraram tensões e articulações hegemônicas, em que um campo se sobressaía em relação ao outro. Diante disso, o Fórum de Mulheres de Pernambuco propôs um momento junto apenas aos movimentos sociais, que constituiu a Conferência Livre “Pela 248 Vida das Mulheres”, uma releitura do processo conferencista convocado pelos governos, mostrando assim que as articulações políticas iam além do evento em si através da definição das delegadas, por exemplo, e podiam ser feitas como uma estratégia política frente ao contexto de tantas dificuldades. Diante disso, passo à discussão do último capítulo desta tese. 249 6 Fórum de Mulheres de Pernambuco e a construção da Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” Neste último capítulo, discorro, especificamente, sobre as temáticas debatidas nas reuniões do Fórum de Mulheres de Pernambuco para entender quais fatores levaram à decisão de impulsionar a Conferência Livre, cujas protagonistas e participantes fossem apenas dos movimentos sociais. A referida articulação de coletivos e ONGs feministas fez uso da possibilidade prevista no regimento da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres para realizar uma Conferência Livre, que não precisa ser convocada pelos governos e conselhos dos direitos das mulheres. Para entender a Conferência Livre, recorro a temáticas referentes às Conferências Municipal do Recife e a estadual de Pernambuco-, estas convocadas em conjunto pelas respectivas Secretarias de Políticas para as Mulheres e Conselhos dos Direitos da Mulher. São as etapas eletivas, conforme consta no regimento interno da IV CNPM: § 3º - São consideradas Etapas Eletivas as Conferências Municipais ou Intermunicipais, as Conferências Estaduais e do Distrito Federal, bem como a Plenária de Gestoras do Governo Federal, conforme calendário e regras estabelecidas neste Regimento. § 4º - As Etapas Eletivas são obrigatórias, elegem delegadas e aprovam resoluções à etapa subsequente (BRASIL, 2015b, p. 6). Abordarei a avaliação das pré-conferências do Recife e das conferências municipais em Pernambuco, a etapa estadual, as estratégias, o contexto político e as conferências livres, temas pautados nas reuniões internas ao movimento. Compreendo que a realização de uma etapa livre, naquela conjuntura, significou uma contraposição ao que estava sendo pautado e construído nas conferências institucionalizadas e representou uma estratégia de resistência dos movimentos de mulheres e feministas frente ao cenário que já mostrava indícios que seria difícil, com a possibilidade do impeachment de Dilma Rousseff, o avanço do conservadorismo no Congresso Nacional, nomeadamente na figura de Eduardo Cunha, então presidente do órgão. A partir da análise de como os discursos foram se compondo e as posições de sujeito se construindo nas relações discursivas, compreendo que o evento – a Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” - pode ser lido através da noção de democracia radical de Laclau de Mouffe, na medida em que articulou diferentes discursos que não conseguiram se compor nas 250 etapas convocadas pelos Governos. Para tanto, a articulação na Conferência Livre se deu em torno do ponto nodal “pela vida das mulheres”, que está relacionado à cadeia de equivalência dos problemas vivenciados no cotidiano das mulheres, como saúde, violência, incidência da conjuntura política. Essas questões podem ter sido negligenciadas nas conferências governamentais, já que, conforme vimos no capítulo anterior, as prioridades na construção giravam em torno de aspectos organizacionais do evento em detrimento de se investir na qualidade política. A proposta da Conferência Livre, como estratégia de se criar um espaço paralelo ao governamental, foi discutir esses temas frente a problemas concretos vivenciados no dia-a-dia pelas mulheres numa forma de encará-las como sujeitos das políticas públicas. Afirmo isso com base na concepção de que, diante de um contexto conferencista, cujo discurso hegemônico, na concepção das integrantes do FMPE, deixava os problemas das mulheres à margem em nome de uma pretensa garantia de realização do evento, elas articularam as suas lutas em conjunto a outros movimentos feministas e setoriais de mulheres de movimentos mistos num espaço político unificado, conforme o que aborda Laclau e Mouffe (2015, p. 235). Elas conseguiram fazer da pluralidade de antagonismos com os sujeitos governamentais o impulsionador de uma luta hegemônica, em que o movimento construiu a sua própria narrativa através da Conferência Livre a partir das equivalências entre suas queixas e reivindicações e, assim, ao invés de simplesmente abandonar o espaço, cumpriu uma função de aprofundar e expandir os sentidos de pautar as demandas das mulheres. Sobre isso, os autores em questão afirmam: Uma luta democrática pode autonomizar certo espaço em cujo interior ela se desenvolve, e produzir efeitos de equivalência com outras lutas num espaço de democracia radical, e a sua possibilidade emana diretamente do caráter descentrado dos agentes sociais, da pluralidade discursiva que os constitui em sujeitos, e dos deslocamentos que têm lugar no interior dessa pluralidade (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 269). Diante da pluralidade de discursos políticos, entre as próprias integrantes do FMPE, este capítulo se propõe a compreender de que forma elas foram construindo as equivalências entre as suas pautas no intuito de constituir os pontos nodais do sentido do que seria o evento. Para compreender a construção do evento em si, sinto a necessidade de considerar o contexto que a impulsionaram: a avaliação das pré-conferências e das conferências municipais; etapa estadual; estratégias e contexto político. 251 6.1 Avaliação das pré-conferências no Recife e das conferências municipais No dia 09 de julho de 2015, quando ainda não haviam começado as conferências municipais, embora a sua realização em âmbito estadual já estivesse decretada, fui à primeira reunião do Fórum de Mulheres de Pernambuco, que aconteceu na sede da organização não governamental SOS Corpo – Instituto Feminista para Democracia. O ponto de pauta era uma avaliação do que elas entendiam por conferências de políticas para as mulheres e como elas viam o processo. Foi feita uma explanação de que é normal haver conflitos e interesses partidários nas conferências, mas, ao mesmo tempo, seria o momento de marcar presença e tentar mudar o que estava posto. Além disso, colocaram que os eventos apresentavam problemas de metodologia e os conselhos não funcionam. Diante disso, questionaram: que conferências querem? Que conselhos querem? Qual é a estratégia? Ocupam ou não? Como resposta, foi colocado que os conselhos estavam sendo ocupados por pessoas conservadoras e que não era à toa que as conferências valorizavam a quantidade de participantes em detrimento da discussão política e que elas perdiam as propostas. Diante disso, questionavase: vão investir como? Vai ser feita uma ação para pressionar fora desses espaços? (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Vê-se um “nós” e o “eles”, característico das relações antagônicas. O “nós” está relacionado às integrantes do FMPE e o “eles” que, nesse caso, são “elas”, ligadas às que compõem os Conselhos dos Direitos da Mulher. São discursos divergentes e que a existência de um ameaça a do outro. Os discursos conservadores e os fundamentalistas em outras situações estavam presentes em diversas colocações das militantes do FMPE e remetia às forças políticas que ocupavam os diversos cargos, desde o Executivo e Legislativo até o do controle social através dos conselhos de direitos. Esses antagonismos, conforme veremos ao longo do capítulo, em minha leitura, foram os fatores impulsionadores para a realização de um evento alternativo àquele que estava sendo organizado pelo governo e conselhos de direitos das mulheres. Foi feita uma análise positiva de que o texto-base da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres apresentava uma discussão sobre a importância da participação das mulheres nas políticas públicas e que seria preciso cobrar essa abordagem na etapa do Recife (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Por outro lado, avaliou-se negativamente as préconferências do Recife, colocando que houve baixa participação e que a etapa municipal seria muito fraca. Isso estaria relacionado, na percepção de quem se expressou, ao estilo da gestão municipal, que era muito distante das mulheres. Acrescentou-se que o Conselho Municipal precisava ir às comunidades, conversar com as mulheres. Apesar disso, havia uma avaliação positiva em relação à participação das mulheres negras, que estavam promovendo discussões 252 nas RPAs e isso estava relacionado à preparação delas para a Marcha das Mulheres Negras, que aconteceria em novembro daquele o ano (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). As posições de sujeito ligadas aos movimentos sociais estão associadas ao caráter de politização dos espaços. Porém, demonstra um certo conflito sobre o que se espera do Estado. Não fica claro o que é conversar com as mulheres. Em outros momentos, foi colocado que a gestão municipal precisava falar com as mulheres sobre os seus direitos. Isso poderia ser associado ao papel da sociedade civil e, inclusive, era a forma que a gestão encontrou de se defender frente às queixas sobre a despolitização dos espaços. Dizia-se que a Secretaria da Mulher do Recife estava cumprindo com a sua função de garantir a realização do evento e que a tarefa de mobilizar as mulheres era atribuída ao Conselho Municipal. Ou seja, os discursos construídos por algumas integrantes da sociedade civil, nas reuniões do Conselho, não estavam conseguindo se tornar hegemônico na disputa pelos sentidos atribuídos à politização nos espaços. Laclau e Mouffe afirmam que: No caso da luta feminista, o Estado é um meio importante de se efetuar avanços, frequentemente contra a sociedade civil, numa legislação que combata o sexismo [...] Além do mais, o Estado não é um meio homogêneo, separado da sociedade civil por um dique, mas um conjunto desigual de agências e funções, integradas apenas relativamente pelas práticas hegemônicas que têm lugar no seu interior. Acima de tudo, não se deveria esquecer que o Estado pode ser o espaço de inúmeros antagonismos democráticos, na proporção em que um conjunto de funções no seu interior – profissionais ou técnicas, por exemplo – pode entrar em relações de antagonismo com centros de poder, dentro do próprio Estado, que tentem restringi-lo ou deformá-lo (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 268) Foi feita uma denúncia referente a um dos municípios da Região Metropolitana do Recife em relação a atitudes autoritárias por parte da gestora de políticas para as mulheres e foi mesmo afirmado de que parece ser um modelo de gestão do Partido Socialista Brasileiro. Por exemplo, a gestora exigiu que parte das vagas da sociedade civil fossem destinadas às mulheres – sujeitos individuais - que eram atendidas pelo órgão municipal porque eram com essas que ela precisava contar. Na análise de quem estava fazendo a denúncia, se as integrantes do FMPE se ausentassem do processo, seria ainda mais grave (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). A gestão desse município, portanto, parecia querer mobilizar a sociedade civil de acordo com os seus interesses e isso descaracteriza o papel da conferência como evento organizado e ocupado de forma paritária por ambos os sujeitos. Essa denúncia está relacionada ao que foi exposto no parágrafo anterior, em que a gestão era distante da população. Ambas são do mesmo partido, o PSB, e a posição de sujeito do FMPE, nesse momento, está relacionada a uma contraposição às referidas gestões. A depender da 253 contingência, podem se tornar aliados. Mas, não pude notar nenhuma atitude nesse sentido ao longo de toda a pesquisa de campo que realizei. Essa postura de conferência como discurso de alinhamento à gestão também foi relatada em outro município da RMR, onde houve um balanço positivo por parte da gestão e do conselho municipal, segundo relatou uma das integrantes (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). No primeiro município da RMR, em que foi feita a denúncia, a sociedade civil não pôde indicar palestrantes do movimento social e não houve voz dos movimentos (DIÁRIO DE CAMPO, 02/09/2015). Isso mostra que, se no início das conferências de políticas para as mulheres podia-se dizer que elas eram conquistas dos movimentos de mulheres e feministas, esse caráter se perdeu e, nesses casos, tornou-se um evento governamental ou, dito de outra forma, na disputa pela função significativa, quem assumiu o sentido pretensamente universal nessa conjuntura política foram os governos. Na reunião do dia 09 de setembro, uma das integrantes do FMPE avaliou que os movimentos de mulheres haviam abandonado as conferências, mas outra que também faz parte do movimento respondeu que não concordava porque elas estavam participando das etapas municipais. Foi avaliado que, da forma como as conferências estavam acontecendo, tudo estava organizado para atender ao tema da CNPM, mas não estavam discutindo as políticas municipais. Isso revela que o evento priorizou uma dimensão burocratizada em detrimento de discussões acerca do que é preciso mudar naquela localidade. Vê-se, mais uma vez, o antagonismo nos discursos do referido movimento social em contraposição ao dos governos municipais. Isso ficou ainda mais claro quando uma das que fazem parte do FMPE avaliou que a estratégia dos governos municipais e estadual de priorizar os indivíduos e não os coletivos e organizações era uma forma de manipular e despolitizar através da desmobilização e que isso feria o fortalecimento da participação organizada, já que estava relacionado à sua força política (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Neste sentido, percebe-se que as falas das integrantes do FMPE colocam os governos municipais e estadual como o “eles” na relação antagônica e é reiterado quando falam que as que compõem o FMPE sabiam da necessidade de se enfrentar e pensar as propostas e tinham um projeto mais amplo para disputar, mas que não estavam favoráveis à situação posta, com conferências esvaziadas (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Foi colocado também que, nas pré-conferências do Recife, as participantes não dispunham de espaço para debate e tinham que construir as propostas a partir do texto-base, que recebiam apenas no evento. Além disso, as mulheres não poderiam falar nas plenárias. A estratégia, na concepção de outra integrante, deveria ser focar nos grupos de trabalho, que era 254 onde elas poderiam debater e defender o que consideravam mais adequado (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2015). Uma das integrantes questionou qual seria o papel das Secretarias da Mulher do Recife e de Pernambuco e o que elas haviam feito para as mulheres. Em sua avaliação, a última estava muito mais a voltada para desenvolver o Programa Chapéu de Palha92 do que para desenvolver as políticas para as mulheres (DIÁRIO DE CAMPO, 13/08/2015). O referido Programa é desenvolvido em parceria com institutos e organizações não-governamentais. Numa conversa informal com uma das integrantes do FMPE, ouvi que a participação no Programa Chapéu de Palha acabava prejudicando a autonomia das organizações em relação à militância social e que, dessa forma, ficava complicado fazer críticas ao Governo Estadual. Isso é um reflexo da crise que coloquei no capítulo um entre ONGs e movimentos sociais e, mais especificamente aqui, movimentos feministas. Embora as primeiras integrem e construam os segundos, existem pautas e posturas políticas que podem se chocar. Nesse caso, as ONGs executam trabalho para o governo e isso pode interferir na sua autonomia como movimento social. Ao mesmo tempo, o Governo Estadual é visto como não priorizando o desenvolvimento efetivo das políticas para as mulheres. Nessa situação, a alternativa parece passar pela autocrítica do FMPE e a construção coletiva de uma narrativa própria nesses espaços de conferências, conforme veremos ao longo deste capítulo. Foi denunciado também que a política de enfrentamento à violência contra a mulher estava parada e não se sabia como estavam os centros de referência, as casas-abrigo. Na saúde, a situação também estava preocupante. Foi colocada a necessidade de se ter um momento na Conferência da Mulher do Recife para se discutir mais políticas e a estrutura das mesmas, pois nas pré-conferências não houve esse espaço (DIÁRIO DE CAMPO, 13/08/2015). Notam-se discursos conflitantes. De um lado, o Governo trabalha na perspectiva de realizar o evento e executar o que há nos documentos – regimento e programação – e, do outro, na fala dessas integrantes do FMPE, existe uma necessidade em se debater questões do âmbito da vida cotidiana das mulheres e a forma como se davam as discussões em torno de propostas de políticas públicas, nas conferências governamentais, tornam invisíveis essas queixas, pois existe muito mais uma preocupação em se elaborar o documento de propostas do que discuti-las e debater sobre como as políticas públicas estão incidindo na vida das mulheres para, assim, formular as propostas. Dessa forma, ao longo das conferências, o 92 Programa do governo que realiza atividades de formação com os trabalhadores e trabalhadoras rurais durante o período de entre safra da cana de açúcar. A SecMulher-PE executa o Programa Chapéu de Palha Mulher, que atende além das mulheres da zona canavieira, as trabalhadoras de fruticultura irrigada e pesca artesanal. 255 discurso hegemônico era de que se tratava de um evento para propor políticas públicas e o que percebi na prática eram discussões feitas em formatos que não colocavam as mulheres como sujeitos dessas políticas ao, por exemplo, não discutir os problemas vivenciados por elas. Neste sentido, a Conferência Livre, conforme abordarei mais adiante neste capítulo, apresentava como um dos objetivos centrais a discussão em torno dos problemas e dificuldades do cotidiano, sobretudo, numa conjuntura já tão adversa para as mulheres, a exemplo da fusão ministerial abordada no capítulo 2, em que a SPM deixou de ser um ministério, além de outras questões conjunturais que venho apontado ao longo deste trabalho. De um modo geral, havia um cansaço de estar nesses espaços de conferências e a avaliação era de que os eventos estavam muito mais desorganizados do que os anteriores. Nas palavras de uma das integrantes do FMPE, era como se o ciclo de conferências estivesse sofrendo um certo esgotamento e que quem estava chegando pela primeira vez nas conferências e via todos os problemas, acabava desistindo (DIÁRIO DE CAMPO, 02/09/2015). Apesar dessa avaliação negativa, o FMPE estava conseguindo eleger delegadas nas conferências municipais, o que me leva a considerar que a estratégia continuava sendo a de participar delas, ainda que não se esperasse que fosse um espaço de discussão sobre as propostas de políticas públicas. Foi colocado que, diante de tantas denúncias, elas iriam participar desse ciclo de conferências “na garra”, expressão que remete ao esforço, a algo difícil (DIÁRIO DE CAMPO, 02/09/2015). Isso está relacionado às denúncias feitas pelas conselheiras estaduais sobre, por exemplo, a falta de orçamento estatal ou o boicote de prefeitos nos municípios do interior de Pernambuco, conforme relatei no capítulo 4. Mesmo que, na fala da representante da SecMulher-PE, as conferências fossem meta prioritária do Governo Estadual, essa meta parecia não incluir a sociedade civil, no que se pode indicar como posições antagônicas e, de certa forma, inconciliáveis. Para a ida à Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em Brasília, muitas delegadas da sociedade civil, eleitas por seus municípios, precisavam viajar até o Recife para pegar o voo – com passagem paga pelo Governo Federal – mas, eram obrigadas a bancar dos seus próprios recursos, já que as prefeituras negaram o transporte. Diante desse cenário, no FMPE, que acompanhei de perto, as militantes fizeram uma arrecadação coletiva para ajudar essas delegadas. Acredito que a mesma situação aconteceu com outros grupos. Apesar de não haver uma obrigatoriedade do transporte para a capital, esperava-se uma cooperação dos governos municipais com a sociedade civil. A questão financeira, mais uma vez se constituiu em um discurso que exclui a sociedade civil, que, sem recursos para bancar o transporte, pode ter ficado de fora do evento. Ao mesmo tempo em que os movimentos sociais reivindicam 256 autonomia em relação aos governos, os mesmos muitas vezes dependem dos recursos estatais para conseguir participar de ações desse tipo das conferências. As tensões e os antagonismos entre as posições de sujeito governamentais e da sociedade civil estão presentes nas diversas reuniões que acompanhei, de modo que tanto as conferências convocadas pelos governos municipais e estadual quanto a Conferência Livre, impulsionada exclusivamente por movimentos sociais, mostram uma ligação forte. A segunda é uma resposta às conferências municipais e à construção da etapa estadual numa forma de articular o que ficou de fora das governamentais. Uma das integrantes do FMPE avaliou que há muita disputa nas conferências e que mulheres de partidos acabavam trabalhando pela política dos prefeitos, ignorando as demandas dos movimentos sociais, o que era muito frustrante (DIÁRIO DE CAMPO, 02/09/2015). Nesse momento, as militantes partidárias são vistas como “eles” numa relação antagônica, com uma posição de sujeito inconciliáveis com as que, na fala das integrantes do FMPE, querem discutir as problemáticas em torno do cotidiano das mulheres. No entanto, há momentos em que as militantes partidárias estão junto às feministas, como no caso das lutas em defesa do mandato da presidenta Dilma Rousseff travadas de uma forma mais isolada na IV CEPM-PE, particularmente por mulheres ligadas ao PCdoB, que fazem parte da União Brasileira de Mulheres e de maneira mais ampliada na IV CNPM, quando o impeachment foi aprovado no Senado e a presidenta afastada para investigações. Nesse momento, essas posições de sujeito de integrantes dos movimentos feministas e das militantes partidárias se equivalem em torno do ponto nodal defesa da democracia que, naquele momento, passava pela garantia do mandato de Dilma Rousseff. Porém, notam-se que, nas etapas municipais, pelos relatos que ouvi, as diferenças é que se sobressaem e que chegam a ser antagônicas na medida em que se ignoram as demandas dos movimentos sociais para se unir às gestões no Executivo. Em outro município da RMR, foi afirmado que havia propostas sendo suprimidas porque a Secretária da Mulher achava que já haviam sido registradas. Portanto, elas precisariam estar atentas à relatoria (DIÁRIO DE CAMPO, 09/09/2015). Isso revela não apenas uma posição de controle social, mas, sobretudo, de desconfiança em relação ao que poderia ou não ser colocado, caso elas não estivessem fiscalizando. Essa situação remete à ausência das moções relatadas no capítulo anterior, que ficou fora do relatório e que eu soube, posteriormente, em conversas informais, que foi justificado por erro humano de quem estava preparando e que se esqueceu de inseri-las. O mesmo tipo de atitude poderia acontecer na 257 sistematização das propostas, já que quem fazia a relatoria era contratada pela Secretaria da Mulher do Recife e quem as sistematizou foram as próprias funcionárias do órgão93. 6.2 Estratégias Diante de todo esse cenário, as integrantes do FMPE sinalizaram para a necessidade de um momento de conversa entre si, uma formação e que seria preciso fazer articulações com outros movimentos sociais porque os mesmos não estavam conseguindo ir para as ruas, convencer as pessoas e conversar em bloco. Além disso, foi colocado que pensar as conferências além da capital, Recife, também fazia parte de uma ação estratégica (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Como já abordei nos capítulos anteriores, o FMPE tem uma atuação estadual e isso está muito presente no discurso político das integrantes. Nas conferências estadual e nacional, as integrantes do FMPE formaram um único bloco e atuavam organizadamente como Articulação de Mulheres Brasileiras. Nas conferências municipais e estadual, as estratégias eram postas nos grupos temáticos, em que se discutiam as propostas de políticas e na garantia da eleição das delegadas para etapa seguinte. O ponto nodal em torno do qual construíram uma unidade ficou claro na etapa nacional, quando se articularam junto a outros movimentos sociais na defesa de Dilma Rousseff. Isso se tornou bastante evidente quando uma das conselheiras do notório saber do CNDM e que integra a AMB se pronunciou no encerramento da IV CNPM em defesa da presidenta: [...] hoje, neste dia histórico, nós estamos vivendo um momento que coloca as mulheres no centro da história deste país, no centro das contradições deste país. Enquanto nós, mulheres organizadas, no direito legítimo de cidadania, estamos aqui definindo e promulgando direitos através de uma conferência democrática de políticas públicas, um grupo de patriarcas apoiados por machistas, racistas, golpistas, homofóbicos, classistas, burgueses dão um golpe numa mulher legitimamente eleita a primeira presidenta do país. Eu quero dizer que nós vamos permanecer em luta e, para permanecer em luta, nós precisamos nos organizar porque quando nós nos organizamos, nós mudamos a nossa vida, a vida das mulheres e a sociedade e nós vamos nos manter organizadas, nós vamos porque nós somos resistentes e irredutíveis. Resistentes porque vamos nos manter em luta e irredutíveis porque não abrimos mão dos direitos conquistados. Não abrimos mão dos direitos que vamos conquistar e da luta por novos direitos e não abrimos mão do mandato da nossa presidenta legítima Dilma Rousseff, presidenta eleita do país porque somos irredutíveis e, por isso, quero dizer o seguinte: 'Renova, 93 No segundo dia do evento, 11 de setembro, eu fiquei até por volta das 21h no local onde acontecia a VI CMM junto à Secretária da Mulher, à Secretária Executiva e duas integrantes do FMPE enquanto elas compilavam todas as propostas num único arquivo, que seria lido na plenária no dia seguinte. Portanto, pude ver que o trabalho era feito por elas e que havia representação da sociedade civil. 258 renova a esperança, a Dilma é guerrilheira e da luta não se cansa' (DIÁRIO DE CAMPO, 12/05/2016) Embora eu não aborde especificamente a IV CNPM neste trabalho, essa fala é interessante aqui no sentido que explicita o quanto o contexto político orientou os discursos ao longo do processo conferencista, tendo seu ponto máximo na etapa nacional. Mostra também que, mesmo havendo diversas críticas às conferências colocadas pelas integrantes do FMPE e da AMB, nas etapas municipais e estadual, em Pernambuco, no momento do impeachment, há um discurso de defesa da conferência como espaço democrático e legítimo de defesa dos direitos. Isso reforça que não se abandonou por completo os espaços conferencistas. A própria Conferência Livre, como coloquei anteriormente, é uma resposta dentro do processo de conferência, ao modo como estavam sendo construídos os eventos. Outro aspecto interessante na colocação da conselheira são as identidades antagônicas: de um lado, as mulheres organizadas e, do outro, o que tanto ameaça a existência delas: o machismo, a misoginia, o racismo e o classismo. É possível que um discurso desse tipo não pudesse ser feito nas conferências anteriores, convocadas pelos governos e que, naquele momento, em Brasília, constituiu uma ruptura do sentido de conferência como apenas um espaço de discussão das políticas. O que imprimiu o significado foram formações discursivas articuladas em torno da defesa da presidenta eleita nas urnas. No contexto local, foi colocado na reunião do FMPE que seria preciso mobilizar as mulheres de comunidade que tivessem conexão com o movimento feminista e com a garantia dos direitos das mulheres para que saíssem tanto delegadas das etapas municipal e estadual quanto conselheiras do Recife. Na fala de uma das integrantes do movimento, era necessário apostar na criação do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, pois se tratava de uma política estruturadora que guiaria cada Unidade da Federação (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). As integrantes do FMPE decidiram que iriam debater e elencar as propostas e lançar o documento para nortear as discussões nas conferências. A ideia foi de que o texto fosse construído a partir da vivência que elas têm com o feminismo (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Reproduzo o documento integralmente, entregue na Pré-conferência de Entidades Gerais do Recife, realizada no dia 15 de agosto de 2015, no Anexo A desta tese. Elas iriam ver como mobilizariam as mulheres para eleger delegadas nessa conferência e pensariam numa forma de discutir o texto-base divulgado pelo Conselho Municipal (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2018). É interessante perceber que o termo mobilização é referido 259 diversas vezes e se trata de uma ideia associada ao papel dos movimentos sociais. Porém, com todo o tempo nas gestões do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República e a consequente inserção de muitos movimentos, gerou-se uma confusão entre quem teria o papel de mobilizar e o cenário visto foi de afastamento do referido partido e de muitos setores da sociedade civil de suas bases e comunidades. Ao se referir com frequência à mobilização, as militantes trazem à tona a necessidade desse contato, bem como se vê que também é o seu papel fazer isso. Inclusive, ao atribuir a tarefa do Conselho Municipal de mobilizar as mulheres nas comunidades, reforça essa necessidade. Estava claro que precisavam pensar em estratégias de participação na Conferência Municipal e que seria importante mobilizar cerca de 20 a 30 participantes na Pré-conferência de Entidades Gerais para, assim, elegerem cinco ou seis delegadas para etapa municipal, já que para cada cinco participantes, há uma vaga de delegada. Seria preciso que fossem mulheres que tivessem a ver com o FMPE. Para definir, elas precisavam saber previamente quem seriam as candidatas a delegadas e as que gostariam de estar no Conselho da Mulher do Recife. No âmbito estadual, seria interessante fazer um levantamento dos municípios onde havia integrantes do FMPE para construírem uma articulação para etapa estadual, seja em relação às propostas ou à eleição das delegadas (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2018). Essa estratégia estadual foi utilizada na Conferência Livre, conforme abordarei posteriormente neste capítulo. Como estratégia interna, foram enviados e-mails às integrantes do FMPE que moram no Sertão, Agreste e Zona da Mata para terem uma conversa sobre que articulações construiriam (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2018). Para mobilizar mulheres no intuito de serem delegadas, seria preciso que elas tivessem a compreensão do que são as referidas conferências e isso demandaria ir às comunidades. Foi reiterada a questão de como o FMPE pretendia estar nos eventos. Foi colocado também que nem se deveria discutir conferência em si, pois era algo para o qual as integrantes do Fórum já deviam estar preparadas e, assim, discutir apenas quem iria participar (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2015). Essas colocações remetem ao aspecto de militância e de reflexão sobre o que significa o evento e o estar nele. Elas não estavam indo participar porque o evento havia sido convocado e dizia respeito às mulheres, mas sim porque precisava fazer sentido na sua incidência política estar ali. Isso ficou evidente quando as integrantes falaram que seria preciso pensar em formas de fortalecer e politizar as mulheres para estarem nesses espaços de participação sem que representassem meros números (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2018). Ao mesmo tempo em que remete às estratégias de preparação, o discurso subjacente a essas colocações revela o processo de esvaziamento e simplificação das conferências, como se 260 fossem eventos em que já sabiam como aconteceriam, que repetissem as mesmas estruturas. Trata-se de um aspecto interessante para compreender como as integrantes do referido movimento encaravam e estavam presentes nos eventos. O que percebi é que, muito mais do que discutir as políticas públicas em si – formato que essas militantes não acreditavam mais -, era de grande importância estar nos espaços para marcar a presença e, principalmente, construir as articulações políticas com outros sujeitos. O aspecto da vivência ou da vida das mulheres foi algo bastante falado pelo movimento e mostra que as conferências acabavam por reproduzir discursos descolados da realidade delas à medida que os órgãos responsáveis por sua organização se restringem ao discurso burocrático de realização do evento e quando os mesmos priorizam palestras ou a mera preparação para a etapa seguinte. Isso fica claro quando uma conselheira, que integra o FMPE, afirmou que esperava que, a cada pré-conferência do Recife, fosse feito um balanço municipal das políticas públicas e a Secretaria da Mulher evitou de diversas formas (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Esse balanço poderia despertar o debate de como as políticas públicas estavam incidindo diretamente no cotidiano das mulheres daquela localidade. Ao evitá-lo, priorizava-se um caráter de lançar propostas de políticas sem sequer se refletir se elas estavam sendo ou não eficazes. Isso pode levar, inclusive, a essa noção de esgotamento das conferências. Nas palavras de muitas das que ouvi do FMPE, parecia que elas estavam repetindo sempre a mesma coisa e não avançavam na execução das políticas. Frente a esse cenário, as conselheiras que faziam parte do FMPE pressionavam no Conselho Municipal para saber quais eram as estruturas, os recursos e as prioridades da Secretaria da Mulher (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2018). Trata-se de uma posição de sujeito ligada ao controle social, à fiscalização das ações do órgão que faz parte do Poder Executivo. Em relação ao Conselho da Mulher do Recife, foi colocado que, ainda que o espaço do controle social estivesse, naquele momento, fraco e que não se acreditasse nele, seria válido participar e que, para se retirar, seria preciso tomar uma decisão coletiva (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2018). Cheguei a registrar a seguinte fala: “A gente precisa conversar sobre estratégias, a gente precisa construir estratégias coletivamente” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2018). Percebe-se que a organização coletiva é uma estratégia central de luta para o FMPE e remete a uma noção de horizontalidade de como funciona o movimento, pois as definições são tiradas após debate em conjunto entre elas. Isso explica por que não se tem representação do movimento no CEDIM-PE, pois foi uma decisão delas se retirar do espaço. Ainda que haja integrantes no referido órgão, elas não estão como FMPE, conforme explicarei adiante. 261 Registrei os seguintes questionamentos: “que formas de representação queremos?”, “é o controle social importante para a gente?” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2015). As perguntas se deram em meio a uma acalorada discussão sobre o sentido de estar ou continuar nos Conselhos de Direitos. Percebi que era um debate que não conseguia chegar a uma definição, que provavelmente seria não mais estar. Mas, para isso, muitas sentiam a necessidade de aprofundar o sentido do controle social. Foi colocado que a participação era um instrumento que precisava ser aperfeiçoado e o que não estava sendo feita era a discussão acerca do direito à participação, como se é exercitado pessoal e coletivamente e, por isso, tantas crises internas (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2015). Isso remete à ideia de que a democracia participativa, da qual o controle social e as conferências fazem parte, foi uma conquista de lutas dos movimentos sociais e oficializada por meio da Constituição Federal, de 1988. No caso das mulheres, apesar de o CNDM existir desde 1985, voltou à ativa em 2003 juntamente à criação da SPM e significou uma importância para os movimentos de mulheres e feministas, que construíram um ano antes a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, conforme relatei no capítulo 3. Sair desses espaços, portanto, para umas, era algo já definido, para outras, uma crise. Não se conseguia chegar a uma definição, a um consenso. Apesar de se apontar a necessidade da discussão e da problematização da participação e do controle social, tão necessários no sistema democrático, a lógica que parecia prevalecer como equivalência era a de não se investir nesses espaços. As integrantes que, por ventura, ainda desejassem apostar nos mesmos tinham os seus discursos como a diferença. Isso expõe a uma contradição no movimento: o discurso hegemônico é o de que não se acredita mais nesses espaços e, portanto, não se deve investir neles. Esse discurso explica, por exemplo, porque no CEDIMPE não há representação do FMPE como movimento. Havia integrantes que compõem o Fórum, mas estavam representando suas organizações locais no Conselho Estadual. No entanto, o Fórum não se afastou por completo: em 2015 e parte de 2016, havia representantes no Conselho da Mulher do Recife e no CNDM. Ou seja, o discurso hegemônico era de afastamento, mas a prática de ainda participar deixava à mostra as contradições e antagonismos entre elas. Isso está relacionado à aposta na Conferência Livre, que mesmo sendo um discurso alternativo às conferências governamentais, fazia parte do ciclo conferencista convocado pelo Governo Federal. Registrei, ainda, outras questões: O que são políticas para as mulheres? O que significam as diretrizes que devem orientar as políticas para as mulheres? Quais os seus objetivos? Qual a participação do movimento feminista e de mulheres na formulação e fiscalização dessas políticas? Qual é o papel dos municípios? Qual é o papel do governo 262 estadual? Qual é o papel do Governo Federal? O que queremos com o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres? Como seriam as políticas para as mulheres? (DIÁRIO DE CAMPO, 13/08/2015). Essas perguntas foram colocadas em reunião e estão presentes também no documento que elaboraram para a Pré-conferência de Entidades Gerais do Recife (vide Anexo A) e revelam a discussão sobre o que se espera do Estado na implementação das políticas para as mulheres, conforme discuti no capítulo 2. As questões mostram também uma pluralidade de demandas e uma consequente dificuldade de articulá-las em torno de uma unidade. Demonstram, ainda, uma prevalência das diferenças que dificulta a construção de pontos nodais internos – nos espaços do FMPE – e externos – nas conferências. Deixa-se para discutir a participação, o controle social e a relação com as políticas para as mulheres durante o processo conferencista, que demanda uma série de articulações políticas. Cada pergunta dessa geraria uma série de debates e precisaria de aprofundamento. Na falta de conhecimento das respostas para as perguntas colocadas nas reuniões, o discurso que assumiu a significação foi o da aposta do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, defendido por algumas integrantes. Isso ficou mais evidente na preparação para Conferência Livre e Conferência Estadual, que o FMPE realizou no dia 06 de dezembro de 2015 e que abordarei neste capítulo. Porém, junto a outros movimentos e nas conferências governamentais, o contexto e as contingências não permitem que consigam a equivalência em torno do referido Sistema. Os discursos acabam por ser rearticulados em torno de outras demandas, que passam muito mais pelos problemas vivenciados no cotidiano das mulheres do que a formulação em si de propostas de políticas públicas, que estão relacionadas ao contexto mais macro. O FMPE tem a consciência de sua posição de sujeito de quem demanda e fiscaliza as ações do Estado. A defesa do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres é um exemplo dessa demanda por uma estrutura estatal. A crise, portanto, mostra-se na fiscalização das políticas, já que uma das formas de controle institucionalizado e constante, por meio dos Conselhos, apresenta tantos problemas. O aprofundamento da democratização do Estado, conforme trabalhei no capítulo 2, enfrenta diversos entraves e parece algo difícil de acontecer nas diferentes esferas, desde as municipais à federal, tanto que a SPM sofreu logo as consequências da pressão que Dilma Rousseff recebia para tentar manter a governabilidade. Foi decidido que, no referido documento produzido pelo FMPE, ainda não conteria a análise de conjuntura porque ficaria para a Conferência Livre. Com o tempo até a realização, conseguiriam aprofundar o debate. Foi colocado que não fazia sentido o FMPE participar das conferências sem um documento se posicionando, mas que não daria tempo de fazer para a etapa municipal, que seria poucos dias depois. Também não fazia sentido ir sem uma faixa de 263 protesto porque era visível o desmonte na saúde, os casos de corrupção envolvendo Eduardo Campos e que não seria possível fingir que não existia a conjuntura, pois só reforçaria o que o governo estava fazendo (DIÁRIO DE CAMPO, 02/09/2015). Fica claro, mais uma vez, o antagonismo entre o “nós” – Fórum de Mulheres de Pernambuco – representado pelas denúncias do desmonte das políticas públicas e da corrupção e o “eles” na simbologia governamental, notadamente, nas gestões do Recife e do Estado de Pernambuco. A existência de uma ameaça do “outro” e, ao mesmo tempo, sua condição de existência. O FMPE fazia o possível para demarcar sua diferenciação desse “outro”, o sujeito sobre o qual tinham muitas críticas e cobranças. Estar nesses espaços exigia, portanto, estratégias de diferenciação e de não ser conivente com o que consideravam conservador. O discurso acerca do conservadorismo e dos fundamentalismos, sobretudo na referência às religiosas, é colocado também como um “eles”, o que remete a outra relação antagônica. Frente a isso, elas prepararam cartazes com as seguintes frases: “Precisamos do Hospital da Mulher”, “Hospital da Mulher – Geraldo não fez”, “Centro Metropolitano da Mulher – Geraldo não fez”, “Maternidades de Recife sucateadas”, “Creches insuficientes – Geraldo que fez”, “Secretário de Educação – a participação das trabalhadoras é importante”, “Cidade segura para as mulheres – Geraldo não fez”, “Cidade segura para quem, Geraldo?” (DIÁRIO DE CAMPO, 09/09/2015). A ideia era ir uma grande quantidade de militantes para ver o Prefeito e mostrar os cartazes na abertura do evento, quando, segundo informação que haviam recebido, contaria com a sua participação, Geraldo Júlio, do PSB e, assim, marcariam a presença como movimento e explicitariam suas demandas e indignações frente a promessas de campanha não cumpridas. Os dizeres “Geraldo que fez” era uma referência irônica ao slogan de sua campanha para prefeito do Recife, em 2012, que dizia que diversas obras na cidade haviam sido feitas por ele quando atuou como Secretário de Planejamento de Pernambuco e Secretário de Desenvolvimento Econômico durante as gestões de Eduardo Campos. Notam-se novamente as tensões entre o referido movimento feminista e a gestão da prefeitura. Elas não direcionam as críticas à Secretaria da Mulher, mas ao prefeito, o responsável central pelo Executivo. O mesmo se viu em relação ao apoio à moção direcionada à gestão e não à Secretaria da Educação. Essas situações me fazem afirmar que há os movimentos sociais que têm uma compreensão da gestão dos setores como de responsabilidade de quem está à frente do Poder Executivo. Quem indica os secretários e define o que será prioritário naquela gestão é o prefeito ou a prefeita. O mesmo raciocínio pode estar associado à gestão estadual e a relação com o orçamento da Conferência de Políticas para as Mulheres. Quem definia o valor que seria utilizado era o governador e 264 cabiam à SecMulher-PE e ao CEDIM-PE acatar a decisão. Os movimentos sociais, então, cumprem o papel de denunciar possíveis situações e a não prioridade na gestão das políticas. Em termos discursivos, essa situação traz à tona uma questão que divide os setores da esquerda, que é o debate sobre qual é a estratégia mais adequada nas lutas pelas transformações sociais: ocupar o Estado ou lutar fora dele. Ou, dito de outra forma, são discursos relacionados a assumir a institucionalidade e, portanto, os riscos de não se cumprir com as promessas de campanha ou se manter como movimento social, mobilizando a população e exercendo o controle e as cobranças dos órgãos. As mulheres do FMPE, ligadas às lutas da esquerda, naquele contexto, assumiram o papel de denúncia e cobrança tanto nos Conselhos de Direitos da Mulher do Recife quanto em nível estadual94. No entanto, em relação ao cenário nacional, as críticas feitas na Conferência Livre estavam relacionadas ao Poder Legislativo, diante de um Congresso Nacional conservador e fundamentalista. Em relação à presidenta, ainda que houvesse diversas críticas a sua gestão, naquele contexto, era visto como aliada estratégica. Na reunião do FMPE anterior à realização da VI Conferência Municipal da Mulher (VI CMM), a ideia era de, além de prepararem os cartazes, elas pudessem ler o documento com as propostas e se dividissem em relação aos grupos de trabalho. Porém, ficaram na discussão de quem sairia como delegada, conselheira municipal e as alianças que fariam (DIÁRIO DE CAMPO, 09/09/2015). Na abertura da Conferência Municipal, o Prefeito do Recife não apareceu, indo em seu lugar o vice-prefeito, Luciano Siqueira, do PCdoB, partido do qual fazem parte duas conselheiras municipais, ligadas à UBM. Como é um sujeito político que, há muitos anos, faz parte dos setores de esquerda, tendo sido vice-prefeito também nas gestões petistas de João Paulo Lima e Silva, na Prefeitura do Recife, tem uma relação mais próxima com os movimentos sociais. A partir do momento em que Geraldo Júlio não estava ali, não fazia sentido mostrar aqueles cartazes, podendo ser, inclusive, ruim para a imagem do FMPE, pois ficariam isoladas fazendo um protesto num momento de celebração da abertura do evento, com sujeitos da SPM e do CNDM, além de representantes da Câmara de Vereadores do Recife, da Assembleia Legislativa de Pernambuco, da Câmara dos Deputados, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público de Pernambuco e do Comitê Impulsor de Pernambuco da Marcha das Mulheres Negras (RECIFE, 2015b, p. 48). Para marcar presença, deixaram num local de destaque um estandarte da Articulação de Mulheres 94 Mesmo que, no CEDIM-PE não estivessem representando o coletivo maior, o FMPE, e sim as suas organizações locais. 265 Brasileiras. Antes, elas haviam pensado numa faixa do FMPE e uma com os nomes das entidades que compõem o movimento, porém, não tiveram tempo para preparar (DIÁRIO DE CAMPO, 09/09/2015). Em termos discursivos, a atitude das militantes do FMPE constituiria uma diferença diante da abertura da Conferência, que contava com diversos sujeitos políticos. Entrar no enfrentamento com a Prefeitura da Cidade do Recife não seria estratégico para a construção de articulações políticas e equivalências naquele espaço. Fazer as denúncias e realizar o enfrentamento sozinhas reforçaria o estereótipo de que os movimentos sociais estão mais preocupados em tumultuar do que construir algo. O recuo na ação reitera a organização coletiva como estratégia política do referido movimento. Como estratégia para a VI CMM, elas haviam colocado que o ideal seria articular uma conversa com as delegadas de RPAs, que faziam parte do FMPE, para verem como estariam na etapa municipal porque a conjuntura estava muito difícil. Nessa mesma reunião, observaram que seria preciso o FMPE fazer um momento de reflexão sobre as conferências porque estavam investindo muito para um resultado muito pequeno. Diante das denúncias de despolitização das conferências, seria necessário fazer protesto na VI CMM (DIÁRIO DE CAMPO, 09/09/2015). Apesar de não terem realizado os protestos, elas marcaram presença na definição de delegadas, conseguindo a reserva de três vagas numa discussão bastante tensa em que conseguiu se articular com a CUT e a MMM, que se contrapuseram à UBM95. Em âmbito local, a relação do FMPE com a UBM era muito complicada. O movimento já fez parte do FMPE e, segundo me foi relatado por militantes de ambos os movimentos, saiu depois de muito desgaste. Muitas militantes da UBM têm uma relação estreita com o PCdoB e, no âmbito local – Recife e Pernambuco – o partido é aliado ao PSB, que apoiou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Já no âmbito nacional, o PCdoB tem uma relação mais estreita com o PT. Esses contextos podem explicar a não aliança do FMPE com a UBM na Conferência Municipal do Recife. Estava em jogo ali a definição de delegadas para etapa estadual. Ou seja, ainda era um âmbito de aliança com o PSB. Neste sentido, o resultado foi um “nós” composto pelo FMPE, CUT e MMM em contraposição ao “elas”, referente à UBM. Em termos numéricos, o “nós” se sobressaiu na relação hegemônica. 95 Na etapa municipal, o FMPE se aliou à CUT e à Marcha Mundial das Mulheres (MMM), que ainda não fazia parte do Conselho, para articular a quantidade de vagas de cada movimento e a UBM ficou isolada. Cheguei a ouvir as integrantes desse último movimento dizendo que o FMPE, a CUT e a MMM aguardassem para etapas seguintes, pois o movimento tinha força no Estado e no país. A resposta da integrante da Marcha foi que movimento delas era mundial (DIÁRIO DE CAMPO, 12/09/2015). Já na etapa estadual, os movimentos voltaram a se articular para dividir as vagas e, dessa vez, não houve esse tipo de conflito. Elas pareciam se equivaler em torno do ponto nodal da defesa da presidenta Dilma Rousseff, pois estavam ligadas de alguma forma ao PT e ao PCdoB, partido aliado do governo. 266 6.3 Contexto político Na primeira reunião em que estive presente, o momento político já era referido como complexo, de embate, que retirava a força da criatividade de pensar. Falou-se no exemplo do adesivo com a imagem de Dilma Rousseff e a bomba de combustível96 como algo horrível e que as deixou perplexas. Era um momento também do Poder Legislativo nas três esferas estar ocupado por pessoas conservadoras e fundamentalistas. Foi considerado um contexto machista e misógino em que se colocava a culpa de tudo no Governo Federal. Não se havia feito o mesmo com Fernando Henrique Cardoso, com Lula ou, no âmbito municipal, com Geraldo Júlio. Mas, na concepção delas, com uma mulher à frente do país, as críticas eram muito mais pesadas (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Esse contexto perpassou todo o ciclo de conferências e influenciou de uma maneira contundente a atuação dos movimentos sociais, orientando os discursos dos sujeitos políticos. Isso ficou claro para mim ao longo das etapas ao registrar as faixas, no âmbito estadual, “#NãoVaiTerGolpe”, “#FicaDilma”, colocadas pela UBM e, na nacional, “Tô com Dilma por amor ao Brasil”, “Mexeu com uma, mexeu com todas, força, presidenta Dilma, as Margaridas do Acre estão com você”, “Mulheres contra Cunha. Aborto legal, seguro e gratuito” (MMM), “Mulheres com Dilma”, “Mulheres contra o golpe”. Nas palavras de uma das conselheiras do CNDM e que integra a AMB, era um momento contraditório, com uma estrutura adversa, mas que, ao mesmo tempo, era única para as mulheres, pois na mesma época haveria três eventos: Marcha das Margaridas, Marcha das Mulheres Negras e Conferências de Políticas para as Mulheres (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). No âmbito local, as diferenças estavam muito mais dispersas ou, nos termos de Laclau e Mouffe, os elementos se sobressaiam mais do que os momentos – as diferenças discursivamente articuladas. Na medida em que se passou do município para o Estado, os sujeitos espalhados por diversas cidades se reuniram num único espaço – a IV CEPM-PE – e as equivalências foram sendo constituídas. As diferenças relacionadas às críticas às gestões do PSB, por exemplo, feitas pelo FMPE já não apareciam mais com tanta intensidade na etapa estadual. Em nível nacional, a defesa de Dilma Rousseff significava também a garantia das políticas conquistadas nas gestões petistas no Executivo nacional. As diferenças de atuação ou estratégias políticas dos mais diversos movimentos e 96 Em junho de 2015, foi produzido um adesivo com o rosto da presidenta e as pernas abertas para ser colado no local onde se coloca da mangueira de combustível nos carros. Ao inserir o líquido, seria transmitida a ideia de estar penetrando sexualmente Dilma Rousseff. O adesivo estava sendo vendido pela internet sob o argumento que se trava de um protesto contra o aumento da gasolina. O mesmo causou indignação perante um ato de violência sexista. 267 sujeitos políticos foram diluídas em torno da equivalência do discurso hegemônico das “mulheres com Dilma”. Foi colocado também que a baixa participação nas pré-conferências tinha a ver com a política que se estava vivendo, com a cooptação das lideranças políticas e a fraca mobilização dos movimentos sociais (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Esse problema não era algo novo, pois ao longo das gestões petistas no Executivo nacional, foram apontados problemas decorrentes da proximidade dos movimentos sociais com o Governo, que os deixou em situações complicadas para fazer a crítica ou oposição. No caso do Recife e de Pernambuco, houve gestões também próximas com movimentos sociais, tanto do PT como do PSB. No entanto, esse contexto tem mudado ao longo dos anos e, conforme análise aqui feita, percebi que a burocratização dos espaços de diálogo com a sociedade civil, nos casos aqui estudados, os Conselhos de Direitos das Mulheres, afastou setores dos movimentos sociais, que não se sentem mais representados nem como espaço legítimo de construção em conjunto. Nessa perspectiva que defendo, os discursos políticos se tornaram antagônicos e, para serem fixados, foram necessárias relações hegemônicas, que ressaltam determinadas ideias e sujeitos políticos em detrimento de outros sob a pretensa imagem de universalidade. Foi colocado também que, em cada município, havia a justificativa de cortes de gastos. Registrei a seguinte fala: “Estão metendo a tesoura em tudo dos nossos direitos” (DIÁRIO DE CAMPO, 09/09/2015). Mais uma vez, vejo a relação antagônica em que os governos municipais são encarados como ameaças aos direitos da população e, mais especificamente, das mulheres. Mas, ao mesmo tempo em que são encarados como ameaças, é perceptível na fala das militantes do FMPE que o Estado é o responsável pela implementação e execução das políticas públicas para as mulheres. Essa percepção delas foi fundamental para a atuação naquele contexto e, principalmente, nas equivalências em torno do ponto nodal relacionado à garantia do que havia sido conquistado. Isso ficou bastante nítido quando, em agosto de 2016, o FMPE realizou o Encontro Estadual com mais de 200 mulheres e que uma das frases ditas e que estava estampada em uma das camisas vendidas no local era “Nenhum direito a menos”. Essa frase foi relançada em outra camisa em 2017, no contexto das denúncias de corrupção envolvendo o presidente Michel Temer sob o slogan “Pelas diretas, pelos direitos” em referência à campanha das eleições diretas para o Executivo, já que havia a possibilidade de, caso Temer sofresse impeachment, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, assumisse ou houvesse eleição indireta, a depender do período em que fosse deposto. As demandas foram os elementos que se articularam em torno do significante da defesa dos direitos conquistados. Foi essa equivalência – em torno da defesa dos direitos conquistados -, 268 inclusive, que impulsionou o que muitas apelidaram por “Primavera Feminista”, que marcou a luta do “Fora, Cunha”, contra o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, em 2016, visto como inimigo das mulheres. No entanto, o referido ponto nodal – defesa dos direitos conquistados – parece não ter agregado forças além do movimento de mulheres e feministas ou, mesmo, dentro deles, permanecendo como diferença em formações discursivas que denunciavam que havia um golpe parlamentar-judiciário em curso no Brasil. Isso remonta a uma constante crise dentro da esquerda: unir-se em torno da luta de classes – vista por diversos movimentos, sobretudo, o sindical, como a principal – ou defender as pautas identitárias, nas quais as mulheres estão inseridas. O significante “nenhum direito a menos” pode ser compreendido como vazio e, na disputa pela sua significação, outros significados se sobressaíram, como as lutas trabalhistas, da saúde, da educação, dentre outras. Na contraposição ao Projeto de Emenda Constitucional n° 241 (na Câmera dos Deputados) ou 95 (no Senado Federal), que congela os investimentos em saúde, educação e segurança pública por 20 anos, a incidência na vida das mulheres era vista como uma pauta do movimento feminista ao passo que às mulheres cabia o enfrentamento como um todo. Ou, dito de outra forma, o significante “nenhum direito a menos”, quando não era proferido pelos movimentos de mulheres e feministas, acabava ganhando o sentido de lutas gerais, como a trabalhista, a previdenciária que, mesmo atingindo as mulheres, não incorpora as dimensões de gênero, que abrange, por exemplo, o trabalho doméstico – muitas vezes, atribuído às mulheres, ou as condições de trabalho em que grávidas estão inseridas. Nessa conjuntura política, uma das integrantes do FMPE defendeu que elas poderiam aproveitar o contexto para realizar a Conferência Livre para colocar em pauta questões em torno da violência e saúde. Seria uma forma de expor as suas pautas políticas (DIÁRIO DE CAMPO, 04/11/2015). Tratava-se de uma maneira de mostrar a capacidade do FMPE montar sua narrativa acerca de todo o processo e expressar a sua percepção da política naquele momento, o que não seria possível nas demais conferências, as quais estavam atreladas à manutenção do evento e num formato fixo, em que sairiam necessariamente propostas de políticas públicas em detrimento do posicionamento político em si. As questões da ausência das moções, no âmbito do Recife e das palestrantes como pessoas de referência na área, na etapa estadual, são ilustrativas dessa estrutura tecnicista, em que prevalecem discursos institucionalistas e administrativos do evento. Essa é uma questão bastante ilustrativa do que vem acontecendo com os setores de esquerda nos últimos anos, sobretudo nessa fase de 2015 e 2016, que é a predominância de discursos burocráticos associados a quem está no poder e quem faz oposição ou que simplesmente não está institucionalizado e não consegue se 269 articular em torno de um ponto nodal que imprima a função significativa nesses processos. Na própria votação do impeachment, vê-se que os setores de direita e fundamentalistas da Câmara dos Deputados, no dia 17 de abril de 2016, se uniram em torno de justificativas do tipo “por Deus, pela minha família” para combater a corrupção e dizer sim à investigação da Presidenta, que culminou na sua destituição meses depois, em agosto. No caso aqui estudado, o discurso da politização nas conferências era deixado de lado diante de um discurso hegemônico de realização do evento e, portanto, cumprimento do que havia sido decretado pelos governos. 6.4 Etapa estadual As integrantes estavam atentas ao quantitativo de vagas da sociedade civil para etapa estadual e notaram uma inconsistência na divisão para cada município. Colocaram que seria preciso que a SecMulher-PE informasse como aconteceu essa distribuição. Frente a isso, seria necessário identificar as integrantes do CEDIM-PE que são parceiras para marcar uma reunião com o intuito de saber dessa divisão das vagas e poder se nortear para fazer algo. Houve uma avaliação de que a situação da conferência estadual estava muito difícil. Na do Recife, as integrantes do FMPE estavam acompanhando e fazendo a contraposição, o que não estavam percebendo em relação ao CEDIM-PE (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Mesmo que houvesse as ressalvas em relação a esse instrumento de participação, o Conselho, é feita uma análise de que ele cumpre um papel e, na ausência do embate político feito a partir dos discursos antagônicos entre os sujeitos políticos ali presentes, um discurso exerce a função hegemônica e transmite a ideia de que foi construído coletivamente. Havia um receio nas reuniões do CEDIM-PE sobre conflitos na etapa estadual. Cheguei a ouvir de uma representante governamental que a leitura do regulamento levaria tempo porque as mulheres são complicadas (DIÁRIO DE CAMPO, 03/11/2015). Trata-se de uma visão estereotipada e que demonstra posições divergentes: a conselheira da sociedade civil apresenta uma defesa do debate em torno do regulamento, que seria o que ditaria as regras da conferência estadual, já a representante governamental busca formas de acelerar o processo, numa lógica em que os embates políticos são vistos como complicação feminina. Isso remete à distinção que Chantal Mouffe faz entre “a política” (politics) e “o político” (the political): Por “o político” refiro-me à dimensão do antagonismo inerente às relações humanas, um antagonismo que pode tomar muitas formas e emergir em 270 diferentes tipos de relações sociais. A “política”, por outro lado, indica o conjunto de práticas, discursos e instituições que procuram estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre afetadas pela dimensão do “político” (MOUFFE, 2005, p. 20). Ela acrescenta que, para formular a questão central para a política democrática, é preciso reconhecer a referida dimensão do “político” e entender que a “política” consiste em domesticar a hostilidade e em tentar conter o antagonismo em potencial que existe nas relações humanas. Assim, abandona-se o ideal da sociedade democrática como realização de uma perfeita harmonia e encara-se a existência do antagonismo. A sua negação é a principal deficiência do liberalismo (MOUFFE, 2015a, p. 9) Frente a isso, a autora defende o modelo do pluralismo agonístico, em que os conflitos são inerentes e as paixões devem ser mobilizadas em prol dos desígnios democráticos. Em suas palavras: Vislumbrada a partir da óptica do “pluralismo agonístico”, o propósito da política democrática é construir o “eles” de tal modo que não sejam percebidos como inimigos a serem destruídos, mas como adversários, ou seja, pessoas cujas ideias são combatidas, mas cujo direito de defender tais ideias não é colocado em questão. [...] Um adversário é um inimigo, mas um inimigo legítimo, com quem temos alguma base comum, em virtude de termos uma adesão compartilhada aos princípios éticos-políticos da democracia liberal: liberdade e igualdade (MOUFFE, 2005, p. 20). Não se podem resolver os desacordos presentes nas discussões a partir da deliberação racional. É por uma solução não racional para o conflito que se deve visualizar a sua dimensão antagonística. Para ela (MOUFFE, 2005, p. 20): “Isso não significa, obviamente, que adversários não possam cessar de discordar, mas isso não prova que o antagonismo foi erradicado”. Ao analisar as situações que remetem aos receios de conflitos associados, sobretudo, à postura da sociedade civil em questionar o Estado, vê-se que remetem à negação “do político” e um discurso de valorização da ordem imposta “pela política”. A própria estratégia de se realizar os debates e a construção de documentos importantes, como o regimento e o regulamento, indicam tentativas de se evitar a emergência dos antagonismos, inerentes ao processo político. Ao exercer uma relação de poder na construção das conferências, o governo acaba por tratar quem venha a discordar como inimigo e não como adversário, tal como defende Mouffe no modelo do pluralismo agonístico. O que eu percebia, muitas vezes, eram formas de não dar visibilidade às tensões dentro do CEDIM-PE ou, ainda, maneiras de colocar os tensionamentos e conflitos como algo negativo, que comprometia o processo de construção e, posteriormente, de concretização da Conferência Estadual. Por 271 outro lado, havia enunciados na sociedade civil de que os conflitos fazem parte desses espaços e não precisam ser vistos de forma ruim. O que percebo é uma disputa em torno do sentido de “conflitos”. Foi colocado que o FMPE deveria promover uma conversa com as delegadas que integram os movimentos de mulheres para ver de que forma iriam atuar e que elas não estavam aceitando o fato de a Conferência Estadual não estar seguindo o tema da Nacional (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2015). Ao observar os eixos temáticos da etapa municipal e estadual, vê-se que o Eixo I da Conferência Nacional não foi abordado integralmente nas etapas anteriores, que é o que aborda o controle social e a sociedade civil. Os eixos III e IV, Sistema político com participação das mulheres e Sistema Nacional de Política para as Mulheres, respectivamente, fizeram parte de discussões mais gerais, sem especificar o Sistema em si, como foi feito na etapa municipal. Não se discute, portanto, como o Estado está estruturando as políticas. As diferenças referentes a temáticas do controle social, da participação política e do sistema que garantisse a implementação e execução dessas políticas foram deixadas de lado em nome de uma Conferência que parecia seguir o modelo das anteriores e continuar formulando propostas de políticas públicas ao invés de avançar por outros caminhos. Além disso, ao não se discutir os Sistemas (Político e de Políticas), o que se faz é priorizar uma dimensão individual da política e não coletiva e que pode enfraquecer a capacidade de interferência da própria sociedade civil. Foi colocado no FMPE que a força política é a força da organização. A queixa da integrante do FMPE é uma denúncia de insatisfação perante uma parte da discussão que seria silenciada. Como pesquisadora, não vi em nenhum momento uma discussão em torno dos temas dos grupos de trabalho no CEDIM-PE. Elas podem ter acontecido no ambiente virtual. No conselho municipal, quando comecei a frequentar as reuniões, em agosto de 2015, já estavam acontecendo as pré-conferências e os eixos temáticos já haviam sido definidos. Portanto, não tive conhecimento de como foi discutido. 272 Quadro 5 - Eixos temáticos por cada etapa das Conferências de Políticas para as Mulheres RECIFE Eixo I: Sistema de Políticas para as Mulheres; Eixo II: Mulheres e direito à cidade; Eixo III: Enfrentamento à violência; Eixo IV: Educação não sexista, antirracista e não lesbofóbica; Eixo V: Atenção integral à saúde das mulheres e respeito aos direitos sexuais e reprodutivos; Eixo VI: Autonomia econômica das mulheres; Eixo VII: Sistema político com participação e igualdade para as mulheres. PERNAMBUCO NACIONAL Eixo I: Estruturas Eixo I - Contribuição dos institucionais e políticas conselhos dos direitos da mulher e dos movimentos públicas desenvolvidas feministas e de mulheres para as mulheres: para a efetivação da a) Descentralização e igualdade de direitos e oportunidade para as interiorização; mulheres em sua b) Financiamento da diversidade e especificidades: avanços e política de gênero; desafios; Eixo II: Diretrizes para a Eixo II - Estruturas política metropolitana; institucionais e políticas desenvolvidas Eixo III: Consolidação de públicas políticas públicas para as para as mulheres no âmbito municipal, estadual e mulheres rurais em federal: avanços e desafios; Pernambuco; Eixo III - Sistema Político participação das Eixo IV: Acesso a direitos com mulheres e igualdade: e intersetorialidade; Recomendações; Eixo V: Mulheres: Eixo IV - Sistema participação, poder político Nacional de Políticas para as Mulheres: subsídios e e autonomia econômica. recomendações. Fontes: Regimentos de cada etapa (RECIFE, 2015a; PERNAMBUCO, 2015; BRASIL, 2015b). Elaboração própria. Foi colocada a preocupação em os movimentos feministas quererem construir o Sistema Político com participação para as mulheres, tema ausente na etapa estadual. Ele diz respeito à reforma política e era estratégico para o FMPE, por exemplo. Essas mudanças temáticas de uma esfera para a outra revelam uma ruptura na discussão das políticas. Uma das conselheiras nacionais, numa reunião comigo realizada no Recife no dia 22 de maio de 2015, explicou que já havia um acúmulo de proposições fruto das discussões e propostas encaminhadas pelas três conferências do segmento e, diante disso, a proposta daquela 273 conferência era pensar no processo de operacionalização e efetivação das políticas públicas (DIÁRIO DE CAMPO, 22/05/2015). Era para ser algo mais operacional em torno de tudo o que já havia sido discutido nas três edições anteriores das conferências e que geraram três edições do Plano Nacional de Política para as Mulheres. Essa mesma conselheira estava numa reunião do FMPE e apontou duas questões que, em sua visão, indicavam problemas: estava sendo priorizada uma dimensão individual da participação das mulheres, quando a proposta da IV CNPM era fortalecer a participação como participação organizada, coletiva. A segunda questão é referente à interpretação de que o objetivo não estava sendo cumprido de se debater como os municípios e o Estado estavam estruturando suas políticas, estruturas, programas, pois o evento estava sendo visto majoritariamente como preparação para etapa seguinte (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Já em relação às eleições de delegadas das entidades gerais para etapa estadual, as integrantes do FMPE elencaram os seguintes critérios: legitimidade/representatividade, diversidade e territorialidade. São semelhantes aos critérios de eleição das conselheiras municipais do Recife e que demonstram quem eram os sujeitos em quem elas acreditavam que podiam construir articulações políticas, que eram sujeitos que tivessem uma atuação estadual nas lutas feministas, podendo ser integrantes de espaços mistos, como sindicatos. Reitera também a atuação estadual do movimento, que está presente em cinco regiões do estado na seguinte representação: Fórum de Mulheres do Araripe; Fórum de Mulheres do Pajeú; Fórum de Mulheres do Agreste; Articulação de Mulheres da Mata Sul e Fórum de Mulheres de Pernambuco - Região Metropolitana do Recife. A dimensão territorial traz também uma diversidade de sujeitos que agem articulados em torno de diversas pautas. No caso das eleições para delegadas, mesmo que não conseguissem eleger pelo movimento, havia a possibilidade de as mulheres saírem como representantes de comunidades no Recife, nos municípios no interior do Estado. Na etapa seguinte, elas se articulavam em torno das pautas do Fórum. Foi colocado que elas estavam numa guerra política contra o os governos - Estadual e municipais - e a Conferência Estadual não seria o espaço para aplaudir o governador. Por isso, precisavam fazer o possível para elegerem três delegadas pelo FMPE na Conferência Municipal do Recife. Mas, caso avaliassem que as articulações não estavam favoráveis, abririam mão de uma vaga (DIÁRIO DE CAMPO, 09/09/2015). Embora suas falas fossem de muitas queixas e de descrédito em relação aos eventos, elas enxergavam os espaços como tendo uma importância no processo articulatório e para marcar presença. Em outra reunião, 274 uma conselheira estadual que faz parte do FMPE colocou que a Conferência não era coisa de Governo, pois foi o movimento social que foi para rua exigir, que fez e que iria. Ela completou dizendo que não seria o Governo que iria enfrentar as mulheres, mas o contrário (DIÁRIO DE CAMPO, 04/11/2015). Percebem-se nitidamente as posições de sujeito e os antagonismos decorrentes delas. Havia tensões em ambos os lados e ora elas se tornavam mais explícitas, como nessas falas, ora apareciam com menos forças na presença de outros sujeitos, como as reuniões dos referidos conselhos. Mas, é possível perceber que o processo das Conferências de Políticas para as Mulheres que acompanhei e que pode ser uma realidade de outros espaços de participação e controle social, funciona a partir de disputas e de relações de poder. Portanto, a ideia de Governo e sociedade civil construindo algo juntos se depara, no contexto que estudei, com disputas em torno de projetos políticos e, em meio aos antagonismos, emergem relações hegemônicas que transmitem a ideia de eventos construídos em conjunto. Mouffe resalta que: Para dar conta do “político” como possibilidade sempre presente de antagonismo é preciso aceitar a inexistência de uma situação definitiva e reconhecer a dimensão de irredutibilidade que permeia toda ordem. Em outras palavras, é preciso reconhecer o caráter hegemônico de todos os tipos de ordem social e o fato de que toda sociedade é o resultado de u conjunto de práticas que tentam estabelecer ordem em um contexto de contingência (MOUFFE, 2015a, p. 16). Em sua concepção, o político é identificado com atos da instituição da hegemonia. Portanto, nessas disputas antagônicas, no âmbito estadual, os projetos que se sobressaíram estavam ligados muito mais a discursos administrativos e político-institucionais e que era aprovado também pela sociedade civil ao passo que havia sujeitos em ambos os segmentos – governo e sociedade civil - que disputavam o sentido de politização nesses espaços. Porém, o que mais se sobressaía era a disputa entre o campo das técnicas e burocráticos e o da qualidade política. Quanto ao orçamento, foi questionado se o Conselho tinha estrutura para que as conselheiras pudessem participar das conferências municipais e se o Estado garantia a participação delas. A integrante que fez essas perguntas relatou que, no Conselho Estadual da Saúde, era garantido o custeio da participação dos conselheiros e das conselheiras, inclusive, da sociedade civil. O governo garantia a estrutura de transporte e alimentação. A conselheira que integra o FMPE respondeu que as representantes da SecMulher-PE colocaram que não, o valor destinado à IV CEPM-PE não havia sido disponibilizado e que toda a articulação junto 275 aos municípios havia sido feita pelo próprio órgão junto às gestoras de OPMs e que não haveria recursos para as conselheiras do Recife que quisessem ir às conferências distantes (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015). Esses relatos evidenciam uma fragilidade das políticas para as mulheres, em que não existe orçamento fixo nem é colocado de forma clara do que a SecMulher-PE dispõe. A área da Saúde, assim como Educação e Assistência Social, tem um histórico de consolidação das políticas e, consequentemente, do controle social das mesmas. No caso estudado, o orçamento foi uma forma de excluir determinados sujeitos políticos do processo. Ou, na lógica das equivalências e diferenças, a sociedade civil acabou acatando com a versão da falta de recursos e se equivaleu ao discurso governamental de que havia outras mulheres, conselheiras que residissem próximo à região ou as próprias funcionárias do órgão, que dispunham de melhores condições para estarem presentes. Frente ao exposto, passo ao ponto seguinte acerca da Conferência Livre. 6.5 As discussões em torno do sentido de se realizar uma conferência livre Diante de todo esse cenário posto nas falas das integrantes em relação não só à realização das conferências nos municípios, mas à própria conjuntura política, elas avaliaram que seria preciso adotar uma estratégia para fazer a crítica de como o processo conferencista estava acontecendo e para mostrar o que elas chamam de “força política das mulheres organizadas”. Neste sentido, em suas palavras, a estratégia de realizar a conferência livre se tornava necessária (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). A preocupação era como discutir e criticar o processo, bem como influenciar nas decisões da Conferência Nacional, já que o regimento previa que o relatório do evento fosse enviado à organização nacional para que se incorporassem as propostas. Outra colocação era de que seria preciso fazer da conferência livre uma possibilidade de mudar a correlação de forças nas conferências governamentais (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2018). Vê-se uma estratégia frente a disputas antagônicas em relação às etapas eletivas, convocadas pelo Poder Executivo nas diferentes esferas do governo e que segue um formato sobre os quais elas não têm muita força e influência. Mais uma vez, na reunião do FMPE, percebi as diferenças de discursos quando colocaram as etapas eletivas97 como um “eles” e as que estão “presas”98, como foi dito na abertura da Conferência Livre (DIÁRIO DE CAMPO, 07/12/2015). Já a etapa livre está na dimensão do “nós”, que é 97 As que são convocadas pelos Organismos de Políticas para as Mulheres ou Poder Executivo daquela localidade e pelos Conselho de Direitos das Mulheres. 98 Denominação dada por elas na reunião. No relatório, é possível conferir que as conferências estão cada vez mais “amarradas” aos interesses dos governos, excluindo, muitas vezes, a presença dos movimentos sociais organizados (FÓRUM et al, 2015a). 276 realizada em contraposição ao “eles”, mas ao mesmo tempo tem o sentido de livre em contraposição ao que está preso. Se elas não conseguiram ultrapassar o discurso hegemonizado pelas organizações das etapas municipal e estadual, que estiveram pautados nas questões estruturais e de manutenção dos eventos, a Conferência Livre era o momento de colocar no centro o debate político e de como questões mais amplas das políticas públicas impactavam diretamente o cotidiano das mulheres que estavam participando. Era, portanto, o momento de pautar demandas que, na correlação de forças com o Estado, eram tornadas invisíveis em nome de uma necessidade maior, que era realizar o evento e cumprir, dessa forma, com os decretos governamentais. Na palavra de uma delas, era um momento de contraposição e que, se não servisse para impactar diretamente as conferências, seria uma maneira de confrontar as gestões, já que não se falava nada e não havia respostas para as questões que os movimentos faziam (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Como estratégia de organização, elas colocaram que seria necessário marcar um momento de conversa com integrantes de outros grupos e movimentos de mulheres para dialogarem sobre a realização do evento. Mais do que estarem preocupadas com a construção de propostas, a Conferência Livre, para elas, seria uma estratégia de criticar os demais processos e poderia influenciar em várias direções. O próprio processo de mobilização em si já era alguma coisa, pois tinha força política (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Novamente, nota-se a estratégia da luta coletiva e articulada com outros sujeitos políticos. Isso dá visibilidade ao movimento e permite que as articulações não se restrinjam a esses momentos. É interessante perceber que a realização do evento eletivo constituía um elemento norteador na construção da Conferência Livre. Embora houvesse críticas aos processos municipais, a etapa livre era uma resposta às demais etapas – as convocadas pelos governos. Ou, dito de uma forma, era um posicionamento diante das outras e da impossibilidade de imprimir uma significação na construção delas. Era, portanto, a forma de discutir temáticas relacionadas diretamente aos problemas cotidianos das mulheres, algo que não tinha espaço nas demais conferências, presas à exigência de formular propostas de políticas públicas e sem discutir como essas políticas estavam incidindo no dia-a-dia dos sujeitos. Uma das colocações feitas na reunião de organização da Conferência Livre, realizada no dia 28 de novembro e sobre a qual discorrerei com mais profundidade mais adiante, reiterou a importância de convocar mulheres e coletivos que estavam presentes na organização do Ato Unificado do 8 de Março – Dia Internacional da Mulher – e 28 de Setembro – Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina, o que evidencia a aposta do FMPE nas articulações com diversos sujeitos políticos como sentido da 277 força política. Isso foi reforçado no momento em que uma das integrantes do FMPE disse que o fato de ter uma aliança mais ampla, de mobilizar, já teria um impacto nessa correlação de forças, pois era uma forma de mostrar que o Governo não estava tão livre e no controle como se julgava (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Percebem-se as posições de sujeito antagônicas a partir da visão da associação do Governo ao controle e divergentes na medida em que é associado ao que se julgava livre para fazer o evento da forma como desejasse. Foi colocado também que a militância feminista do Recife tem a capacidade de tornar visível o que acontece na cidade e de alguma forma se torna exemplo para os demais municípios. Seria preciso, então, aproveitar o momento de disposição coletiva para agregar as mulheres do Estado e o FMPE teria uma certa responsabilidade e capacidade de fazer isso. Em meio às dificuldades elencadas, seria muito importante se fazer uma conferência livre e que seria um mecanismo de participação ampliada (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2015). Isso está relacionado ao que Alinne Bonetti (2007, p. 73) coloca como o Recife sendo a “Meca” feminista do Nordeste, num reconhecimento da centralidade e importância da cidade para o feminismo e corrobora a ideia de que a principal referência dessa “Meca” é o Fórum de Mulheres de Pernambuco. As integrantes do movimento parecem também ter essa percepção e isso fica claro na defesa do Fórum como o sujeito articulador dos demais movimentos. De acordo com a Teoria do Discurso, é possível pensar nos diversos coletivos, inclusive o FMPE, como elementos dispersos nas lutas sociais e pautas feministas, que seriam articulados em momentos, como a Conferência Livre, em torno de pontos nodais, sobre os quais discorrerei mais adiante. Suas diferenças seriam deixadas de lado num dado momento em nome de demandas e pautas equivalentes entre si e com uma imagem de universalidade contextual e contingente. As integrantes do FMPE, em suas falas, apresentavam uma percepção do movimento como um elemento central e aglutinador das forças políticas feministas naquele contexto. Isso ficou claro quando colocaram que poderiam pensar numa posição e começar a organizar o evento como uma estratégia inicial de debate com outros movimentos em Pernambuco e, assim, construir alianças, além de fazer o processo avaliativo em conjunto. A palavra articulação foi central em suas falas. O Ato Unificado, que marcou o dia 8 de Março seguinte ao evento, em 2016, pode ter sido fortalecido pelo diálogo feito na Conferência Livre. O próprio slogan foi o mesmo: “Pela Vida das Mulheres” e levou mais de 5 mil pessoas à caminhada pela principal via do centro do Recife, a avenida Conde da Boa Vista. Foi colocado, também, que uma Conferência Livre não deveria ser só de queixas e que precisaria ter um mínimo de acordos propositivos e teria como um dos objetivos a criação de um documento para a IV CNPM (DIÁRIO DE CAMPO, 30/07/2015). Seria também o 278 momento de elas refletirem acerca do sentido de estar ou não nos espaços de participação e controle social. Para a realização, precisavam de recursos financeiros que bancassem o transporte e a hospedagem das militantes oriundas do interior de Pernambuco e a alimentação de todas as participantes (DIÁRIO DE CAMPO, 13/08/2015). Esse é um aspecto que diferencia uma articulação como o FMPE e a CUT de outros movimentos, pois o Fórum é composto de organizações que possuem CNPJ e, por isso, conseguem financiamentos para seus trabalhos e ações junto à articulação política, já a CUT recebe as contribuições dos sindicatos. O próprio Encontro Estadual, realizado no assentamento do MST, em agosto de 2016, e que contou com a presença de mais de 200 mulheres, foi possível por um projeto em conjunto de ONGs que compõem o FMPE. Portanto, um evento do porte estadual, como a Conferência Livre, só seria possível se houvesse alguma instituição que conseguisse captar recursos. Neste sentido, o FMPE cumpriu uma função política ao convocar os demais coletivos e movimentos, mas, principalmente, organizativa e operacional, que o colocou em uma posição de destaque como impulsionador do evento. Em âmbito nacional, foi argumentado, na plenária da Articulação de Mulheres Brasileiras, que, considerando a situação das conferências, a estratégia do movimento seria investir nas conferências livres como força agregadora e deveria organizar passeatas ou formas de falar com as mulheres, construir alianças políticas e uma manifestação no fim do evento (DIÁRIO DE CAMPO, 04/11/2015). Vê-se, portanto, que o FMPE é um movimento local, mas age em consonância com o que é debatido e definido nacionalmente e a realização da conferência livre é uma estratégia de participação da AMB. De uma forma sintética, seria uma maneira de discutir propostas, ter voz própria, pois nos eventos convocados pelo Poder Executivo não conseguiam devido a boicotes e guerras de poder. Defendeu-se a necessidade de colocar as propostas elencadas na Conferência Livre, realizada no presídio Colônia Penal Feminina Bom Pastor, no dia 08 de setembro (DIÁRIO DE CAMPO, 04/11/2015). Não pude perceber nos documentos disponibilizados pela Secretaria da Mulher do Recife o que havia sido discutido na referida conferência. O que ficou claro para mim é que as mulheres privadas de liberdade não tinham como discutir políticas para o segmento num contexto de total privação de direitos humanos. No grupo que acompanhei, como relatei no capítulo 3, houve relatos de uma realidade de extrema violação da dignidade. Neste sentido, esse formato de desabafo não cabia num documento que seguia orientações mais burocráticas, de uma quantidade determinada de propostas em cada unidade federativa. Aquelas mulheres pareciam necessitar muito mais de voz própria. Esse contexto é semelhante ao que ouvi nos espaços do FMPE em que se falou da necessidade de elas 279 colocarem o que estavam pensando e da Conferência Livre cumprir esse papel. Isso tem a ver com a diversidade do sujeito “mulheres” e que o formato das conferências eletivas se assemelhava a um tradicionalismo que não abrange a sua diversidade. Como abordei no capítulo 1, as mulheres vivenciam as desigualdades sociais e, mais especificamente, de gênero de formas diferentes e a proposta de abordar as dificuldades enfrentadas em sua vida cotidiana traz a dimensão da interseccionalidade. Sobre o contexto do fim dos anos 1970 e 1980 nos Estados Unidos, bell hooks coloca que as mulheres negras/não brancas desafiaram o racismo feminino branco. Sobre isso, ela relata: Estávamos mais bem posicionadas para criticar o racismo e a supremacia branca dentro do movimento de mulheres. Mulheres brancas individuais que tentaram organizar o movimento ao redor do mote da opressão comum, evocando a noção de que mulheres constituíam uma classe/casta sexual, eram as mais relutantes a reconhecer diferenças entre mulheres, diferenças que ofuscavam todas as experiências comuns compartilhadas entre mulheres. Raça era a diferença mais óbvia (HOOKS, 2018, p. 91). Como se pode observar, as opressões não são as mesmas e, conforme a teoria feminista pós-estruturalista utilizada neste trabalho, é preciso entender as relações de poder por trás desse sujeito “mulheres”. A metodologia construída pelo FMPE de fazer da Conferência Livre um espaço de pensar a vida das mulheres, traz à tona essa noção de interseccionalidade na medida em que se propõe a discussão da vida desses sujeitos e é um reflexo da diversidade de sujeitos que integram o movimento. A Conferência Livre funciona como uma possibilidade de ser espaço de articulação de discursos em torno da vida das mulheres, a partir de diversas queixas e indignações diante não só de um controle social considerado enfraquecido, mas da democracia participativa com diversas falhas e sem cumprir o papel de discutir o papel de políticas públicas diretamente na vida das mulheres. Os elementos dispersos, sob o formato de reclamações, se equivalem em torno da necessidade de, segundo elas, fortalecer o coletivo, os movimentos sociais. Tratavase, além disso, de mostrar a sua força de contraposição frente a um contexto adverso às mulheres no Legislativo. Além do Projeto de Lei 5069/2013 relatado no capítulo 4, havia a possibilidade de ser votado o Estatuto do Nascituro, que classifica a vida desde a concepção e que, dessa forma, tornaria crime o aborto em qualquer circunstância, desde as legais, decorrentes de estupro, de gravidez de feto anencéfalo e com risco de vida para a gestante. Ou seja, as questões relacionadas a perdas de direitos estavam durante todo o tempo perpassando o campo de estudo e se equivaleram em torno do ponto nodal “Nenhum direito a menos”. 280 6.6 A construção da Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” No dia 28 de novembro de 2015, foi realizada uma reunião do FMPE, com ponto de pauta exclusivo, sobre a realização da conferência livre. Algumas questões nortearam o encontro: 1) O que justifica a convocação desta conferencia pelo FMPE?; 2) Quem elas querem convocar? Apenas as mulheres do Fórum ou as de outro movimento? E que movimentos? 3) Vai ser feita uma declaração política ou apenas um relatório para enviar para a Conferência Nacional? 4) Farão ação de rua, vigília? 5) Farão um momento de preparação estadual juntas ou separadas nas regiões? (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Apesar de muitos discursos já terem sido referidos ao longo do capítulo anterior e do presente, considero relevante retomar alguns, pois trazem aspectos fundamentais para a análise que venho construindo ao longo desta tese. A retomada à avaliação das etapas municipais é um exemplo dos eixos temáticos que trago à tona novamente. Ainda em novembro, o FMPE havia realizado o que apelida de “encontrinho”, que é um encontro estadual de caráter deliberativo que conta com a presença de representações de cada região. É diferente do outro Encontro Estadual, ao qual eu me referi anteriormente, que aconteceu no assentamento do MST em agosto de 2016, que é chamado entre elas de “encontrão”, que é mais amplo e com o objetivo de acolher quem tem alguma afinidade com o movimento e inserir num contexto de suas lutas. Eu não estava no “encontrinho”, mas o que foi colocado na reunião sobre a conferência livre é que o movimento pautou a necessidade de sua realização. Frente a isso, colocou-se o que era obrigatório ser respondido no modelo de relatório indicado pela Conferência Nacional para as conferências livres, em que se solicitava: 1) Informar os locais e data de realização da Conferência; Listar as organizações impulsoras da Conferência (caso houver); 3) Dados da responsável pelo preenchimento deste relatório; 4) Motivação para a realização da Conferência (até uma página); 5) Breve descrição da Conferência (até uma página) (BRASIL, 2015c, p. 2). Posteriormente, indicariam as propostas para cada eixo temático, envolvendo avanços, desafios, subsídios e recomendações. Frente a isso, foi colocado que havia uma diferença entre o que era obrigatório abordar e o que o movimento havia discutido no “encontrinho”, onde saíram três temas no debate: violência contra a mulher; saúde e sistema político, com ênfase na participação das mulheres; mulheres e cidade. Uma das integrantes alegou que não seria possível discutir esses temas sem inseri-lo no contexto político que estavam vivendo, com um Congresso Nacional, em suas palavras, extremamente reacionário e que a conferência do Recife seguiu o tom da despolitização. A etapa estadual não seria diferente e isso a 281 incomodava muito (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Essas temáticas são queixas recorrentes e desafiantes para os governos e, para além das propostas de políticas públicas, em âmbito mais geral, o que se chegam nas reuniões de movimentos feministas e nos próprios Conselhos de Direitos das Mulheres são histórias reais e concretas de desigualdades de gênero e a necessidade de ações estatais. Como abordei no capítulo 1, nas últimas décadas da história do feminismo no Brasil, existe uma convergência de lutas em torno das demandas em prol de ações do Estado para combater as desigualdades de gênero. As leis 11.340/2006 e 13.104/2015 que dizem respeito, respectivamente, à Lei Maria da Penha e Lei do Feminicídio, que combatem a violência doméstica e o assassinato de mulheres em decorrência do seu gênero, são respostas oficiais para problemas cotidianos enfrentados pelas mulheres. Porém, discutir as propostas nas conferências e construir um relatório ou anais dos eventos parecia não suprir mais as necessidades das mulheres frente a uma realidade fortemente problemática. Neste sentido, era preciso encontrar uma maneira de fazer algo diferente e combativo, que elas demarcassem sua posição antagônica perante os Governos Municipal e Estadual e, ao mesmo tempo, conquistassem mais integrantes para aquelas perspectivas. Foi colocado que o governo estadual conseguiu desmobilizar praticamente toda a construção das conferências e que utilizava a justificativa da falta do recurso para não pagar o transporte das conselheiras para acompanhar as etapas municipais, conforme foi abordado no capítulo anterior. Essa mesma integrante relatou que ouvia das representantes governamentais falas receosas dos conflitos entre as mulheres e desabafou o quão horrível era essa ideia que elas tinham da sociedade civil. Finalizou a fala dizendo que a conferência era das mulheres e dos movimentos sociais (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Vê-se novamente os antagonismos à medida que a visão de um sujeito em relação ao outro é o do conflito, o que quer desconstruir, enquanto os sujeitos governamentais são os pacíficos, que priorizam a construção do evento. A discussão política é associada a brigas e a algo negativo, atribuído aos movimentos sociais. Já o discurso tecnicista de manutenção adotado pelo governo é visto como ruim, despolitizado. São discursos políticos que não se conciliam e, quando um se sobressai, o outro assume a diferença e fica à margem daquele ponto nodal que exerce a função hegemônica e significativa em dado contexto. Frente a isso, os movimentos sociais, que não conseguem ter êxito na disputa hegemônica em torno das conferências eletivas, veem na etapa livre uma possibilidade de construir suas próprias equivalências. É importante lembrar que, na perspectiva aqui trabalhada, “A construção de um espaço político com efeitos equivalenciais não somente não é incompatível com a luta democrática, como é, em muitos 282 casos, um requisito dela” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 275). Isso está relacionado à concepção de pluralidade do social e ao projeto de democracia radical. Na concepção de outra integrante, seria importante mostrar, de uma forma geral, que haviam sido as conferências municipais tanto como denúncia quanto diagnóstico a avaliação. O objetivo seria dar o tom feminista ao debate das políticas públicas, além de fazer um balanço do que significou a falta delas no Governo. Além disso, seria importante abordar os temas de uma forma que fossem interessantes ao FMPE e não se restringir apenas ao que a SPM exigia. Foi colocado que era importante cumprir com isso, mas, sobretudo, pensar no que estava acontecendo na vida das mulheres (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Isso pode estar relacionado à noção de interseccionalidade, que segundo a teórica que o desenvolveu em 1989: A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002, p. 177). Esses eixos de poder, como raça, classe, gênero, etnia, dentre outros, se intercruzam, fazendo que as opressões sejam vivenciadas de formas diferentes. A partir do momento que foram elencados na reunião do FMPE, no dia 28, os temas ligados às problemáticas vivenciadas pelas mulheres – cidades; conjuntura e a situação da vida das mulheres; precariedade do controle social; descartes dos movimentos sociais; participação política e paridade – elas estavam, ainda que não fosse conscientemente, propondo uma abordagem interseccional, pois esses eixos são vivenciados de maneiras diferentes a depender de raça e classe. As questões ligadas à cidade, por exemplo, atingem de formas diferentes as mulheres que moram em periferia, que muitas vezes dependem de transporte público precário, andam por ruas escuras e que representam perigo em suas vidas. A conjuntura as atingia de formas distintas também e, naquela altura, já era prenúncio de ajustes estruturais, conforme foi abordado no capítulo 2 ao falar do papel do Estado e da política econômica adotada na década de 1990 no Brasil: Em geral, são as mulheres que sofrem as conseqüências adicionais criadas pela retração dos serviços que antes eram cobertos pelo Estado. Por 283 exemplo, quando o Estado corta recursos relativos aos cuidados com os jovens, doentes e idosos, as necessidades não supridas recaem, em grande parte, sobre os ombros das mulheres, a quem tradicionalmente se atribuíram essas responsabilidades. Além disso, as adicionais estruturas de classe determinam quais mulheres executarão fisicamente esse trabalho e quais mulheres pagarão outras, economicamente desfavorecidas, para que prestem esse serviço. Assim, mulheres pobres acabam tendo de carregar o peso do cuidado da família dos outros, além da própria. As consequências do ajuste estrutural - especialmente onde a desvalorização da moeda reduziu os salários - colocam tais mulheres em uma posição econômica que as força a assumir ainda mais trabalho, geralmente marcado pelo gênero, que as mulheres da elite podem assegurar através do mercado (CREWNSHAW, 2002, p. 180). Na programação do evento, não seria suficiente apenas que se cumprissem os eixos propostos pela organização da IV CNPM, mas sim pensar num formato que abrangesse a discussão dos seus problemas de ordem mais concreta. Frente a isso, o evento, realizado no dia 07 de dezembro de 2015, começou com a fala de apresentação feita por uma integrante do FMPE e outra do Coletivo Margarida Alves sobre o que seria o mesmo e a importância da luta no campo da democracia participativa. Depois, foram divididas em grupos cujas discussões deveriam ser norteadas pelas seguintes perguntas: Quais os principais problemas que as mulheres enfrentam no seu cotidiano e na conjuntura política? Como estamos percebendo e vivendo a nossa atual conjuntura? No grupo que acompanhei, de número três, havia cerca de 18 participantes e foi falado de problemas de saúde, como anemia falciforme, que acomete, sobretudo, a população negra, e seu descaso com as mulheres; preconceito em relação à participação das mulheres na política; privatização e desmonte da saúde pública; falta de segurança, creche e água no meio rural; crise política; ataques a Dilma; PL 5069; dificuldade de governabilidade de Dilma e o fato de que seu governo não estava honrando com as promessas de campanha. De um modo geral, elas concordaram que os problemas eram antigos, mas que estavam sendo agravados pela conjuntura (DIÁRIO DE CAMPO, 07/12/2015). Em todas essas questões, seria possível trazer o debate sobre aspectos-chaves da subordinação interseccional, em que se veria que, no conjunto das problemáticas, certamente, mulheres negras e pobres estavam sofrendo mais intensamente por estarem numa situação de maior vulnerabilidade social e, com o cenário político que se anunciava, a tendência era os problemas se acentuarem frente à fusão ministerial na qual a SPM estava inserida. Porém, não disponho de uma metodologia adequada para construir uma análise baseada na interseccionalidade e no olhar para como as diversas formas de opressão se intercruzam. É o que explica Kimberlé Crenshaw: 284 O reconhecimento e a aceitação desse problema requerem que os protocolos interseccionais focalizem principalmente a análise contextual. Portanto, a atenção à subordinação interseccional exige uma estratégia que valorize a análise de baixo para cima, começando com o questionamento da maneira como as mulheres vivem suas vidas. A partir daí a análise pode crescer, dando conta das várias influências que moldam a vida e as oportunidades das mulheres marginalizadas. É especialmente importante descobrir como as políticas e outras práticas podem moldar suas vidas diferentemente de como modelam as vidas daquelas mulheres que não estão expostas à mesma combinação de fatores enfrentados pelas mulheres marginalizadas (CRENSHAW, 2002, p. 182). Diante disso, o intuito desta tese é, também, criar subsídios para outros estudos na área da democracia participativa e representativa em que se observem os aspectos interseccionais, pois ao não os levar em consideração, corre-se o risco de reproduzir uma visão pretensamente universal, que coloca as pessoas brancas como os sujeitos dessa totalidade. Segundo a filósofa e expoente do feminismo negro, Djamila Ribeiro: Se racismo e machismo são elementos fundadores da sociedade, as hierarquizações da humanidade serão reproduzidas em todos os espaços. Desse modo, a ciência já foi utilizada para legitimar racismo através dos estudos de evolução biológica do século XIX, que introduziam o conceito de “racismo biológico”, assim como para tentar provar uma suposta inferioridade natural da mulher [...]. Lélia Gonzalez, intelectual e feminista negra, aborda essa questão em suas obras. Criticando a ciência moderna como padrão exclusivo para a produção do conhecimento, ela vê a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal é branco (RIBEIRO, 2018, p. 77-78). Na perspectiva teórica pós-estruturalista aqui utilizada, é um grande dilema no campo político o reconhecimento das diferenças e, ao mesmo tempo, a construção de equivalências. Cabe destacar que, embora eu não disponha de elementos suficientes para realizar uma análise interseccional nesses termos envolvendo explicitamente raça e classe, faço o esforço de ter esse olhar para o campo de pesquisa análise. Inclusive, o primeiro contato com as integrantes do FMPE, sobre o qual relatei no capítulo 3, na reunião de 09 de julho de 2015, em que me impressionaram as diferenças de identidades entre os ambientes do CEDIM-PE e as mulheres do FMPE, uma grande quantidade de negras e moradoras de periferia, já era um anúncio para mim de que essas questões não passariam despercebidas. A questão da presente pesquisa está relacionada a como se constroem as equivalências, que nos processos políticos são tentativas de se constituir unicidades, levando em consideração que algo está sempre sendo excluindo, mas que ao mesmo tempo, possibilitam-se processos de identificação. Nessas exclusões aqui estudadas, elementos como classe e raça são de grande importância, pois quando se falam dos 285 problemas vivenciados pelas mulheres, as denúncias que surgem revelam uma série de exclusões que atingem, sobretudo, mulheres negras e pobres. É possível pontuar também que, ao falar da vida das mulheres, está-se fazendo um contraponto a um modelo de conferência que invisibiliza esse entendimento de interseccionalidade. Ao se discutirem propostas de políticas públicas sem qualquer tipo de mobilização ou preparação para o evento, estão contribuindo para que um possível discurso técnico e que não leva em consideração a diversidade de sujeitos assuma uma relação hegemônica, como o que foi visto nos Conselhos dos Direitos das Mulheres do Recife e de Pernambuco. As integrantes do FMPE consideraram que construir uma conferência livre era necessário não apenas para o Estado de Pernambuco, mas para o Brasil e que seria, ao mesmo tempo, um espaço de reflexão, de mobilização, de demarcação de autonomia frente ao Estado e para demonstrar a capacidade de mobilização do movimento. Além disso, seria o momento de abordar as questões importantes para as mulheres frente ao que estava sendo pautado, mas nas questões feministas. Elas entendiam que o processo da democracia participativa não era o suficiente para abarcar a participação delas e nem os seus interesses (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Veem-se uma série de elementos que vão se compondo em torno do ponto nodal necessidade de se fazer a conferência livre. São eles: autonomia, denúncia, capacidade de mobilização, reflexão e proposição. Ao mesmo tempo em que são uma resposta externa para outros momentos e aos governos, são internas para o FMPE, no sentido em que elas se organizaram frente ao que estava posto e à forma como acreditavam que o evento deveria acontecer. O discurso do que importava na vida das mulheres estava presente de forma constante em suas falas, mostrando que o formato de conferência apenas como momento de se definir políticas públicas não as contemplava mais por estar distante de seus problemas concretos vivenciados cotidianamente. A capacidade de mobilização era outro fator recorrente nas falas e usado como justificativa de que o Fórum deveria ser o sujeito que convocaria os demais movimentos para fazer alianças. Essa questão de como convocar dividiu seus posicionamentos. Havia quem defendesse que o Fórum deveria anunciar o evento e quem quisesse participaria. Outra integrante alegou que essa forma não era muito agregadora e que deveriam dizer: “vamos realizar a conferência livre e gostaríamos que vocês construíssem conosco”. Essa proposta era uma resposta a colocações feitas sobre quem iria convocar, se seriam movimentos de mulheres ou setoriais de movimentos mistos e se iriam para organização ou apenas 286 participação. Chegaram ao consenso de que seria a mais ampla e representativa possível, chamando diversos coletivos e que a metodologia de construção e realização deveria ser pensada de uma forma paritária entre quem estivesse no processo, pois cada movimento tem o seu tipo de prática. Seria preciso uma metodologia que desse espaço às diversas demandas, pois o tom e a participação eram instâncias discursivas. Essa questão, inclusive, foi colocada como motivo de dificuldade, pois, naquele contexto, havia muitos grupos de jovens e que tinham uma maneira distinta de atuar na política (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Isso mostra, inclusive, que a juventude é colocada por alguns sujeitos como uma diferença nesses espaços. As questões intergeracionais se mostram como desafios dentro do movimento feminista por mostrar novas formas de organização que a geração mais ligada às ONGs, bastante atuantes na década de 1990, pode ver como um caminho ainda desconhecido. A pesquisa de dissertação feita por Raíssa Araújo junto a quatro jovens nordestinas. evidencia os desafios de se pensar: [...] Como seria possível um movimento social autônomo e autossustentável num mundo globalizado e capitalista no qual as relações humanas são medidas pelas relações econômicas? E como é possível garantir renovação se não há espaço para jovens numa dinâmica de movimentos sociais profissionalizadas? Essas são perguntas que ainda não posso responder. Entretanto, grupos formados por jovens feministas como o Tambores de Safo (CE) e Negras Ativas (MG) parecem estar apontando para caminhos mais auto sustentáveis e autônomos (ARAÚJO, 2013, p. 116). Desde esse contexto e com o agravamento da crise política, muitas jovens passaram a integrar o FMPE e, em fevereiro de 2016, começaram a construir na Região Metropolitana do Recife uma expressão que mistura a cultura com a militância, que é chamada de artivismo, através da batucada feminista. A partir dessa constituição, em diversos espaços onde o FMPE está presente o som delas com cânticos feministas que entoam as atividades políticas, o que mostra que essa dificuldade é enfrentada de outra forma. Além desse destaque em relação à juventude, o pensar a metodologia de uma forma que abrangesse as diversas demandas também era um desafio que precisava ser enfrentado estrategicamente e mostrava a dificuldade política de se construir cadeias de equivalência diante de tantas diferenças. Frente a isso, foi colocado que seria importante que a convocação deixasse explícito o objetivo da conferência porque havia setores que estavam fazendo dos eventos livres espaços de defesa puramente do Governo de Dilma Rousseff ou para fazer listas de demandas (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2018). É possível dizer que, na perspectiva 287 dessa integrante, ser um espaço de formulação de propostas seria fazer o mesmo que nas etapas eletivas e que o intuito delas não era esse, mas sim mostrar o posicionamento político frente aos governos e, ainda que elas tivessem uma posição política ligada à esquerda e fossem contra o impeachment da presidenta, não abdicariam de suas críticas. Do ponto de vista discursivo, é uma estratégia de articulação delas de fazer a defesa – a equivalência, mas manter o distanciamento de determinadas práticas políticas das quais não concordem – a diferença. Portanto, nos termos de Laclau de Mouffe, podem se equivaler em certos pontos com outros grupos na defesa de democracia, e que, naquele momento, simbolizava a defesa do mandato da presidenta, mas em outros, mantiveram as diferenças como forma de atuação. Para a convocação, foram sugeridos os seguintes nomes: Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR); mulheres catadoras; ambulantes; pescadoras; de terreiro; do Fórum de Suape; Rede de Mulheres Produtoras do Nordeste; mulheres do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Brasil (MST), do Movimento dos Trabalhadores Sem-teto (MTST); da Central Única dos Trabalhadores (CUT); da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape); a juventude que construiu os atos referentes aos dias 8 de Março e 25 de Novembro99. O objetivo era que, pensando na conjuntura política e no impacto na vida das mulheres, pudesse ser uma oportunidade desses movimentos falarem de suas ações (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Vê-se a pluralidade de sujeitos políticos e de locais de atuação. A articulação de um evento em conjunto poderia significar um desafio diante de formas distintas de atuação e de pautas políticas. Após as articulações, cinco organizações impulsionaram o evento: Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE); Marcha Mundial das Mulheres (MMM); Coletivo de Mulheres Trabalhadoras da CUT/PE; Coletivo Margarida Alves e Coletivo Marcha das Vadias – Recife. No total, participaram 162 mulheres oriundas de 24 municípios e de 88 organizações (FÓRUM..., 2015a, p. 1). A ideia era expressar o que era o movimento feminista em Pernambuco e gerar sínteses a partir dos questionamentos: “o que é mesmo que importa na vida das mulheres?”, O que é mesmo que importa nesse contexto?” (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Essas unidades em torno da vida das mulheres e do contexto político são significativas da forma do FMPE atuar que, nos espaços em que acompanhei, era marcada pela análise de conjuntura e como atuar em determinados contextos. Neste sentido, as cadeias de equivalências foram articulada em torno desses dois eixos. 99 Conforme coloquei neste capítulo, significam, respectivamente: o Dia Internacional da Mulher e Dia Latinoamericano de Não Violência contra a Mulher. 288 Na convocatória, deveriam posicionar a conferência a partir da crítica não apenas ao fechamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres, mas ao conjunto de políticas econômicas e financeiras que atingiu as mulheres como algo propositivo, mas sem a ilusão de que as propostas seriam votadas na etapa nacional (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Vê-se o reforço do objetivo de marcar posicionamento político frente à conjuntura e aos impactos na vida das mulheres. Essa integrante acrescentou que elas não deveriam se esquecer do movimento porque a articulação era algo presente nas suas táticas políticas, mas que seria sempre bom garantir o espaço de organização como FMPE para que a força que elas tinham não se dispersasse e enfraquecesse o movimento (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Ou seja, era o receio de que, nos processos de articulações discursivas, a equivalência com outras demandas acabasse apagando as suas diferenças. Isso fica bastante evidente na defesa de Dilma Rousseff, que era pontuada muitas vezes por críticas ao seu modelo administrativo e econômico, mas que reconhece o que consideram avanços nas gestões petistas, conforme se vê no trecho da carta política construída a partir dos debates na Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” e que foi encaminhado para organização da IV CNPM: Nós, mulheres, reunidas na I Conferência Livre pela Vida das Mulheres em Pernambuco, com o objetivo de discutir e propor políticas públicas para nossa a igualdade, liberdade e autonomia reconhecemos os avanços conquistados pela luta feminista e materializados pelo Estado brasileiro nos últimos doze anos. Exemplos dessas conquistas são a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres, a Lei 13.104/2015 que tipifica o feminicídio, a Lei 11.340/2006 conhecida como Lei Maria da Penha, a ampliação dos permissivos legais para o abortamento em casos de anencefalia, a aprovação da PEC das Domésticas, aprovação pelo Supremo Tribunal Federal do casamento homoafetivo, entre outros. Entretanto, identificamos a ineficiência do Estado na implementação universal dos direitos conquistados. Em Pernambuco, o descaso do governo com a vida das mulheres se expressa na não efetivação das políticas (FÓRUM..., 2015c, p. 1). Na carta, elas apontaram retrocessos e fizeram um balanço dos riscos que corriam caso determinados projetos de lei fossem aprovados100, como o Estatuto do Nascituro – que consideram que há vida desde o momento da concepção e impede o aborto em qualquer situação – e o Estatuto da Família – que considera um único modelo de família, heterossexual; o PL 5069/2013; o PL 4330/2004, que terceira o trabalho; a retirada do gênero nos Planos Municipais de Educação, dentre outros. Isso remonta à ideia do “nenhum direito a menos” que tanto permeou a postura política delas nessa fase. Na carta, foi defendida também: “A 100 É possível ver a íntegra da carta no Anexo B desta tese. 289 manutenção da democracia brasileira e seu aperfeiçoamento via reforma do sistema político que aumente a participação das mulheres na vida política do país” (FÓRUM..., 2015c, p. 1). Essa colocação vai ao encontro do que foi posto numa das moções de apoio, em que se lê: Nós, participantes da Conferência Livre Presencial de Pernambuco, realizada dia 07 de dezembro de 2015 na Quadra do Colégio São José – Recife, nos posicionamentos em defesa da democracia e da legitimidade do mandato da presidenta Dilma Rousseff. Entendemos que toda e qualquer iniciativa de impeachment configura golpe (FÓRUM..., 2015b, p. 10). E está relacionado ao princípio de autonomia na relação com os Governos. No caso da Conferência Livre, a demarcação da autonomia pode ser vista sob o prisma do antagonismo. O Poder Executivo dos municípios e do Estado são vistos junto com o Congresso Nacional como os inimigos. Isso fica claro nas 11 moções aprovadas no evento, das quais uma era de apoio, uma de defesa e nove de repúdio. Dessas, cinco estavam direcionadas ao governo estadual, duas ao Congresso Nacional, uma ao músico João do Morro e outra às prefeituras dos municípios do Sertão do Pajeú, conforme vemos a seguir: Quadro 6 – Moções aprovadas na Conferência Livre de Pernambuco “Pela Vida das Mulheres” Moções Número Tipo Conteúdo 1 Repúdio 2 Repúdio 3 Repúdio 4 Repúdio 5 Repúdio 6 Repúdio Repúdio ao não cumprimento dos contratos firmados entre o governo de Pernambuco com as organizações de mulheres e repúdio a uma política de gestão que enfraquece e coloca em risco as organizações de mulheres; Repúdio à inviabilidade de recursos pelos governos municipais do Sertão do Pajeú, bem como garantia de transportes para a participação das mulheres rurais e comunidades tradicionais, como: quilombolas e indígenas e outras nas conferências municipais; Repúdio à situação atual do Congresso Nacional que atualmente não representa as demandas e necessidades da sociedade e de nós, mulheres. Não permitimos e não aceitamos Eduardo Cunha como Presidente e muito menos com mandato e repudiamos com veemência a abertura do impeachment à Presidenta Dilma Rousseff. Ao PL 5069/13 não representa nossas necessidades e não permitimos leis que nos oprimam; Repúdio ao poder público do estado de Pernambuco, que vem retirando o direito das mulheres em situação de uso de drogas e vulnerabilidade que tem seus filhos retirados após o parto e entregue para adoção; Repúdio a não realização de concurso público, pois isso inviabiliza a implementação e efetivação de Delegacias Especializadas para mulheres no Sertão do Pajeú e em outras regiões do estado de Pernambuco; Repúdio ao cantor João do Morro, que compôs uma música estigmatizadora, violenta e machista à Presidenta Dilma Rousseff e a todas as mulheres, onde opera com palavrões e discursos do senso comum que denigrem e alimentam estereótipos a todas mulheres. 290 7 Repúdio 8 Repúdio 9 Repúdio 10 Defesa 11 Apoio Entendemos que pessoas da mídia e cultura, assim como agentes públicos precisam ser responsáveis pela ética e todo contexto social; Repúdio ao projeto de lei Escola Sem Partido, que prevê reparações e até prisões de professoras/es que levantarem discussões políticas sobre cidadania, direitos humanos nas escolas. Bem com projetos de lei que pretendem excluir da escola prevendo as mesmas punições, discussões como: equidade de gênero, sexualidade, raça e etnia; Repúdio ao modelo de desenvolvimento do governo do estado de Pernambuco que, através da Fábrica Fiat e das grandes construções/empreendimentos, vem destruindo nossas riquezas naturais e vulnerabilizando a saúde e vida das mulheres pescadoras de Goiana; Repúdio ao Governo do Estado de Pernambuco, que vem desmontando o Programa Atitude, que trata de cuidado e acolhimento às pessoas que usam drogas. Posicionamento em defesa da democracia e da legitimidade do mandato da presidenta Dilma Rousseff. Entendemos que toda e qualquer iniciativa configura golpe; Defesa de um modelo de política de drogas que se paute pela defesa dos direitos humanos e das subjetividades, dado que o atual modelo proibicionista no estado de Pernambuco falhou no seu objetivo de defesa da sociedade, e em contra mão disso vem encarcerando, matando e vulnerabilizando as mulheres periféricas e, principalmente, as negras. Fonte: FÓRUM... (2015b, p. 1-11). Elaboração própria. Vê-se que o nome de Dilma Rousseff foi referido em três moções, das quais uma era de repúdio ao Congresso Nacional, na figura de Eduardo Cunha, e do impeachment; a segunda no repúdio à música “Resposta para Dilma”, de João do Morro, em que a chama de malévola e a desqualifica de maneira machista e misógina, dizendo que ela precisava de um homem para resolver a situação do Brasil; a terceira em defesa do seu mandato. Ou seja, eram situações em que o FMPE não teria como se abster, pois a conjuntura política demandava atuação dos movimentos sociais, principalmente dos movimentos feministas, pois o que se via na figura de Dilma era um demonstrativo de muito da misoginia que as mulheres enfrentam no dia-a-dia e que levam a um número expressivo de feminicídios. Frente a isso, é possível observar uma cadeia de equivalências em torno da defesa da democracia que, naquele dado momento, passava pelo discurso de defesa do mandato de Dilma Rousseff. Cabe destacar que há duas moções em comum com as aprovadas na IV CEPM-PE, que são as seguintes101: “Moção de repúdio ao impeachment da Presidente Dilma Rousseff” e 101 Só tive acesso à lista das moções, que estão contidas no relatório final da conferência. Não estão disponíveis os textos em si. Por isso, não dá para saber se o teor deles foi o mesmo da Conferência Livre. Mas, eu pude acompanhar a reunião da Rede de Mulheres Negras e essas duas reivindicações foram postas pelas integrantes. As moções receberam, respectivamente, 163 e 196 assinaturas diante de um total de 470 delegadas (219 da sociedade civil; 177 do governo municipal e 74 do governo estadual) (PERNAMBUCO, 2016, p. 14). 291 “Moção de repúdio ao cantor João do Morro pela música composta, desrespeitando e agredindo a Presidente Dilma Rousseff”102 Foi colocado que as demandas das Conferências Livres eram reivindicações antigas dos movimentos feministas, pois as conferências institucionalizadas ficavam “presas” aos interesses do governo ou muito sob o controle dos conselhos e não sob a conta dos movimentos e que, dependendo de quem se elegesse para o conselho, poderia haver conselheiras da mulher que fizessem parte da igreja e com posturas conservadoras103. Diante disso, a sociedade civil ia se tornando conservadora e havia conselhos que não representava mais os movimentos sociais (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Mais uma vez, vê-se o que elas enunciam como sendo o “eles” em contraposição ao “nós”. O sujeito antagônico, nesse caso, são as religiosas, isto é, as católicas e evangélicas associadas ao pensamento conservador. Trata-se de uma questão bastante problemática dentro do coletivo, pois há integrantes que defendem o diálogo com as religiosas, pois dizem que é possível construírem algo juntas. Dentro das igrejas, existem movimentos de resistência aos fundamentalismos e conservadorismos. É o caso do movimento internacional “Católicas pelo Direito de Decidir”, a “Frente Evangélica pela Legalização do Aborto” e a organização não governamental “Coletivo Vozes Marias”, no Recife, cujas integrantes são evangélicas feministas. Ao tratar as religiosas dessa forma, colocam-nas na posição de inimigas, ou seja, como Mouffe (2005) aborda no pluralismo agonístico, são os sujeitos a serem eliminados, ao passo que deveriam ser vistas como adversárias, aquelas que se reconhece as divergências, mas, sobretudo, o direito de se colocarem. Trata-se de uma homogeneização e simplificação em que se ocultam as diferenças das religiosas. Porém, o discurso predominante no espaço do FMPE acaba sendo o da incompatibilidade das religiosas com o feminismo, visto que existem posicionamentos antagônicos. Ao tratar as evangélicas dessa forma, coloca-se que há uma incompatibilidade entre ser religiosa e feminista. A questão dos direitos sexuais e reprodutivos ilustra essas disputas antagônicas. Isso pode ser visto através da reflexão que a intelectual norte-americana bell hooks faz sobre a questão do aborto: Se feminismo é um movimento para acabar com a opressão sexista, e se privar mulheres de seus direitos reprodutivos é uma forma de opressão sexista, então uma pessoa não pode ser contra o direito de escolha e ser 102 Cabe ressaltar que, como não tive acesso ao texto em si, não sei se o termo utilizado foi “presidente” ou “presidenta”, pois o segundo era uma reivindicação da própria Dilma Rousseff e seguido por muitos movimentos sociais, principalmente, os de mulheres e feministas. 103 Estou reproduzindo como foi falado nos espaços. Porém, estou ciente de que a referência a “religiosas” ou “evangélicas” não contempla a diversidade desse campo e se tratam de discursos homogeneizadores. 292 feminista. Uma mulher pode afirmar que jamais escolheria fazer aborto enquanto afirma seu apoio ao direito de as mulheres escolherem, e ainda assim ser uma defensora de políticas feministas. Ela não pode ser antiaborto e defensora do feminismo. Ao mesmo tempo, não pode haver como “feminismo no poder”, se a noção de poder suscitada for poder adquirido através da exploração e opressão de outras pessoas (HOOKS, 2018, p. 23). A partir desse exemplo, é possível ver que, ainda que as integrantes do FMPE possam divergir de uma série de questões postas pelas igrejas, as religiosas que integram esses movimentos dentro de seus espaços de atuação, ao assumirem uma postura contrahegemônica em relação à temática do aborto nos espaços onde estão inseridas, estão se alinhando de alguma forma ao feminismo e, portanto, não deveriam ser tratadas como inimigas, mas sim como adversárias, conforme o modelo do pluralismo agonístico defendido por Mouffe (2005). A AMB junto a outros coletivos pleiteou no CNDM que fosse oficializado no regimento a realização das conferências livres, pois era um caminho de colocar a voz autônoma do movimento e, mesmo que nada fosse aprovado na IV CNPM, as resoluções poderiam ser vistas em âmbito nacional. Segundo o que registrei, era “uma estratégia de entrar no debate sem estar dentro da institucionalidade”, pois, de acordo com as regras, havia município exigindo até CNPJ para que fossem realizados os eventos. Isso já vetava a participação de movimentos sociais, já que não dispõem de CNPJ, como é o caso do próprio FMPE. Segundo foi enunciado, era uma forma de descartar os movimentos sociais, de deixálos sem voz. Dentro dos conselhos, havia quem quisesse enfrentar os problemas, mas como não estavam organizadas entre si, ficava difícil construir coletivamente uma visão crítica, uma aliança para disputar o que fosse aprovado (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Isso remete às situações do Conselho da Mulher do Recife e o de Pernambuco. No primeiro, percebe-se mais claramente um enfrentamento ao que é posto pela gestão, ao passo que, no segundo, essa possibilidade é, na prática, muito frágil. Vê-se que o FMPE aposta na organização interna por meio do debate e na externa através das alianças com outros movimentos. Para a realização da referida Conferência Livre, foi proposta uma comissão que mobilizasse dentro do próprio movimento para que fosse o máximo possível de integrantes e outra que articulasse a construção coletiva com os outros movimentos. Definida a questão de com quem elas poderiam contar para a construção do evento, na reunião, passaram para o ponto de pauta da ação política que elas fariam fora dele, se sendo 293 uma vigília ou um ato. As vigílias marcaram a imagem do FMPE na Região Metropolitana do Recife entre os anos de 2006 e 2007, simbolizando uma forma de denúncias e cobranças do Estado de Pernambuco frente aos constantes assassinatos de mulheres e sem uma devida apuração, conforme abordado no capítulo 3. Elas se reuniam nas primeiras terças-feiras dos meses munidas de velas e placas com os nomes das vítimas da violência representando uma simbologia de que são as mulheres que velam os mortos. No Encontro Estadual do FMPE, realizado no mesmo mês, novembro de 2015, elas definiram a necessidade de voltarem a realizar as vigílias como forma de mobilização e uma delas considerou que poderia ser uma oportunidade para retomar a resolução ao fim da Conferência Livre, cujo endereço seria no coração do centro do Recife, no Colégio de São José, na avenida Conde da Boa Vista, local de intenso movimento diário. Foi colocada a problemática enfrentada pelas mulheres residentes nos municípios da Zona da Mata, que estavam sem delegacia havia muito tempo. Frente a isso, tornava-se ainda mais necessário voltar a realizar uma vigília, que além de denunciar o que consideravam como descaso com a questão da violência contra as mulheres, ainda seria um momento para reafirmar os direitos e o pertencimento ao movimento. Foi denunciado que o número de estupros havia aumentado e que as medidas protetivas não estavam saindo em tempo hábil para proteger as vítimas. Além disso, foi dito que seria uma forma de dizer aos Governos Municipal e Estadual que elas tinham consciência dos descasos com suas vidas. O discurso da SecMulher-PE era de falta de dinheiro. Mas, o mesmo órgão realizou encontros de mulheres negras e idosas, o que, na fala de uma das integrantes do FMPE, significava que a instituição tinha orçamento para realizar eventos e a fala da falta de recurso não era condizente com a realidade. As representantes governamentais tomavam todo o cuidado para não haver discordância nem o que chamavam de “barulho” nas conferências. Uma das militantes do FMPE afirmou: “O governo tende a nos desmobilizar silenciosamente. O FMPE tem saber e poder para fazer esse enfrentamento” (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2018). É possível perceber que elas exigem do Estado de Pernambuco um papel de grande importância na proteção das mulheres e na execução do que está previsto na Lei 11.340/2006 - Lei Maria da Penha – e, diante de uma ameaça a sua atuação como movimento social, coloca-se a necessidade de se encontrar estratégias de denúncia e de enfrentamento. Neste sentido, não só a Conferência Livre cumpriria essa função, mas realizar uma vigília no final daria um destaque para o referido movimento, já que não houve nenhum outro que utilizasse esse formato de denúncia e protesto. 294 Outra integrante discordava de que fosse feito um ato do FMPE. Ela dizia que a conjuntura estava difícil, mas diferente do passado, em que havia poucos movimentos feministas, naquele momento, havia diversos coletivos e organizações que se comprometiam sistematicamente com a luta pelos direitos humanos das mulheres, contra a violência etc. Frente a isso, ela sugeriu que a ação de rua fosse uma caminhada ou uma vigília, por exemplo, dos movimentos de mulheres em Pernambuco e que seria construída no processo de organização do evento. Foi acrescentado por outra integrante que a ação de rua demonstraria a força política das mulheres e que seria uma forma de mostrar que são um sujeito importante e que precisam ser ouvidas. Além disso, o objetivo era desmascarar que o índice de violência contra as mulheres havia diminuído apenas na RMR, mas que no restante do estado, não (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Portanto, fazer algum tipo de ação no final da Conferência Livre era um consenso entre elas, mas o que precisava ser resolvido era se seria protagonizada pelo FMPE ou dos movimentos que estivessem presentes. Em relação aos Eixos Temáticos da IV CNPM104, foi feita por uma delas a seguinte observação, que apontam os problemas: o Eixo I tira do centro os governos, coloca o conselho e os movimentos sociais no mesmo patamar de contribuição. É o espaço do controle social como o da luta e, dessa forma, não se discute o papel do executor das políticas. No Eixo II, a SPM e o CNDM se referem às secretarias e coordenadorias de políticas para as mulheres, no entanto, todas as instituições das três esferas governamentais impactam nas políticas para as mulheres, não cabendo apenas aos organismos específicos. No Eixo III, não se fala de reforma política. O Eixo IV seria o mais desafiador e que traria a inovação, que era criar um fundo de políticas para as mulheres (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Esse último ponto é de interesse aqui, pois foi a prioridade do FMPE nesse evento e, pode-se dizer, a aposta política delas em meio a uma conjuntura adversa à manutenção dos direitos das mulheres e expansão das políticas públicas. Mesmo numa gestão que estava fazendo uma série de concessões para manter a governabilidade – e que poderia significar uma retração do Estado – as integrantes do FMPE – e, por sua vez, da AMB – ainda acreditavam em estratégias de resistir através da cobrança do papel do Estado. Se fosse criado o referido Sistema, as políticas para as mulheres 104 Conforme foram relacionados anteriormente, é importante lembrá-los: Eixo I - Contribuição dos conselhos dos direitos da mulher e dos movimentos feministas e de mulheres para a efetivação da igualdade de direitos e oportunidade para as mulheres em sua diversidade e especificidades: avanços e desafios; Eixo II - Estruturas institucionais e políticas públicas desenvolvidas para as mulheres no âmbito municipal, estadual e federal: avanços e desafios; Eixo III - Sistema Político com participação das mulheres e igualdade: Recomendações; Eixo IV - Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres: subsídios e recomendações. 295 passariam a ser encaradas como de Estado e não de governo. É possível que elas tenham percebido que, num contexto desfavorável aos movimentos sociais, não haveria possibilidade de disputas políticas que a permitissem exercer a função hegemônica. Neste sentido, num contexto desfavorável às políticas públicas para as mulheres, à participação e ao controle social, a defesa do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres se mostrou o ponto nodal em torno do qual elas buscaram uma equivalência para a manutenção dos direitos. Cabe destacar que, se o Eixo IV foi o ponto nodal proposto pelo FMPE, segundo informações disponíveis no relatório da IV CEPM-PE, o ponto nodal da referida etapa livre foi o II, referente a “Estruturas institucionais e políticas públicas desenvolvidas para as mulheres no âmbito municipal, estadual e federal”. É possível constatar no relatório final as interfaces entre os eixos da etapa estadual com a nacional na seguinte forma: Quadro 7 – Eixos da IV CEPM e sua interface com os da IV CNPM Fonte e elaboração: CEDIM-PE e SecMulher-PE (PERNAMBUCO, 2016). Vê-se que, dos cinco grupos de trabalho, quatro têm interface com o Eixo II e os demais são representados em apenas um grupo de trabalho. Ou seja, se o FMPE aposta num sistema como garantia de políticas, a organização da IV CEPM-PE que, como vimos, assumiu um discurso atribuído pelos sujeitos governamentais, priorizou a discussão em torno da institucionalidade, deixando à margem os sentidos sobre participação social, controle social, participação das mulheres na política e o próprio Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres. Ao priorizar o Eixo II, a organização do evento entende que as políticas para as mulheres são de responsabilidade da SPM em parceria com outros órgãos – ou o que foi colocado como transversalidade das políticas – e que é bastante semelhante ao que foi posto 296 nas conferências anteriores e que deu origem às três edições do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. No texto-base da IV CNPM, consta que: Dessa forma, observa-se que as políticas públicas resultantes das conferências tem orientado as ações do Estado no combate aos problemas decorrentes de práticas de gênero assimétricas e historicamente hierárquicas que inviabilizam o processo de participação social e política, democrática e igualitária, de mulheres e homens. Os PNPM têm impacto direto na vida das mulheres e refletem a convicção de que, mediante articulação e monitoramento do desenvolvimento de suas ações, permitem construir um país mais justo, mais inclusivo, mais desenvolvido, mais igualitário e mais participativo (BRASIL, 2015d, p. 14). Ou seja, o que é colocado como a novidade e aposta para o FMPE – Eixo IV -, a estrutura temática da IV CEPM-PE não priorizou. Frente a isso, por mais que se quisesse discutir o próprio Sistema Nacional, não havia espaço político para isso. Como a IV CNPM iria incorporar as propostas enviadas pelos estados, os movimentos feministas, que debateram e construíram a Conferência Livre, não conseguiriam ter as propostas incorporadas, já que não aparecem no relatório da IV CEPM-PE. Essa questão foi colocada como algo problemático por uma integrante do FMPE na reunião em que se discutiu a realização da Conferência Livre. Em sua concepção, além de as conferências não estarem pautando o Eixo IV, conforme a orientação da IV CNPM, a criação do Sistema estava vinculada ao fundo e a um órgão específico. Portanto, num contexto de recém fusão da SPM, poderia ser uma discussão sem sentido. Frente a isso, a mesma integrante acreditava que o FMPE deveria fazer uma denúncia dos descasos com a saúde, violência e direito à cidade (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Essas temáticas são recorrentes quando as integrantes falam em “vida das mulheres”. Vê-se que, diante de outras questões que envolvem as mulheres, essas atingem, sobretudo, as que dependem dos serviços públicos no dia-a-dia e que sentem mais rapidamente os impactos da ausência ou falha das políticas públicas. Percebe-se que o formato dos eventos eletivos – a VI Conferência Municipal da Mulher do Recife e IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres de Pernambuco – e a Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” atribui, nos seus eixos temáticos, uma expressividade às mesmas temáticas105. Porém, o que as difere é o investimento no Eixo IV, promovido pelo movimento social. Segundo os enunciados postos no FMPE, não adianta discutir todas as outras questões se não se garante uma forma de se 105 Na VI CMM (Recife), os eixos foram divididos em: Eixo I – Sistema de Políticas para as Mulheres; Eixo II Mulheres e Direito à Cidade; Eixo III – Enfrentamento à violência; Eixo IV – Educação não sexista, antirracista e não lesbofóbica; Eixo V – Atenção Integral à Saúde das Mulheres e respeito aos direitos sexuais e reprodutivos; Eixo VI – Autonomia econômica das mulheres; Eixo VII – Sistema político com participação e igualdade para as mulheres (RECIFE, 2015b). 297 efetivar as políticas independentes do governo. Seria preciso uma medida que obrigasse o Estado a executá-las sem estar, assim, vinculado ao viés ideológico de quem estivesse à frente do Poder Executivo nas três esferas. Na reunião, uma das integrantes do FMPE considerou que o mais estratégico naquele momento era investir no Sistema Nacional porque era a disputa e a tentativa de as conselheiras do CNDM restituírem o status das políticas para as mulheres depois da derrota sofrida pelo órgão e pela SPM. Em sua avaliação, se ganhasse força, seria possível ser transformado num projeto de lei e numa política de Estado. Ela afirmou: “É uma tática para tentar renovar o que foi perdido diante dos setores conservadores” (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Nas disputas discursivas ao longo do processo conferencista, o investimento no Eixo IV se tratava da estratégia de equivalência com as demandas de outros sujeitos políticos. Era o que permitia a discussão de pautas variadas, como a saúde e a violência, e que, naquele contexto, representava os discursos em torno da ideia do “nenhum direito a menos”. Frente à questão do que seria produzido, foi resolvido que haveria um relatório a que elas chamaram de “burocrático”, para cumprir com o previsto no regimento interno da IV CNPM (BRASIL, 2015b) e uma carta política para que colocassem o que quisessem. Neste sentido, era preciso pensar numa pauta que representasse os interesses delas para que pudessem extrair o conteúdo que respondesse oficialmente o que se esperava do evento, mas que não se prendessem nessa lógica para organizar a metodologia (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Isso demonstra a questão da autonomia do movimento em relação ao governo. Foi colocado também que a construção do Sistema não era apenas uma prioridade do FMPE, mas sim o objetivo maior da própria conferência e que já estavam no momento de discutir, levar as queixas sobre a falta de diálogo que a política apresenta de uma maneira geral. Na concepção dessa integrante, a discussão em torno Sistema permitiria falar sobre a política e entender como é que ela funciona. Neste sentido, elas poderiam discutir que políticas elas queriam e o Sistema seria apenas o esqueleto dela (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Porém, a necessidade de discussão parecia não ser algo prioritário nas etapas eletivas, sobretudo, na estadual, em que o tema não foi colocado explicitamente como eixo. Nas municipais em que participei, também não houve debate sobre o que seria o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres. Sem as informações e o esclarecimento, as conferências pareciam repetir as edições anteriores, o que, inclusive, é um dos fatores para muitos indivíduos não acreditarem mais no poder de mudança social desse instrumento da democracia participativa. Em termos discursivos, isso significa que, mesmo com todo o 298 empenho das integrantes do CNDM de colocar o referido Sistema num dos eixos temáticos daquele ciclo de Conferências de Políticas para as Mulheres, no contexto de Pernambuco, o mesmo se tornou um elemento que não conseguiu se fixar em momento, permanecendo uma diferença não discursivamente articulada. Em meio a um discurso hegemônico colocado pela organização da etapa estadual de que era um debate que seria contemplado no Eixo I: “Estruturas institucionais e políticas públicas desenvolvidas para as mulheres”, o debate acerca do Sistema foi ocultado e perdeu força para a etapa posterior, a Conferência Nacional. Foi colocado que seria importante que elas organizassem o debate acerca da conjuntura política e a situação da vida das mulheres, sobretudo, a discussão sobre a precariedade. Para isso, era fundamental que a metodologia fosse de diálogo com os outros movimentos sociais, caso contrário, perder-se-ia o sentido. Foram apontados dois desafios: 1) a apropriação do texto-base da IV CNPM e a construção coletiva das críticas, pois pouco foi problematizado ao longo das conferências; 2) o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres não era algo simples porque envolvia a integração de políticas e fundos e, por sua vez, disputas de sentido da integração das políticas. Essa mesma integrante pontuou que os temas que o FMPE havia trabalhado no Encontro Estadual – o “encontrinho” – poderiam fazer parte de tribunas livres, que seriam usadas como mecanismos de denúncia e quem falasse iria com o discurso preparado de movimentos e organizações. Isso, em sua concepção, poderia ser uma forma de anteceder o debate sobre a situação das mulheres em diversos aspectos, desde o contexto nas comunidades, nos bairros, às suas articulações etc. (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Vê-se uma estratégia de fazer com que o evento não se focasse apenas no aspecto macro das políticas públicas, mas se pensasse no cotidiano de quem é o sujeito dessa política. Pensa-se em como cobrar dos governos que cumpram o seu papel e que se reafirmem nessas políticas. Inclusive, o Eixo I foi reiterado como uma maneira de os governos não se sentirem responsáveis pelas conferências. É interessante fazer uma leitura dessas colocações a partir de como se deram as construções das conferências no Recife e em Pernambuco, conforme analisei no capítulo anterior. É possível dizer que as gestões se sentiam responsáveis, mas a partir de um compromisso burocrático com o evento, pensando na sua realização e funcionamento como uma questão logística. Essa versão contrasta de uma forma antagônica com o que as integrantes do FMPE esperam desses sujeitos, que é muito mais um comprometimento com as políticas para as mulheres e não apenas o organizador de um evento. As discussões que acompanhei sobre a conferência livre, por exemplo, não se fixavam nos aspectos organizacionais. A própria questão que demandou um expressivo debate 299 entre elas sobre quem convidariam e de que forma se daria esse convite – se seria simplesmente para participar ou para construir juntas – não passou pelos enunciados de logística, como aconteceu no CEDIM-PE. É importante reiterar que a discussão sobre convidadas e até homenageadas na IV CEPM-PE foi marcada por enunciados ligados ao orçamento e a experiências técnicas e não ao caráter político de quem seriam essas pessoas. Portanto, considero a existência de antagonismos na medida em que existem expectativas e posturas diferentes em relação à realização das referidas conferências e que as colocaram numa relação hegemônica na IV CEPM-PE. Ainda que, com todas as críticas, as integrantes do FMPE participaram do evento, mas com uma expectativa de marcar posição e articular alianças com outros movimentos. Isso ficou claro na reunião de delegadas, no dia 18 de dezembro, último dia da etapa estadual, em que as integrantes dos movimentos de mulheres e feministas se articularam para dividirem as vagas entre si. O FMPE foi uma das entidades gerais com vaga, junto à MMM, à Marcha das Mulheres Negras, à CUT, à UBM e ao MMTR-NE (PERNAMBUCO, 2016, p. 33). Como encaminhamentos, elas definiram: 1) debater o texto-base da IV CNPM, dando o foco principal no ponto do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres; 2) Fazer uma crítica à discussão das estruturas institucionais e não se discutir as políticas em si, que é o que impacta na vida das mulheres; 3) a Conferência Livre se chamaria “Pela Vida das Mulheres; 4) Seria fundamental o FMPE fazer uma relação de como foram as conferências municipais, mas também fazer um debate sobre os conselhos e organismos nessa preparação (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). A definição do “Pela vida das mulheres” diz respeito aos motivos já elencados neste texto e que remetem à ideia da formulação de políticas públicas pautadas na escuta de quem vivencia os problemas no cotidiano. O centro do debate proposto pelo FMPE era que estivesse relacionado à situação da vida das mulheres, pois havia um entendimento de que as políticas públicas não estavam atendendo ao que as mulheres estavam passando e as conferências, por sua vez, não estavam discutindo suas vidas. Uma ação ao final do evento mostraria o posicionamento do Fórum e o que se queria denunciar (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Vê-se que, diante das conferências eletivas, convocadas pelos governos, em que o FMPE não consegue imprimir uma função significativa na luta hegemônica nas esferas municipal (Recife) e estadual, o movimento não se retira do processo, mas se rearticula dentro e fora dele. Internamente por meio da própria participação, disputando vagas das delegadas e participando dos grupos de discussão e, externamente, por meio dessa articulação com outros movimentos através da Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres”. Cabe destacar que, na 300 esfera municipal, ainda participaram diretamente como FMPE na organização, enquanto na estadual, estavam representadas na organização por duas integrantes que compõem o movimento, mas estavam ali a partir de seus coletivos locais, já que o Fórum não mais integrava o CEDIM-PE. Utilizando os termos de Laclau e Mouffe, houve pontos de ruptura com o processo oficial e, ao mesmo tempo, de rearticulação em torno de outro, cujo foco era o debate acerca da vida das mulheres e das políticas públicas e não apenas o cumprimento de um decreto nacional, que convocava a realização das conferências. 6.6.1 Preparação estadual organizada pelo FMPE Já no formato do evento em si, as integrantes do FMPE realizaram um momento de preparação no dia anterior, 06 de dezembro, com mulheres vindas de municípios no interior do Estado e começaram se dividindo em grupos pelas regiões para discutirem a partir de três eixos: 1) Lista de problemas nas conferências; 2) Situação dos organismos de políticas para as mulheres; 3) Problemas na vida das mulheres e respostas das políticas. Depois, os pontos elencados foram lidos no auditório para todas elas e, em seguida, foram feitas intervenções sobre as problemáticas colocadas. Para contribuir com o debate, uma das integrantes apontou diversas questões referentes ao sistema de participação nas conferências e conselhos de direitos. A fala foi reiterada por outra integrante do FMPE, que avaliou que, dali para frente, o controle social deveria ser feito nas ruas, pois não havia condições de ser feito nas instâncias existentes, e precisavam denunciar o aumento da violência, o não funcionamento das delegacias da mulher. Elas precisavam ver como conseguiriam se organizar e que estratégias teriam para construir o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres diante de um contexto de segregação das políticas e precarização da participação popular. Outra integrante falou da importância do referido Sistema e que ele significava uma forma de fazer avançar as políticas para as mulheres e apontou os desafios frente ao Estado sem recursos e ao conservadorismo não só na política, mas na sociedade. Frente ao contexto também de dificuldade de se dialogar com a diferença, como se fazer avançar os direitos das políticas públicas? Foi colocado que as políticas públicas deveriam ser um conjunto de ações que os governos executam para realizar os direitos da população e, como tal, deveria ser uma forma de distribuir riqueza e garantir mais igualdade entre as pessoas. Frente a isso, ela afirma que, por isso, é importante que elas lutem por políticas públicas porque precisam de saúde, educação, segurança e trabalho. Porém, apenas uma pequena quantidade de políticas era destinada para garantir os direitos das 301 mulheres e que nem todas garantiam a sua autonomia (DIÁRIO DE CAMPO, 06/12/2015). Isso está relacionado ao que foi colocado no capítulo 2, em que abordei a relação das políticas públicas para as mulheres e o possível reforço das desigualdades de gênero. Abaixo segue a fala de uma das integrantes do FMPE durante o evento de preparação para Conferência Livre e etapa estadual: Um dos princípios da administração pública e de todos os governos deveria ser a garantia da participação daquelas pessoas que serão beneficiadas pelas políticas. Eu não posso fazer uma política sem consultar dona Maria porque dona Maria está sofrendo o problema. Entendeu? Então, dona Maria precisa dizer pra mim: “olha, o meu problema começa assim, nessa hora, dessa forma”. Mas, no geral, as pessoas que recebem ou poderiam receber não participam no processo de elaboração dessa política, o que é um problema porque a política é realizada de qualquer jeito, muitas vezes a gente não tem consciência de qual é mesmo o problema, como é que ele está se dando e os movimentos sociais, no caso as mulheres, não são considerados (DIÁRIO DE CAMPO, 06/12/2015). Para explicar o que seria o Sistema, ela fez uma analogia ao corpo humano e a necessidade de os órgãos estarem interligados frente a função de cada um deles. No Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, seria necessária ligação entre OPMs, conselhos, serviços, redes de atendimento e proteção. Era uma compreensão de que seria necessária para as políticas públicas para as mulheres a integração entre as políticas de educação, saúde, trabalho, entre outros (DIÁRIO DE CAMPO, 06/12/2015). É uma forma de garantir e oficializar a transversalização das políticas, sobre o qual abordei no capítulo 2, e que coloca as políticas como de responsabilidade de todos os órgãos do Estado e que todos trabalhem em conjunto nessa temática. Além disso, ele garantiria um orçamento que esteja relacionado ao PPA para que se tenha uma continuidade das políticas públicas. A gente faz conferência de política pública quando o PPA já foi realizado. Para que serve uma conferência que foi realizada depois que se fechou o PPA? [...] Tudo o que tinha que ser decidido foi no ano anterior quando o orçamento foi pensado. Essa é uma questão importante para a gente pensar no Sistema que é a gente tentar garantir nesse conjunto articulado de órgãos, a gente tentar garantir também o orçamento (DIÁRIO DE CAMPO, 06/12/2015). Frente a isso, o Sistema Nacional teria a função de fortalecer os órgãos, os mecanismos, as funções de maneira mais adequada e eficaz às políticas públicas para as mulheres e, através dela, garantir os direitos (DIÁRIO DE CAMPO, 06/12/2015). A mesma integrante do FMPE citada anteriormente acrescentou: 302 Quais seriam os princípios do Sistema? A gente pensa o princípio da universalidade, quer dizer: todos os direitos devem ser garantidos a todas as pessoas e aí, nesse princípio, tem detalhe muito importante que é o respeito à diversidade. Todos os direitos têm que chegar para todas as pessoas. Mas, todas as pessoas não são iguais. Elas não são somente diferentes, como elas são desiguais. Quer dizer, têm umas pessoas que são ricas, outras são pobres, tem algumas pessoas que são brancas, outras que são negras, têm algumas pessoas que têm 15 anos, outras têm 59, quer dizer, nós somos diferentes, mas nós também somos desiguais, nós temos condições diferenciadas e o Sistema de Políticas para as Mulheres vem para garantir a todas as mulheres, mas para garantir os direitos a todas as mulheres, é preciso que a gente olhe para as mulheres e enxergue que elas são diferentes e que a gente precisa ter políticas também diferentes para incluir essa condição de universalidade (DIÁRIO DE CAMPO, 06/12/2015). A fala dessa integrante do FMPE remonta aos princípios propostos pela abordagem interseccional tão defendida pelas feministas negras. Neste sentido, existiu uma aposta expressiva no Sistema como uma forma de garantia das políticas públicas, sobretudo, num contexto difícil no país e, especificamente, em suas vidas, seja no âmbito da conjuntura nacional, seja nas locais, pois muitos dos problemas apontados, em relação ao combate à violência contra a mulher, são de responsabilidade do Governo de Pernambuco. A não unificação dos OPMs é colocada também como outro problema, pois cada município encara de uma forma as políticas para as mulheres, constituindo coordenadorias ou secretarias, sem necessariamente o controle social e, muitas vezes, sem autonomia política e financeira. O princípio da transversalidade também esteve presente nas falas na medida em que se fala que as condições de vida das mulheres são desiguais, o que faz com que elas vivenciem os problemas sociais de formas distintas a depender da classe e da raça. A fala dessa integrante condiz com o que Laclau e Mouffe (2015) abordam sobre universalidade, que encobre as diferenças e os antagonismos e com o que Butler (1998) afirma sobre a necessidade de se falar como lugar de disputa política permanente. Neste sentido, a partir do momento em que se olha para o sujeito coletivo “mulheres” dessa forma, passa-se a levar em consideração que os processos discursivos em torno da definição de políticas públicas implicam em disputas em torno de equivalências, que vão implicar relações hegemônicas, e que o universal que resultará das disputas para se constituir uma pretensão de universalidade. A defesa do Sistema, tanto por integrantes do FMPE quanto na fala de uma das representantes da Secretaria da Mulher do Recife, feita nas reuniões do Conselho da Mulher do Recife, sinaliza um ponto nodal, em que ambos os sujeitos se equivalem no entendimento de que era uma forma de garantir a execução das políticas para as mulheres, pois significava 303 um fundo e, nas palavras ditas no FMPE, era uma maneira de regulamentar a estrutura dos OPMs. Naquela conjuntura, tratava-se de uma forma de garantir o que já havia sido conquistado nos anos anteriores. Havia uma equivalência de sentido da defesa do referido Sistema. Porém, essa discussão foi diluída nos eixos da etapa estadual, já que não havia um eixo específico sobre o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, como abordarei mais adiante neste capítulo, o que pode ter implicado em ruptura da construção de sentidos em torno da temática. Essa ruptura mostra que, mesmo que houvesse uma unidade no discurso posto pelas integrantes do FMPE e da Secretaria da Mulher do Recife em defesa do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, esse discurso não teria condições de ser articulado dessa forma na etapa estadual e, na ausência da discussão acerca do Sistema, poderia haver um esvaziamento de seu sentido. Foi colocada também a necessidade de a laicidade do Estado e a importância de que as religiões não interfiram nas políticas públicas. Neste sentido, é preciso garantir que todas as pessoas tenham acesso a seus direitos e políticas públicas. Na parte da tarde, foi retomada a discussão sobre o Sistema e a importância da garantia da participação social no debate e definição sobre as políticas. Houve uma análise que os mecanismos de participação estavam sendo desvirtuados. Nesse contexto de disputas e de composição de um discurso “unificado” entre os movimentos sociais, o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres acaba se constituindo no discurso agregador das demandas e de uma alternativa ao avanço de forças conservadoras que colocam em xeque a garantia aos direitos das mulheres. Falou-se sobre a necessidade das mulheres do FMPE se encontrarem para terem mais informações sobre as políticas para as mulheres e, em especial, sobre o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, algo ainda novo e de difícil compreensão. Foi pontuado também que elas devem conhecer e abraçar a ideia, mas não devem perder o horizonte do controle social como uma política autônoma dos movimentos sociais, que é feita de diversas formas e que independe da institucionalização. Diante dos quatro eixos colocados pela organização da IV CNPM, dedicar um dia inteiro de formação e debate acerca do Eixo 4 – Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres – significa a prioridade que o FMPE e, provavelmente, a própria AMB estabeleceram diante daquele contexto. A aposta no Sistema em plena conjuntura já de perda de direitos era o ponto nodal em torno do qual elas procuraram construir uma cadeia de equivalência na tentativa de manter, de alguma forma, as políticas para o segmento. Porém, essa tentativa não obteve êxito, já que o ciclo conferencista aconteceu num contexto de 304 extrema turbulência política que culminou na extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos com o afastamento de Dilma Rousseff, o que levou à emergência e hegemonização de outro discurso. Nos termos de Laclau de Mouffe, o discurso das militantes não conseguiu se incorporar ao universal. Da IV CNPM, não foram produzidos nem os anais, que são o registro das discussões políticas. Tratou-se de um momento de ruptura com o que o processo que estava sendo construído desde as etapas prémunicipais. 6.6.2 A realização da Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” A Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” aconteceu nos dois turnos do dia 07 de dezembro de 2015 no Colégio de São José, no centro do Recife. Quando cheguei por lá, a diversidade de sujeitos me chamou logo a atenção. Havia bandeiras de diferentes coletivos e uma diversidade geracional. No relatório do evento, contém um enunciado que foi colocado na abertura, numa avaliação de que as demais conferências – as eletivas – estavam “presas”, no sentido que: A proposta da Conferência Livre surgiu da avaliação dos movimentos sociais de mulheres e feministas, de que as conferências oficiais, convocadas pelos conselhos de controle sociais, estavam ficando cada vez mais amarradas aos interesses dos governos e muitas vezes excluíam e bloqueavam a presença dos movimentos de mulheres organizados, a exemplo dos municípios que exigiam CNPJ para um movimento participar e eleger delegadas. Além disso, a necessidade de debater criticamente a ação dos conselhos, conferências e a avaliação da resposta do Estado à situação de vida das mulheres, também faz parte dessa motivação (FÓRUM..., 2015a, p. 1). Essa noção de “amarradas” evidencia um importante antagonismo e que foi o fator impulsionador para que elas realizassem um evento próprio. Frente a uma visão de esgotamento do sistema de participação, elas avaliaram que seria preciso se retirar dessa esfera governamental para, assim, conseguirem fazer suas críticas e reflexões no sentido de encontrarem estratégias de lutas e reivindicações para as mulheres, principalmente, num contexto que as levava a estarem nas ruas na luta contra o PL 5069/2013, no que ficou conhecido por Primavera Feminista. É interessante perceber que, a partir dessa fase, os protestos se tornaram uma constante nas suas lutas, pois desde o impeachment de Dilma Rousseff, a ofensiva de forças políticas neoliberais se fazem mais presentes na política institucional, o que implica em uma reforma aprovada - como a trabalhista –, a pressão em 305 torno da reforma previdenciária, a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos em saúde, educação e segurança pública por 20 anos. Portanto, é possível dizer que a Conferência Livre foi um momento de uma expressiva articulação entre os movimentos que a organizaram e também os que estavam presentes. As moções – de repúdio, de defesa e de apoio – mostram como os elementos referentes à indignação perante a gestão à frente de Pernambuco e do Congresso Nacional, bem como ao apoio ao mandato da Presidenta da República se articularam em momentos, transmitindo o discurso da Conferência Livre como um evento onde temáticas desse tipo ganham espaço e destaque. A carta política também mostra as denúncias e as exigências: [...] defendemos: a manutenção da democracia brasileira e seu aperfeiçoamento via reforma do sistema político que aumente a participação das mulheres na vida política do país; o respeito à laicidade do Estado em todas as dimensões da vida política; a ampliação das políticas distributivas, redistributivas e afirmativas; a implementação imediata da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, em sua plenitude; o cumprimento integral da Lei Maria da Penha, através da implementação da rede de serviços; a implementação em todas as maternidades do atendimento aos casos de aborto previstos por lei; descriminalização e legalização do aborto, acompanhadas de uma atenção integral a saúde reprodutiva e sexual das mulheres; ampliação do modelo agroecológico; descentralização dos serviços públicos de forma que atendam às necessidades locais das mulheres do campo; a humanização nos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. (FÓRUM... et al, 2015c, p. 1). Vê-se que os elementos levados pelos mais diversos movimentos sociais presentes no evento se compõem em torno do ponto nodal “pela vida das mulheres”, que significa as denúncias e as exigências da manutenção do que já havia sido conquistado. Isso fica bastante nítido nos momentos posteriores. Após a apresentação do que seria a Conferência e da importância da luta no campo da democracia participativa, elas foram divididas em sete grupos, conforme relatei anteriormente e, depois, levaram as questões para o coletivo maior. Após esse momento, começou uma mesa com a temática de diálogos e falas dos coletivos e movimentos de mulheres com a seguinte composição: FMPE; Marcha Mundial das Mulheres; Coletivo Marcha das Vadias – Recife; Coletivo Margarida Alves. Foi feita uma análise da crise política e apontados os avanços e desafios para as mulheres; a necessidade de fortalecimento da democracia participativa; a perda de recursos e de violência contra a mulher (DIÁRIO DE CAMPO, 07/12/2015). As colocações revelam o quanto o evento teve como discurso norteador a conjuntura e mostram que, para se pensar em qualquer articulação naquele espaço, seria preciso situar qual o posicionamento de cada coletivo ou movimento 306 social frente ao que estava acontecendo no país. Isso leva ao momento seguinte. As equivalências passavam necessariamente pelo discurso do contexto político. Na parte da tarde, o evento recomeçou com uma mesa sobre o sistema político, em que estiveram presentes integrantes do FMPE e da MMM. Foi colocada a importância da participação, da necessidade de construir unidades em torno das lutas das mulheres e de ver o que as uniam. Nas falas delas, as mulheres seriam as protagonistas das mudanças que aconteceriam na política (DIÁRIO DE CAMPO, 07/12/2015). De um modo geral, as intervenções das que assistiam estavam muito ligadas a dizer “não” ao impeachment, o que mostra que, naquele momento, discutir as políticas para as mulheres significava, necessariamente, abordar o contexto político. Se, em políticas de Estado já consolidadas, como o SUS ou o SUAS, são apontados riscos de retrocessos, nas políticas de governo, como é o caso do segmento em questão nesta tese, a dependência com o sujeito político que está à frente do Executivo nacional é ainda maior e implica uma situação difícil para os movimentos sociais. De um lado, era necessário se fazer as críticas à forma como as políticas públicas não estavam levando em consideração os problemas enfrentados pelas mulheres em seus cotidianos, de outro, elas precisavam encontrar alguma forma de garantir o que já havia sido conquistado após décadas de lutas dos movimentos de mulheres e feministas. Esses posicionamentos, inclusive, estiveram presentes na IV CEPM-PE, mas não conseguiram se articular em torno dos discursos hegemônicos de formular propostas de políticas públicas. Além disso, a dificuldade é que a defesa dos direitos acabava por passar pelo discurso de manutenção do mandato de Dilma Rousseff, que, recentemente, havia feito a reforma ministerial que prejudicou não só as mulheres, mas a população negra pela também fusão da SEPPIR ao Ministério dos Direitos Humanos. Numa situação de articulação em torno do ponto nodal “pela vida das mulheres”, para as integrantes de movimentos mais ligados ao Partido dos Trabalhadores, a defesa da presidenta estava mais clara, mas para as que não faziam parte ou estavam próximas aos partidos, o discurso era em defesa da democracia. A defesa de Dilma se dava nos momentos em que eram feitos ataques machistas e misóginos. Em artigo publicado nos anais do 40° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em 2016, abordei os elementos que compuseram o ponto nodal “pela vida das mulheres” a partir da análise documental do relatório, da carta política e das moções aprovadas106. Cheguei à seguinte conclusão: 106 Na impossibilidade de estarem presentes, as integrantes da Fetape enviaram uma carta para falarem das conquistas e desafios para o segmento das mulheres rurais. A mesma foi lida e inserida no relatório final do 307 [...] O significante “Pela Vida das Mulheres”, nesse contexto, foi preenchido pela avaliação dos avanços através da luta dos movimentos sociais, mas também por denúncias de conservadorismo e retrocesso por partes de setores governamentais. Vemos um processo que esteve voltado, sobretudo, aos aspectos políticos do que à formulação de propostas de políticas públicas em si, como tem acontecido com as etapas eletivas (as oficiais) (ALMEIDA, 2016, p. 25). Isso ficou claro não só nos documentos analisados, mas ao longo da programação do evento. Após a mesa sobre o sistema político, aconteceu a terceira, dessa vez, sobre o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, com a presença de integrantes do FMPE e do Coletivo Antiproibicionista. Foi falada que era importante se refletir sobre as políticas de drogas, que marginaliza as mulheres e da importância de se trazer para a luta as mulheres que são protagonistas das necessidades de se implementar as políticas públicas. Além disso, colocou-se que, da forma como estava sendo construída a IV CEPM-PE, os movimentos de mulheres e feministas estavam se tornando invisíveis. Foi feita a defesa do Sistema Nacional, argumentando que ele tentaria tornar a política algo que fizesse parte dos diferentes governos, que iria interconectar as esferas governamentais e que seria muito mais do que as políticas para as mulheres, mas a regulamentação delas. Uma das integrantes colocou que entre elas havia muitos dissensos e várias formas de pensar, mas que a palavra grande que elas deveriam trabalhar era a da articulação (DIÁRIO DE CAMPO, 06/12/2018). A fala dela é a representação empírica do conceito das cadeias de equivalência e dos pontos nodais, trabalhados por Laclau e Mouffe. Elas podem ter formas distintas de atuar e pautas diferentes, como a abordagem da luta pelas políticas de drogas e contra o modelo proibicionista posto; a luta pelo fim da violência contra a mulher, pauta de grande importância para o Coletivo Marcha das Vadias-Recife; a importância da participação política das mulheres, como colocado pelo FMPE e MMM e a defesa do fortalecimento da democracia participativa, feita pelo Coletivo Margarida Alves, mas se equivaleram em torno da luta pela vida das mulheres. Naquele momento, defender a vida das mulheres significava passar por todas essas pautas, além de diversas denúncias e defesas feitas na plateia. Na carta política divulgada por elas, é possível conferir: “Defenderemos os nossos direitos e não aceitaremos pagar com nossa vida a crise econômica e política do Brasil. É pela vida das mulheres” (FÓRUM..., 2015c, p. 1). O que percebo é que, apesar das diferenças, elas conseguiram se articular em torno de cadeias de equivalência que, ao mesmo tempo que denunciavam o que consideravam como descaso dos evento, mas não fez parte da análise que desenvolvi porque se trata de um documento que não foi construído coletivamente pelos sujeitos presentes no evento. 308 governos municipais e estadual e o conservadorismo do Congresso Nacional, defendiam a presidenta Dilma Rousseff frente ao processo iminente do impeachment. Naquele momento, defender a vida das mulheres, para os coletivos que organizaram e participaram da Conferência Livre, passava necessariamente por abranger essas pautas. O significante “pela vida das mulheres” tentou, portanto, agregar uma pluralidade de sujeitos e demandas políticas. Os discursos debatidos e articulados na referida Conferência – as discussões sobre como as políticas públicas e a conjuntura política estavam incidindo no cotidiano vida das mulheres – não encontraram espaço nas demais conferências – as conferencias oficiais. 6.7 Os antagonismos e a democracia radical frente aos espaços estudados Laclau e Mouffe afirmam a necessidade de se rejeitar a confluência das lutas num espaço político unificado e a aceitação da pluralidade e indeterminação do social. Tratam-se das bases, em suas palavras, que permitem um novo imaginário político, construído, radicalmente libertário e ambicioso em seus objetivos (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 235). A partir das ideias dos autores em questão, fiz o esforço de identificar as condições discursivas que levaram a determinadas ações do movimento feminista acompanhado durante a pesquisa de campo. É interessante perceber que as relações nos conselhos dos direitos da mulher deveriam ser de paridade entre as conselheiras, pois o objetivo desses espaços é que representantes do governo e da sociedade civil possam, juntos, discutir e chegar a definições sobre as políticas públicas para o segmento em questão e, mais especificamente, ao órgão do Poder Executivo responsável por elas. No entanto, o que foi visto é que se tratam de espaços em que os papeis são ameaçados e a existência de um sujeito põe em xeque a do outro. Nesse contexto, predominam não só nos conselhos, mas, sobretudo, na construção das conferências de políticas para as mulheres, uma relação hegemônica, em que alguns discursos determinam o caráter de totalidade dos eventos. Diante da emergência dos antagonismos entre o discurso técnico e burocrático, assumido pelas representantes governamentais em ambas as conferências estudadas – do Recife e estadual –, e do discurso que tenta imprimir o caráter político aos eventos, as integrantes do FMPE sentiram a necessidade de construir uma narrativa própria em que, junto a outros movimentos sociais, conseguisse colocar em destaque o que era prioridade para o referido movimento naquele momento político em que vivia o país. Ou, segundo as palavras de Laclau e Mouffe, o que permitiu que as formas de resistência assumissem o caráter de lutas 309 coletivas foi a existência de um discurso externo, que impedia a estabilização da subordinação como diferença (LACLAU; MOUFFE, 2015p. 243). Eles reiteram que: Ou seja, o antagonismo sempre consiste na construção de uma identidade social – de uma posição de sujeito sobredeterminada – com base na equivalência entre um conjunto de elementos ou valores, que expelem ou externalizam os outros aos quais se opõem. Uma vez mais, nos encontramos diante da divisão do espaço social (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 250). A partir dessa compreensão, os autores defendem o que se tornou uma forma de projeto político – uma perspectiva normativa -, que é a democracia radical e plural, que compreende que, diante da pluralidade de identidades que constitui o social, não é possível se chegar a definições unitárias. Ao reconhecer a pluralidade de antagonismos que emergem cotidianamente na sociedade, é possível perceber as relações de poder por trás de um rótulo. No caso aqui estudado, encaro que, por trás dos eventos das conferências de políticas para as mulheres houve diversas disputas antagônicas e relações hegemônicas, em que o sentido de universal foi fruto de um apagamento de visões diferenciais nos espaços de construção. O discurso burocrático de realização do evento se sobrepôs ao da preocupação com a qualidade política nas esferas municipal e estadual. Já na Conferência Livre, por mais que houvesse críticas à gestão de Dilma Rousseff, as participantes se equivaleram em torno de queixas sobre os governos municipais e estadual e sobre o Congresso Nacional, mas defenderam o mandato da presidenta, opondo-se ao seu impeachment. Além disso, a prioridade das integrantes do FMPE, que era a defesa do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, quando foram para a Conferência Livre, acabou ficando como diferença em meio a outras temáticas debatidas. Isso está relacionado ao que os autores afirmam: Se o sentido de cada luta não está dado de partida, isto significa que ele é – parcialmente – fixado, somente na medida em que a luta se move para fora de si mesma e, através de cadeias de equivalência, vincula-se estruturalmente a outras lutas. Todo antagonismo, entregue livremente a si, é um significante flutuante, um antagonismo “indômito”, que não predetermina a forma pela qual pode ser articulado a outros elementos numa formação social (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 257). Neste sentido, os filósofos defendem que haja um equilíbrio político de forças e radicalização de uma pluralidade de lutas democráticas (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 265). É possível dizer que a experiência da Conferência Livre condiz com essa radicalização das lutas e que, naquele momento, foi uma forma de elas conseguirem, fora do espaço governamental, não só fazer as críticas às políticas públicas ou à ausência delas, mas fixar os 310 seus posicionamentos acerca do contexto político, algo que elas conseguiram fazer nas conferências eletivas, mas que certamente não seriam registrados no documento oficial. A não publicação das moções de repúdio à Câmara dos Vereadores e à Prefeitura da Cidade do Recife ilustram como a relação hegemônica encobriu os antagonismos, em que a voz da sociedade civil foi silenciada. Uma luta democrática pode autonomizar certo espaço em cujo interior ela se desenvolve, e produzir efeitos de equivalência com outras lutas num espaço político diferente. É a esta pluralidade do social que se liga o projeto de democracia radical, e a sua possibilidade emana diretamente do caráter descentrado dos agentes sociais, da pluralidade discursiva que os constitui em sujeitos, e dos deslocamentos que têm lugar no interior dessa pluralidade (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 269). É importante ressaltar que esses antagonismos são completamente contingenciais, mudando de acordo com o contexto. Um exemplo disso é que, em setembro de 2015, quando havia rumores de que os ministérios seriam extintos – dentre eles, o das mulheres e de promoção da igualdade racial – Recife foi palco de ações articuladas pela SecMulher-PE e que contou com a presença de integrantes da sociedade civil e dos governos municipais, no que ficou conhecido por “#PermaneceSPM”, um movimento em defesa da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Em Brasília, na IV CNPM, em maio, o que seriam antagonismos nas etapas anteriores, transformaram-se em uma grande cadeia de equivalência em torno da defesa de Dilma Rousseff. O slogan “Mulheres com Dilma” estava relacionado a integrantes governamentais e à sociedade civil. A carta em defesa de Dilma que lançaram no evento foi lida pela secretária das mulheres da Bahia, Olívia Santana (CARTA..., 2016). O encerramento da conferência foi marcado por uma grande manifestação em defesa de Dilma e da democracia. Se houvesse sujeitos contrários ao que estava acontecendo, não teriam espaço naquele plenário, cujo sentido de totalidade estava atrelado ao discurso hegemônico. Laclau e Mouffe afirmam que: [...] a equivalência é sempre hegemônica, na medida em que ela não estabelece simplesmente uma “aliança” entre interesses dados, mas modifica a própria identidade das forças envolvidas nesta aliança. Para que a defesa dos interesses dos trabalhadores não se faça a expensas dos direitos das mulheres, imigrantes ou consumidores, é necessário que se estabeleça uma equivalência entre estas diferentes lutas. Somente nesta condição é que as lutas contra o poder se tornam verdadeiramente democráticas, e que a reivindicação de direitos não é realizada na base de uma problemática individualista, mas no contexto dos direitos à igualdade de outros grupos subordinados. No entanto, se este é o sentido do princípio da equivalência democrática, seus limites ficam igualmente claros. Esta equivalência total jamais existe; toda equivalência é penetrada por uma precariedade 311 constitutiva, derivada da desigualdade do social (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 273). Ainda que nas reuniões do FMPE tenha sido colocada uma série de críticas às conferências municipais e ao que se estava construindo da etapa estadual, o que foi um dos motes para a realização da Conferência Livre, no evento em si, essas críticas não prevaleceram diante das cadeias de equivalência dos problemas enfrentados pelas mulheres. Ou seja, muito mais do que criticar os eventos convocados pelos governos, a etapa livre focou em discutir a incidência das políticas públicas nas dificuldades cotidianas. Os filósofos em questão afirmam que a experiência da democracia deve consistir no reconhecimento da multiplicidade de lógicas sociais e na necessidade de suas articulações (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 278). Isso fica claro na fala de uma das integrantes do FMPE ao argumentar que a existência de conflitos é saudável para a democracia. Se não houvesse as divergências, em suas palavras, seria a ditadura unanimidade (DIÁRIO DE CAMPO, 28/11/2015). Laclau e Mouffe falam do risco do totalitarismo e da necessidade de as articulações serem constantemente recriadas e renegociadas. Reiteram que: “[...] não há qualquer ponto final em que se chegaria definitivamente a um equilíbrio” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 278). Diante disso, foi preciso saber acerca da pluralidade de sujeitos e discursos políticos presentes para conseguir estabelecer as cadeias de equivalência que pudessem mostrar um discurso contra-hegemônico ao das Conferências de Políticas para as Mulheres convocadas pelos governos em Pernambuco. Os autores colocam que: “Esse momento de tensão, de abertura, que dá ao social seu caráter essencialmente incompleto e precário, é o que todo projeto de democracia radical deve se propor institucionalizar” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 281). Essa concepção está relacionada ao que vou trabalhar no próximo e último tópico deste capítulo, que é o pluralismo agonístico. Como já abordei no capítulo anterior, o modelo teórico que Mouffe defende é que os antagonismos sejam transformados em agonismos, em que a função da política é domesticar as dimensões do político, ou seja, dos conflitos. A democracia radical e plural, em suas palavras, é o projeto político e o pluralismo agonístico é o modelo analítico. Para ela e Laclau: Esse ponto é decisivo: não existe democracia radical e plural sem que se renuncie ao discurso do universal e seu pressuposto implícito de um ponto privilegiado de acesso a “a verdade”, somente atingível por um número limitado de sujeitos (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 282) A obra referenciada ao longo desta tese – “Hegemonia e Estratégia Socialista: por uma política democrática radical” - pode ser considerada uma contribuição dos autores para que se 312 entenda que, na negação do caráter fechado do social, abre-se espaço para compreender a hegemonia como ferramenta fundamental de análise política de esquerda (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 283). Neste sentido, meu esforço foi de mostrar no presente trabalho como os antagonismos foram fundamentais para deslocar as posições de sujeito, de espectadores dos eventos convocados pelo governo, a organizadores de uma narrativa própria diante daquele contexto. Passo, agora, ao último tópico em que analiso o papel dos agonismos na política democrática e como foram fundamentais nos processos articulatórios da sociedade civil no caso estudado. 6.8 O pluralismo agonístico e formas alternativas de se lidar com a política Chantal Mouffe, dando continuidade ao que foi abordado na obra escrita em 1985 junto com Laclau – Hegemonia e Estratégia Socialista – afirma que levar em conta a dimensão do político significa reconhecer a existência de conflitos que não têm uma solução racional. Esse é o significado do antagonismo. A autora reitera que nem todos os conflitos são antagonísticos, mas os conflitos políticos são porque envolvem decisões que requerem uma escolha entre alternativas que não são decidíveis a partir de um ponto de vista racional (MOUFFE, 2015b, p. 18). Ao privilegiar a racionalidade, deixa-se de lado a existência de paixões e afetos na política democrática. Frente a isso, ela argumenta que se deve vislumbrar a cidadania democrática a partir da ênfase nos tipos de práticas e não nas formas de argumentação, como aborda o filósofo alemão Jürgen Habermas. A autora coloca a necessidade de um modelo de democracia que aborde os conflitos e as relações de poder inerentes às sociedades de uma maneira geral. Assim, abandona-se a ilusão de uma sociedade democrática como fruto de uma perfeita harmonia ou transparência e se propõe um modelo que transforme o antagonismo (luta entre inimigos) em agonismo (luta entre adversários). Isso é justificado pelo fato de que a partir do momento em que se vê o outro como um adversário, a sua opinião vai ser respeitada e contra-argumentada, mas se for um inimigo, ela será eliminada em nome do consenso. Para o pluralismo agonístico, a confrontação é, na verdade, a condição de existência da democracia (MOUFFE, 2005, p. 29). O resultado desse espaço é um consenso conflituoso, marcado por paixões que são mobilizadas em prol dos desígnios democráticos. Ela reitera que: Na verdade, o confronto agonístico, longe de representar um perigo para a democracia, é uma condição de sua existência. Claro, a democracia não pode 313 sobreviver sem certas formas de consenso: fidelidade aos valores éticopolíticos que constituem princípios de legitimidade da democracia, e para as instituições em que estes estão inscritos. Mas, a democracia deve também habilitar a expressão agonística do conflito, que exige que os cidadãos genuinamente tenham a possibilidade de escolha entre alternativas reais [tradução própria] (MOUFFE, 2015b, p. 18). Recorro às ideias da autora por entender que os espaços que acompanhei ao longo da pesquisa de campo eram permeados por conflitos de diversas ordens e que havia posições de sujeito distintas. A mesma integrante do FMPE que fizesse parte do Conselho Municipal da Mulher do Recife ou do CEDIM-PE poderia ter posicionamentos distintos a depender da correlação de forças. Os sujeitos presentes nos diferentes locais pareciam ter uma compreensão dos antagonismos, mas não conseguiam transformá-los em agonismo. Esse seria um grande desafio, mas que constitui uma possibilidade de construir o evento de outra forma, em que houvesse o reconhecimento das diferenças e que elas não fossem vistas como ameaças. Não se podem resolver os desacordos presentes nas discussões a partir da deliberação racional. É por não haver uma solução racional para o conflito que se deve visualizar a sua dimensão antagonística. Mouffe acentua que o grande problema dos deliberativos é defender que na esfera pública o poder foi eliminado e que é possível se chegar ao consenso racional. Segundo ela, essa perspectiva, além de enfraquecer a esfera pública, ainda é incapaz de reconhecer o antagonismo decorrente do pluralismo de valores que permeia as relações sociais (MOUFFE, 2005, p. 19). O consenso, em sua perspectiva, deve existir como resultado temporário de uma hegemonia provisória, como estabilização do poder, sempre acarretando alguma forma de exclusão. Frente a isso, é colocada a necessidade de um modelo que aborde o poder e o antagonismo como questões centrais na democracia. Assim, abandona-se o ideal da sociedade democrática como realização de uma perfeita harmonia. Para ela (MOUFFE, 2005, p. 20): “Isso não significa, obviamente, que adversários não possam cessar de discordar, mas isso não prova que o antagonismo foi erradicado”. Para o pluralismo agonístico, a tarefa primordial da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do público, de modo a tornar possível um consenso racional, mas mobilizar tais paixões em prol de desígnios democráticos (MOUFFE, 2005, p. 21). É essencial distinguir entre "Paixões" e "emoções". No domínio da política, estamos sempre lidando com identidades coletivas: o termo “emoções” não transmite adequadamente isso porque está relacionado aos indivíduos. “Paixões”, é claro, também podem ser individuais, mas o termo, com suas conotações violentas, enfatiza a dimensão conflituosa da política e alude ao confronto entre identidades coletivas, ambas constituidoras da política. Mais 314 precisamente, “paixões” denotam certos tipos de afetos comuns, aqueles que são mobilizados no domínio político de como identificações de nós/eles são formadas. Meu objetivo é desafiar a visão racionalista dominante na teoria política democrática por destacar tanto o coletivo e o caráter partidário da ação política; para destacar o papel crucial desempenhado pelos afetos na construção de identidades políticas [tradução própria] (MOUFFE, 2015b, p. 19). Democracias que funcionam bem clamam pelo confronto entre posições políticas democráticas (MOUFFE, 2016, p. 3). Neste sentido, o que pude perceber das representantes governamentais em ambas as esferas estudadas – municipal e estadual – era o receio de a sociedade civil “causar conflito”, visto como impeditivo à realização das conferências. A forma de se lidar com isso se deu a partir de formações discursivas que a deixavam à margem do processo: como a escolha de convidadas e palestrantes e a exclusão de moções que expunham as divergências políticas. A autora reflete que: A mobilização exige politização, mas esta não pode existir sem a criação de uma representação conflituosa do mundo, com campos opostos com os quais as pessoas possam se identificar, permitindo assim que as paixões sejam mobilizadas politicamente no âmbito do processo democrático. Tomemos por exemplo o caso do voto. O que a abordagem racionalista é incapaz de compreender é que o que leva as pessoas a votar vai muito além da simples defesa de seus interesses. Existe uma importante dimensão afetiva no ato de votar e o que está em jogo ali é uma questão de identificação. Para agir politicamente, as pessoas precisam ser capazes de se identificar com uma identidade coletiva que ofereça uma ideia de si próprias que elas possam valorizar. O discurso político não tem para oferecer somente programas políticos, mas também identidades que possam ajudar as pessoas a compreender o que estão vivenciando e lhes dê esperança para o futuro (MOUFFE, 2015a, p. 23-24). Compreendo que a indignação perante o formato como estavam se apresentando as conferências de políticas para as mulheres nos municípios, bem como a construção da etapa estadual foi um elemento fundamental para que as integrantes do FMPE optassem por construir um evento em que pudessem imprimir a sua narrativa e seu posicionamento frente a um contexto político bastante difícil para a sociedade como um todo e que já ameaçava os direitos das mulheres. Neste sentido, a dimensão dos afetos fez que elas mobilizassem coletivos e movimentos em prol de se fixar demandas em comum e construir uma identidade coletiva naquele momento. Segundo Paulina Tambakaki, a compreensão agonística da democracia nos convida a ver a mobilização política, a expressão política da diferença e da discordância, a observar os vínculos afetivos que une os cidadãos europeus – o caso estudado por ela. Em sua perspectiva, os afetos são importantes mobilizadores (TAMBAKAKI, 2011, 315 p. 581). Ainda que o texto dela abordasse o caso dos cidadãos da União Europeia, é possível pensar nos espaços estudados e sujeitos políticos para lançar o debate acerca de como os afetos e as paixões são elementos mobilizadores da política no Brasil. O que ficou claro é que, para as integrantes do FMPE, o modelo corrente de democracia participativa está desacreditado e que não inclui as demandas de um segmento que depende de políticas públicas para conseguir viver em uma sociedade ainda patriarcal e racista. Para que a democracia participativa fosse radical e plural, no caso estudado, seria necessário que ambos os sujeitos – sociedade civil e governo – de fato, construíssem juntos e que houvesse o reconhecimento dos conflitos como constitutivos daqueles espaços. Mouffe, em entrevista concedida a pesquisadores brasileiros, afirma que: [...] eu acredito que não há uma diferenciação fundamental de natureza entre antagonismo e agonismo. Eu sempre insisti que há antagonismo no agonismo, não é uma eliminação...Eu acredito que o antagonismo não pode ser erradicado e que o agonismo é uma forma de sublimação [...] Quero insistir que nunca há uma separação completa entre antagonismo e agonismo. O agonismo é uma forma de antagonismo, e por isso que às vezes eu quero dizer antagonismo estritamente e, sem seguida, agonismo como uma forma de antagonismo democrático, a forma que o antagonismo assume em uma política democrática (MOUFFE apud RAMOS et al, 2014, p. 755). Recorro à colocação da autora no intuito de mostrar que é preciso problematizar não só essa manifestação da democracia participativa, mas outras, como conferências de áreas diversas, orçamento participativo, os conselhos de direitos ou instâncias de um modo geral que reúnam sujeitos que ocupam posições distintas. É preciso que haja a reflexão sobre como os antagonismos têm gerado relações hegemônicas e que têm feito que as diferenças sejam vistas como um problema a ser combatido, não enfrentado a partir de uma democracia radical e plural. Neste sentido, considero que a Conferência Livre “Pela Vida das Mulheres” se constituiu a partir de articulações entre sujeitos distintos que, naquele momento, construíram pontos nodais e diante da pluralidade e possíveis divergências de formas de atuação política, o evento pode ser analisado a partir do prisma do pluralismo agonístico e considerado como uma manifestação da democracia radical e plural. Sintetizando a discussão, em relação às políticas públicas, o debate que, outrora, foi uma reivindicação dos movimentos por políticas públicas de gênero e, especificamente, para as mulheres, naquele momento da conferência, em dada conjuntura, para o Fórum de Mulheres de Pernambuco não fazia sentido reivindicar mais políticas num contexto de retrocesso. Então, para elas, fazia muito mais sentido se unir em torno da garantia do que já 316 havia sido conquistado. Além disso, a discussão em torno das políticas públicas passava necessariamente pelas dificuldades e pelos problemas enfrentados concretamente na vida das mulheres. Para o FMPE, da forma como era colocado nas outras conferências, invisibilizava esses sujeitos da luta cotidiana do movimento feminista no estado de Pernambuco. Então, diante disso, eu afirmo que os pontos nodais em torno dos quais elas buscaram construir uma cadeia de equivalência eram basicamente a garantia dos direitos conquistados - que ficou, posteriormente, conhecido por "nenhum direito a menos" - e o debate acerca da vida das mulheres. A luta por políticas públicas era pela vida das mulheres. Então, não fazia sentido se propor políticas e não se levar em consideração de que esse formato não funcionava mais para elas. Se no passado recente, as conferências foram uma conquista do movimento de mulheres e feministas, nesse momento, o FMPE junto aos outros movimentos presentes na Conferência Livre dizem que esse formato não as contempla mais e que esse modelo de democracia participativa apresenta falhas e que é preciso que ele seja repensado. Então, elas não se retiram do espaço, mas passam a ressignificá-lo, a olhar para o mesmo a partir de outra perspectiva, que é da tática do movimento que impulsionou majoritariamente o evento - o FMPE. É a partir disso que eu defendo que a Conferência Livre se tratou de uma forma de não deslegitimar esse espaço das conferências eletivas, já que as militantes participam e têm suas estratégias de estarem presentes, mas é uma forma de participar a partir de outra perspectiva. Elas não conseguiram exercer uma função hegemônica diante dos antagonismos nos espaços junto aos governos e, a partir disso, tecem suas críticas às conferências eletivas e fazem um evento alternativo, que podemos entender como uma manifestação da democracia radical e plural no sentido que agrega a pluralidade desses sujeitos políticos. Além disso, é uma tentativa de fixar os pontos nodais em torno dos sentidos atribuídos a suas lutas e que elas veem entre si não como inimigas, mas como adversárias e que podem, em determinados momentos, se articular em torno de alguns pontos. É possível perceber que elementos como “vida das mulheres”, “defesa dos direitos conquistados”, “defesa de Dilma Rousseff” se equivaleram à defesa da democracia, fixando-a como um momento, isto é, uma diferença discursivamente articulada. Em outros contextos, elas podem discordar na sua estratégia, mas naquele momento, elas assumiram uma função equivalencial. 317 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tracei um caminho que posicionasse a corrente teórica a qual esta tese se vincula para situar os leitores e as leitoras acerca do campo de pesquisa aqui analisado. A teoria política pós-estruturalista e, mais especificamente, a teoria feminista me permitiram compreender que as práticas políticas implicam necessariamente em atos de exclusão. Na tentativa de se construir uma universalidade, são formadas cadeias de equivalência que deixam as diferenças de lado. Enxergar a política dessa forma me permitiu olhar para além da ideia de consenso como fruto da definição do debate argumentativo e me fez observar, no campo de estudo, que, por trás de resoluções coletivas, há articulações políticas hegemônicas em torno de determinados aspectos contingentes e conflituosos. Essa perspectiva teórica guiou toda esta tese e me mostrou que o método mais apropriado para responder às minhas perguntas de pesquisa era a observação participante porque, através dela, eu conseguiria ter acesso às discussões e, assim, entender o processo discursivo que norteou a construção das Conferências de Políticas para as Mulheres. A noção de sujeito como posições de sujeito, que variam na estrutura discursiva, também foi fundamental em todo o texto. Entendo que as representantes dos governos nos Conselhos de Direitos das Mulheres e das integrantes do Fórum de Mulheres de Pernambuco podem assumir posições diferentes de acordo com o contexto, com as correlações de forças políticas e as articulações discursivas podem ser diferentes em cada momento. Não estou diante de sujeitos únicos, fechados, tão caros na perspectiva sociológica moderna. Essa concepção demandou de mim observar os discursos e as posturas políticas para compreender as articulações nos diferentes espaços estudados. Frente a isso, fiz uma releitura acerca da história dos movimentos de mulheres e feministas no Brasil, que fizeram enfrentamento à ditadura militar e lutaram pela redemocratização. A década de 1980 foi marcada por uma forte reivindicação por posturas estatais de combate às desigualdades de gênero. Nessa época, foram criadas as Delegacias de Defesa da Mulher (1987) e Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (1985), de grande importância durante o processo constituinte, aliando-se às parlamentares para defender as definições relativas às mulheres que fizeram parte da Constituição de 1988, no que ficou conhecido como “lobby do batom”. Essa discussão foi fundamental para entender por que fez diferença para os movimentos de mulheres e feministas o Partido dos Trabalhadores na Presidência da República. Na primeira gestão de Luis Inácio Lula da Silva, o CNDM, que 318 estava vinculado ao Ministério da Justiça e sem atuação expressiva, passou à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, criada em 2003 com status de ministério. Pela primeira vez, havia um órgão específico para pauta das mulheres no primeiro escalão do governo. Nessa mesma época, a democracia participativa, prevista na Constituição Federal, teve uma grande expressividade por meio da realização de conferências de políticas públicas, que abrangeram diversas temáticas, como das Cidades; Meio Ambiente; Esporte, dentre outras. Em 2004, foi realizada a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que deu origem ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que validou os princípios e pressupostos da Política Nacional para as Mulheres, aprovada em 2004 e referendada nas conferências posteriores. O PNPM pode ser visto como a expressão do reconhecimento de que as políticas para as mulheres são de responsabilidade de todos os órgãos que compõem o governo. Em 2007, 2011 e 2016, aconteceram as edições das CNPM seguintes. Uma característica forte dos movimentos de mulheres e feministas, nessas conferências, é a exigência de políticas públicas de combate às desigualdades de gênero. Não são suficientes apenas políticas direcionadas às mulheres. É preciso que tenham uma dimensão conjunta de homens e mulheres. Diante disso, as Conferências de Políticas, para o referido segmento, embora sejam apenas consultivas - têm o poder de sugerir aos órgãos dos governos o que deve ser implementado-, foram momentos de debate e definição sobre propostas de políticas públicas e mobilizaram uma grande quantidade de mulheres em todo o país. Ao refletir sobre os eventos, eu me questionava como era possível se chegar a unidades diante de tantas diferenças, visto que se trata de um segmento muito diverso e com pautas demasiado distintas. Para responder a essa questão, lancei-me ao desafio de observar os espaços de construção das Conferências de Políticas para as Mulheres no Recife e em Pernambuco que são, respectivamente, o Conselho da Mulher do Recife e Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de Pernambuco. Tratam-se dos órgãos que organizam as conferências junto às Secretarias de Políticas para as Mulheres do município e do Estado, sendo compostos por representantes governamentais e da sociedade civil. Interessava-me acompanhar a construção para entender o evento em si. Porém, ao longo da pesquisa, percebi que o processo discursivo sobre a realização das conferências revelavam as respostas para a pergunta de pesquisa, que tanto me inquietava ao ponto de me propor escrever uma tese a respeito. A observação participante, feita durante onze meses, não só nas referidas reuniões, mas em diversas conferências - até culminar na etapa nacional – me mostrou que não seria possível estar presente nesses espaços sem me questionar sobre a 319 minha relação com o campo de estudo e sobre o caráter científico da pesquisa que estava realizando. Ao recorrer à literatura da área de Epistemologia Feminista, percebi que encarar a reflexividade forte, como um componente fundamental para a objetividade forte, tão cara aos princípios científicos, é de grande importância nos estudos feministas. Isso me fez reconhecer os esquemas conceituais aos quais estou inserida e que foram moldados para compreender a realidade de uma determinada forma. Frente a isso, busquei gerar um conhecimento amplamente útil para compreender os processos discursivos que permearam a construção das referidas conferências de uma forma que não as reduzisse a números de participantes ou perfil de quem esteve presente, como muitos estudos sobre democracia participativa têm feito. O olhar para as articulações políticas me permitiu constatar, na realidade, o que Ernesto Laclau e Chantal Mouffe abordam de forma teórica ao falar sobre a sociedade e suas fronteiras antagônicas que fazem que as relações políticas sejam sempre permeadas por disputas e articulações hegemônicas, que ocultam diversos discursos políticos. Frente a isso, analisei o material constituído do diário de campo, documentos oficiais – disponibilizados pela organização dos eventos ou pelos conselhos de direitos das mulheres – e o que foi entregue nas conferências. Separei a análise de cada espaço – reuniões do Conselho da Mulher do Recife, do CEDIM-PE e do FMPE – e organizei através de temáticas o que me permitiu construir o percurso discursivo que observei. No âmbito do Recife, percebi discursos divergentes acerca da avaliação das pré-conferências e da conferência municipal. Enquanto havia um discurso burocrático e institucional por parte de representantes do governo e parte da sociedade civil, em que se avaliou o evento como bem sucedido e que cumpriu o papel de definir propostas e eleger delegadas para conferência estadual, outras integrantes da sociedade civil, representando RPA e o FMPE, fizeram duras críticas à mobilização para o evento e apontaram uma despolitização. As divergências das vagas de delegadas para etapa estadual revelaram os tensionamentos na sociedade civil dentro do conselho municipal e colocaram em polos distintos as servidoras e as entidades gerais. A partir do discurso de representatividade, as últimas conseguiram imprimir uma hegemonia no processo, fazendo que as servidoras abrissem mão de suas vagas em benefício das RPAs. O que vi naquele momento foram discursos distintos acerca do papel do conselho. Enquanto as servidoras fazem referência a um local de defesa de sua categoria como trabalhadoras do município, as entidades gerais alegam que quem cumpre esse papel que elas esperam é o sindicato, não o conselho de direitos das mulheres. Tratam-se de visões antagônicas e que, nos momentos que estudei, 320 eram ocultadas em nome do discurso hegemônico das entidades gerais – lembrando que são compostas por organizações não governamentais, centrais sindicatos, movimentos sociais – de que as servidoras devem ser representadas pelos sindicatos da categoria. No âmbito estadual, também percebi as visões divergentes e, sobretudo, antagônicas. As representantes governamentais apresentaram discursos extremamente burocráticos em que o elemento definidor da IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres era o orçamento. Ou seja, questões como a duração do evento ou mesmo quem seria convidada dependiam de quanto se teria. Havia integrante do governo que mostrou preocupação com a qualidade política do evento, mas no processo discursivo, acabou ficando como diferença, assim como aconteceu com as integrantes da sociedade civil que defenderam o caráter político do evento através, por exemplo, da garantia de sua realização em três dias e do acompanhamento das etapas municipais. No entanto, a articulação discursiva levou à hegemonização do discurso governamental, em que a cadeia de equivalência em torno da falta de orçamento foi sendo construída em detrimento de discursos sobre a politização do espaço. Essa hegemonização se repetiu na definição de palestrantes, convidadas e homenageadas, frutos de sugestões das representantes governamentais, levadas para aprovação em reuniões do CEDIM-PE. O que se alegava nos encontros é que tudo havia sido discutido através dos emails entre as conselheiras. Isso me fez refletir sobre qual é a função de reuniões presenciais diante de um contexto em que as definições são postas no ambiente virtual. E isso podia ser um fator de exclusão de possíveis discursos antagônicos da sociedade civil, que não conseguia articular os seus discursos em torno de formações discursivas que fossem capazes de imprimir significação nesse processo. Quem estava na conferência e que não tem conhecimento de como se deu o processo decisivo, certamente, imaginou que foi fruto de um consenso racional, da troca argumentativa, conforme modelo habermasiano da democracia deliberativa. É um problema da democracia participativa, que transmite a ideia de que espaços como o das conferências, dos conselhos ou de orçamento participativo são garantias de um bom funcionamento da democracia. Embora a política seja caracterizada por discursos hegemônicos e consequente exclusão de outros, é importante que haja formação política e preparação para se ocupar esses espaços e, assim, haver condições de disputar os sentidos políticos. Isso está relacionado com a crise antiga de setores da esquerda sobre como lidar com as diferenças e construir cadeias de equivalência e, assim, construir as articulações políticas nos diversos espaços onde estiver, inclusive nos conselhos de direitos e conferências de políticas públicas. O problema que percebi é que não se tem uma clareza por parte de 321 movimentos sociais e entidades que compõem os conselhos da mulher do Recife e do Estado sobre qual é o seu papel ali. Isso faz que não se articulem entre si para construírem formações discursivas que permitam disputar os pontos nodais capazes de disputar a hegemonia com os sujeitos antagônicos. As suas demandas acabam por ficar na diferença enquanto as equivalências são construídas pelo antagônico. É preciso que sujeitos políticos, que compõem a sociedade civil, reflitam como articular suas diferenças em torno de projetos em comum que disputam o discurso hegemônico. Diante disso, passei à análise do FMPE para entender como o movimento estava encarando o controle social – através do Conselho da Mulher do Recife – e da participação nas Conferências de Políticas para as Mulheres. Foi colocado que conselho de direitos não é movimento social e que seria preciso ter essa noção para que não se confundissem os papeis. Apesar de uma visão crítica, as integrantes do FMPE optaram por participar do processo de conferências como uma forma de marcar a posição política e construir articulações com outros movimentos sociais. Neste sentido, o contexto político de iminência de regressão dos direitos conquistados no quesito das políticas para as mulheres, que norteou os discursos durante toda essa pesquisa, a construção de articulações políticas se mostrava como uma estratégia necessária. A cadeia de equivalência em torno da qual se articularam os elementos referentes ao discurso do “nenhum direito a menos” foi a estratégia principal do FMPE naquele momento. A defesa da criação do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres era uma aposta que poderia garantir a manutenção desses direitos num cenário de já extinção do que ficou conhecido como Ministério das Mulheres – a Secretaria de Políticas para as Mulheres – e iminência da aceitação do pedido de impeachment de Dilma Rousseff e o aprofundamento da volta da lógica neoliberal na gestão do país. Frente aos relatos de despolitização das conferências municipais ocorridas no Estado de Pernambuco e das tensões na construção das etapas municipal do Recife e estadual e, consequente, hegemonia governamental, as integrantes do FMPE perceberam que seria estratégico politicamente construir um evento apenas com movimentos sociais. Aproveitaram, então, a possibilidade prevista no regimento interno da IV CNPM de se realizar conferências livres, que não elegeriam delegadas, mas poderiam gerar documentos com propostas. Dessa forma, analiso que, na Conferência Livre “Pela vida das mulheres”, houve tentativas de articular discursos que não conseguiram espaço nas demais conferências, como a discussão acerca dos problemas cotidianos vivenciados pelas mulheres e da incidência das políticas públicas em seu dia-a-dia. O ponto nodal “pela vida das mulheres” articulou uma série de 322 demandas e denúncias naquele momento político local de uma gestão estadual negligente com a saúde e segurança das mulheres, bem como do nacional, com o Congresso conservador e fundamentalista. Ao mesmo tempo, foram articulados discursos em defesa do mandato de Dilma Rousseff e dos riscos que o impeachment representava na garantia das políticas públicas para as mulheres. Interpreto que a Conferência Livre se constituiu como um processo que condiz com o que Laclau e Mouffe defendem como democracia radical e plural na medida em que articulou uma série de identidades e discursos políticos em torno de um discurso próprio dos movimentos e que se mostrou como um modelo alternativo dentro do próprio processo conferencista. Inclusive, foi um posicionamento político diante de um modelo hegemônico governamental e excludente de determinados discursos de enfrentamento à negligência dos governantes no quesito garantia das políticas para as mulheres. Como espaço político, também houve exclusões nos processos de equivalência, a exemplo de questões que pude registrar, tais como dificuldade de acesso à água no campo, anemia falciforme, que atinge sobretudo a população negra, o zika vírus e os casos de microcefalia, danos ambientais causados pelas fábricas inauguradas na Região Metropolitana do Recife e que têm atingido as pescadoras. No processo de construção de um discurso de pretensa unificação, essas demandas ficaram como os elementos não discursivamente articulados. O que diferencia as práticas da referida conferência das demais – as convocadas pelos governos – são os discursos de denúncia e de exigência de ações do Estado, ao passo que nas demais conferências, o debate se restringiu à formulação de propostas de políticas, repetindo, portanto, o formato das edições anteriores. É possível também fazer a leitura da Conferência Livre como um isolamento de alguns setores e isso traz à tona as questões sobre em que medida esses discursos conseguem ter uma incidência na sociedade como um todo ou cai na armadilha de apenas estar comunicando para os pares dos movimentos. Diante dos antagonismos e das formações discursivas hegemônicas, o desafio para os movimentos sociais passa a ser como agir de maneira estratégica, se é ocupar ou não os espaços da sociedade civil ou fazer o enfrentamento fora deles. Percebi que, para estar nesses espaços, é preciso, principalmente, que haja um aprofundamento político, seja de integrantes da sociedade civil ou dos governos, sobre qual é o papel de cada esfera governamental e, sobretudo, quais são os objetivos dos conselhos de direitos e conferências de políticas públicas. Além disso, é preciso que os sujeitos presentes nesses espaços tenham consciência da importância de se construir articulações políticas para que, por exemplo, 323 diversas temáticas como as que analisei sejam politizadas e haja condições reais de disputas hegemônicas. Ou, ainda, que integrantes de organizações não governamentais ou movimentos sociais, como o caso estudado – o FMPE, tracem estratégias de atuação coletiva nesses espaços. Com essa discussão, espero lançar questões sobre atuação política e estimular demais estudos qualitativos no âmbito da Sociologia Política que tragam reflexões sobre as dinâmicas de funcionamento dos espaços políticos que vão além de análises institucionais e nos façam pensar acerca deles de formas construtivas e propositivas diante de dificuldades e desafios. Além disso, é importante que lance o olhar para as interações de movimentos sociais, no caso aqui estudado, feministas, com o Estado. Isso é de grande importância para se entender a dinâmica de construção das políticas públicas e das mudanças sociais. 324 REFERÊNCIAS IV CONFERÊNCIA ESTADUAL de Políticas para as Mulheres. Informações Úteis da IV CEPM-PE - Mais Direitos, Participação e Poder para as Mulheres. Pernambuco: Secretaria Estadual da Mulher; Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, 2015. VI CONFERÊNCIA MUNICIPAL da Mulher do Recife. Total de participantes das préconferências. 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EIXO 1 – Sistema de Política ítica para as Mulheres com Controle Social Desde a década de 1980, Mov Movimentos Feministas e de Mulheres, reivindicam icam políticas públicas que promovam a igualdade e a autonomia au das mulheres. Em 1985, o Governo Federal Fe criou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulh ulher/CNDM. Este conselho contribuiu com avanço anços significativos para a vida das mulheres, especialme almente durante a elaboração da Constituição de 1988. 1 O CNDM exercia uma dupla função, por um lad lado monitorava as políticas governamentais, assegurando asse que elas não violassem os direitos das mulh ulheres; por outro, desenvolvia projetos e atividade dades para a promoção da igualdade e autonomia dass mu mulheres. Entretanto, para que o CNDM DM desenvolvesse políticas e programas e, ao mesm esmo tempo, monitorasse as demais políticas de governo erno, seria necessário que ele tivesse status de Ministério, Min com poder de dialogar com outros ministér istérios e ter autonomia administrativo-financeira eira para desenvolver sua própria política. Este organism ismo, muito cedo se mostrou frágil para o tamanho nho da sua missão. Em 2003, o Governo Federal ral criou a Secretaria Nacional de Políticas para ra as a Mulheres/SPM (com autonomia administrativa e financeira) f e tornou o CNDM a instância de controle social deste organismo. A SPM realizou, u, juntamente ju com o CNDM, a I Conferência Nacion cional de Políticas para as Mulheres e implantou o I Plano lano Nacional de Políticas para as Mulheres. Na década de 1990, algunss estados es e vários municípios brasileiros já haviam viam criado secretarias ou coordenadorias, departamento entos ou gerências com o objetivo de implantarr as políticas públicas para as mulheres. Entretanto, a maioria mai destes organismos municipais e estaduais ais não n goza de autonomia administrativa e financeira porque po é subordinada a alguma secretaria, como: mo: Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria de Desen senvolvimento Social ou Secretaria de Governo,, etc etc. Em Pernambuco, dos 184 municípios, mun 152 têm organismos de políticas para ara as a mulheres, sendo 37 Secretarias de Políticas para ara as Mulheres, 109 coordenadorias, 04 diretoria torias e 02 assessorias. A maioria dos organismos de pol políticas para as mulheres não tem autonomia para elaborar seu plano de 342 trabalho, não conta com recursos financeiros próprios, nem tem autonomia para gerir os recursos concedidos pela Secretaria a qual o organismo está subordinado. Um aspecto que também fragiliza a política de igualdade e autonomia das mulheres é o reduzido número de Conselhos Municipais da Mulher. O Conselho é uma instância de controle social fundamental, cuja função é propor política, aprovar o plano de ação da secretaria ou coordenadoria, monitorar sua execução e propiciar que cidadãs tenham conhecimento da política e possam denunciar violações. Hoje, existem apenas 48 conselhos municipais da mulher. Mesmo estes gozam de muito pouca infraestrutura para garantir o exercício político de suas funções, as conselheiras não tem ideia do valor do recurso que cada município investe em políticas para as mulheres, muito menos sabe-se que serviços, projetos ou ações são implantados ou realizados, qual o seu impacto na vida das mulheres. Um dos objetivos da IV Conferência Nacional e da VI Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres é criar o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres. Mas, o que é isso? A palavra Sistema significa um conjunto de elementos interconectados, de modo a formar um todo organizado. É uma estrutura normatizada que rege, que organiza, que articula e que integra uma política social. Existem alguns exemplos, como: o Sistema Único de Saúde (SUS) ou o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Por que queremos um Sistema de Políticas para as Mulheres? Porque as políticas para as mulheres ainda não têm uma estrutura hierarquizada, normatizada, interconectada e sinérgica. Cada Secretaria ou coordenadoria faz de um jeito. Por exemplo: tem secretaria de mulher que está articulando os movimentos de mulheres em seus municípios. Mas, isso é seu papel? Uma secretaria deveria estar implantando políticas e/ou serviços que beneficiem a vida das mulheres. Existem organismos que, ao invés de implantar uma política para a igualdade das mulheres, se tornaram um órgão gerido pela Primeira Dama para realizar a “assistência social às/aos pobres”, ou seja, para fazer caridade e garantir a reeleição do prefeito. Muitos gestores e gestoras municipais têm sensibilidade e acham necessária a criação de um organismo de política para as mulheres, mas não sabem como este organismo deve se estruturar, quais as suas funções etc. Por isso, é necessário a criação de um sistema que normatize a política de igualdade das mulheres, definindo atribuições e responsabilidades aos municípios, aos estados e ao governo federal. A falta de um sistema de política também dificulta a criação de instrumento de monitoramento e avaliação da política e seus impactos na vida das mulheres. Assim, a criação do sistema poderá fortalecer a política para as mulheres e seus respectivos organismos governamentais. Para isso, é muito importante discutirmos: Que princípios e diretrizes devem orientar as políticas para as mulheres? Quais os seus objetivos? Qual a participação dos movimentos feministas e de mulheres na formulação, monitoramento e fiscalização dessas políticas? Como as políticas para as mulheres devem ser estruturadas? Qual o papel dos municípios? Qual o papel do governo estadual? Qual o papel do governo federal? Como queremos um Sistema de Políticas para as Mulheres? 1. O Sistema de Políticas para as Mulheres deve contar com Secretarias de Políticas para as Mulheres – nos níveis municipais e estaduais – e com Ministério, no nível federal, todos com autonomia administrativa e financeira para implantar e gerir a política de igualdade das mulheres. 343 2. Secretarias/Ministério devem ter fundo específico, assegurado por lei, para custear a política para as mulheres. 3. As Secretarias/Ministério devem contar com o Conselho dos Direitos da Mulher com caráter deliberativo. 4. Compete às Secretarias/Ministério elaborar os planos, programas e projetos que proporcionem igualdade e autonomia para as Mulheres e definir os recursos humanos e físico-financeiro necessários para sua implementação. 5. O Plano de Políticas para as Mulheres – nas três esferas de governo – devem estar contemplados no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual. 6. O Plano de Políticas para as Mulheres deve, obrigatoriamente, ser aprovado pelo Conselho dos Direitos da Mulher, competindo a ele também acompanhar e avaliar sua implementação. 7. O Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres deve ser regido pelos princípios já definidos no I Plano Nacional de Igualdade das Mulheres, acrescentando a importância da descentralização política como forma democrática de assegurar a implantação da política. 8. Tendo em vista que a política para as mulheres faz interface com políticas geridas por outras secretarias e ministérios (por exemplo: saúde da mulher, educação, segurança cidadã etc.), a Secretaria de Política para as Mulheres deve inserir em seu Plano as ações, projetos e programas de outras secretarias que façam interface com a vida das mulheres (como: a política de saúde para as mulheres etc.), sendo que tais políticas devem ser aprovadas também pelo Conselho dos Direitos da Mulher. 9. O repasse de recursos do governo federal para municípios e estados, e destes para os municípios devem estar condicionados à: a) existência de um fundo específico para o desenvolvimento da política; b) ter conselho dos direitos da mulher com caráter deliberativo, regulado por Lei e com conselheiras eleitas e em exercício de mandato; c) ter Plano Municipal ou Estadual de Política para as Mulheres, inclusive declarado no PPA, na LDO e na LOA; d) ter Secretaria de Políticas para as Mulheres com autonomia administrativa e financeira. EIXO 2 – Mulher e Direito à Cidade Muito pouco se discute sobre o direito das mulheres à cidade. É sabido que o espaço urbano fora de casa é onde se exerce o trabalho produtivo, ou seja, o trabalho destinado à produção, compra e venda de mercadorias. Este tipo de trabalho é falsamente atribuído aos homens. Enquanto que o trabalho reprodutivo continua sendo quase exclusivo da mulher e exercido no espaço privado, na casa. “Logo, não é de se espantar que as cidades estejam pouco preparadas para nos receber, elas não foram feitas nem por nós, nem para nós”107. É necessário democratizar o acesso aos serviços urbanos. Assim, reivindicamos: 1. Descentralização do lazer e da cultura (como cinema, teatros, praças, auditórios etc.) para todas as Regiões Político-administrativas da cidade. 2. Elaboração e realização de um seminário municipal sobre “Mulher e o Direito à Cidade”, com a participação das mulheres, visando consolidar uma política de democratização do espaço da cidade para as mulheres. 3. Criação e/ou atualização da legislação já existente sobre o padrão das calçadas e fiscalização do seu cumprimento. 4. Divulgar o modelo de distribuição de água nos meios de comunicação regularmente e Democratização do acesso à água. 5. Instalar telefones públicos especialmente nas periferias da cidade. EIXO 3 – Enfrentamento à Violência Contra a Mulher A violência contra a mulher é um dos problemas mais graves que enfrentam as mulheres quotidianamente. Este é um problema de saúde pública que, embora nos atinja em primeira 107 https://blogueirasfeministas.com/2015/07/28/a-mulher-e-o-direito-a-cidade/ 344 instância, atinge também a sociedade como um todo. A complexidade desse fenômeno, o cerco de silêncio que o rodeia, a multicausalidade, as categorias e subcategorias da violência, o tornam difícil de poder ser medido na sua real dimensão. Contudo, estes não podem ser argumentos para nos desestimular e exigir das três esferas de Poder, ações sustentáveis para a prevenção à violência contra as mulheres e o atendimento às vítimas. Nós, do Fórum de Mulheres de Pernambuco, exigimos: Do Governo Federal: 1. A criação de um sistema de informação integrado, com os diversos órgãos públicos, saúde, segurança pública, justiça, direitos humanos, educação; 2. A criação de um sistema de monitoramento das políticas públicas existentes e do alcance ou cobertura dos serviços públicos, que inclua além das medidas objetivas de proteção e responsabilização, de medidas subjetivas de promoção, valorização e auto-proteção das mulheres; 3. A criação de campanhas informativas sustentáveis e globais; 4. A urgente inserção nos currículos escolares do ensino fundamental, médio e universitário a perspectiva de gênero e da violência contra a mulher; 5. As dotações orçamentárias adequadas às necessidades para o alcance das propostas. Do Governo Estadual: 1. Ampliar os serviços públicos de atendimento a mulheres vítimas a todos os municípios, em especial os municípios com 100 mil habitantes e menos, no mais breve prazo de tempo. 2. Desenvolver ações globais e contínuas de prevenção à violência de alcance estadual. 3. Capacitar os agentes dos diversos serviços públicos à aplicação da Notificação compulsória da Violência contra as Mulheres. 4. Aumentar para, no mínimo, 50% o julgamento dos assassinatos de mulheres em Pernambuco até 2018. 5. Desenvolver estudos e pesquisas sobre a impunidade da violência contra a mulher em Pernambuco. 6. Implantar e implementar as delegacias de mulheres e juizados especiais já prometidos pelo Governo do Estado desde 2006, assegurando-lhe infraestrutura e equipe multiprofissional. 7. Garantir juízes em todos os juizados especiais da mulher. 8. Desenvolver estudos e aprimorar indicadores sobre o perfil da violência contra a mulher. 9. Assegurar o atendimento às mulheres trans nas delegacias e nos juizados especiais. Dos Governos Municipais: 1. Capacitar os agentes dos diversos serviços públicos para a aplicação da Notificação compulsória da Violência contra as Mulheres. 2. Ampliar o projeto “Maria da Penha Vai à Escola” para todas as escolas da Rede Municipal de Educação, com equipe multidisciplinar e suficiente para dar conta de sua abrangência. 3. Criar um sistema de informação permanente sobre a violência contra a mulher no município de Recife, assegurando transparência na divulgação dessas informações. 4. Desenvolver estudos e aprimorar indicadores sobre o perfil da violência contra a mulher. 5. Implantar os Centros Municipais da Mulher em todas as RPAs, localizando-os em espaços de melhor acessibilidade para as mulheres. 6. Implantar Centros de Referência para mulheres em situação de violência nas 06 RPAs. 345 7. Assegurar o atendimento às mulheres trans e às lésbicas nos centros de referência. 8. Criar métodos adequados e condizentes com as necessidades para seleção de profissionais dos serviços discutidos e aprovados no Conselho Municipal da Mulher. EIXO 4 – Educação não sexista, antirracista, não lesbofóbica e laica Reivindicamos: 1. Implementação da Lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio. 2. Promover nos espaços de formação de educadoras/ES a formação em gênero, orientação sexual, raça/etnia e laicidade do Estado. 3. Sensibilizar educadores sobre a importância de uma educação laica. EIXO 5 – Atenção Integral à saúde das mulheres e respeito aos direitos sexuais e reprodutivos Desde a década de 1970, o Movimento Feminista vem lutando pela criação de uma política de saúde para a mulher. Em 1983, o Governo Federal criou o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Foi quando se abandonou a noção de Programa Materno-Infantil, que tinha um olhar voltado prioritariamente para o nascimento saudável das crianças, limitandose o atendimento à saúde das mulheres à gestação/parto/puerpério. O novo programa definia a importância de assegurar uma atenção integral às mulheres em todo seu ciclo de vida. Em 2004, o PAISM transformou-se em PNAISM – Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres – tornou-se mais abrangente, incluindo a saúde mental e as necessidades específicas de segmentos de mulheres, como mulher negra, mulher lésbica, mulheres do campo etc. Infelizmente, apesar da estruturação desta política de saúde, seu desenvolvimento continua “fragmentado”. Além disso, é uma política voltada para o útero e a mama. Não há integralidade da saúde da mulher. Isso se reflete: a) no índice ainda alto de mortes maternas; b) no aumento da incidência de HIV em jovens nesta última década e de sífilis congênita; c) na recorrente medicalização no âmbito da saúde mental, como se o transtorno mental das mulheres não fosse decorrente, em sua maioria, das desigualdades, da violência e da longa jornada de trabalho; d) na incidência de cardiopatias em mulheres, sem diagnóstico precoce etc. As ações de promoção e prevenção são descontínuas e não incluem a perspectiva de gênero. As políticas específicas de saúde das mulheres lésbicas e trans, negras, vivendo com AIDS, jovens, idosas e deficientes, e seus princípios e diretrizes, não se fazem presentes na atenção à saúde. As mulheres continuam peregrinando de maternidade em maternidade para parir, são “jogadas” para outro município sem levar em conta suas dificuldades de deslocamento e de seus familiares, assim como o tempo do processo do parto, algumas têm suas/seus filhas/os nas entradas das maternidades, nas ambulâncias, nos taxis etc. Da mesma forma, a lei de acompanhante não está sendo cumprida na maioria das unidades. 346 A cultura do parto cesáreo naturalizou-se nos serviços de saúde porque os médicos não respeitam a autonomia e a liberdade das mulheres de gerir seu próprio parto. Ainda é predominante a cultura patriarcal de que os/as médicos/as gerem o parto e são seus atores principais, quando, na verdade, deveriam apenas acompanhar o parto, particularmente quando se trata de parto normal. Assistimos hoje uma grande contradição: a redução do número de ginecologistas-obstetras formadas/os (inclusive o Estado tem dificuldade de contratar médicos), entretanto, as enfermeiras-obstetras são impossibilitadas por lei de acompanhar o parto normal. As mulheres negras são aquelas que mais sofrem com o racismo institucional no atendimento à saúde. Há inúmeros relatos de mulheres negras sobre profissionais de saúde que se recusam a tocar em seu corpo ou que afirmam que as mulheres negras “tem muito mal cheiro”, ou utilizam frases como “minha filha, você está podre!”, ou “Aguente a dor, toda negra gosta muito de sexo e é boa parideira”. Há profissionais que ainda machucam seu corpo quando realizam o exame de câncer de útero. Finalmente, a implementação da política de saúde da população negra tem se restringido apenas ao diagnóstico precoce de anemia falciforme e seu tratamento. As mulheres soropositivas para o HIV/AIDS continuam sem acesso à reprodução assistida, além disso, muitas delas são orientadas para não ter filhos/as ou abortar, quando estão grávidas. Os serviços de saúde não oferecem informações sobre os efeitos dos medicamentos em seus corpos (nem há pesquisa sobre isso). Às mulheres vivendo com AIDS se receitam psicotrópicos, frequentemente, por considerarem-se poliqueixosas. É frequente mulheres com AIDS terem sua sorologia exposta na comunidade e no serviço de saúde, além disso, as informações sobre os procedimentos para evitar a transmissão vertical não são irregulares, além disso, vários profissionais se recusam a assisti-las por preconceito. O Plano de Feminização da AIDS foi elaborado, mas suas ações não foram minimamente implementadas, ficando restritas às capacitações de profissionais. A intersetorialidade desta política não funcionou, ficando a responsabilidade de elaborar e executar o plano às gerências de DST/AIDS e alguns organismos de políticas para as mulheres. Os municípios e estados não destinaram recursos para o Plano, apesar de toda pressão do movimento e mulheres e feminista. A camisinha feminina está disponível apenas nas unidades de referência, mesmo assim a informação não está disponível para usuárias. Muitos/as profissionais de saúde não incentivam as mulheres usarem preservativos em suas relações, falam muito mais do uso da pílula anticoncepcional. A dificuldade de fazer cirurgia para o enfrentamento à lipodistrofia e hipertrofia ainda é enorme, tem hospitais que estão habilitados, mas não realizam procedimentos, alegando falta de insumos. A atenção ao aborto previsto por lei ainda não é universalizado na rede de saúde, muito menos a atenção às mulheres em situação de violência. Com as Organizações Sociais/OS que administram os serviços de saúde recebem recursos financiados por igrejas e tem seus procedimentos influenciados por preceitos religiosos. Com isso, as mulheres em situação de 347 abortamento sofrem com a falta de acolhimento, de atendimento, de acompanhamento, julgamento moral, mesmo aquelas que têm o procedimento garantido por lei. Por esta razão, reivindicamos: 1. Fim da terceirização da gestão das unidades de saúde municipais e estaduais. 2. Realização de concurso público para contratação de profissionais de saúde. 3. Realizar capacitação continuada dos/as profissionais de saúde para o atendimento às mulheres em situação de violência e para o preenchimento da ficha de notificação de violência contra mulher. 4. Realizar formação de profissionais de saúde sobre a promoção e prevenção dos distúrbios mentais, evitando o uso excessivo e desnecessário de psicotrópicos para mulheres. 5. Realizar formação continuada de profissionais de saúde para o diagnóstico precoce da situação de violência e o encaminhamento às unidades de referência. 6. Realizar formação continuada de profissionais de saúde em relação ao racismo institucional, à lesbofobia e ao sexismo. 7. Universalização da atenção ao aborto previsto por lei em todos os hospitais-maternidades do estado e do município. 8. Criação de um folder para ser entregue a todas as gestantes, juntamente com o cartão da gestante, sobre todos os direitos previstos por lei em relação a sua assistência, que conste, inclusive, o número do telefone da Ouvidoria da Saúde e da Ouvidoria da Mulher. 9. Criação do GT-Saúde da Mulher no âmbito do Conselho Municipal da Mulher, com participação de representantes do Comitê Municipal de Estudos de Mortalidade Materna, da gerente da política municipal de saúde da mulher do Comitê Municipal de Enfrentamento à Feminização da AIDS. 10. Normatizar por lei a prática do consentimento à mulher para que os estudantes dos hospitais-escola acompanhem o procedimento médico, definindo regras de humanização do atendimento, evitando constrangimento às mulheres. EIXO 6 – Autonomia Econômica das Mulheres Em relação à autonomia econômica das mulheres, reivindicamos: 1. Universalizar a educação infantil. 2. Elaborar uma cartilha sobre os direitos da trabalhadora doméstica (em parceria com o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas) e distribuí-las entre as trabalhadoras domésticas. 3. Elaborar uma política de formação profissional para as mulheres. 4. Incorporar nos processos de capacitação para o trabalho a temática de gênero. 5. Desenvolver uma pesquisa com mulheres participantes de cursos de formação profissional sobre impactos destes cursos em suas vidas. 6. Criar fundos de financiamento para as mulheres envolvidas na economia popular e solidária. 7. Realizar uma pesquisa sobre as condições de trabalho das mulheres do setor. EIXO 7 – Sistema político com participação e igualdade para as mulheres O sistema político brasileiro inibe a participação das mulheres nas decisões do Estado. Em 27 anos de democracia, o povo brasileiro só participou de um plebiscito e 01 referendo. A quase totalidade das questões referentes às nossas vidas e ao Estado brasileiro é decidida no âmbito legislativo e executivo, sem que nós possamos participar através do voto direto. Nos países democráticos, a utilização do plebiscito e referendo é sistemática e regular. 348 No caso específico das mulheres e da população negra, historicamente temos sido subrepresentadas nos três poderes da república, seja no Poder Legislativo, seja no Poder Executivo, seja no Judiciário. Nós, mulheres, somos menos de 20% no Poder Legislativo e no Poder Executivo (Federal, Estadual e municipais). A lei que permite o financiamento privado de campanha só tem restringido a participação das mulheres, das pessoas negras e da classe trabalhadora e, além disso, provocou um aumento da corrupção em nosso país. Por outro lado, a falta de respeito por parte dos/as gestores/as públicos em relação às instâncias de controle social das políticas públicas tem dificultado ainda mais nossa participação nas decisões do Estado. Por isso, reivindicamos: 1. O fim do financiamento privado de campanha. 2. O fim da imunidade parlamentar a não ser exclusivamente ao direito de opinião e denúncia e fim do foro privilegiado dos parlamentares, exceto em casos em que a apuração refere-se ao estrito exercício do mandato ou do cargo. 3. Exigência de concursos públicos para preenchimento de cargos públicos nos três poderes. 4. Criação de uma legislação que delimite claramente o número de cargos de confiança. 5. Realização de concursos públicos. 6. Financiamento público exclusivo de campanhas. 7. Voto de legenda em listas partidárias pré-ordenadas com alternância de sexo. 8. Melhoria da infraestrutura dos Conselhos de Políticas para as Mulheres, inclusive com recursos declarados na LOA. 9. Fim da reeleição para todos os cargos executivos e limite de dois mandatos para cargos legislativos. 10. Realização de reuniões regulares nas RPAs para discussão e acompanhamento da implementação das políticas para as mulheres. 349 ANEXO B – CARTA POLÍTICA E MOÇÕES APROVADAS NA CONFERÊNCIA LIVRE “PELA VIDA DAS MULHERES” FÓRUM DE MULHERES DIVULGA Nós, mulheres, reunidas na I Conferência Livre pela Vida das Mulheres em Pernambuco, com o objetivo de discutir e propor políticas públicas para nossa a igualdade, liberdade e autonomia reconhecemos os avanços conquistados pela luta feminista e materializados pelo Estado brasileiro nos últimos doze anos. Exemplos dessas conquistas são a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres, a Lei 13.104/2015 que tipifica o feminicídio, a Lei 11.340/2006 conhecida como Lei Maria da Penha, a ampliação dos permissivos legais para o abortamento em casos de anencefalia, a aprovação da PEC das domésticas, aprovação pelo Supremo Tribunal Federal do casamento homoafetivo, entre outros. Entretanto, identificamos a ineficiência do Estado na implementação universal dos direitos conquistados. Em Pernambuco, o descaso do governo com a vida das mulheres se expressa na não efetivação das políticas. Em relação ao enfrentamento da violência contra as mulheres, por exemplo, houve uma redução do número de casas abrigo, embora haja anualmente um aumento da demanda pelo serviço. A não entrega do número total de delegacias da mulher prometidas e o funcionamento precário das existentes também demonstra o descaso do governo com a nossa vida e integridade. Além disso, os hospitais da mulher não tiveram suas obras concluídas e assistimos também o fechamento das maternidades, das UPA’S e o decréscimo das unidades de atendimento às vítimas de violência. Iniciamos o ano de 2015 com o acirramento da luta de classe no Brasil e na América Latina, na medida em que avançam as políticas neoliberais. Estamos vivenciando a efervescência do conservadorismo e a afronta sistemática à laicidade do Estado, questões que afetam diretamente a vida de nós mulheres e nossos direitos. Exemplos disso são o estatuto do nascituro e o estatuto da família; a PL 5069/2013, que restringe o atendimento às mulheres em situação de violência sexual; a PL 4330/2004, que terceiriza o trabalho prejudicando especialmente as mulheres trabalhadoras; a retirada do ensino de gênero nas escolas, nos Planos Municipais de educação; o aumento da violência contra as mulheres e a juventude negra; a exclusão das mulheres trans na lei contra o feminicídio; a intensificação da cultura do estupro, que impacta especialmente as mulheres lésbicas, bissexuais e negras; e a PEC que altera a demarcação de terras dos territórios quilombolas e indígenas. Diante desse contexto, defendemos: - A manutenção da democracia brasileira e seu aperfeiçoamento via reforma do sistema político que aumente a participação das mulheres na vida política do país; - O respeito à laicidade do Estado em todas as dimensões da vida política; - A ampliação das políticas distributivas, redistributivas e afirmativas; - A implementação imediata da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, em sua plenitude; - O cumprimento integral da Lei Maria da Penha, através da implementação da rede de serviços; - A implementação em todas as maternidades do atendimento aos casos de aborto previstos por lei; - Descriminalização e legalização do aborto, acompanhadas de uma atenção integral a saúde reprodutiva e sexual das mulheres; - Ampliação do modelo agroecológico; - Descentralização dos serviços públicos de forma que atendam às necessidades locais das mulheres do campo; - A humanização nos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência; Defenderemos os nossos direitos e não aceitaremos pagar com nossa e vida a crise econômica e política do Brasil. É pela vida das mulheres! Recife, 7 de dezembro de 2015 MOÇÕES APROVADAS NA CONFERENCIA LIVRE 350 - Repúdio ao Governo estadual pelo não cumprimento de contratos com organizações de mulheres que trabalharam no projeto Chapéu de Palha, ameaçando a sobrevivência e prejudicando estas organizações; - Repúdio aos Governos Municipais do Sertão do Pajeú por não viabilizarem recursos para participação de quilombolas e indígenas em conferências; - Repúdio ao poder público de Pernambuco que vem retirando o direito das mulheres em situação de uso de drogas e vulnerabilidade que tem seus filhos retirados após o parto e entregue para adoção; - Repúdio à não realização de concurso público, pois isso inviabiliza a implementação e efetivação de Delegacias Especializadas para mulheres no Pajeú e em outras regiões do Estado; - Repúdio à Fábrica da FIAT e as grandes construções/empreendimentos que vem destruindo nossas riquezas naturais e vulnerabilizando a saúde e vida das mulheres pescadoras de Goiana; - Repúdio ao Governo do estado que vem desmontando o Programa Atitude, programa de cuidado e acolhimento às pessoas que usam drogas..Defesa de um modelo de política de drogas que se paute nos direitos humanos e subjetividades, dado que o atual modelo proibicionista falhou no seu objetivo de defesa da sociedade, e está prendendo, matando e vulnerabilizando as mulheres de periferia negras. - Repúdio ao cantor João do Morro que compôs uma música estigmatizadora, violenta e machista à Presidenta Dilma Rousseff e a todas as mulheres, onde opera com palavrões e discursos do senso comum que alimentam estereótipos contra todas mulheres. Entendemos que pessoas da mídia e cultura, assim como agentes públicos precisam ser responsáveis pela ética e todo contexto social. - Repúdio ao projeto de lei com a Escola sem partido, que prevê reparações e até prisões de professoras/es que levantarem discussões políticas sobre cidadania, direitos humanos nas escolas. Bem com projetos de lei que pretende excluir da escola prevendo as mesmas punições, discussões como: equidade de gênero, sexualidade, raça e etnia. Participaram 162 mulheres que vieram de 24 municípios: Água Preta, Abreu Lima, Afogados da Ingazeira, Araripina, Bodocó, Camaragibe, Carnaíba, Cabo de Santo Agostinho, Caruaru, Catende, Escada, Goiana, Ipubi, Jaboatão, Olinda, Ouricuri, Orobó, Passira, Palmares, Paulista, Recife, Santa Cruz e São Loureço da Mata. As participantes tem atuação política em várias organizações locais, estaduais e nacionais: Articulação Aids, Articulação Nacional e Estadual de Pescadoras, Articulação de Mulheres Brasileiras, Articulação de Mulheres da Mata Sul, Associação Quilombola Sitio Abelha, AEPA Associação de Estudos e Projeto Atitude, Associação de Moradores de UR-10, Associação de Mulheres de Água Preta, Associação de Mulheres de Catende, Casa da Mulher do Nordeste, CONAM, CEAS Rural, Centro Social das Mulheres de Arthur Lundgren, Candances , Consulta Popular, Centro Comunitário Vivendo e Aprendendo, Coletivo Antiproibicionista, Coletivo de Mulheres de Jaboatão, Coletivo Feminista Diadorim, Coletivo de Mulheres Casa Lilás, Centro das Mulheres de Joaquim Nabuco, Coletivo de Mulheres Margarida Alves, Cidadania Feminina, Centro Nordestino de Medicina Popular, Coletivo de Mulheres da CUT, Coletivo Mulher Vida, Coletivo Desconstruindo o Machismo no AudioVisual, Comitê Impulsor da Marcha das Mulheres Negras, COMUNEPE (Coletivo de Mulheres Negras de Pernambuco), Encrespa Geral, Espaço Mulher, Colonia Z14; Conselho Pastoral dos Pescadores, Comissão Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas de Pernambuco, Diretoria de Políticas para Mulheres da FETAPE, FERU, Diakonia, FEMOCOHAB, FIJ Federação Ibura Jordão, Fórum de Mulheres de Jaboatão, Feminismo Agora, Fórum de Mulheres de Passira, Fórum de Mulheres de Paulista, Fórum de Mulheres de Pernambuco, Fórum DCA, Fórum de Mulheres de São Lourenço, Fórum de Mulheres do Pajeú, Fórum de Mulheres do Agreste, Fórum de Mulheres Negras de Pernambuco, Fórum de Mulheres do Araripe, GESTOS, Grupo de Mulheres de Serro Azul, Grupo de Mulheres Jurema, Grupo Mulher Ação, Grupo de Idosas Tia Fia, Grupo Comunidade Defendendo suas Crianças, Grupo Curumim, Grupo Mulher Maravilha, Grupo de Mulheres Macambira, Instituto Papai, Loucas de Pedra Lilás, Marcha das Vadias, Marcha Mundial de Mulheres, Movimento de Mulheres de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas, Mães da Saudade, Movimento de Mulheres Olga Benário, MTC.- Movimento dos Trabalhadores Cristãos, Movimento Luta de Classes, Mulheres em Alerta, Mulheres de Terreiro, Movimento Nacional das Catadoras,Movimento Zoada, Movimento de Pequenos Agricultores MPA, Rede de Mulheres Produtoras do Pajeú, Rede de Mulheres Cristãs do Pajéu, Rede de Mulheres Educadoras Popular Solidária, RNP+, Secretaria Gênero do SINTEPE, Sindicato das Trabalhadoras Domésticas, SOS Corpo, SIMPROJA, Somos todas Iguais, Sindicato dos Bancários, Via Mulher, UBM, União das Entidades de Jaboatão, Uiala Mukaji.