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CogniçãoPerceptual eRacionalidade Corporificada Giovanni Rolla COGNIÇÃO PERCEPTUAL E RACIONALIDADE CORPORIFICADA Série Dissertatio Filosofia COGNIÇÃO PERCEPTUAL E RACIONALIDADE CORPORIFICADA Giovanni Rolla Pelotas, 2018 REITORIA Reitor: Pedro Rodrigues Curi Hallal Vice-Reitor: Luís Isaías Centeno do Amaral Chefe de Gabinete: Taís Ullrich Fonseca Pró-Reitor de Graduação: Maria de Fátima Cóssio Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Flávio Fernando Demarco Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Francisca Ferreira Michelon Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Otávio Martins Peres Pró-Reitor Administrativo: Ricardo Hartlebem Peter Pró-Reitor de Infraestrutura: Julio Carlos Balzano de Mattos Pró-Reitor de Assuntos Estudantis: Mário Renato de Azevedo Jr. Pró-Reitor de Gestão Pessoas: Sérgio Batista Christino CONSELHO EDITORIAL DA EDITORA DA UFPEL Presidente do Conselho Editorial: João Luis Pereira Ourique Representantes das Ciências Agronômicas: Guilherme Albuquerque de Oliveira Cavalcanti Representantes da Área das Ciências Exatas e da Terra: Adelir José Strieder Representantes da Área das Ciências Biológicas: Marla Piumbini Rocha Representante da Área das Engenharias e Computação: Darci Alberto Gatto Representantes da Área das Ciências da Saúde: Claiton Leoneti Lencina Representante da Área das Ciências Sociais Aplicadas: Célia Helena Castro Gonsales Representante da Área das Ciências Humanas: Charles Pereira Pennaforte Representantes da Área das Linguagens e Artes: Josias Pereira da Silva EDITORA DA UFPEL Chefia: João Luis Pereira Ourique (Editor-chefe) Seção de Pré-produção: Isabel Cochrane (Administrativo) Seção de Produção: Gustavo Andrade (Administrativo) Anelise Heidrich (Revisão) Ingrid Fabiola Gonçalves (Diagramação) Seção de Pós-produção: Madelon Schimmelpfennig Lopes (Administrativo) Morgana Riva (Assessoria) CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. João Hobuss (Editor-Chefe) Prof. Dr. Juliano Santos do Carmo (Editor-Chefe) Prof. Dr. Alexandre Meyer Luz (UFSC) Prof. Dr. Rogério Saucedo (UFSM) Prof. Dr. Renato Duarte Fonseca (UFSM) Prof. Dr. Arturo Fatturi (UFFS) Prof. Dr. Jonadas Techio (UFRGS) Profa. Dra. Sofia Albornoz Stein (UNISINOS) Prof. Dr. Alfredo Santiago Culleton (UNISINOS) Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich (PUCRS) Prof. Dr. Manoel Vasconcellos (UFPEL) Prof. Dr. Marco Antônio Caron Ruffino (UNICAMP) Prof. Dr. Evandro Barbosa (UFPEL) Prof. Dr. Ramón del Castillo (UNED/Espanha) Prof. Dr. Ricardo Navia (UDELAR/Uruguai) Profa. Dra. Mónica Herrera Noguera (UDELAR/Uruguai) Profa. Dra. Mirian Donat (UEL) Prof. Dr. Giuseppe Lorini (UNICA/Itália) Prof. Dr. Massimo Dell'Utri (UNISA/Itália) COMISSÃO TÉCNICA (EDITORAÇÃO) Prof. Dr. Lucas Duarte Silva (Diagramador) Profa. Luana Francine Nyland (Assessoria) Acad. Vinícius Berman (Webmaster) DIREÇÃO DO IFISP Prof. Dr. João Hobuss CHEFE DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Prof. Dr. Juliano Santos do Carmo Série Dissertatio Filosofia A Série Dissertatio Filosofia, uma iniciativa do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Filosofia (sob o selo editorial NEPFIL online) em parceira com a Editora da Universidade Federal de Pelotas, tem por objetivo precípuo a publicação de estudos filosóficos relevantes que possam contribuir para o desenvolvimento da Filosofia no Brasil nas mais diversas áreas de investigação. Todo o acervo é disponibilizado para download gratuitamente. Conheça alguns de nossos mais recentes lançamentos. Estudos Sobre Tomás de Aquino Luis Alberto De Boni Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do Século IXI Clademir Luís Araldi Didática e o Ensino de Filosofia Tatielle Souza da Silva Michel Foucault: As Palavras e as Coisas Kelin Valeirão e Sônia Schio (Orgs.) Sobre Normatividade e Racionalidade Prática Juliano do Carmo e João Hobuss (Orgs.) A Companion to Naturalism Juliano do Carmo (Organizador) Ciência Empírica e Justificação Rejane Xavier A Filosofia Política na Idade Média Sérgio Ricardo Strefling Pensamento e Objeto: A Conexão entre Linguagem e Realidade Breno Hax Agência, Deliberação e Motivação Evandro Barbosa e João Hobuss (Organizadores) Acesse o acervo completo em: wp.ufpel.edu.br/nepfil © Série Dissertatio de Filosofia, 2018 Universidade Federal de Pelotas Departamento de Filosofia Núcleo de Ensino e Pesquisa em Filosofia Editora da Universidade Federal de Pelotas NEPFil online Rua Alberto Rosa, 154 – CEP 96010-770 – Pelotas/RS Os direitos autorais dos colaboradores estão de acordo com a Política Editorial do NEPFil online. A revisão ortográfica e gramatical foi realizada pelo autor. Primeira publicação em 2018 por NEPFil online e Editora da UFPel. Dados Internacionais de Catalogação N123 Cognição Perceptual e Racionalidade Corporificada. [recurso eletrônico] Autor: Giovanni Rolla – Pelotas: NEPFIL Online, 2018. 168p. - (Série Dissertatio Filosofia). Modo de acesso: Internet <wp.ufpel.edu.br/nepfil> ISBN: 978-85-67332-60-4 1. Filosofia. 2. Cognição. 3. Racionalidade. I. Rolla, Giovanni. COD 170 Para maiores informações, por favor visite nosso site wp.ufpel.edu.br/nepfil Para Martina. Sumário Prefácio VIII Introdução 10 1. Argumentos Céticos como Paradoxos 16 1.1. O que podemos aprender com o ceticismo? 16 1.2. Subdeterminação 19 1.3. Primeiras tentativas em responder o argumento cético da subdeterminação 22 1.4. Disjuntivismo epistemológico, fase I 27 1.5. Disjuntivismo epistemológico, fase II 31 1.6. Dr. Disjuntivista ou: como eu aprendi a parar de me preocupar e amar a factividade 35 1.7. Disjuntivismo, saber-que e conceitualismo 37 1.8. Observações finais 42 2. Imodéstia Epistêmica e Racionalidade Corporificada 43 2.1. Fundamentos epistêmicos favorecentes e discriminantes 43 2.2. Ceticismo de sonhos e conjuntivismo fenomenológico 47 2.3. Enativismo e disjuntivismo fenomenológico 52 2.4. Enativismo implica idealismo? 61 2.5. Enativismo como uma tese anti-cética 63 2.6. Racionalidade corporificada 65 GIOVANNI ROLLA 2.7. Imodéstia epistêmica 71 2.8. Observações finais 75 3. Mentes Básicas sem Conteúdo e Conhecimento Perceptual 76 3.1. Cognição corporificada 76 3.2. Conhecimento sem conteúdo? 80 3.3. Saber-como/onde/quando perceptualmente e saber-que perceptualmente82 3.4. Restrições normativas sobre o conhecimento perceptual 87 3.5. De perceber para perceber que 93 3.6. Contra a tradição? 100 3.7. Observações finais 103 4. Dos Cérebros Encubados 105 4.1. Uma concepção transformativa da racionalidade 105 4.2. Sobre cérebros em corpos e cérebros em cubas 111 4.3. Casos de desencubamentos 114 4.4. Alucinações, ilusões e atribuições de racionalidade 118 4.5. Observações finais 127 5. Enativismo Radical e Autoconhecimento 130 5.1. Saber-fazer e habilidades 130 5.2. Enativismo radical e a racionalidade 134 5.3. Shoemaker contra os modelos perceptuais 136 VI COGNIÇÃO PARCEPTUAL E RACIONALIDADE CORPORIFICADA 5.4. A concepção da transparência 140 5.5. Conhecimento prático e autoconhecimento 143 5.6. Outras mentes 149 5.7. Observações finais 153 Observações Finais 155 Referências 158 VII Prefácio Este livro é uma tradução revisada da minha tese de doutorado. Eu sou eternamente grato a Martina Werner por seu empenho na tradução da minha dissertação e pelas suas sugestões sempre pertinentes. Os comentários e as críticas dos membros da banca – Waldomiro Silva Filho, Jônadas Techio, André Klaudat e André Abath – e dos meus orientadores – Paulo Faria e Eros de Carvalho – foram inestimáveis para corrigir muitos problemas deste trabalho. Sobre a origem dos capítulos Versões iniciais do primeiro capítulo, Argumentos Céticos como Paradoxos foram apresentadas no VII Congresso da Sociedade Espanhola de Filosofia Analítica em 2013 e no XVI Encontro Nacional da ANPOF em 2014. Eu sou especialmente grato a Eros de Carvalho, Flávio Williges, John Broome e Livia Mara Guimarães pelos seus comentários. Partes do segundo capítulo, Imodéstia Epistêmica e Racionalidade Corporificada, foram apresentados no seminário sobre Epistemologia e Filosofia da Mente na UFRGS, no European Epistemology Network Meeting de 2016 e no International Rationality Summer Institute em 2016. Eu sou grato por essas audiências por suas observações, especialmente Eros de Carvalho, Jônadas Techio, Rafael Vogelmann, Regina Fabry e Eva Schmidt. Eu também sou grato por um parecerista anônimo da revista Manuscrito em que uma versão em inglês deste capítulo foi publicada como Rolla (2016a). Uma parte substancial do terceiro capítulo, Mentes Básicas sem Conteúdo e Conhecimento Perceptual foi publicado no III Colóquio de Filosofia e Artes Marciais, em 2016. Eu sou grato a Alexandre Meyer Luz pelos seus comentários e sugestões. Com algumas mudanças, este capítulo foi publicado em inglês na revista Philosophy Unisinos como Rolla (2017). Os argumentos centrais do quarto capítulo, Dos Cérebros Encubados, podem ser encontrados na sua versão original publicada na revista Kriterion como COGNIÇÃO PARCEPTUAL E RACIONALIDADE CORPORIFICADA Rolla (2016b), e foram apresentados originalmente na Salzburg Conference for Young Analytic Philosophy em 2015. Desde então, eu fiz mudanças significativas nas ideias desse artigo. Eu sou muito grato a Jônadas Techio, Eros de Carvalho e um parecerista anônimo da Kriterion por suas observações e comentários. O quinto capítulo, Enativismo Radical e Autoconhecimento está no prelo pela revista Kriterion com o nome de Radical Enactivism and Self-Knowledge. IX Introdução Este livro consiste no esforço em articular duas teses: a primeira delas afirma que a percepção, em condições apropriadas, é factiva e não compartilha nenhum fundamento epistêmico com casos desviantes, como alucinação e ilusão. A segunda tese apresentada e defendida aqui afirma que a percepção é uma atividade que consiste fundamentalmente no exercício de habilidades sensóriomotoras. A primeira dessas teses é conhecida na literatura epistemológica como o disjuntivismo epistemológico, pois dela se segue que ou bem uma pessoa está em um estado de percepção legítima, em que o fundamento epistêmico da sua posição é factivo – isto é, perceber que p implica p – ou bem ela está em um estado desviante, em que há algo de epistemicamente inadequado com a sua posição. A segunda dessas teses é conhecida na filosofia da mente (e no campo mais recente da filosofia da cognição) como o enativismo radical. O enativismo explica casos de cognição (nesse caso, cognição perceptual) através da agência de um organismo no seu ambiente, que consiste na integração dos dados obtidos por estímulos sensórios. O enativismo radical, por sua vez, explora a possibilidade de que certos casos de cognição não sejam representacionais, ao contrário do que assume a herança cartesiana que é tão amplamente disseminada na epistemologia e na filosofia da mente contemporâneas. Claro está que este trabalho encontra-se na intersecção de duas grandes áreas da filosofia, e seu ponto focal é o conceito de percepção ou cognição perceptual. A abordagem escolhida aqui não consiste, contudo, em uma análise do conceito de percepção. O que eu pretendo fazer é explicar como a realização da cognição perceptual permite-nos evitar ou dissolver certos problemas tradicionais da filosofia, como o problema cético da subdeterminação que apresento no primeiro capítulo. A ideia de plano de fundo, uma ideia que vou aceitar como correta, sem contudo argumentar em seu favor; é que descobertas empíricas podem sugerir revisões sobre teses filosóficas – bem como a aceitação de teses filosóficas pode conduzir a novas descobertas empíricas. A escolha por uma COGNIÇÃO PARCEPTUAL E RACIONALIDADE CORPORIFICADA epistemologia e uma filosofia da mente empiricamente bem-informadas, portanto, reflete a inclinação naturalista deste livro. Com efeito, há um ponto de convergência entre o epistemólogo analítico tradicional e o filósofo naturalista, embora a situação dialética seja delicada1. Ambos concordam que há algo errado se a melhor teoria científica atual não se coaduna com a análise dos conceitos dos quais ela faz uso. O filósofo tradicional diria que a teoria deve ser revista, enquanto o naturalista alegaria que o problema reside na análise. Um posicionamento definitivo e arrazoado sobre esse embate exigiria mais do que cabe dizer nesta breve introdução, e por enquanto eu apenas posso dizer que assumo a posição naturalista, ao menos provisoriamente, dadas as vantagens que ela promete. Que esta obra insere-se no panorama naturalista pode-se atestar já pelo seu título. A escolha por ‘cognição’ ao invés de ‘conhecimento’ mostra que não estou preocupado em oferecer as condições necessárias e suficientes para a posse de conhecimento, como o epistemológo analítico tradicional poderia fazer, e como é tão comum em uma era pós-Gettier. A escolha por investigar como a cognição é realizada em criaturas atualmente existentes – por oposição a criaturas do folclore filosófico, como cérebros desencorpados –, criaturas corporificadas, contextualmente situadas, criaturas cujas habilidades cognitivas têm um histórico de desenvolvimento ontogenético e filogenético; sugere que a percepção é um evento dinâmico de acesso bem sucedido e interação prolífica entre um organismo e o seu ambiente imediato. Isso, por sua vez, conduz naturalmente à tese de que o caráter fenomênico de estados perceptuais é disjuntivo, isto é: ou bem o organismo acessa com sucesso o seu ambiente, ou bem ele falha em fazê-lo, e assim seus estados perceptuais se lhe apareceriam diferentes, todo o resto permanecendo igual. Eu pretendo combinar, portanto, o disjuntivismo epistemológico e o enativismo radical, o que leva a um disjuntivismo fenomenológico. Inicialmente referi-me de modo humoroso, e talvez até com algum descaso, a essa posição como um caso de disjuntivite, isto é, o compromisso escalante com ideias disjuntivistas. Entendi-a quase como um quadro clínico, que, como eu descrevi na 1 Sou grato a Emerson Valcarenghi por discussões sobre este ponto. 11 GIOVANNI ROLLA introdução à minha tese de doutorado, parte do disjuntivismo epistemológico (a respeito dos fundamentos epistêmicos de estados perceptuais) para o disjuntivismo fenomenológico (a respeito do caráter fenomênico da percepção) até atingir um disjuntivismo que concerne à própria ideia de racionalidade. Nesse estágio terminal, o disjuntivista radical afirma que um sujeito é racional se ele conquista os objetivos relevantes pelo exercício de certas habilidades, de modo que, se ele falha sistematicamente, ele não é racional (isso evidentemente levanta problemas sobre a supsota racionalidade de indivíduos em cenários céticos). Ao contrário do que pensara inicialmente, a disjuntivite pareceu-me cada vez mais não uma affecção letal, mas uma estratégia teórica válida e interessante, digna de ser explorada com seriedade. Não por acaso, Disjuntivite – Conhecimento, Fenomenologia e Racionalidade tornou-se o nome da minha tese de doutorado. É dela que partem os capítulos deste livro, traduzidos do inglês para o português por Martina Werner, a quem dedico esta obra. Apesar de algumas alterações em relação aos artigos originais, não houve nenhuma diferença substancial das teses apresentadas aqui e na minha dissertação. Este livro é estruturado da seguinte maneira: no primeiro capítulo, Argumetnos Céticos como Paradoxos, eu argumento que o disjuntivismo epistemológico é a melhor solução disponível ao paradoxo cético da subdeterminação. Para isso, eu apresento como devemos entender problemas céticos e quais as posturas que podemos assumir diante desse tipo de problema. Eu apresento o disjuntivismo e as suas motivações, bem como uma solução rival ao problema da subdeterminação que eu chamei de meramente pragmática. É importante explicitar que a solução meramente pragmática não pretende mostrar que casos de percepção genuína e casos de engano massivo sejam epistemicamente diferentes, mas que, dada a nossa condição de agentes com compromissos práticos, é pragmaticamente melhor tratá-las como diferentes. A conjunção que eu ofereço entre disjuntivismo epistemológico e enativismo (no segundo capítulo), portanto, embora admita uma dimensão prática na constituição do conhecimento perceptual, é diferente da solução meramente pragmática. No segundo capítulo, Imodéstia Epistêmica e Racionalidade Corporificada, eu argumento que o problema cético do sonho é um problema moderado por duas 12 COGNIÇÃO PARCEPTUAL E RACIONALIDADE CORPORIFICADA razões relacionadas: ele não atinge todas as alegações possíveis de conhecimento, e aquelas alegações que estão fora do escopo da dúvida cética do sonho permitem motivá-lo. Dessa maneira, o problema cético do sonho difere de problemas postos por hipóteses céticas radicais, de tal modo que a disjuntivista epistemológica tem de oferecer meios para discriminar percepção genuína de sonho. Eu motivo a possibilidade dessa discriminação – o que eu chamo de disjuntivismo fenomenológico, através do enativismo, a tese segundo a qual a consciência perceptual é conquistada pelo exercício de habilidades sensóriomotoras. Ao oferecer uma conjunção do disjuntivismo epistemológico e do enativismo, temos em mãos uma dissolução do problema da falta de modéstia epistêmica – a saber, a consequência aparentemente inaceitável do disjuntivismo de que podemos saber, de modo racionalmente fundado, que não estamos em cenários céticos. Eu defendo que essa consequência é correta e intuitiva, dada uma concepção mais inclusiva de racionalidade. Em grande medida, o objetivo deste trabalho é oferecer concepções de cognição perceptual e de capacidades racionais que evitam o famigerado Mito do Dado. Os conceitualistas clássicos pretenderam oferecer a conexão epistêmica entre mente e mundo ao projetar os conceitos na realidade ela mesma – como diz o slogan, a realidade vem com legendas. Eu procurei percorrer o caminho contrário, ainda com o mesmo desiderato: oferecer uma interpretação do conhecimento perceptual e da racionalidade de acordo com as nossas habilidades sensório-motoras. Na concepção que eu proponho, podemos dizer seguindo o psicólogo J. J. Gibson que a realidade vem com possibilidades de ação. Assim procuro evitar o Mito do Dado – porque a realidade não é dada independentemente da nossa contribuição ativa, mas sim mediada pelas habilidades sensório-motoras que nos permitem navegar pelo ambiente. Ainda em Imodéstia Epistêmica e Racionalidade Corporificada, eu defendo que a conexão entre percepção e racionalidade é possível através de uma concepção corporificada de racionalidade, segundo a qual ser racional é conquistar os objetivos relevantes através do exercício de habilidades. A implicação é que não existe uma distinção nítida entre percepção e cognição no esquema teórico que estou avançando. Além disso, é claro, há uma expansão significativa da classe de coisas que estão sujeitas à 13 GIOVANNI ROLLA avaliação normativa se compararmos com teorias tradicionais da racionalidade. Na medida em que o sujeito é o autor das suas experiências sensórias – no sentido de que ele as atua [enact] através das suas habilidades relevantes – também essas experiências estão sob seu controle e podem ser racionais (quando garantem a obtenção de certos fins, como estados perceptuais) ou irracionais (quando falham na obtenção desses fins). Eu exploro que tipo de concepções de conhecimento e de racionalidade são essas no terceiro capítulo, Mentes Básicas sem Conteúdo e Conhecimento Perceptual, em que argumento que o conhecimento prático (saber onde, quando e como) que constitui nossa interação básica com a realidade pode converter-se em cognição de maior ordem, como o conhecimento perceptual proposicional, porque ambos estão restritos pelas mesmas normas. No quarto capítulo, Dos Cérebros Encubados, eu avalio uma consequência dos capítulos anteriores, a saber, que cérebros encubados não seriam, e não poderiam ser, racionais do mesmo modo que nós porque eles não possuiriam um corpo para agir e um ambiente para interagir de modo prolífico. Meu argumento é que isso não é tão problemático quanto filósofos tradicionais podem tender a pensar, porque a própria ideia de atribuição de racionalidade em casos de engano massivo é parasitária de atribuições de racionalidade em casos reais de engano, especificamente, casos de ilusão e alucinação. Em casos reais de engano, se um sujeito erra incorrigivelmente, não estamos dispostos a atribuir-lhe racionalidade. Por que haveria de ser diferente nos cenários céticos radicais? Cenários céticos radicais parecem promover uma avaliação diferente porque, ao mesmo tempo em que se pretende que sejam casos análogos a casos normais, excepcionais apenas na amplitude do erro, rompe-se com a própria analogia na medida em que não é possível evitar o erro em questão. Cenários céticos radicais são o que eu chamo de extrapolações indevidas e não devem servir de exame sobre as nossas intuições. Finalmente, no quinto capítulo, Enativismo Radical e Autoconhecimento eu aplico o enativismo radical ao autoconhecimento, mostrando como o autoconhecimento pode ser amplamente concebido de acordo com um modelo perceptual, em que seus “objetos” intencionais são percebidos de modo análogo aos “objetos” da percepção, sem que esse modelo deixe de respeitar a intuição de 14 COGNIÇÃO PARCEPTUAL E RACIONALIDADE CORPORIFICADA que os constituintes intencionais do autoconhecimento são internos ao próprio ato de obter autoconhecimento. A imagem resultante é de que autoconhecimento orienta ações e é orientado por ações. O autoconhecimento, assim como o conhecimento de outras mentes, é uma habilidade que exercitamos e refinamos. Deve estar claro que nenhuma das teses que constitui a espinhal dorsal deste livro representa a ortodoxia, seja em epistemologia, seja em filosofia da mente. Isso, contudo, não me parece ser material suficiente para uma redução ao absurdo deste projeto, mas como um desafio que merece ser respondido. 15