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© 2020 EDUNILA – Editora Universitária Catalogação na Publicação (CIP) P832 Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo/ Andréia Moassab (Org.); Leo Name (Org.). Foz do Iguaçu: EDUNILA, 2020. 372 p.: il. ISBN: 978-65-86342-09-3 1. Arquitetura. 2. Urbanismo. 3. Educação superior. 4. Práticas educacionais. I. Moassab, Andréia. II. Name, Leo. III. Título. CDU 72:378 Ficha Catalográfica elaborada por Leonel Gandi dos Santos CRB11/753 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização prévia, por escrito, da editora. Direitos adquiridos pela EDUNILA – Editora Universitária. EDUNILA – Editora Universitária Av. Tancredo Neves, 6731 – Bloco 4 Caixa Postal 2044 Foz do Iguaçu – PR – Brasil CEP 85867-970 Fones: +55 (45) 3522-9832 | 3522-9843 | 3522-9836 editora@unila.edu.br www.unila.edu.br/editora Editora associada à Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo CAPÍTULO 18 ░ ░ ░ ░ POR UM ENSINO DE PAISAGISMO CRÍTICO E EMANCIPATÓRIO NA AMÉRICA LATINA: UM DEBATE SOBRE TIPOS E PAISAGENS DOMINANTES E SUBALTERNOS1 Leo Name e Andréia Moassab Este texto dá continuidade a outros capítulos deste livro, os quais debatem vários aspectos do CAU UNILA, propondo uma revisão crítica do ensino de paisagismo nos cursos de arquitetura e urbanismo no país, em diálogo com a missão da UNILA em “promover, por intermédio do conhecimento e da cultura, a cooperação e o intercâmbio solidários com os demais países da América Latina” (UNILA, 2014a) e com o pensamento decolonial2. No contexto de uma produção do conhecimento no seio da UNILA, é tarefa apontar a continuidade do eurocentrismo nas ciências – particularmente as sociais –, desenvolver uma episteme do Sul como base para o fazer científico na UNILA. Diversos e diversas docentes do curso de arquitetura e urbanismo têm feito esforços nessa direção. Vimos adicionar, aos demais temas já tratados, as especificidades, questões de partida e desafios no que tange ao ensino de paisagismo. Sabe-se que escolas tradicionais de ensino de arquitetura, no Brasil, pouco debatem a produção arquitetônica do continente. Ao passo que nas grades curriculares do país contemplam-se as arquiteturas grega e romana, as cidades medievais com suas grandes catedrais e outros referenciais arquitetônicos europeus, mantêm-se ignorados exemplos latino-americanos: tanto referenciais históricos, como Chan-Chan, no Peru, um dos maiores exemplares de arquitetura de terra e organização urbana dos séculos X ao XV, quanto os referenciais tectônicos, como as construções indígenas, que passam ao largo do curriculum nacional. O ensino de arquitetura e urbanismo e, por consequência, de paisagismo, ainda que indiretamente, vem contribuindo para a subalternização de alguns saberes construtivos, compreendendo sob a égide da alteridade as paisagens resultantes de tempos históricos ou racionalidades não modernos. Quais as consequências desta formação que distancia o futuro arquiteto de práticas que ou jamais serão parte de seu repertório ou serão deliberadamente desvalorizadas 336 1 Artigo originalmente apresentado no 12º Encontro de Ensino de Paisagismo em Escolas de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, no ano de 2014, na cidade de Vitória, Espírito Santo. 2 Ver: “O Projeto Pedagógico do CAU UNILA, a América Latina e o século XXI” (capítulo 1); “Os Desafios de Introduzir as Categorias Gênero e Raça no Ensino de Arquitetura e Urbanismo” (capítulo 10); “Decolonizando o Ensino de Estruturas em Arquitetura: uma Proposta a Partir da Experiência na UNILA” (capítulo 14); e “Ensino de Arquitetura e Trabalho Livre: a Experiência Didática das Disciplinas de Canteiro Experimental da UNILA” (capítulo 16). Paisagens e paisagismos críticos enquanto tal? O texto subsequente refletirá, em caráter inicial, sobre um ensino de paisagismo que se integre à perspectiva latino-americanista da UNILA: valorizadora do subcontinente e suas paisagens, capaz de realizar intercâmbios culturais e propiciar a emancipação e o empoderamento de pobres ou subalternizados. DEBATE: TIPOS E PAISAGENS DOMINANTES E SUBALTERNOS O estudo da paisagem é presente em diversas disciplinas e, dada a extrema polissemia em torno do termo, promove muitas discussões – particularmente na geografia, que a tem como conceito-chave (HOLZER, 1999; NAME, 2010). Por essa vultosa literatura, pode-se concluir que a paisagem não é meramente um dado objetivo da realidade: é tanto traço da natureza quanto objeto da cultura. É uma construção social que dota de maior inteligibilidade a produção, a representação, a experiência sensorial do espaço e as filiações territoriais identitárias. Deriva, contudo, de uma racionalidade europeia, extremamente ocularcêntrica e gestada no cerne da Modernidade: a ideia de paisagem, como atualmente a compreendemos, foi resultado do progresso técnico renascentista, o cartográfico em particular; do alargamento dos horizontes consecutivos às grandes navegações e aos processos do colonialismo e do imperialismo; do projeto, positivista e totalizante, de classificação da natureza que, conduzido por ciências como a história natural, anulou tanto as formas de saber campesinas europeias quanto as indígenas nas Américas (RONAI, 1976; PRATT, 1999; MIGNOLO, 1995). Por esta leitura estetizante, exotizante e excludente, o espaço torna-se cena, percebida de um ponto de vista privilegiado […]. As contradições entre natureza e sociedade, entre modos de produção, entre aparelhos de Estado, entre classes, são cobertas por uma ilusão de harmonia. Há na valorização estética da paisagem uma ocultação das contradições em que o espaço é a base. Há na contemplação, no deleite e no gozo da paisagem uma participação, uma aceitação, uma conivência com o ordenamento espacial. Esse vínculo está de mãos dadas com uma repulsão, um esvaziamento das relações sociais: os homens não fazem parte da paisagem, ou, se fazem, são um acessório ou um intruso (Assim, para o fotógrafo, o indígena faz parte da paisagem, mas o turista é estrangeiro). É assim que a paisagem funciona como um anestésico (RONAI, 1976, p. 127, tradução nossa, grifo no original). O ensino de projeto de paisagismo não está livre desta concepção hegemônica de paisagem, discernente de outras cosmologias (BERQUE, 1994; MIGNOLO, 2000). Por isso, suas teorias e práticas projetivas, ainda muito pautadas por discussões sobre morfologias e tipologias, apresentadas sob o viés falso da neutralidade científica, merecem ser debatidas por meio de um prisma crítico que desvele sua elaboração eurocêntrica. 337 Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo Na geografia, a discussão morfológica da paisagem foi de grande destaque. Noções de forma (resumo dos diversos elementos em conexão em determinada área geográfica) e de fisionomia (expressão da singularidade de cada localização) eram acionadas nas monografias regionais, de modo a se validar a ideia de que a cada “gênero de vida” (relação que um grupo social traça com seu meio físico, mediada pelas técnicas) corresponderia a localização e paisagem específicas (VIDAL DE LA BLACHE, 1954). Diante de tamanha diversidade, autores como Sauer (2007) e Troll (2007), por exemplo, advogaram em prol de uma análise “mais objetiva” das paisagens, por meio de tipos sintéticos, as “paisagens-tipo”. Elas derivariam de uma classificação resultante da contínua comparação de traços e características: por exemplo, da hidrologia (rios, aluviões, mares etc.); dos biomas (tundra, taiga, savana, floresta pluvial etc.); dos ecossistemas (brejo, pântano, pradaria etc.). Na arquitetura e no urbanismo, estudos de tipologia constituem um método de análise que investiga os componentes físico-espaciais e socioculturais (uso, apropriação e ocupação) da forma edificada e como ela varia em função do tempo (CERVELATTI; SCANNAVINI; ANGELIS, 1981; BUTINA, 1987). Tipologia arquitetônica e morfologia urbana são, então, noções profundamente relacionadas, uma vez que o conjunto urbano e a paisagem resultante são diretamente configurados pelas tipologias das edificações. Para a escola italiana de arquitetura, o tipo e a tipologia são elementos fundamentais, cuja composição e forma de agrupamento geram bairros e cidades (ROSSI, 1995). Na perspectiva histórica, estes elementos materializariam uma memória coletiva: os tipos seriam soluções “consagradas”, inerentes ao imaginário, referência inexorável para o exercício projetivo e condição do significado em arquitetura (COLQUHOUN, 2006). Por sua vez, Argan (2006), a despeito de também considerar os tipos “elementos originais” da configuração formal, estrutural e decorativa, inferidos a uma cultura particular, não os considera entidades fixas, mas variáveis ao longo do tempo. Os autores elencados – todos europeus, diga-se – convergem ao menos em um ponto: tipo e tipologia possuem relação, afinal, com sistemas de classificação e com repertórios preexistentes. Cumpre esclarecer, entretanto, que sistemas e repertórios não são instituídos por uma neutralidade objetiva; são geo-historicamente determinados, traduzem seletividades do olhar e, por isso, são potencialmente limitadores da prática projetiva. Assim, o estudo dos diversos signos que constituem a composição dos edifícios (disposição das unidades de habitações e circulações, função, material construtivo) ou das regras inerentes à composição urbanística (forma e disposição dos edifícios e dos quarteirões, por exemplo), influentes na produção e na valoração de paisagens, deve levar em conta que: ■ a classificação de paisagens tem pressupostos etnocêntricos que condicionam o olhar, dotando algumas delas de significação moral, tornando-as distintas do que previamente é concebido como “normal”; ■ a repetição e a consagração de determinadas soluções e linguagens arquitetônicas foram condicionadas pela reinvenção renascentista da arquitetura greco-romana como “arquitetura clássica”, influenciando a produção posterior e sua valoração (SUMMERSON, 1994); 338 Paisagens e paisagismos críticos ■ ■ a difusão de linguagens arquitetônicas se deu pari passu com os processos de conquista territorial de fins do século XV em diante, que, nas Américas, incluíram a destruição de sítios, a obliteração de saberes construtivos e a eliminação ou ressignificação violenta de concepções do espaço-tempo – em particular, simbologias da arquitetura e da paisagem (GRUZINSKI, 1991, 2006; MIGNOLO, 2000); os discursos referentes à edificação e à paisagem não são indiferentes às instituições que conformam cada sociedade: são dispositivos de produção de verdades (MOASSAB, 2013b); e, uma vez que o espaço é uma categoria política (FOUCAULT, 1988), a sua produção é prática de poder, da escala da casa e do lote à cidade e à paisagem. Se a paisagem é uma gramática que estrutura e é estruturada pela produção simbólica dominante, com sua organização, manutenção e transformação baseadas em pressupostos ideológicos, os quais produzem sentido (COSGROVE, 1998b; DUNCAN, 1990), os tipos consagrados no exercício projetivo em arquitetura, urbanismo e paisagismo são veículos do eurocentrismo e da ideologia excludente da Modernidade, auxiliando na instituição de “paisagens dominantes” (COSGROVE, 1998a). E, mais amplamente, as ciências da paisagem e o paisagismo tendem a tornarse parte da chamada “geopolítica do conhecimento” (MIGNOLO, 2002), uma estratégia eurocêntrica de produção de saberes concebidos e utilizados para descartar outras formas de saber (de racionalidade não moderna): por exemplo, as cosmologias dos povos africanos e dos indígenas, sua arquitetura e seus modos de habitar. Dito de outra forma, uma miríade de materiais, técnicas construtivas e outras relações com a paisagem estão sendo efetivamente desperdiçadas, caracterizando o que Boaventura de Sousa Santos (2006; 2007) denomina “desperdício de experiências”. A reversão deste quadro pressupõe, necessariamente, um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante pelo menos durante os últimos duzentos anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito (SANTOS, 2006, p. 94). Numa cultura arquitetônica de sobrevalorização do concreto, é evidente que correm o risco de desaparecer as ocas indígenas, as casas quilombolas, as palafitas e flutuantes ribeirinhos, as vilas de pescadores, as casas caiçaras e todo o vasto leque de tipologias construtivas que configuram diversas paisagens latino-americanas. 339 Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo DIRETRIZES PARA UM ENSINO DE PAISAGISMO CRÍTICO E EMANCIPATÓRIO Inserido numa universidade pública brasileira com o objetivo da integração continental, o CAU UNILA está estruturado para a formação de profissionais aptos a dar respostas para uma produção habitacional de qualidade em contextos de limitações econômicas ou de recursos materiais, o que guiará o ensino, a pesquisa e a extensão. Neste cenário, como deve ser a atuação profissional em termos de intervenção na paisagem? É com o ensejo de vislumbrar a potência do paisagismo como possibilidade de emancipação que se torna fulcral analisá-lo numa perspectiva crítica à modernidade, da qual as ciências são parte indiscernível. Derivam desse entendimento as principais questões a serem tomadas em conta para um ensino de paisagismo libertário, descritas subsequentemente. O assentamento informal como paisagem possível Dada a enorme parcela da população mundial a viver precariamente, que pode chegar, na América Latina, a um terço de seus habitantes (MENEGA, 2009), os chamados “bairros marginais” não são, portanto, exceção no espaço urbano. Não obstante, denominadas rotineiramente de “favelas”, essas paisagens são tratadas como fora da norma e do “normal” pela teoria urbana, pela prática projetiva e pelo Estado, que exigem sua modificação ou extirpação. No imaginário global, contraditoriamente, vêm se convertendo em “paisagens-tipo”, com vistas à apropriação mercadológica e por meio de ao menos dois movimentos. O primeiro diz respeito à sua estetização como referência tipológica de estabelecimentos comerciais, interessados em proporcionar experiências de alteridade a seus visitantes: têm como base a morfologia da autoconstrução de casas de padrões diversos, coladas umas nas outras e em meio a ruas estreitas, sinuosas e escuras a formar cruzamentos aleatórios, eventualmente praças – uma descrição, aliás, muito semelhante à das cidades medievais europeias ou das cidades latino-americanas com traçado colonial preservado (GOMES, 2002, p. 73). O segundo se dá por intervenções para a espetacularização, tornando-as cartões postais da pobreza turística: este é o caso da implantação de teleféricos nas comunas de Medelín, na Colômbia, ou nos Morros do Alemão e da Providência, no Rio de Janeiro (FREIRE-MEDEIROS, 2009b, 2013; FREIRE-MEDEIROS; NAME, 2017). Considerar os assentamentos informais como paisagens possíveis, de linguagens e racionalidades morfologicamente instituídas não só por uma, mas por múltiplas tipologias, é tarefa do ensino de paisagismo; que, nesse sentido, pode estimular o proveito de suas características positivas como elemento projetivo: relações de vizinhança, escala acolhedora, vistas inesperadas, valorização do percurso, mutabilidade constante da paisagem e a diversidade e copresença de usos e sociabilidades em espaços singulares – como no caso da laje (FREIRE-MEDEIROS, 2009a). 340 Paisagens e paisagismos críticos Revisão crítica à monumentalização e à patrimonialização da paisagem Na América Latina, os quadrantes centrais de inúmeras cidades foram destinados às estruturas de poder, erguendo-se fóruns, igrejas, prefeituras, cadeias e fortificações que, mantidas no presente, perpetuam a narração do processo de conquista. É o caso de cidades de colonização espanhola como Cusco e Cidade do México, cujos sítios originais foram destruídos para dar lugar a praças centrais com arquitetura expressiva da violência imposta aos territórios. Já cidades como Buenos Aires, Manaus e Rio de Janeiro tiveram na sua belle époque a produção de paisagens urbanas que aspiravam ideais de modernidade a partir da incorporação de tipologias arquitetônicas do ecletismo europeu. E, no Brasil, dos quase mil bens arquitetônicos protegidos pelo Estado Nacional, quase a metade refere-se a estruturas religiosas de matriz católica. Outros 20% dizem respeito a edifícios e infraestruturas administrativo-institucionais, especialmente do período colonial (MOASSAB, 2013b). Não são raros, na prática projetiva de paisagismo, a incorporação do método da visão serial com vistas à valorização de visadas (CULLEN, 1996) e o enquadramento de elementos arquitetônicos por massa arbustiva, que tendem a direcionar o olhar do observador justamente para estes monumentos. Todavia o ensino de paisagismo pode evitar o reforço desta monumentalização da paisagem. Assim, não reforçaria, também, certa valorização do patrimônio construído que difunde ideais de nação que mantêm invisibilizadas matrizes arquitetônicas não europeias como referencial válido da memória da paisagem construída. Paisagismo como narração O paisagismo torna-se auxiliar da monumentalização perversa na medida em que meramente elenca e enquadra cenas urbanas para surpreender o olhar de um observador em determinados pontos de um trajeto específico. Apoia-se, assim, no entendimento hegemônico da paisagem como suporte físico e visual para o deleite sensorial. O enquadramento é selecionado por critérios igualmente hegemônicos, a respeito do que deve ou não ser visualmente valorizado ou até não convém integrar à paisagem. Nesse contexto, as realidades conformadas pelas formas sociais desta inexistência são obstáculos em relação às realidades que contam como importantes, sejam elas realidades científicas, avançadas, superiores, globais ou produtivas. São, pois, partes desqualificadas de totalidades homogéneas que, como tal, apenas confirmam o que existe e tal como existe. São o que existe sob formas irreversivelmente desqualificadas de existir (SANTOS, 2006, p. 104). Necessário apontar, então, o quanto são ignoradas antigas culturas indo-americanas, mantidas no presente como herança, que possuíam cosmologias dinâmicas, valorizadoras da dimensão temporal da experiência humana, e que eram pouco ou nada 341 Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo ocularcêntricas (MIGNOLO, 2000). Ademais, grupos sociais subalternizados acreditam haver em suas localidades patrimônio a ser protegido, seja material ou imaterial, o qual órgãos oficiais raramente têm reconhecido (MOASSAB, 2013b). O paisagismo, destarte, exerce importante papel se apresentado por projeto que valorize o tempo, o percurso e a deambulação como insumos à criação coletiva (DOBRY-PRONSATO, 2006). Com efetiva participação comunitária, há como se compor micronarrativas do espaço-tempo, não oficiais, a serem dadas a ler pelos diversos usuários do território: em torno de símbolos locais, da memória impressa em rugosidades, de objetos considerados sagrados, de tudo que se julgar destaque nas práticas cotidianas. Se a paisagem é um conjunto de textos, a atividade projetiva a ela inscrita pode exigir a missão de produzir outras gramáticas. Paisagismo como justiça ambiental e ressignificação de espaços livres O ensino e a prática projetiva em paisagismo podem incorporar o debate da justiça ambiental, que revela a distribuição desigual tanto dos riscos ambientais quanto das funções ecossistêmicas por diferentes estratos sociais (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009). Nas cidades latino-americanas, a exposição a eventos naturais extremos ou em decorrência de alocação de atividades tóxicas tem relação direta com a segmentação socioespacial: a periferia junto a áreas de risco ou desprovidas de serviços urbanos e amenidades ambientais usualmente é o local de moradia dos mais pobres e dos não brancos (NAME; BUENO, 2013). Além disso, o “apartheid residencial” (GOULD, 2004) naturaliza os espaços de lazer, prática esportiva ou contemplação como de utilização quase exclusiva de brancos das classes média e alta, uma das faces do que para muitos se chama “racismo ambiental” (HERCULANO; PACHECO, 2006). Trata-se de cenário que dota o paisagista de ao menos quatro importantes papéis. Primeiro: exigir políticas públicas para a ampliação de espaços de lazer e amenização ambiental em territórios racial ou socialmente segregados. Segundo: incorporar, em seus projetos, as formas de sociabilidade destes grupos, ressignificando tipologias e usos. Terceiro: compreender que, em áreas segregadas, a produção de espaços livres públicos possibilita a expressão de culturas marginalizadas em outros espaços, amplia as possibilidades de exercício político e corrobora para a configuração de centralidades. Finalmente: comungar o desenho projetivo com a ecologia de paisagens, a agroecologia (agricultura familiar social e ambientalmente justa) e a infraestruturação da paisagem (contenções de encostas, reservação ou microdrenagem de águas pluviais etc.), com vistas à regeneração ambiental e à distribuição de funções ecossistêmicas concomitantes à contenção de riscos (MASCARÓ, 2008; DEMANTOVA, 2011). O paisagismo, assim, torna-se veículo do direito à cidade, no que lhe tangem a inclusão social e a equidade ambiental. 342 Estratégias para o ensino de projeto Ressignificação da vegetação nativa Não há dúvidas de que o uso de vegetação nativa é cada vez mais pressuposto em projetos paisagísticos, particularmente no Brasil, onde a arborização para amenização climática é historicamente recorrente e onde têm sido reforçadas as posições em favor da inserção de espécies do bioma local com vistas à conectividade ambiental. Todavia, de forma cada vez mais indiscriminada, a orlas, resorts e todo tipo de áreas turísticas vêm se adicionando fileiras e mais fileiras de palmeiras que, mesmo quando nativas, provocam homogeneização da paisagem. Mais que isso, trata-se de exemplo de desenho da paisagem que atende às demandas do imaginário eurocêntrico sobre os Trópicos. Geo-historicamente construída, a ideia dos Trópicos se apresenta por discursos sobre paisagens de natureza ao mesmo tempo exuberante e débil e converte a imensa zona equatorial do planeta em região moral, que é cultural e ambientalmente distinta à normalidade percebida nas terras temperadas (ARNOLD, 2000; LIVINGSTONE, 2000). Bromélias, palmeiras e vitórias-régias, além de bananeiras e abacaxizeiros, compõem repertório que converte a tropicalidade em exotismo, aplana diferentes espaços pela via da alteridade e atualiza premissas do jardim eclético ao transformar paisagens em cenários. E se, por certo, há grande variedade de biomas na América Latina, há também sua associação, no exercício projetivo, a elementos estereotípicos: o cacto a referenciar o deserto mexicano ou a caatinga brasileira, por exemplo. Importante lembrar, também, que nem todas as espécies nativas matam a fome de quem a tem (DOBRY-PRONSATO, 2006). Em contextos de pobreza, a inserção de árvores frutíferas, tubérculos e leguminosas, mesmo quando espécies exóticas, é importante medida de um paisagismo que promova acesso a uma função ecossistêmica muitas vezes posta em plano secundário: a subsistência de populações. CONSIDERAÇÕES FINAIS Julga-se que as reflexões ora apresentadas fomentam um projeto de ensino emancipatório de paisagismo, devido a se livrarem de condicionantes de ordem geo-histórica, as quais têm efeitos bastante concretos sobre as paisagens latino-americanas e seus usuários: homogeneização de linguagens e repertórios, monumentalização, espetacularização e invisibilização de cosmologias e racionalidades construtivas apartadas da matriz de pensamento europeu. A despeito da abordagem crítica, espera-se ter sido possível notar que não foi ignorada a produção acadêmica sobre paisagem e paisagismo, já posta por diversas disciplinas. Buscou-se, ao contrário, uma postura de “pensamento de fronteira” (MIGNOLO, 2000), fazendo o duplo exercício de, por um lado, traduzir esta literatura e demais saberes consagrados para o contexto da América Latina e, por outro, de conjugar de forma não hierárquica tais saberes com outros saberes, comumente 343 Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo desprezados, de modo a possibilitarem conhecimentos que transcendam preceitos e preconceitos estabelecidos. Tal debate, no entanto, necessariamente deve ser compreendido como mero esboço inicial de ideias para a implantação do ensino de paisagismo no contexto do CAU UNILA, não como uma teorização acabada e com a pretensão, universalista, de ser regra ou modelo – o que, inclusive, pretende-se evitar. 344 Paisagens e paisagismos críticos REFERÊNCIAS ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. A.; BEZERRA, G. N. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. ARGAN, G. C. Sobre a tipologia em arquitetura. In: NESBITT, K. (org.). 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