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Página |1 A Discriminação Moral contra Animais: O Conceito de Especismo Carlos Naconecy1 ____________________________________________________________ Publicado em Revista Diversitas, ano 4, n.5, 2016 ____________________________________________________________ RESUMO O presente ensaio trata de um conceito-chave como o qual os pensadores da Ética Animal articulam a defesa do status moral dos animais (não humanos): a discriminação preconceituosa baseada na noção de espécie (biológica) – o chamado "especismo". A análise começa com a caracterização do que vem a ser propriamente uma discriminação moral, passando pela definição de especismo e, por último, distingue tal conceito das noções aparentadas que frequentam a literatura dessa área. Palavras-chave: ética animal, especismo, antropocentrismo. INTRODUÇÃO "Especismo” é reconhecidamente o arqui-inimigo dos eticistas da Ética Animal e dos ativistas da defesa dos animais1. Ocorre que termos éticos denotam conceitos éticos. E alguns dos conceitos que frequentam a Ética Animal têm uma importância ímpar em virtude de serem potencialmente problemáticos. "Discriminação”, “antropocentrismo” e “especismo” são três deles. Não raramente, eles recebem diferentes significados por parte de diferentes pessoas que os empregam no debate sobre o status moral dos animais. Um dos fatores responsáveis por esse fenômeno consiste no fato de a terminologia em Ética Aplicada, com a qual lidam os filósofos profissionais e eticistas acadêmicos, ser rapidamente apropriada tanto pelo público 1 Carlos Naconecy é filósofo (UFRGS), mestre e doutor em Filosofia (PUCRS). Foi pesquisador visitante na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Membro do Oxford Centre for Animal Ethics e do corpo editorial do Journal of Animal Ethics. Dentre outras publicações, é autor do livro Ética & Animais, Edipurs, 2006. Página |2 leigo quanto pelo ativismo. Como, por definição, a tarefa da militância pró-animal é de cunho persuasivo, há uma forte tendência de submeter essa linguagem técnica a um uso retórico no debate, o qual, por sua vez, tende a gerar uma elasticidade conceitual considerável. Tal fenômeno convida um filósofo moral a um trabalho de refinamento terminológico, visando a restaurar os domínios de referência dos termos mais fundamentais nesse debate. Um eticista animalista ver-se-á, então, impelido a clarificar como e onde usar determinados conceitoschave, concentrando-se particularmente no que não é especismo, no que não é antropocentrismo, e assim por diante. É disso que trata este ensaio. DEFININDO O QUE É DISCRIMINAÇÃO PRECONCEITUOSA O conceito de preconceito Preconceito, segundo o Oxford Dictionary of Sociology, é a tendência ou uma opinião preconcebida, contra ou a favor, a respeito de um indivíduo ou de uma coisa.2 Neil Thompson, na obra Anti-discriminatory Practice, define preconceito como: uma opinião ou um juízo formado, sem considerar fatos ou argumentos relevantes; (...) uma opinião ou uma atitude que é rígida ou irracionalmente mantida, mesmo em face de forte evidência em contrário ou da ausência persistente de evidência de suporte; uma forma rígida de pensar baseada em estereótipos e em discriminação.3 Em termos valorativos, esse prejulgamento pode ser negativo ou positivo. Geralmente, essa noção denota uma atitude desfavorável em relação a um grupo ou aos membros individuais desse grupo. O preconceito baseia-se em uma falha no processo de generalização, no qual (i) um excesso de generalização, um prejulgamento e uma recusa em levar em conta que diferenças individuais violam o princípio de racionalidade do pensamento e (ii), na medida em que o preconceito aloca um indivíduo/grupo em uma posição de desvantagem que não é por ele merecida, é inerentemente injusto. Página |3 Em termos práticos, o preconceito consiste na aplicação de um duplo standard moral: o que é tido como uma ação correta para um grupo é visto como um ato de mera benevolência para outro; o que é objeto de aprovação e admiração em um indivíduo é alvo de condenação em outro. Adota-se diferentes nomes para descrever fenômenos semelhantes. Uma ação ativista de soltura de coelhos encarcerados em uma fazenda, por exemplo, dependendo do posicionamento do avaliador dessa ação, pode ser classificada tanto como um ato de “(zoo)terrorismo” quanto de “libertação animal”. O preconceito é mais bem compreendido levando-se em conta que ele consiste mais propriamente em uma atitude, isto é, uma tendência de resposta a algo. Sendo uma atitude, ele predispõe uma pessoa a agir, pensar, perceber e sentir de certo modo, mais ou menos coerente com valores ou crenças subjacentes. Trata-se de responder imediatamente a situações, ideias, objetos ou indivíduos, não como eles são, mas como a pessoa pensa que eles sejam. Preconceito, portanto, é um estado mental, uma tendência para desconsideração que, quando mobiliza uma ação concreta, resulta em desvantagem para uma das partes, tendo-se assim um “ato discriminatório”. Em suma, preconceito é uma atitude; discriminação, um comportamento. Tendo esse contraste em vista, nem toda discriminação é preconceituosa; por outro lado, nem todo indivíduo preconceituoso participa de atividades discriminatórias.4 O conceito de discriminação Stricto sensu, o uso moral do termo discriminação em Ética Animal sem qualquer outra qualificação seria inadequado, em virtude de que essa palavra abarca dois sentidos.5 Discriminação, no sentido gramatical próprio, é uma noção normativamente neutra, porque remete apenas à capacidade de fazer distinções. Discriminar (discernir, distinguir) é perceber diferenças entre duas coisas, eventos, ideias ou indivíduos, algo que, afinal, é positivo. Distinções morais apropriadas não são de forma alguma recrimináveis. Uma crença não é moralmente preconceituosa apenas porque indica uma diferença. Ademais, insistir e enfatizar Página |4 diferenças reais pode ser necessário inclusive para atender à dignidade e aos interesses dos afetados por uma injustiça qualquer. Dentro da questão animal e ambiental, haveria basicamente duas possibilidades de exercício de discriminação à luz de uma antropologia filosófica. A primeira delas seria, seguindo a tradição filosófica desde Platão até os contemporâneos, dar ênfase à maximização daquilo que diferencia os homens dos não humanos (racionalidade, autoconsciência, linguagem, liberdade, criatividade, etc.). A segunda, presente em sistemas de ética pretensamente não antropocêntricos, consistiria em enfatizar aquelas capacidades que os humanos compartilham com os demais seres da natureza (o impulso de viver por parte de cada ser vivo, a aversão ao sofrimento que é inerente a qualquer animal, etc.). Nas últimas décadas, todavia, a palavra discriminação recebeu um sentido negativo. Esse segundo sentido de discriminação é dotado atualmente de uma carga moral, significando que tal capacidade de distinguir se baseia em traços irrelevantes, critérios arbitrários ou mesmo triviais, por meio do qual um sujeito/grupo é alocado em uma condição inferior. Neste sentido, Thompson define discriminação como um tratamento injusto ou desigual de indivíduos ou de grupos, tratamento esse baseado em uma diferença real ou percebida como tal.6 David Wasserman, por sua vez, salienta que a discriminação envolve usualmente uma generalização aversiva, baseada em um essencialismo de grupo, com pretensões diagnósticas e preditivas no que concerne a menores atributos físicos, psicológicos, intelectuais ou morais dos indivíduos. Essa concepção tipológica permite precisamente a hierarquização dos tipos, na qual uns são superiores a outros.7 Para o senso comum no Ocidente, o racismo talvez constitua a modalidade paradigmática de discriminação preconceituosa moralmente condenável. É tese corrente da Ética Animal que racismo e especismo compartilham um mesmo mecanismo discriminatório, composto por uma mesma lógica de dominação (da alteridade), de hierarquia de valor (ao supor o status maior daquele que está em cima no ranking axiológico) e de dualismo de valor (no par “eu – o outro”, “meu grupo – o outro grupo”, em oposição mutuamente excludente e exclusiva). Página |5 Nem toda discriminação é preconceituosa Na medida em que o termo discriminação for entendido pelo seu significado usual, isto é, como o tratamento de um indivíduo como um inferior moral em virtude da sua pertença a um grupo, isso implica dois requisitos: (i) tratar um sujeito como moralmente inferior (sem referirse ao seu grupo) não denota discriminação, ou seja, não se discrimina apenas um determinado sujeito, mas sim “sujeitos como ele”; e (ii) levar em conta apenas o grupo de um sujeito, ignorando variações interindividuais, mas sem considerar tal coletividade como moralmente inferior, também não denota discriminação. O segundo item é o mais relevante para a Ética Animal, no que tange à analogia entre especismo e racismo. Tratando do racismo, Anthony Skillen anota que é possível distinguir “alienar” um sujeito de “depreciar” um sujeito. Trata-se, de um lado, da distintividade quantitativa de uma classe (dada pelas diferentes origens ou genealogias dos seus membros, “os de dentro” e “os de fora” do grupo); de outro, uma ênfase nas diferenças qualitativas (e.g., comportamentais) atribuídas aos seus membros (“estúpidos”, “preguiçosos”, etc.). Em outras palavras, significa separar conceitualmente a alteridade da inferioridade.8 As seguintes situações ilustram essa distinção entre ser diferente e ser inferior: (i) Suponhamos que um clube privado admitisse apenas homens como membros. Tal clube poderia ser moralmente condenado por discriminação? Poderíamos chamar esse clube de sexista? Não, se a regra de filiação não envolver a noção de status moral das mulheres. E se o mesmo clube somente permitisse pessoas de cor branca como afiliadas, devido a uma mera predileção idiossincrática de seu fundador? Seria correto chamá-lo de racista? Novamente, para tanto, seria necessário que o estatuto dessa entidade considerasse, explicita ou implicitamente, pessoas de pele negra como moralmente inferiores. Do mesmo modo, um empregador de pele branca, com uma forte preferência por contratar funcionários também de pele branca, devido a uma afinidade espontânea pelos seus semelhantes em aparência física, mostraria parcialidade excessiva ou inapropriada – mas não discriminação, pois isso exigiria considerar as pessoas de cor negra como moralmente menores quando comparadas com as pessoas de cor branca. Página |6 (ii) Há diversas modalidades benignas de nacionalismo nas quais, de uma perspectiva mundialmente neutra, um tratamento diferenciado dos cidadãos do próprio país é interpretado como eticamente justificado. Normalmente, não é considerado tratamento discriminatório o atendimento preferencial dos cidadãos da própria nação antes dos estrangeiros nos postos de controle de fronteira. Tampouco é considerado preconceito quando a legislação de um país impede que estrangeiros se candidatem a cargos públicos. (iii) O fundamentalismo nacionalista, de um lado, e a xenofobia, de outro, também se prestam para iluminar a distinção conceitual em questão, conforme Skillen. O nacionalista acredita que a nação a que ele pertence é superior às outras e, por isso, ele exalta as características e os valores nacionais. O xenófobo não partilha dessa tese. O primeiro vê as outras nações e os seus cidadãos como inferiores; o segundo os vê apenas como ameaças externas aos interesses nacionais. O nacionalista opera uma hierarquização entre o “nós” (acima) e “eles” (abaixo), enquanto que o xenófobo opera uma alienação desprovida de hierarquização ("“nós” apenas não queremos “eles” aqui”). Cumpre notar, entretanto, que, a despeito da distinção conceitual entre “alienar” e “inferiorizar”, frequentemente, na prática, o primeiro movimento vem acompanhado do segundo nas atitudes pessoais e nas políticas institucionais. Na realidade cotidiana, é raro que a exclusão de um grupo não seja seguida pela subordinação desse grupo. De qualquer modo, para o tema em pauta, tal distinção permanece válida em termos lógicos e normativos. O CONCEITO DE ESPECISMO O histórico do termo Antes de analisarmos as sutilezas filosóficas do conceito mais caro aos eticistas da área animal – o da discriminação arbitrária baseada na espécie biológica, o chamado "especismo", Página |7 veremos como tal conceito apareceu ao longo da história da Ética Animal. Com efeito, nessa trajetória, os vários sentidos de especismo apresentados se sobrepõem, mas não são equivalentes. É bem verdade que a ideia da discriminação injustificada contra animais, moralmente paralela ao racismo e ao sexismo, já vinha sendo aventada isoladamente por alguns pensadores, porém foi apenas com a cunhagem do termo “especismo” nos anos 70 que se inaugurou uma tentativa de larga escala por parte da Filosofia Moral de estender o conceito de discriminação para as fronteiras da senciência. Na literatura em Ética Animal, a palavra “especismo” apareceu pela primeira vez em um ensaio do psicólogo Richard Ryder, intitulado Experiments on Animals, de 1971.9 Nessa estreia, a ideia-chave foi a de que espécie e raça são, igualmente, noções imprecisas: Na medida em que “raça” e “espécie” são ambos termos vagos usados na classificação de criaturas vivas de acordo com a sua aparência física de um modo geral, uma analogia pode ser feita entre eles. Discriminação com base na raça, embora quase universalmente aprovada há dois séculos atrás, é agora amplamente condenada. Semelhantemente, pode vir a acontecer que as mentes mais esclarecidas possam um dia abominar o “especismo” tanto quanto eles agora detestam o “racismo”. A ilogicidade em ambas as formas de preconceito é de um tipo idêntico. Se é aceito como moralmente errado infligir sofrimento deliberadamente em criaturas humanas inocentes, então nada mais lógico é também considerar errado infligir sofrimento em indivíduos inocentes de outras espécies.10 Ryder, em 1975, reapresentou a noção no seu livro Victims of Science, no qual, dessa vez, apela para o conceito de interesses: Especismo e racismo são formas de preconceito baseadas em aparências – se o outro indivíduo parece diferente, então ele é classificado como estando fora do âmbito da moral. (....) Ambos, especismo e racismo, ignoram ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e os discriminados, e ambas as formas de preconceito mostram uma desconsideração egoísta pelos interesses dos outros e pelos seus sofrimentos.11 Peter Singer, na obra que veio a popularizar a questão do tratamento moral dos animais, Libertação Animal, de 1975, retomou o termo cunhado por Ryder, evocando a noção de atitude e, novamente, a de interesses: Página |8 (...) a atitude que podemos chamar de “especismo”, por analogia ao racismo, também deve ser condenada. Especismo – a palavra não é muito atraente, mas não me ocorre uma melhor – é o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses de membros de sua própria espécie e contra os de outras.12 Em 1979, Richard Routley e Val Routley propuseram outra expressão, “chauvinismo humano”, para a mesma ideia. Segundo os autores, "chauvinismo de classe, no sentido relevante, é o tratamento inferior, discriminatório e diferencial (caracteristicamente, mas não necessariamente pelos membros da classe privilegiada) de itens fora da classe e para o qual não há uma justificativa suficiente.”13 A palavra especismo, nas décadas seguintes, passou a ser moeda corrente entre os filósofos da Ética Animal, entre eles Tom Regan que, em 1983, usou esse termo para enfatizar a ideia de dissociação moral em vez da noção de preconceito: “uma posição especista, pelo menos o paradigma de tal posição, declararia que nenhum animal é um membro da comunidade moral em virtude de que nenhum animal pertence à espécie “certa” – a saber, Homo sapiens”.14 Em um texto posterior, o autor define especismo como “(...) a discriminação sistemática baseada na pertença à espécie”.15 O núcleo definicional do conceito Para fins deste ensaio, podemos definir “especismo” como a discriminação sistemática ou o tratamento diferenciado justificado pela pertença a uma espécie (biológica), quando a espécie não é, em si mesma, um critério moralmente relevante. Aquele que pratica o especismo, o especista, é acusado de deduzir o status moral de uma criatura a partir de uma avaliação moral com parcialidade tendenciosa, em favor dos interesses próprios do Homo sapiens, sobre um fundamento não suficientemente justificado, ou seja, tautológico, arbitrário ou irrelevante. Um agente qualquer pode ser chamado de “especista” se ele der preferência aos interesses dos membros de sua própria espécie sobre os interesses dos membros de outras espécies – se isso se fundar em razões moralmente arbitrárias ou irrelevantes. A palavra atualmente já está dicionarizada. A sexta edição do Shorter Oxford English Dictionary define-a como a "discriminação ou a exploração de certas espécies animais baseada na suposição da superioridade humana".16 Especismo, de acordo com o Dicionário Oxford de Filosofia, é, "por Página |9 analogia com o racismo ou com o sexismo, o ponto de vista incorreto que consiste em recusar o respeito pelas vidas, pela dignidade e pelos direitos ou pelas necessidades dos animais". 17 Como outras formas de discriminação, o especismo tende a operar uma estereotipação negativa dos animais, quer desvalorizando-os, quer superenfatizando os aspectos negativos das suas capacidades. Cumpre notar que, na medida em que é precisamente contra a moralidade (humanista) da tradição que os pensadores da Ética Animal debatem, sua argumentação apela para a noção de consistência ou de justiça. O argumento, basicamente, é o de que nossa sociedade trata dois grupos de indivíduos de dois modos totalmente diferentes, apesar de não haver diferenças entre humanos e outros animais que justifiquem tal distinção. Um caso paradigmático de raciocínio especista seria a acomodação normativa dos seguintes juízos morais, denunciada como inconsistente: (i) É errado minimizar o interesse humano em não sofrer, devido à sua senciência. (ii) É correto minimizar o interesse animal em não sofrer, apesar da sua senciência. Outra instância modelar de uma mesma lógica especista está na seguinte inferência: (i) Humanos têm a capacidade de reflexão moral. Porcos, não. (ii) Humanos têm interesse em exercer essa capacidade. Porcos, não. (iii) Logo, todos os interesses humanos prevalecem sobre todos os interesses dos porcos – notadamente o interesse suíno em viver, em viver sem sofrimento e em não ser aprisionado. Onde exatamente está a falácia desse argumento, falácia esta que o caracteriza como especista? Ora, o interesse humano em engajar-se em reflexões morais não é moralmente importante quando cotejado com o interesse dos porcos em viver e em viver bem – na medida em que o exercício dessa capacidade moral humana não é afetado pela existência ou condição dos porcos no mundo. Nas interações ordinárias humano-animal, não faz sentido desconsiderar a dor ou a vida do porco apenas porque o animal não é moralmente autônomo ou capaz de engajar-se em uma reflexão moral. P á g i n a | 10 Outra instância do mesmo passo falacioso está na seguinte inferência de senso comum: "Os animais (não pensam e) não falam, então podemos dissecá-los e comê-los". De fato, a capacidade linguística de uma criatura é relevante para a aplicação das regras morais que envolvem a própria comunicação: falar a verdade, não quebrar promessas, cumprir contratos, etc. Mas por que tal capacidade seria moralmente relevante para identificar quem eu posso matar para comer à mesa, se minha sobrevivência não estiver em risco? A moralidade da ação de matar para comer não envolve a habilidade de possuir, ou não, uma linguagem verbal. Tampouco o fato de apenas humanos construírem uma civilização, de serem dotados de uma linguagem composta ou de possuírem uma criatividade cultural não implica que estamos justificados a comer porcos apenas porque esses animais não são capazes disso. A questão anterior remete a outra, mais básica e fundamental, a saber, o que faz os humanos serem diferentes dos animais? Desde a civilização grega clássica, percorrendo toda a tradição filosófica ocidental até os dias de hoje, o critério apresentando é o da racionalidade, autoconsciência, habilidade linguística ou ainda uma associação entre essas habilidades. Há dois problemas principais aí. O primeiro deles é que esses critérios são exigentes demais (alguns humanos não atendem ao critério, como os recém-nascidos, as pessoas com demência avançada ou em estado de coma) ou, ainda, não são tão exigentes (grandes símios, no mínimo, parecem demonstrar tais habilidades em algum grau). O segundo problema, já mencionado, consiste em determinar eticamente o que o critério adotado implicaria na prática: "Os animais não falam, portanto podemos comê-los!" constitui uma justificativa francamente falaciosa. Especificidades do conceito Vimos antes que, quando da confecção do termo especismo, esse foi interpretado como "especismo humano", e essa significação é ainda adotada por vários eticistas da Ética Animal. Nesse sentido, a ideia é que a humanidade, como marca individual, é condição necessária para uma máxima significação moral de qualquer indivíduo. Paul Waldau segue essa P á g i n a | 11 interpretação e apresenta, na obra The Specter of Speciesism, a sua definição: "especismo é a inclusão de todos os animais humanos e a exclusão de todos os outros animais do círculo moral".18 A definição anterior, como podemos ver, contém três componentes, a saber, (i) a tensão inclusão-exclusão, (ii) humanos versus outros animais e (iii) o círculo moral (no qual os interesses fundamentais dos indivíduos são protegidos por regras ou princípios). Ademais, essa definição implica dois corolários. O primeiro deles é que simplesmente afirmar a dignidade de cada ser humano, sem mencionar a exclusão de interesses, valores ou a considerabilidade moral de não humanos, não constitui uma crença especista. O segundo responde ao seguinte contra-argumento: normalmente, qualquer criatura, humana e não humana, demostra dar maior atenção e prioridade aos membros da sua própria espécie. Isso mostra que todos somos naturalmente especistas, o que acaba esvaziando o conceito em questão. Esse, todavia, não seria o caso, pois a prática do especismo supõe a habilidade de generalização por parte do agente. Para Waldau, há que se distinguir entre (i) dar preferência a alguns membros da própria espécie e (ii) preferir todos os membros da própria espécie. Segundo o autor, apenas criaturas com a habilidade de operar generalizações de alto grau, a ponto de excluir todos os do lado de fora da linha da espécie, podem ser chamadas de especistas.19 Apesar do fato de o especismo em favor de uma espécie não humana ser raramente reconhecido como tal, alguns pensadores discordam da interpretação anterior, assumindo que a prática de especismo não estabelece uma dicotomia moral apenas entre humanos e não humanos. Conforme esse segundo entendimento, defender a proteção de cães e gatos, mas recusar a estendê-la a frangos e a porcos também constitui uma atitude especista. Nessa perspectiva, por conseguinte, seria um erro supor um paralelismo teórico entre especismo e humanismo. É claro que, em tese, seria possível ter um interesse legítimo pelos membros da sua própria espécie sem praticar discriminação preconceituosa contra membros de outras espécies. Isso é correto tanto quanto o priorizar o salvamento de mulheres em um naufrágio não é algo que possa ser chamado de política sexista, se for oferecido para essa ação de resgate um critério razoável e legítimo. Qualquer que seja tal critério, ele expressaria um reconhecimento de P á g i n a | 12 diferenças moralmente importantes entre os diferentes tipos de criaturas. Com efeito, nós já temos internalizada a diferença de estatuto moral entre as diferentes espécies, e isto não é algo eticamente suspeito ou com o qual devemos nos envergonhar; ao contrário, trata-se de um fator essencial de qualquer sistema de Ética Animal racional e plausível. Em outras palavras, se discriminar moralmente os diferentes tipos de animais consiste em uma atitude especista, então todos nós somos especistas. Um pescador que, em vez de uma minhoca, empalasse um gato no anzol (evocando um igualitarismo entre as espécies animais), seria considerado uma pessoa mentalmente desequilibrada, como bem aponta Carl Cohen.20 Ademais, o especismo, definido como uma modalidade de discriminação preconceituosa e favoritismo arbitrário, distingue-se por outro aspecto importante. Levemos em conta, para fins de analogia, a discriminação racista. Uma pessoa de cor negra pode apresentar reivindicações morais que uma pessoa de cor branca é capaz de compreender, dada a linguagem e a racionalidade compartilhadas. Mas nem todas as boas intenções do mundo garantem que as atitudes humanas estarão completamente purgadas de especismo, já que a eliminação da arbitrariedade especista, embutida em um juízo de valor, é dependente das limitações contingentes do conhecimento científico, disponível em uma dada época, a respeito das semelhanças e diferenças entre humanos e animais. Em outra palavras, a superação do especismo só pode se dar dentro dos limites atuais do conhecimento humano acerca da zoologia e da vida animal. Por exemplo, até o século XIX, acreditava-se de forma consensual que os peixes não dispunham da capacidade da senciência. Hoje, em face de vários estudos que sugerem que peixes sentem dor (ou, no mínimo, experimentam desconforto físico), podemos ponderar a respeito da moralidade da prática da pesca desportiva e, após calibrar os benefícios para o pescador e os danos para o peixe, considerar esse esporte como uma atividade imoral. Do mesmo modo, atualmente não sabemos com segurança, se minhocas e insetos têm, ou não, sensibilidade à dor, e essa incerteza nos impede de avaliar se certas ações, envolvendo estes invertebrados, são moralmente condenáveis ou não. P á g i n a | 13 O ESPECISMO EM CONTRASTE COM O ANTROPOCENTRISMO, O CHAUVINISMO HUMANO E O HUMANISMO Ao longo das últimas três décadas, os sistemas e teorias éticas que não contemplam a inclusão dos animais no círculo de proteção moral têm estado sob forte ataque filosófico. Nesse esforço crítico, "especismo" é, com efeito, a noção mais usualmente empregada para expressar a ideia de favoritismo discriminatório em prol de humanos e em detrimento dos animais. Mas outros termos também aparecem nos trabalhos em Ética Aplicada. Roger Fjellstrom observa, no ensaio Specifying Speciesism, que os diferentes termos para dar conta desse favoritismo na literatura especializada – especismo, antropocentrismo, chauvinismo humano [human chauvinism], racismo humano [human racism] e humanismo racista [racist humanism] – acabam se sobrepondo ou, então, são tomados como logicamente intercambiáveis.21 Como veremos a seguir, essa sinonímia é enganadora. De fato, um dos erros mais frequentes cometidos no debate atual em Ética Animal é tomar o antropocentrismo como sinônimo de especismo. Também é usual uma confusão no uso das expressões “ética não especista” e “ética não antropocêntrica”, consideradas como equivalentes no discurso animalista. Há dois aspectos particularmente problemáticos em torno desse cenário. O primeiro deles, e o mais óbvio, é que esse afrouxamento conceitual é responsável por confusões desnecessárias e elasticidades normativas excessivas ao longo do debate. O segundo problema consiste no fato de que uma banalização de qualquer termo avaliativo esvazia o seu sentido. O discurso de defesa animal, por valer-se tão frequentemente dos conceitos de especismo e antropocentrismo, desatento ao seu verdadeiro conteúdo, acaba por perder o controle semântico da predicação normativa. Ambos os aspectos, por conseguinte, convidam-nos a certas distinções conceituais, a serem tratadas a seguir. Antropocentrismo O sentido paradigmático do termo antropocentrismo está na sentença de Pitágoras: "O homem é a medida de todas as coisas". É antropocêntrico, ou homocêntrico, qualquer P á g i n a | 14 pensamento que faz do ser humano o centro do Universo (como um todo ou de um determinado subsistema dele), em cuja órbita gravitam as demais criaturas, de modo subordinado, inferior ou condicionado.22 Em face dessa relação de subordinação, o antropocentrismo considera o bem da humanidade como a causa final de todas as outras coisas.23 A cosmovisão antropocêntrica, datada desde a Antiguidade, foi irremediavelmente afetada pelas concepções apresentadas por Copérnico, Darwin e Freud, catalizadores de verdadeiras revoluções no pensamento humanista então em voga. O primeiro anunciou que a Terra é apenas um outro pequeno planeta da galáxia. O segundo mostrou que o Homo sapiens é apenas um parente longínquo de macacos primitivos, simplesmente mais um dentre outros tantos produtos da seleção natural. E o terceiro tirou a razão humana, o logos, da sua posição soberana à luz do conflito entre o consciente e o inconsciente na mente humana. Baseada nesses paradigmas, a crítica ontológica ao antropocentrismo consiste em denunciar que o Homem não é o centro do Universo, nem a medida de todas as coisas, tampouco desempenha um papel-chave no cosmos. Entretanto, é mais fácil expurgar o antropocentrismo da Astronomia e da Biologia do que da moral. A crítica ética ao antropocentrismo, por sua vez, retira a sua inspiração da analogia ao egocentrismo: assim como é moralmente errado ser autocentrado na escala individual, também é moralmente errado ser humanocentrado na escala coletiva, assumindo que o ser humano é a referência máxima e absoluta de valores e a finalidade última de todas as outras criaturas neste planeta. Com o advento da chamada "crise ambiental", o paradigma antropocêntrico foi tematizado nos anos recentes pelos pensadores da Ética Ambiental e pelos eticistas da Ética Prática. Alguns deles propuseram sistemas de ética axiologicamente alternativos, tais como o Sensocentrismo (Peter Singer, Tom Regan), o Biocentrismo (Paul Taylor, Robin Attfield) e o Ecocentrismo (Lawrence Johnson, Holmes Rolston III). Outros críticos limitaram-se apenas a reafirmar um olhar – antropocentricamente – mais prudente quanto à taxa de consumo de recursos naturais e à destinação final dos resíduos desse consumo. Tal ideia forjou justamente o conceito e o discurso da sustentabilidade. O fim último visado, no caso desse antropocentrismo instrumentalmente mais sábio, é tão somente a qualidade da vida humana P á g i n a | 15 na Terra, a sobrevivência do homem e da civilização e, como fim indireto, a proteção de tudo aquilo que circunstancialmente vier a promover tais bens. De qualquer modo, no que diz respeito à Ética Animal e à Ética Ambiental, malgrado as críticas de teor ontológico, cognitivo-epistêmico e moral, haveria aspectos inevitáveis, inobjetáveis e mesmo desejáveis no pensar antropocêntrico, como bem aponta Tim Hayward no ensaio Anthropocentrism: A Misunderstood Problem.24 A propósito, uma razão inicial pela qual antropocentrismo e especismo não são intersubstituíveis consiste no fato de que, enquanto o especismo implica um erro ético contingente, o antropocentrismo envolve uma condição ontológica e cognitiva não contingente. Ambos os conceitos indicam conteúdos valorativos, mas o antropocentrismo contém também um conteúdo inerentemente descritivo. Se, por um lado, é aparentemente irresistível nossa inclinação existencial em nos interessarmos por nós mesmos e priorizarmos a nossa própria espécie, há uma inevitabilidade do nosso humanocentrismo também no âmbito do conhecer. Um olhar humano sobre os animais não pode ser transcendido. Essa visão de mundo humana, sendo constitutiva, é condição necessária para conhecer e compreender as criaturas não humanas. Naturalmente, a visão de mundo de qualquer criatura é formada e limitada (cognitiva e epistemicamente) pelo seu modo de ser e a sua posição (ontológica) neste mundo – invariavelmente, no seu centro. Toda análise ética é efetivada de um ponto de vista humano, uma vez que os humanos não têm qualquer escolha a não ser pensar como humanos. E, se toda análise ética é antropogênica, então o antropocentrismo perspectivo é inescapável. Consequentemente, a consideração ética pelos animais só pode ser adquirida, cultivada e ensinada em termos das categorias que aplicamos à própria vida humana. Hayward discorre a respeito do fato de o antropocentrismo ser inexpurgável da reflexão moral na seguinte passagem: O ineliminável elemento do antropocentrismo é marcado pela impossibilidade de dar uma consideração moral significativa a casos que não mantêm semelhança alguma com qualquer aspecto dos casos humanos. (...) Se o ponto fundamental de uma ética é oferecer um determinado guia para a ação humana, então a referência humana é ineliminável, mesmo quando estende a preocupação moral para os não humanos. (...) Na medida em que o valorador é humano, a própria seleção do critério de valor será limitada por esse fato. É esse fato que impede a P á g i n a | 16 possibilidade de um esquema de valor radicalmente não antropocêntrico, se por isso se quer dizer a adoção de um conjunto de valores que se suponha completamente não relacionados a quaisquer valores humanos existentes. 25 Mais adiante, lê-se: Em suma, então, o que é inevitável a respeito do antropocentrismo é precisamente o que torna a ética possível afinal. Esse é um aspecto básico da lógica da obrigação: se uma ética é um guia de ação, e se uma ética particular exige do agente que faça dos fins dos outros os seus fins, então eles se tornam justamente isso – os fins do agente. Essa não é uma limitação contingente, mas sim substantiva a qualquer tentativa de construção de uma ética completamente não antropocêntrica. Valores são sempre valores do valorador: na medida em que a classe dos valoradores inclui seres humanos, valores humanos são inelimináveis.26 No que concerne à Ética Animal e à Ética Ambiental, importa o passo que, partindo da condição referida, conclui em prol da modalidade moral do antropocentrismo, isto é, em favor da tese de que apenas humanos têm valor moral no Universo. Tratar-se-ia, entretanto, de um passo enganador, pois, ainda que seja humano o epicentro de qualquer juízo ético e de todo sistema de Filosofia Moral, isso não significa que é humano também o epicentro de valor no Universo. Em outras palavras, da tese de que o ponto de vista humano é inescapável, não se segue que humanos sejam as únicas criaturas valiosas no planeta, ou, ainda, que animais só têm valor moral direto porque humanos valorizam animais. Mas quando alguém denuncia uma prática ou acusa uma atitude de ser antropocêntrica, o que isto significa efetivamente? A rigor, está-se dizendo apenas que os humanos são autocentrados. Ora, desse pensamento centrado no humano nada implica a respeito da desvalorização ou do descarte dos interesses dos animais – tanto quanto o egoísmo não significa afirmar a própria superioridade ou a falta de valor das outras pessoas. Valores humanos podem estar limitados epistemicamente ao antropocentrismo e, ainda assim, em um cenário de conflito de interesses interespécies, darmos prioridade a interesse vitais animais sobre os interesses triviais humanos. Em outras palavras, nem toda a forma de antropocentrismo é objetável ou preconceituosa. Do fato de que o pensamento ético se efetiva em termos humanos, não se segue analiticamente que não podemos avaliar a humanidade e os animais incomensuradamente, P á g i n a | 17 ou seja, cada qual em seus próprios termos e características funcionais. Não obstante, qualquer teoria de Ética Animal tende a enfrentar um desafio duplo. A primeira armadilha foi anotada por John Rodman no artigo The Liberation of Nature?: uma defesa filosófica dos animais, já contaminada por um viés antropocêntrico dissimulado, pode tentar elevar o status moral dos animais até o nível humano – mas categorizando-os como humanos inferiores.27 Ela pode exigir dos animais o que nós possuímos, tendo por premissa a nossa superioridade, e humanizá-los até adquirirem notas (humanas) que permitam o seu reconhecimento ético e a sua aceitação no círculo moral. Nesse processo, viciado desde o início por um pensar humanista mascarado, os animais "são degradados (...) devido à nossa falha em respeitá-los pelas suas próprias existências, suas próprias características e potencialidades, suas próprias formas de excelência, sua própria integridade, sua própria grandeza".28 O segundo risco da tentativa de adoção de uma axiologia não antropocêntrica, destinada a expurgar o antropocentrismo, não é apenas o da arbitrariedade em função da incerteza do conhecimento a respeito do que consiste o bem de outras criaturas. Ainda pior que o primeiro, trata-se do risco de antropomorfização, isto é, a temerária projeção de valores selecionados por humanos em direção aos não humanos. Tendo em vista a possibilidade dos animais terem uma percepção do seu mundo radicalmente diferente da nossa, isso poderia resultar na reintrodução do erro especista via antropocentrismo ontológico. Vejamos alguns exemplos dessa operação: um ativista da causa animal pode ficar revoltado com a situação de um porco preso em uma baia e inferir que o porco, o animal mesmo, deve estar psicologicamente indignado com a sua própria situação do mesmo modo que o ativista está. Um militante da causa animal procede de forma semelhante quando vê uma fazenda de porcos e considera que a situação do animal é tão degradante para o próprio animal quanto foi a de um prisioneiro judeu no campo nazista de Auschwitz ou de um africano em uma senzala do Brasil colonial. Tal passo é problematicamente antropomórfico, porque se está imaginando um porco dotado com uma autoconsciência (semelhante à humana) da sua própria dignidade. O ativista, assim, projeta no porco de hoje o mesmo estado de profunda humilhação que judeus e africanos experimentaram no passado.29 P á g i n a | 18 Por fim, designar uma atitude como antropocêntrica irá adquirir uma acepção positiva na medida em que ser humanocentrado significa ter uma noção bem esclarecida do que implica ser um humano e o papel dos humanos neste mundo. Isso inclui a possibilidade do exercício de virtudes ambientais, zoofílicas e biofílicas, além de uma concepção mais prudente e de longo prazo quanto àquilo que é do seu próprio interesse. Ademais, (...) amor-próprio, propriamente entendido, pode ser considerado uma precondição para se amar outros, portanto, por analogia, poderia ser sustentado que, somente quando os humanos souberem como tratar seus companheiros humanos decentemente, eles começarão a ser capazes de tratar outras espécies decentemente. Em suma, uma preocupação positiva pelo bem-estar humano não precisa excluir automaticamente uma preocupação pelo bem-estar dos não humanos, e pode até mesmo servir para promovê-lo.30 A crise ambiental contemporânea, no seu cerne, não revela uma preocupação excessiva com os humanos, mas, ao contrário, uma lamentável falta de interesse pelo bem-estar da humanidade que habita nosso mundo. As motivações humanas que prejudicam os interesses dos animais e de outros seres vivos não parecem ser, neste sentido, humanocentradas. Em face disso, criticar uma certa prática opressiva aos animais, designando-a de antropocêntrica, parece ineficaz, posto que os problemas morais criticados não surgem de uma preocupação excessiva dos humanos pelos humanos, mas, em vez disso, uma falta de preocupação pelos não humanos. Aquilo que move um pesquisador em um determinado laboratório de experimentação animal não é o benefício a ser gerado à humanidade em geral, mas apenas àqueles que podem pagar pelos novos produtos comerciais criados e aos que irão lucrar com as vendas. A classificação “intenções antropocêntricas” parece indevida nesse caso, porque não se trata de dar preferência aos interesses humanos generalizadamente; trata-se de servir aos interesses de um grupo bastante reduzido e definido de pessoas. Seria incorreto criticar a humanidade como um todo pelas práticas conduzidas somente por um grupo limitado de humanos, como o dos caçadores de baleias e de peles de bebês-foca. Em suma, consistiria uma confusão conceitual atribuir a experimentação animal, a caça e a pesca ao pensar antropocêntrico – elas são, de fato, práticas especistas. Tais atividades não visam ao bem-estar humano per se, mas, sim, concedem arbitrariamente um privilégio aos interesses humanos sobre os interesses dos animais. Frequentemente, trata-se de interesses P á g i n a | 19 supérfluos e desnecessários de algumas poucas pessoas. Ademais, não se critica o antropocentrismo distinguindo interesses humanos legítimos dos ilegítimos; critica-se o especismo, acusando-o de empregar ilegitimamente o critério da espécie. Obviamente, se uma atitude ou prática adotar o critério moral da espécie e ainda visar ao interesse de apenas um grupo de pessoas, tal prática será duplamente ilegítima. Chauvinismo Humano31 De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, chauvinismo consiste no entusiasmo intransigente por uma causa, atitude ou grupo.32 A mesma obra menciona ainda uma disposição de menosprezo sistemático. Podemos, então, definir a expressão “chauvinismo humano” como a atitude de favorecimento intransigente dos assuntos humanos, em uma oposição sistemática ao que não é humano. Sob a lente desse preconceito regular e metódico, os interesses e as necessidades humanas terão sempre preferência sobre os dos não humanos, não se admitindo qualquer comparação entre ambos. Para Robyn Eckersley, que adota a expressão equivalente "racismo humano", trata-se do cancelamento da possibilidade de alternativas de reconciliação entre interesses e necessidades conflitantes.33 Isso ocorre quando, ainda que ela seja possível, tal reconciliação é suspensa ou recusada pelo agente, que se nega a qualquer esforço para identificar e explorar alternativas nessa direção. Assim, nenhum tipo ou quantidade de evidência (e.g., racionalidade, linguagem ou sociabilidade no reino animal) é capaz de mover o critério moral para além do domínio humano. Há que se distinguir, novamente, tal favorecimento chauvinista, de um lado, e opiniões especistas, de outro. Imaginemos alguém que, acreditando que não haja semelhanças moralmente relevantes entre humanos e animais, apresentasse o seguinte argumento: (i) animais carecem de linguagem, (ii) a capacidade de linguagem define quem merece respeito moral, logo (iii) animais não merecem respeito. Note-se que essa pessoa não poderia ser acusada de especista, pois ela não estaria resvalando em uma arbitrariedade moral no seu argumento: sendo o juízo (i) factual e o juízo (ii) metaético, ambos são logicamente P á g i n a | 20 consistentes. O chauvinismo humano, como lembra Hayward, nasce apenas quando o interlocutor, ao ser apresentado a contraexemplos (nesse caso, evidências de algum tipo de linguagem nos animais) ou razões (que sustentem porque a linguagem não é uma condição necessária para merecer respeito), procura reelaborar a definição de modo a excluir animais mais uma vez. Não se trata, pois, de mero refinamento do critério da considerabilidade moral, mas, sim, da redefinição sucessiva das “regras do jogo”, visando ao favorecimento humano. Consequentemente, a diferença entre o termo “especismo” e a expressão “chauvinismo humano” também pode ser caracterizada da seguinte maneira: A superação do chauvinismo humano exige primeiramente um grau de boa-fé e o desenvolvimento de uma disposição moral simpática; a superação do especismo exige um compromisso com a consistência e com a não arbitrariedade no julgamento moral, combinado com o desenvolvimento de um conhecimento adequado para averiguar o que é e o que não é arbitrário na nossa consideração quanto aos seres não humanos.34 Humanismo O humanismo envolve um compromisso com o valor inerente e com a dignidade de todo e qualquer ser humano. Trata-se de respeitar a humanidade que há no homem mesmo. Tal noção é o fundamento do conceito de direitos humanos que integra o pensamento político dos atuais sistemas democráticos. No que tange à temática aqui tratada, a resposta humanista aos dilemas morais envolvendo humanos e animais seria a seguinte: é a nossa humanidade mesma que fundamenta o nosso dever imediato de cuidado voltado a cada ser humano – e não alguma característica particular que os humanos possuem. Assim, frente ao experimento mental clássico em Ética Animal, “quem devemos salvar em um incêndio: uma criança ou um cão?”, o humanista daria prioridade moral automática a um humano, simplesmente por se tratar de um humano, sem mesmo aventar qualquer necessidade de convocar um procedimento moral de tomada de decisão. Importa notar, todavia, que a crença que "X (qualquer humano) é mais valioso para mim que Y (qualquer animal)" nada implica, objetivamente, em termos de legitimação moral. Nas palavras de Tzachi Zamir: P á g i n a | 21 A coisa mais significativa a dizer é que nos preocupamos mais com humanos e que humanos são mais importantes para nós. Isso, obviamente, não justifica a crença de que humanos são, de um modo geral, mais importantes (...). Mas tal uso subjetivo é inútil na defesa do especismo: se tudo que somos capazes de dizer é que humanos valorizam outros humanos acima dos animais, não podemos inferir que humanos sejam, de fato, mais valiosos que animais. Viciados em crack valorizam uma droga mais que a comida. Ainda assim, essa necessidade não implica que drogas sejam mais importantes que comida.35 De qualquer modo, o ponto a ser destacado nessa discussão é o de que as diferentes perspectivas morais em Ética Animal se opõem ao antropocentrismo moral, ao especismo ou ao chauvinismo humano – não ao humanismo per se. Como aponta Eckersley, não há nada na crítica filosófica ao especismo que nos exija evitar celebrar a dignidade de cada um dos seres humanos, as conquistas da humanidade, as especificidades do Homo sapiens ou os nossos deveres em auxiliar os membros da nossa própria espécie. Essa celebração, sentido de pertencimento e compaixão intra-humana, entretanto, não devem ser entendidas como razões morais para ignorar as necessidades e o valor da vida animal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os conceitos cunhados por filósofos da Ética Aplicada desempenham o papel de ferramentas destinadas à identificação de cenários moralmente problemáticos. Usualmente, tais conceitos ultrapassam os círculos filosóficos e são rapidamente apropriados por ativistas. Militantes das diferentes causas estão interessados nesses conceitos evidentemente – mas mais interessados no uso retórico dessas noções-chave do que em uma utilização discursiva criteriosa delas. No que tange à Ética Animal, campo esse especialmente voltado à redefinição dos limites da comunidade moral, conceitos como “discriminação”, “especismo” e “antropocentrismo” estão sujeitos a aplicações interpretativas ligeiras e pouco cuidadosas. Desse modo, a crítica antiespecista e antiantropocêntrica, que constitui o cerne teórico da Ética Animal, acaba contaminada por imprecisões semânticas de toda ordem. É claro que não se trata aqui de um mero problema escolar de estabelecimento de taxonomias morais. Esse panorama demanda um esforço crítico quanto ao uso de um equipamento vocabular mínimo e à confecção de definições de trabalho adequadas, se o que se deseja é compreender os P á g i n a | 22 processos de opressão e exploração das outras criaturas que dividem o planeta Terra conosco. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTROPOCÊNTRICO. In: LALANDRE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.73. CHAUVINISMO. In: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Editora Objetica Ltda, 2009. 1 CD-ROM. COHEN, Carl. The Moral Inequality of Species: Why "Speciesism" is Right. In: COHEN, Carl.; REGAN, Tom. The Animal Rights Debate. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2001, p.59-67. ECKERSLEY, Robyn. Beyond Human Racism. Environmental Values, v.7, 1998, p.165-82. ESPECISMO. In: BRACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p.123. FJELLSTROM, Roger. Specifying Speciesism. Environmental Values, v.11, 2002. P.63-74. HAYWARD, Tim. Anthropocentrism: A Misunderstood Problem. Environmental Values, v. 6, 1997, p.49-63. PREJUDICE. In: SCOTT, John; MARSHALL, Gordon. Oxford Dictionary of Sociology. 3.ed. Oxford: Oxford University Press, 2005. REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 1983, ISBN 0-52004904-7. REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. In: SINGER, Peter.(Ed.). In Defense of Animals. 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Hampshire: Palgrave Macmillan, 2006,ISBN 1-4039-2160-1. p. 41. 4 No idioma inglês, dois vocábulos permitem marcar a distinção em questão: (i) “prejudice” (preconceito) que tem, como sentido literal, o ato de prejulgar; e (ii) “preconception” (preconcepção) que não tem esse forte conteúdo valorativo. 5 De acordo com Thompson, a discriminação pode receber algumas qualificações: (i) discriminação categórica é o tratamento desfavorável de todos os indivíduos pertencentes a um grupo social, baseado na própria pertença a esse grupo; (ii) discriminação estatística refere-se a um tratamento desfavorável de indivíduos, baseado na crença de que há uma probabilidade de que a pertença a um grupo implique a posse de características menos desejáveis; (iii) discriminação indireta consiste em um tratamento que pode ser descrito como igual no sentido formal, mas discriminatório em seus efeitos sobre um particular indivíduo ou grupo; (iv) discriminação reversa ou positiva é o tratamento que favorece a grupos em desvantagem social, revertendo, assim, uma tendência histórica de discriminação (essas práticas, chamadas de “ação afirmativa” ou de “discriminação reversa”, dão margem à questão paradoxal de que tais práticas abrigariam, digamos, também ações racistas, na medida em que elas também discriminariam o tratamento de pessoas com base na pertença à raça). Além disso, a discriminação pode estar em um nível psicológico (referente a pensamentos, sentimentos, atitudes ou ações pessoais), cultural (a um consenso social quanto ao que é certo ou normal) ou sociopolítico (a relações de poder institucionalizadas, a opressão institucionalizada). 6 THOMPSON, p. 40. 7 WASSERMAN, David. Discrimination, Concept of. In: CHADWICK, R. (Ed.). Encyclopedia of Applied Ethics. San Diego: Academic Press, 1998. v. 1, p. 808. 8 SKILLEN, Anthony J. Racism. In: CHADWICK, R. (Ed.). Encyclopedia of Applied Ethics. San Diego: Academic Press, 1998. v. 3, p.781-2. 9 De fato, a primeira vez que o termo “especismo” foi mencionado data de 1970, em um folheto assinado pelo mesmo autor, distribuído em Oxford, Inglaterra, porém sem que fosse dada uma definição explícita do conceito. 10 RYDER, Richard. Experiments on Animals. In: GODLOVITCH, Stanley and Roslind; HARRIS, John. Animals, Men and Morals. London: Victor Gollancz, 1971, p. 81. 11 RYDER, Richard. The Victims of Science. London: Davies Pointer Ltd, 1975, p.16 apud FJELLSTROM, Roger. Specifying Speciesism. Environmental Values, v.11, 2002, p.64. 1 P á g i n a | 24 12 SINGER, Peter. Libertação Animal. Porto Alegre: Lugano, 2004, p.8. ROUTLEY, Richard.; ROUTLEY, Val. Against the Inevitability of Human Chauvinism. In: ELLIOT, Robert. (Ed.). Environmental Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1995, p.104. 14 REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 1983, ISBN 0-520-04904-7. p 155. 15 REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. In: SINGER, Peter.(Ed.). In Defense of Animals. New York: Harper & Row, 1986, p. 19. 16 SPECIESISM. In: Shorter Oxford English Dictionary. Oxford: Oxford University Press, 2007. 1 CD-ROM. 17 ESPECISMO. In: BRACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 123. 18 WALDAU, Paul. The Specter of Speciesism: Buddhist and Christian Views of Animals. Oxford: Oxford University Press, 2002, ISBN 0-19-514571-2. p. 38. 19 WALDAU, p. 26. Tal capacidade de generalização implicada no conceito de “especismo” proposto desqualificaria aqueles animais sem tal habilidade e os chamados "humanos marginais" (i.e., recém-nascidos, em estado de coma ou com demência avançada). 20 COHEN, Carl. The Moral Inequality of Species: Why "Speciesism" is Right. In: COHEN, Carl.; REGAN, Tom. The Animal Rights Debate. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2001, p.62-3. 21 FJELLSTROM, Roger. Specifying Speciesism. Environmental Values, v.11, 2002, p. 63-74. 22 Na sua etimologia, "anthropos" (do grego), homem, como ser humano, como espécie, oposto ao animal, e "centrum" (do latim), o centro. Alguns autores adotam o equivalente inteiramente latino do termo, homocentrismo, no qual "homo" se refere ao homem no sentido de humanidade, em contraste com os deuses e os animais. 23 ANTROPOCENTRISMO. In: LALANDRE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 73. 24 HAYWARD, Tim. Anthropocentrism: A Misunderstood Problem. Environmental Values, v. 6, 1997, p. 49-63. 25 HAYWARD, p.56, grifo do autor. 26 HAYWARD, p.57, grifo do autor. 27 RODMAN, John. The Liberation of Nature? Inquiry, n. 20, 1977. 28 RODMAN, p.94. 29 É esse sentido de respeito próprio, essa consciência moral, que explica o porquê de os africanos cometerem suicídio nos navios negreiros, mas os animais aprisionados (em geral) não. Note-se que não se está defendendo aqui o cativeiro, nem a escravidão dos porcos. Enjaular porcos e enjaular africanos são ambas ações abomináveis. Um matadouro e o campo de Auschwitz já são suficientemente semelhantes e graves nos aspectos moralmente relevantes. Mas seria um erro, um erro antropocêntrico por parte do movimento animalista, achatar a gravidade moral das duas situações, equiparando-as simplesmente. 30 HAYWARD, p. 52. 31 Na literatura especializada, o termo "chauvinismo humano" (human chauvinism) tem como expressões equivalentes - e menos precisas - racismo humano” (human racism) e "humanismo racista" (racist humanism). 32 CHAUVINISMO. In: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Editora Objetica Ltda, 2009. 1 CD-ROM. 33 ECKERSLEY, Robyn. Beyond Human Racism. Environmental Values, v.7, 1998, p. 167. 34 HAYWARD, p. 54. 35 ZAMIR, Tzachi. Ethics and the Beast. Princeton: Princeton University Press, 2007, ISBN 978-0-691-13328-7. p. 13. 13