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Bibliografia APA 2012

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DESENVOLVIMENTOS EM TERAPIA FAMILIAR: DAS TEORIAS S PRTICAS E DAS PRTICAS S TEORIAS Marilene A.

Grandesso12

As cincias exatas so uma forma monolgica de conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. H um nico sujeito: aquele que pratica o ato de cognio (de contemplao) e fala (pronuncia-se). Diante dele, h a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a ttulo de coisa. Mas o sujeito como tal no pode ser percebido e estudado a ttulo de coisa porque, como sujeito, no pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele s pode ser dialgico. Bahktin (1992, p. 403)

O exerccio de uma prtica de terapia envolve sempre um processo reflexivo entrelaando teoria e prtica de uma forma tal, to intrinsecamente amalgamada, que fica difcil, seno impossvel e mesmo sem muita utilidade, determinar que instncia prevalece sobre a outra. Todo terapeuta, antes mesmo de definir-se como tal, pertence a uma tradio que estabelece um contexto paradigmtico informando suas crenas e valores, num tempo e espao histrica e localmente situados. Portanto, traar os desenvolvimentos de um campo, como o da Terapia Familiar, pressupe acompanhar as mudanas paradigmticas e evolutivas no exerccio de sua prtica em constante construo, decorrentes tanto do contexto terico das tradies em vigor como do exerccio da prtica clnica, ambas enredadas num tecido complexo que vai sendo inevitavelmente construdo ao se mesclar os fios dos referenciais dos terapeutas, suas distintas prticas e teorias. Quando penso na dana que um terapeuta faz entre sua prtica e o tecido terico pelo qual pode compreend-la, inevitavelmente ouo a voz do saudoso e irreverente terapeuta Gianfranco Cecchin no mega congresso de Novos paradigmas: cultura e subjetividade, em 1991 em Buenos

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E-mail: mgrandesso@uol.com.br Publicado em L. c. Osrio e M. e. P. Do Valle (org.). Manual de Terapia Familiar, Portpo alegre: ArTmed, 2008.

Aires. Numa inigualvel apresentao durante o congresso, Cecchin disse como terapeuta eu ajo, e, de tempos em tempos, peo a um epistemlogo para olhar e dizer o que eu fao. Essa frase tem me acompanhado desde aquela poca, interessada que sou na miscigenao entre prtica, teoria e epistemologia. Essa fala de Cecchin me faz pensar que, diante da famlia, a teoria seria equivalente ao sangue que corre nas veias, est l, embora naquele momento no seja visvel como figura, a famlia e a criatividade do terapeuta falam mais alto. A histria tem mostrado que, desde os seus primrdios, a prtica da Terapia Familiar vem sendo desenvolvida muitas vezes transformando os acasos que surgem nas salas de terapia em oportunidades de organizao das narrativas que foram construindo suas abordagens. A serendipidade presente na construo de formas de ao e de tcnicas teraputicas faz parte de relatos dos autores que escreveram como surgiram novas tcnicas ou posturas teraputicas. Minuchin & Fishman (1990) no clssico captulo intitulado Mais alm da tcnica citam o poeta Antnio Machado dizendo que o caminho se constri ao caminhar. A histria de como surgiu a prtica do questionamento reflexivo de Karl Tomm (TOMM, 1985), a equipe reflexiva, depois chamada de processos reflexivos por Tom Andersen (ANDERSEN, 1987; 1991), e outros desenvolvimentos ilustram a presena do acaso e do acidental nos momentos de inspirao de terapeutas que ousam colocar em ato suas idias. Contudo, o fortalecimento das prticas da Terapia Familiar e suas tcnicas sempre beneficiou-se e valeu-se de teorias. inegvel o salto qualitativo que a teoria geral dos sistemas de Bertalanffy (BERTALANFFY, 1975) e a Ciberntica de Norbert Wiener (WIENER, 1961) ajudaram a construir e impulsionar na pratica emergente de terapia familiar. Idias de filsofos como Foucault (influenciando a Terapia Narrativa de Michael White), Derrida (interlocutor para a Terapia Colaborativa do Galveston Institute do Texas), Wttgenstein (para o pensamento construtivista e construcionista social na terapia familiar); hermeneutas como Gadamer (presente nas idias construcionistas sociais e terapia colaborativa); cientistas como Prigogine, Maturana, von Foerster e von Glasersfeld (sustentando desde a ciberntica de segunda ordem at as idias construtivistas em terapia), constroem um fundo narrativo que d voz e forma a distintas prticas de terapia familiar. Assim, a terapia familiar explorou e muitas vezes criativamente mergulhou em teorias da biologia, da fsica, da antropologia e da filosofia, a partir de onde, em interlocuo com uma multiplicidade de autores, construiu suas metforas tericas (ANDERSON, 2000; CECCHIN, 1992; GRANDESSO, 1997 e 2006b).

Contudo, dentro de uma perspectiva ps-moderna, no objetivista, teorias so consideradas mais como metforas organizadoras do conhecimento e das prticas de um campo, espcie de lentes temporais mediante as quais construmos a realidade (ANDERSON & GOOLISHIAN, 1988; GRANDESSO, 2006a). Rosemblat (1994), referindo-se aos conceitos tericos dos diferentes modelos da terapia familiar, ressalta o que tem sido enfatizado e o que tem sido obscurecido quando usamos determinadas metforas para organizar nosso pensamento e nossas prticas. Nesse sentido, As metforas tericas famlia como um sistema, famlia como uma cultura, sistema humano como um sistema lingstico estabelecem uma moldura no s para a nossa conceitualizao, como tambm para o que procuramos quando trabalhamos com as famlias [ ...] como formadores de terapeutas e abordamos a prtica clnica (GRANDESSO, 2006a, p. 143).

As metforas tericas da Terapia familiar, desde as sistmicas at as hermenuticas, percorrendo o campo dessa prtica j sexagenria, acompanham as mudanas paradigmticas que nortearam a produo de conhecimento e as mudanas epistemolgicas vigentes. Muito tem sido escrito sobre este tema, traando um recorte biogrfico da terapia familiar, organizado em torno de sua linguagem conceitual, no sendo este o propsito deste captulo (CECCHIN, 1992; SLUZKI, 1992; ROSENBLATT, 1994; PAR, 1995; GRANDESSO, 1997, 2006a). Tomando como referncia os dizeres de Bakhtin que abrem esse captulo, o que pretendo apresentar a seguir resulta de um recorte construdo dialogicamente pela leitura que fao dos tericos e terapeutas que organizam minha prtica, especialmente focado no contexto das prticas ps-modernas. Antes de qualquer coisa, trata-se de uma narrativa possvel sobre os desenvolvimentos do campo da Terapia Familiar, tendo o binmio teoria e prtica como intrinsecamente ligados e interconstituintes numa espiral evolutiva organizada como um processo reflexivo (ANDERSON, 2000; 2007a). Esta maneira de conceber o entrelaamento de teoria e prtica segue mais uma instncia hermenutica, considerando que, como uma teoria orienta prticas e prticas forjam teorias, um terapeuta pode tornar-se mope, vendo o que a teoria prope ou usando os mesmos recursos de sua prtica para todas as famlias, portanto, obscurecendo a

singularidade das famlias e pessoas, a idiossincrasia de suas palavras e organizaes (ANDERSON, 2007c).

TERAPIA FAMILIAR UMA BREVE INTRODUO NA CONSIDERAO DE UMA PRTICA SEXAGENRIA

Qualquer que seja o recorte que nos propusermos a desenvolver para traar o caminho desses 60 anos de prtica da terapia familiar, vamos transitar em torno de mudanas evolutivas vrias, decorrentes tanto das demandas desafiadoras dos distintos contextos como dos dramas das famlias e indivduos, sempre conduzida pela habilidade inventiva e criativa dos terapeutas em questo. Contudo, uma condio esteve sempre presente a diversidade dos profissionais envolvidos, caracterizando o estudo e a prtica da terapia familiar como um empreendimento interdisciplinar. Desde o pioneiro grupo de Bateson na dcada de 1950 que somava dentre outros, os olhares de um antroplogo (Bateson), um psiquiatra (Don Jackson), um qumico (Weakland) e um especialista em comunicao (Jay Haley), temos seguido por um territrio interdisciplinar, caracterizando o estudo e as prticas de terapia da famlia como um empreendimento hbrido que pede pela ampliao do olhar e dos fazeres do terapeuta em suas distintas prticas. Tendo como seu primeiro salto qualitativo e paradigmtico a compreenso do indivduo no mais no mbito de sua individualidade, mas das relaes e dos contextos em que se inseria, as primeiras abordagens de terapia familiar organizadas pela Teoria Geral dos Sistemas de Bertalanffy (BERTALANFFY, 1975) e da Ciberntica de Norbert Wiener (WIENER, 1961), deixaram o territrio do intrapsquico para se organizar no contexto do inter-relacional. Pipocando em distintos lugares, considerando a evoluo da Terapia Familiar em territrio americano, Anderson (1997) aproxima os pioneiros da Terapia Familiar a um grupo de cegos que descreviam um elefante abriram seus prprios caminhos, seguindo as idiossincrasias de suas personalidades singulares, suas formaes disciplinares, suas hipteses particulares decorrentes de suas teorias e experincias clnicas. De distintos territrios e demandas por tratamentos, surgiram os primeiros modelos de Terapia Familiar, muito mais inspirados pela busca de sadas teraputicas para problemas desafiadores com populaes clnicas no beneficiadas por tratamentos convencionais do que por novas evolues conceituais e paradigmticas em si. Pacientes psicticos e adolescentes delinqentes, dentre outros problemas desafiadores, levaram

os terapeutas da dcada de 1950 a ousarem, ou seja, a quebrar os protocolos da prtica clnica convencional para incluir as famlias nos tratamentos. Assim se desenvolveram vrias abordagens, dentre as quais a Comunicacional, Interacional ou Terapia Estratgica Breve, Estrutural, Estratgica, Experiencial Simblica, Intergeracional, Sistmica da Milo, tomando como referncia o que surgiu no territrio americano e que informou a prtica da Terapia Familiar no Brasil. Pakman (1994), considerando as distintas maneiras de se compreender os problemas, as teorias da mudana e as distintas prticas teraputicas dessas abordagens, define-as como um conjunto de prticas no uniformes, em contnua evoluo, unidas por noes sistmico-cibernticas que se retroalimentam. As inmeras abordagens de Terapia Familiar surgiram, portanto, na ausncia de um sistema de crenas compartilhadas ou seja, de um paradigma unificador, resultando em evolues conceituais distintas na trilha da busca de descries e explicaes para os problemas particulares de cada grupo diante de desafios na prtica clnica. Anderson (1997) ao referir-se a esse turno evolutivo considera que na dcada de 1950 vivemos um ponto de bifurcao em que um grupo de terapeutas teceu sua compreenso estendendo suas explicaes psicanalticas e psicodinmicas do indivduo para a famlia e outro grupo foi buscar seus conceitos explicativos fora do campo da sade mental, aventurando-se pelas cincias sociais, engenharia, filosofia, biologia e fsica, abrindo um leque de possibilidades que veio a constituir as prticas sistmico-cibernticas referidas por Pakman (1994) ou o paradigma unificador sistmico contextual descrito por Anderson (1997). Optando por me deter mais nos desenvolvimentos mais recentes da Terapia Familiar, dentro dos marcos de pensamento ps-moderno, apresento a seguir um breve e sucinto percurso evolutivo do campo, centrado mais num alinhamento do pensamento terico que organizou as prticas distintas da Terapia Familiar ao longo desses anos. Cumpre lembrar que, alm de muito sumrio, trata-se de um recorte possvel no exclusivo, construdo no dilogo com os autores com os quais costumo dialogar e que me ajudaram a pensar o tema desse captulo entrelaando teorias e prticas.

1. Teoria Sistmica e Ciberntica um entrelaamento de teorias e prticas nos alicerces da Terapia Familiar Sistmica

Um primeiro organizador do discurso e prtica da Terapia Familiar veio da Teoria Sistmica e da Ciberntica com nfase especial nos conceitos de sistema, homeostase, causalidade circular e retroalimentao negativa, num primeiro momento e retroalimentao positiva, num segundo momento. Compreendendo a famlia como um sistema, os pioneiros do campo da Terapia Familiar, priorizaram interaes e contextos. Toda e qualquer compreenso do comportamento sintomtico ou no postulava um entrelaamento de mtuas influncias entre as aes dos membros da famlia, cuja interdependncia levou os terapeutas a buscarem teorias para alm do mbito do indivduo, considerando a famlia como um todo, tanto para compreender o comportamento saudvel como o disfuncional. O casamento dos conceitos sistmicos com os cibernticos configurou uma nova posio epistemolgica para compreender e trabalhar com famlias como unidade de tratamento. Esses conceitos tericos conduziram os terapeutas a buscarem a funcionalidade dos sintomas, considerados neste primeiro momento da Ciberntica (que veio a ser conhecida como de 1 Ciberntica no contexto da Ciberntica de 1 Ordem) como desvios ativados por erros na organizao familiar. O sintoma, de acordo com esses organizadores tericos, s poderia ser compreendido dentro contexto da famlia, portanto, no mais no mbito do indivduo. Se surgia um sintoma num de seus membros, isso era compreendido como uma tentativa de manter a homeostase do sistema familiar diante de dificuldades da famlia em manejar presses oriundas de fatores externos ou das demandas de mudanas prprias das transies no seu ciclo evolutivo. Uma escola representativa desse momento paradigmtico foi a do Mental Research Institute de Palo Alto, Califrnia, que iniciou suas incurses no campo da Terapia Familiar com famlias com pacientes portadores de esquizofrenia. Num segundo momento, decorrente especialmente dos avanos no campo da Ciberntica (que veio a ser conhecido como 2 ciberntica ainda no contexto da Ciberntica de 1 Ordem), a compreenso da famlia e seu funcionamento ganhou um novo contexto para se pensar teoricamente os problemas e as possibilidades de interveno atravs do conceito de retroalimentao positiva. Apoiados pela afirmao de Maruyama (appud, HOFFMAN, 1981) de que a capacidade de sobrevivncia dos sistemas vivos dependia no apenas da manuteno de sua homeostase, mas tambm de sua capacidade de modificar sua estrutura para fazer frente s demandas do meio, outras prticas e uma nova compreenso se organizaram para a terapia da famlia. Enquanto no primeiro momento falava-se em morfoestase (ou seja, manuteno da

mesma forma atravs da correo dos desvios em relao a funcionamento do sistema), nesse segundo momento passa-se tambm a falar em transcendncia, representada pelo conceito de morfognese (a construo de novas formas de funcionamento pela mudana na organizao sistmica). Ou seja, do ponto de vista terico a compreenso que passou a organizar a prtica da terapia considerava que os sistemas vivos, como a famlia, necessitam ampliar suas possibilidades de modo a garantir a sua sobrevivncia. O conceito organizador dessa possibilidade de compreenso foi o de retroalimentao positiva, oferecendo um sistema explicativo para as mudanas diante das demandas evolutivas prprias das mudanas no ciclo de vida e das decorrentes dos desafios dos contextos. Ou seja, uma famlia para sobreviver necessita no apenas corrigir desvios que afetem seu funcionamento, mas, dilatar seus modos habituais de funcionamento, amplificando os desvios, falando numa linguagem ciberntica, para, atravs da morfognese, garantir sua continuidade atravs de mudanas funcionais, de modo a permitir sua evoluo e adaptao s novas demandas num mundo em constante evoluo. Enquanto a retroalimentao negativa garantia a manuteno da organizao sistmica, ou seja, uma mudana de primeira ordem que mantinha a organizao sistmica, a retroalimentao positiva favorecia a compreenso de como os sistemas mudam para uma nova organizao, ou seja, transcendem suas possibilidades atravs de mudanas de segunda ordem, para um novo patamar qualitativo. Assim, a prtica da terapia familiar apoiada em noes como a de que os sistemas humanos se organizam longe do equilbrio, conforme decorreu do trabalho de Ilya Prigogine (PRIGOGINE & STENGERS, 1984), desenvolveu tcnicas de interveno que visavam favorecer mudanas de segunda ordem, favorecendo mudanas na linha da reorganizao da famlia atravs de saltos qualitativos para uma nova organizao sistmica. Na prtica da Terapia Familiar, tais conceitos resultaram em modelos que tinham como recursos tcnicas desestabilizadoras que geravam crise no sistema para favorecer sua mudana atravs de suas investidas para fazer frente aos desvios. Este o caso, por exemplo, da Terapia Estrutural proposta por Minuchin (MINUCHIN, 1982; MINUCHIN & FISCHMAN, 1990; UMBARGER, 1987). De uma forma bem geral, os conceitos tericos que caracterizaram esse modelo de pensamento cujos pilares de sustentao foram sistmicos e cibernticos, influenciaram de forma marcante tanto a prtica da terapia como a postura do terapeuta. Novas tcnicas de terapia surgiram para fazer frente demanda de abalar a homeostase familiar organizada pelos sintomas

e promover a mudana ou, para gerar crise no sistema, conduzindo a famlia para uma nova organizao e funcionamento. O terapeuta assim orientado desenvolvia sua ao como uma interveno ativa para ajudar a famlia a aceitar as exigncias das presses exteriores, os pontos de transio, as etapas de desenvolvimento e a mudana (ANDERSON, 1997).

2. A Ciberntica de Segunda Ordem novos patamares tericos e uma mudana paradigmtica na prtica da Terapia Familiar Sistmica

A histria da Terapia Familiar Sistmica, no seu primeiro perodo de existncia de cerca de trs dcadas, mostrou uma diversidade de abordagens organizada por metforas tericas sistmico-cibernticas e prticas de interveno definidas pelo terapeuta3. Independentemente de suas especificidades, essas abordagens tinham em comum um terapeuta interventor que, apoiado em seus diagnsticos sistmicos, buscava a soluo dos problemas que a famlia vivia. Do ponto de vista paradigmtico, a prtica da terapia familiar sustentava-se pelos norteadores do empirismo lgico que regeu a cincia e as prticas por ela orientadas. A possibilidade de observar fidedignamente e intervir deliberadamente sobre o sistema, tornava a terapia dessa poca um empreendimento centrado no terapeuta como um especialista. No s esse terapeuta definia o que no ia bem com a famlia, como decidia os caminhos e a direo das mudanas necessrias para o seu bom funcionamento, vendo a famlia como uma espcie de servomecanismo. Contudo, avanos na cincia, impulsionados pelas descobertas da fsica quntica, pela teoria da relatividade de Einstein, pela biologia do conhecimento de Maturana, e questionamentos vindo da filosofia em geral em torno das idias de Wittgenstein, Rorty, e dos filsofos da no representao colocaram em cheque a possibilidade de conhecer objetivamente. Ao se postular a impossibilidade de separao entre sujeito e objeto, ou seja, de um obserevador se colocar fora do sistema que observa, um giro paradigmtico passou a buscar por novos conceitos tericos e novas prticas a eles correlatas. No campo da Ciberntica, esse avano resultou numa mudana evolutiva conhecida como Ciberntica de Segunda Ordem ou Ciberntica dos sistemas observantes conforme chamada por von Foerster (1974). Fazendo frente aos vrios questionamentos, destacaram-se como fundamentais para a prtica da terapia familiar, os

Os interessados especificamente neste tema podem recorrer ao sub-tem Metforas sistmicas: da ciberntica hermenutica de Grandesso (2006a).

conceitos de auto-organizao, auto-referncia, reflexividade e autopoiese dos sistemas vivos. Ou seja, os sistemas vivos como os sistemas humanos, so capazes de produzir suas prprias mudanas e estas so conduzidas e limitadas pela sua organizao sistmica, no podendo ser deliberadamente operadas a partir de qualquer lugar externo ao prprio sistema. No campo da terapia familiar, isso resultou numa mudana tanto no discurso terico como na prtica da terapia. A terapia familiar que se desenvolveu a partir dessa mudana paradigmtica que veio a ser conhecida como ps-moderna, abandonou as metforas tericas de homeostase, desvios, circuitos cibernticos, retroalimentao negativa ou positiva, para inserir-se no campo da linguagem e do significado. Outros conceitos e outras prticas: sistemas lingsticos, narrativa, conversao, dilogo, significado, histrias, cultura, co-construo; terapias de segunda ordem (HOFFMAN, 1985, 1988); terapias narrativas (WHITE & EPSTON, 1990; SLUZKI, 1992, 1998); terapias colaborativas (ANDERSON & GOOLISHIAN, 1988). A terapia familiar que seguiu a essa mudana paradigmtica conhecida como psmoderna se organizou em torno de dois referenciais epistemolgicos distintos, o construtivismo e o construcionismo social4. Ambos partilham a impossibilidade de um lugar privilegiado de acesso a uma realidade objetiva e a crena na realidade construda a partir do ato de observao que inevitavelmente inclui a pessoa do observador e suas lentes tericas idiossincrticas. Cumpre lembrar, contudo, que neste contexto evolutivo da terapia familiar, as teorias so vistas como marcos referenciais mais ou menos teis para os nossos propsitos de dar sentido nossa prtica, compreenso dos dilemas humanos e mudana nos contextos de vida da famlia. Da mesma forma, as tcnicas so consideradas como construo de possibilidades para ao e reflexo, derivando seu valor da possibilidade de favorecer transformaes criativas. Portanto, a utilidade das teorias e das tcnicas de terapia passou a ser diretamente compreendida pela sua possibilidade de oferecer subsdios para a construo de significados organizadores da experincia vivida pela famlia e a evoluo do sistema teraputico (GRANDESSO, 2002). Tendo em vista os propsitos deste captulo, apresento a seguir um breve panorama do campo da terapia familiar nos marcos das prticas da terapia familiar consideradas ps-modernas, com nfase especial na relao entre teorias e prticas.

Um aprofundamento nessas duas posies epistemolgicas foge ao alcance deste captulo. O leitor interessado encontra uma detalhada apresentao em Grandesso (2006a).

DESENVOLVIMENTOS NO CAMPO DA TERAPIA FAMILIAR - TERAPIAS PSMODERNAS: CONCEITOS TERICOS E PRTICAS

Uma mudana na dana entre teoria e prtica, alicerce das abordagens ps-modernas de terapia vem do pioneiro grupo do MRI, na pessoa de don Jackson que abriu espao para um importante legado para as prticas ps-modernas de terapia a mudana da tradio de ensinar ao cliente a linguagem do terapeuta para ensinar ao terapeuta a linguagem do cliente (ANDERSON & GEHART, 2007). Essa mudana tanto metafrica como literal de deixar-se conduzir pelo cliente, aprendendo e falando sua linguagem, foi central para as novas metforas tericas que passaram a organizar as terapias ps-modernas. Como acontece em inmeras situaes na histria da construo do conhecimento e do desenvolvimento das prticas, uma inteno orientadora numa determinada direo e com um determinado propsito acabam construindo um contexto gerador de uma alternativa no intencionada, mas suficientemente inovadora, criativa e generativa para uma nova abordagem ou uma nova compreenso. Assim desenvolveram-se as abordagens ps-modernas para a terapia, como um salto qualitativo, acompanhando as mudanas paradigmticas que aconteceram nas cincias em geral, organizando o sistema de idias e prticas numa nova direo. Distintas abordagens de terapia familiar situam-se sob os marcos referenciais da psmodernidade, dentre as quais destaco as terapias colaborativas de base dialgica e as terapias narrativas, alm das que resultaram de mudanas epistemolgicas nas tradicionais terapias estruturais e estratgicas que abraaram as idias construtivistas. De acordo com Anderson (1997), as teorias teraputicas podem ser descritas, analisadas e comparadas a partir de trs questes bsicas: 1. a posio do terapeuta como define seu papel e seu propsito; 2. o processo de terapia o que acontece e se entende como devendo acontecer para que haja uma mudana teraputica; 3. o sistema teraputico incluindo as metas da terapia processo. De acordo com essas questes podemos dizer que cada teoria influi em como o terapeuta fala e age e quais a s suas intenes no seu falar e fazer. Sucintamente, considero a seguir como e dos participantes no

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respondem a essas questes algumas das prticas ps-modernas da Terapia Familiar5. Cumpre lembrar que esta classificao tem um carter meramente didtico, pois, uma das conseqncias da era ps-moderna envolve o questionamento de fronteiras rgidas entre disciplinas e prticas, mantida porm , uma coerncia epistemolgica

ABORDAGEM COLABORATIVA Esta abordagem teraputica organizada em torno da definio dos sistemas humanos como sistemas lingsticos, geradores de linguagem e significado, organizadores e dissolvedores de problemas. A prtica dessa terapia define-se como relacional e dialgica, e, no escopo de sua ao e sustentao terica podemos citar nomes como Tom Andersen, Kenneth Gergen, Lynn Hoffman, Lois Holzman, Sheila McNamee, Peggy Penn, Jaakko Seikkula, Lois Shawver, Jonh Shotter, Harlene Anderson e Harry Goolishian (ANDERSON, 2007a). Ao compreender o dilogo como uma conversao transformadora a terapia apresenta-se como uma conversao de duas mos de trocas colaborativas, em que o cliente o especialista (ANDERSON, 1994, 1997; ANDERSON & GOOLISHIAN, 1992; 1988; GOOLISHIAN & WINDERMAN, 1988). O processo de terapia a conversao teraputica na qual o terapeuta um participante ativo e arquiteto do dilogo (ANDERSON & GOOLISHIAN, 1988). O dilogo considerado uma forma de conversao na qual o terapeuta e o cliente participam do codesenvolvimento de novos significados, novas realidades e novas narrativas, a partir de uma postura teraputica de genuno no-saber. A terapia colaborativa organizada como uma prtica de parceria na conversao entre terapeuta e clientes coloca sua nfase nos processos reflexivos e na abertura das palavras para os significados por elas construdos, bem como no processo de questionamento como contexto generativo em relao mudana. Destaca-se particularmente nesta forma de fazer teraputico, alm de Anderson e Goolishian, o trabalho de Tom Andersen (ANDERSEN, 1987; 1991; 1995) e o de Peggy Penn, enfatizando a importncia das diferentes vozes, a que vem da escrita, a que vem dos dilogos internos, alm da que decorre das distintas conversaes (PENN, 1985; 1998; 2001). A terapia colaborativa considerada pelos seus praticantes mais como uma abordagem ou suposies sobre terapia do que teoria ou modelo. Encontramos no escopo dessa prtica

Parte do que apresento a seguir foi publicado em primeira mo em Grandesso ( 2002).

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diferentes

denominaes,

tais

como

terapia

colaborativa,

dialgica,

conversacional,

construcionista social, relacional e ps-moderna (ANDERSON & GEHART, 2007). Do ponto de vista da ao os terapeutas colaborativos procuram ater-se a forma como os clientes compreendem seus dilemas, a partir de dentro da prpria conversao no momento da terapia, no contexto local mais do que das informaes oriundas das suas pr-compreenses. Assim, as perguntas do terapeuta so norteadas pelo que dito pelas pessoas, legitimando o seu conhecimento a partir de dentro da experincia vivida, ou seja, conhecimento local de cada pessoa participante do processo teraputico. Para Anderson (ANDERSON, 1997; 2000; 2001; 2007a e 2007c) a terapia colaborativa mais uma instncia filosfica ou uma filosofia de vida do que uma abordagem informada por uma teoria. Refere-se, a [...] uma forma de estar em relacionamento e conversao: uma forma de pensar com, de experimentar com, de estar em relao com, agir com e responder para com as pessoas, que encontramos em terapia (ANDERSON, 2007c, p. 43). Apoiando-se na noo da linguagem e do conhecimento como generativos, sua propriedade inventiva e criativa favorece novos conhecimentos, novas identidades com maior auto-agncia, expertise e futuros possveis. Colocado como um parceiro conversacional, o terapeuta aquele que, especializado em construir contextos de dilogo e relacionamentos colaborativos, coloca-se numa atitude de curiosidade genuna para aprender com o cliente sobre suas circunstncias, sustentado pela crena de que o cliente o especialista na sua vida. O processo de conversao que se instala como uma via de duas mos, resulta numa explorao conjunta e co-desenvolvimento de novas possibilidades. A postura colaborativa convida o terapeuta a tornar pblico seus pensamentos e a deixarse transformar junto com o cliente, conforme a conversao segue adiante. Essa postura no se define como uma tcnica nem visa produzir tcnicas. O terapeuta colaborativo deixa de lado tambm a busca de intervenes teraputicas, uma vez que a mudana decorre da prpria conversao. O principal recurso que o terapeuta leva para o contexto de terapia a si prprio como ser humano, capaz de estar em relao no hierrquica e a sustentar e promover uma conversao respeitosa abrindo espao e dando as boas vindas para a incerteza e o inesperado. A palavra chave para essa abordagem com referindo-se a uma busca do terapeuta por estar com, de conectar-se e estar em relao com. Uma das grandes inovaes terico-prticas desta abordagem foi o conceito de sistema determinado pelo problema, contrapondo a noo da terapia familiar tradicional de que o sistema cria o problema (ANDERSON, GOOLISHIAN &

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WINDERMAN,

1986;

ANDERSON

&

GOOLISHIAN,

1988;

GOOLISHIAN

&

WINDERMAN, 1988). Nesse sistema organizado pelo problema, cabem tantas distines de problema quantos forem os participantes no processo, colocadas nas prprias palavras das pessoas. Portanto, a terapia colaborativa abandona descries objetivas, explicaes e diagnsticos para referir-se s particularidades de das histrias narradas, colocando cada cliente como nico e especial. Das descries genricas e impessoais para as particulares e especiais, Anderson (2007, c) ressalta que a nfase foi colocada no cliente como pessoa, evidenciando assim, no apenas o seu lado humano, mas tambm o do terapeuta como pessoa, mais do que um tcnico.

ABORDAGENS NARRATIVAS As prticas narrativas consideram que as pessoas vivem suas vidas atravs de histrias; que as histrias organizam e do sentido experincia e que os problemas existem na linguagem, sendo capturados nas histrias dominantes, co-autoriadas nas comunidades lingsticas das pessoas, tendo uma dimenso cannica. Ao consultarmos a literatura da Terapia Familiar encontramos vrias referncias s prticas narrativas, muitas delas misturando-se nos contextos das prticas colaborativas anteriormente descritas. Contudo, definidas especialmente como prticas narrativas, destaco duas possibilidades - uma mais conversacional com nfase nos processos de questionamento e outra mais estruturada como uma abordagem de conversao orientada para um propsito, proposta e desenvolvida pelo grupo de terapeutas liderados por Michael White e David Epston do Dulwich Centre de Adelaide, Austrlia.

As micro-prticas transformativas Trata-se de um processo de terapia narrativa com nfase nas micro-prticas transformativas no contexto da conversao que, atravs de um processo de questionamento, vem a desestabilizar as narrativas organizadoras dos problemas, dilatando seu horizonte e referncia. O resultado de tal processo de questionamento conduz organizao de histrias qualitativamente melhores para o sistema, em torno dos estranhos atratores, fazendo referncia teoria do caos. Estes atratores caracterizam-se como opes potenciais que surgem nos pontos de bifurcao das histrias desestabilizadas pela conversao teraputica, conforme podemos ver no trabalho de Sluzki (1992; 1998). Sluzki considera que as narrativas que surgem

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no contexto das terapias organizam-se em torno de temas, muitos deles podendo ser considerados universais a qualquer que seja a famlia: perdas e luto, gnero, ciclo vital, transgeracionalidade e famlias de origem, lealdades e tica relacional, etnia e cultura, estrutura e organizao da famlia, dentre outros. De acordo com os pressupostos dessa prtica ps-moderna, diferentes temas e alternativas podem gerar histrias igualmente plausveis no contexto das conversaes teraputicas e transformadoras. Coerentemente com os princpios do pensamento ps-moderno, diferentes temas atendem mais s preferncias tericas do terapeuta e pertinncia aos enredos temticos das famlias em terapia e no a qualquer valor verdade sobre problemas e solues. A habilidade do terapeuta narrativo de acordo com essa abordagem narrativa envolve o colocar-se conectado na escuta aberta para ouvir as histrias que as pessoas contam sobre seus dilemas, e coordenar suas perguntas e comentrios, entrando pela porta aberta pela narrativa da famlia e expandindo o contexto narrativo para outros temas e contextos discursivos. A partir da estruturao do espao teraputico como um espao de conversao, essa prtica narrativa envolve uma escuta das histrias sobre as experincias vividas pelos personagens envolvidos, os enredos e cenrios dos acontecimentos narrados, seus corolrios morais, ticos e suas conseqncias. O processo de questionamento desenvolvido pelo terapeuta favorece a mudana na direo da construo de histrias alternativas e preferidas, promovendo a transformao das histrias nas dimenses de tempo (por exemplo, entre descries estticas e descries flutuantes), espao (por exemplo, entre narrativas contextuais e narrativas no contextuais), linha de causalidade (entre narrativas sobre causas e narrativas sobre efeitos), contexto das interaes (descries situadas em contextos interpessoais e descries intrapessoais), valores presentes (distintas atribuies de qualidades a pessoas e acontecimentos) e na forma narrativa (entre descries na voz ativa e descries na voz passiva). Especificando melhor, se a pessoa narra suas histrias numa dimenso de tempo presente, o terapeuta conecta-se a esse enredo narrativo, mas, gradativamente vai dirigir suas perguntas para outras dimenses de tempo, sobre o passado ou futuro; se a narrativa, contudo, descreve acontecimentos valendo-se do tempo passado, o terapeuta vai deslocar suas perguntas para o presente, ou futuro, e assim por diante, em cada uma das dimenses citadas. De acordo com a compreenso presente nessa prtica, as histrias podem ser desestabilizadas conforme possam abrir espao para novos olhares, numa coordenao na linguagem que convida explorao de novos horizontes

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possveis. Do ponto de vista tcnico, essa prtica narrativa exige um terapeuta hbil para uma escuta da estruturao narrativa e para coordenar-se na linguagem para organizar uma conversao convidativa para a construo de novos significados.

A terapia narrativa de Michael White Situando-se tambm sob o guarda-chuva da ps-modernidade, a Terapia Narrativa proposta por Michael White e sua equipe do Dulwich Centre de Adelaide na Austrlia, define-se como um enfoque respeitoso, no culpabilizador que considera as pessoas como especialistas em suas vidas. Embora apresente diretrizes especficas para o terapeuta colocar-se em conversao com as pessoas, famlias e comunidades, esta terapia narrativa organiza-se tambm dialogicamente em mtua colaborao entre o terapeuta e todos os participantes do processo teraputico. Os organizadores temticos das conversaes so dados pelas preferncias das pessoas consultantes, s quais o terapeuta procura conhecer e se adaptar. Perguntas sobre o andamento da conversao, os caminhos que esto sendo percorridos, caminhos alternativos possveis e preferidos, permitem ao terapeuta orientar-se por um territrio em que a pessoa em terapia coloca-se como cicerone. Os constantes ajustes de rota permitem no s respeitar os interesses das pessoas como tambm os seus conhecimentos como insiders numa atitude respeitosa e legitimadora por parte do terapeuta. Esta terapia narrativa enfatiza a desconstruo das histrias dominantes e das prticas subjugadoras do self que, cristalizadas nos relatos sobre as vidas e identidades, restringem as possibilidades existenciais e tm o status de verdades sobre as pessoas e suas vidas. Comeando pelo mapeamento dos efeitos do problema sobre a vida da pessoa, as relaes, as perspectivas de futuro e a viso de si mesma, o terapeuta desenvolve uma conversao especial que promove o resgate das identidades dos domnios do problema, bem como a memria de que os problemas so construdos nos contextos das experincias vividas. A proposta de externalizao, situando a pessoa e o problema como entidades distintas, contribui para desessencializar o self, ao tornar conhecidos os contextos organizadores das narrativas opressoras das quais as pessoas constroem empobrecidas vises de si mesmas e restritas possibilidades existenciais (GRANDESSO, 2002; 2006b). Partindo do pressuposto terico de que a experincia muito mais rica do que qualquer possibilidade narrativa (BRUNER, 1997), o terapeuta procura por acontecimentos extraordinrios que contradigam as histrias dominantes, apresentando reas da vida da pessoa livres da

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influncia do problema e que descrevam um sentido de agncia e competncia. Ao resgatar a memria de episdios vividos que contradizem as histrias dominantes, o terapeuta promove uma conversao de re-escritura das histrias de identidade, ao incluir nas novas narrativas aspectos negligenciados pelas histrias dominantes. A reconstruo narrativa decorrente do trabalho teraputico caracteriza este modelo de terapia como sendo de re-autoria da autobiografia. Considerando-se que as histrias so construdas e legitimadas no mundo da vida, o terapeuta narrativo pode fazer-se valer de participantes convidados pela pessoa em terapia, funcionando como testemunhas externas das novas verses de identidade fora dos domnios do problema. Pessoas vivas ou mortas que por alguma razo foram referncias importantes para a pessoa no passado, podem ter resgatadas suas vozes, fazendo-se presentes ou na imaginao, atravs dos processos de questionamento ajudando no s a construir histrias mais ricas como a ancor-las. Assim, considerando a vida como se fosse um clube, influenciado pelo trabalho da antroploga cultural Brbara Myerhoff que trabalhou com uma prtica conhecida como cerimnia de definio6, uma prtica narrativa nesses moldes, favorece a abertura para mundos mais ricos, ao promover a polifonia vinda de diferentes contextos de relao. Embora essa prtica de terapia conte com muitos recursos de conversao conversaes externalizadoras, conversaes de re-autoria, conversaes de re-associao (do ingls remembering), uso de testemunhas externas, rituais teraputicos, cerimnias e documentos cada processo teraputico nico e como diz Morgan (2000), muitos so os caminhos possveis, cheios de bifurcaes, idas e vindas, cada passo conduzindo a um novo horizonte possvel e cada pergunta a uma nova verso de vida. O trabalho criativo do terapeuta narrativo na construo de mapas narrativos (WHITE, 2007), exige do terapeuta uma postura de escuta atenta e de pacincia para as idas e vindas nos andaimes que aliceram e sustentam as novas narrativas. Apoiado nas idias de Michel Foucault, White define o terapeuta narrativo como uma espcie de ativista sociopoltico que denuncia prticas culturais colonizadoras que marginalizam pessoas e comunidades em nome de discursos normatizadores e dominantes. Todo o trabalho de Michael White, David Epston, Jill Freedman e Gene Combs, ilustram essa prtica de terapia libertadora (WHITE, 1988; 1991; 1993; 2004; 2007 WHITE & EPSTON, 1990; FREEDMAN & COMBS, 1996).
Brbara Myerhoff usou a metfora de cerimnia de definio no seu trabalho com uma comunidade de judeus idosos, criando um contexto de contar algumas das historias mais significativas de suas vidas, como uma forma de fortalecer seus projetos de identidade que estavam em vias de extino. (WHITE, 2004).
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ABORDAGENS PS-MODERNAS CRTICAS Podemos incluir aqui as propostas como a Just Therapy do grupo do Family Centre da Nova Zelndia (WALDEGRAVE, 1990; 2000). Charles Waldegrave, Kiwi Tamasese & Wally Campbell, organizaram sua abordagem teraputica em torno de conceitos de eqidade e justia social, considerando que muitos dos problemas de sade mental e de relacionamentos, decorrem das conseqncias das diferenas de poder e de injustias sociais. O grupo prope que se considere as influncias do macro-contexto scio-econmico, poltico, cultural, tnico, de gnero e espiritual no micro contexto familiar. Para estes terapeutas h significados preferidos para as narrativas emergentes, edificados em torno de valores promovendo a igualdade de gnero, a autodeterminao cultural, pertencimento e espiritualidade. Tal proposta coloca o terapeuta no lugar de um profissional engajado com a transformao das polticas sociais mais amplas, comprometido com uma tica da igualdade e legitimao da pessoa, encorajando uma metodologia de ao/reflexo que considere no apenas indivduos, casais e famlias, mas comunidades, sociedades e pases. Esse grupo neozelands enfatiza a importncia de o terapeuta perguntar-se constantemente pelos seus valores. A ausncia desse questionamento torna a prtica da terapia um empreendimento a servio dos valores dominantes, colocando-se assim como uma espcie de prtica colonizadora.

ABORDAGENS ESTRUTURAL E ESTRATGICA PS-MODERNAS Redefinidas de acordo com uma epistemologia construtivista, tais abordagens acompanharam a evoluo da Ciberntica de Primeira para a de Segunda Ordem e podem ser consideradas ps-modernas, desde que, alm do uso de uma nova linguagem, a postura do terapeuta abandone o lugar de especialista. Considere-se, neste sentido, a terapia centrada nas solues de de Shazer (MILLER & DE SHAZER, 2000) que, partindo das excees em relao manifestao de um problema, inicia um jogo de linguagem para a construo de lugares aptos para o encontro de solues, baseadas na conduta do terapeuta e no seu uso de tcnicas. Acima de tudo, tais releituras so feitas dentro de uma nova concepo epistemolgica que redefine a abordagem quanto noo do conhecimento, a prtica clnica no que se refere ao uso das tcnicas e papel do terapeuta.

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TERAPIAS PS-MODERNAS UMA APROXIMAO

Vivemos hoje na terapia familiar a uma multiplicidade de abordagens, tantas quantos forem os terapeutas em questo. Contudo, a ausncia de um purismo de abordagens no significa uma anarquia epistemolgica se considerarmos os marcos referenciais da ps-modernidade como seus denominadores comuns. Uma coerncia epistemolgica une as prticas ps-modernas de terapia em torno de alguns pressupostos tericos comuns que organizam a ao dos terapeutas: A conscincia de que o terapeuta co-constri no sistema teraputico, em ao conjunta com a famlia, a definio do problema e das possibilidades de mudana; A crena de que toda mudana s pode se dar a partir da prpria pessoa e da sua organizao sistmica autopoitica, sendo responsabilidade e especialidade do terapeuta a organizao da conversao teraputica; A mobilizao dos recursos da famlia, da comunidade, das redes de pertencimento, legitimando o saber local de pessoas e contextos; Uma concepo no essencialista de self, compreendido como construdo no contexto das relaes e prticas discursivas; A viso da pessoa como autora de sua histria e existncia, competente para a ao, para o agenciamento de escolhas a partir de um posicionamento auto-reflexivo, moral e tico, podendo criar e expandir suas possibilidades existenciais; A nfase sobre os significados socialmente construdos na linguagem e nos espaos dialgicos, sendo construdos nos discursos emergentes e, ao mesmo tempo, responsveis por suas transformaes; A crena no dilogo, definido como um cruzamento de perspectivas, como uma prtica social transformadora para todos os envolvidos, independente de seu lugar como terapeuta e cliente; A nfase nas prticas de conversao e nos processos de questionamento como recurso para gerar reflexo e mudana, conforme expande os horizontes de terapeutas e clientes; A adoo de postura hermenutica em que a compreenso co-construda intersubjetivamente pelos participantes da conversao; A nfase muito mais no processo do que no contedo das histrias, compreendendo as narrativas como locais e, portanto, idiossincrticas.

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Refletindo sobre o panorama atual da Terapia Familiar podemos considerar que sua consistncia decorre de uma epistemologia unificadora ps-moderna apoiada numa hermenutica contempornea construda na intersubjetividade, envolvendo a pessoa do terapeuta como coconstrutor das realidades com as quais trabalha. A prtica dessas terapias ditas ps-modernas envolve um trnsito do terapeuta entre teoria e prtica de modo epistemologicamente coerente, de acordo com os meios que se lhe apresentem mais teis e despertem seu entusiasmo e criatividade enquanto interlocutor qualificado. Enquanto uma prtica social transformadora esta terapia se organiza a partir dos contextos locais e das histrias culturais de distintas comunidades lingsticas. O respeito pela diversidade e multiplicidade de contextos com seus saberes locais implica numa terapia construda a partir da aceitao da responsabilidade relacional do terapeuta, legitimando os direitos humanos de bem estar e de exerccio da livre escolha. Os imensos desafios que se apresentam para o terapeuta, vindos do campo da sade mental, das instituies voltadas para o cuidado e tratamento da pessoa, dentro de uma perspectiva ps-moderna, convidam para a humildade na construo do conhecimento e conduzem, cada vez mais para uma ao transdisciplinar numa instncia de trocas colaborativas entre os distintos domnios de saber e no uso de tcnicas como recursos a servio do bem estar. O carter auto-referencial e de reflexividade presente nas terapias ps-modernas, desafiam o terapeuta a tornar explcitos os seus pr-juzos, os seus valores, suas opes ideolgicas, nos limites da sua subjetividade, estabelecendo parmetros para a clnica que pratica harmonizando de forma esttica teoria e prtica a servio do bem estar das famlias que atende.

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