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A música negra brasileira: política, identidade e modernidade Material didático. Disciplina EAD Estudos Afro-brasileiros e Indígenas. Canoas, Ulbra, 2016. Deivison Moacir Cezar de Campos Jornalista, Doutor em Ciências da Comunicação. Coordenador do curso de Jornalismo da Ulbra. Introdução A música tem construído redes desde a chegada dos primeiros africanos no Novo Mundo. A indeterminação linguística do período escravista tornou a música um elemento agregador. A hibridização inicial tem sido, no processo dinâmico do mercado musical, recombinada das mais diferentes formas, podem ser ouvidas nos diferentes estilos de musicalidade negra, mantendo um diálogo sempre atualizado com as sobrevivências consideradas africanas. O encontro dessas sobrevivências com a modernidade ocidental nos engenhos exigiu que os grupos selecionassem materiais que foram criativamente ressignificado. Organizadas em processos dinâmicos, mantém o vínculo com as culturas de origem, ao mesmo tempo que adquirem característica das culturas contemporâneas, reforçando a proposição de que a cultura “não é uma ‘arqueologia’. A cultura é uma produção” (HALL, 2003, p.44). As formas musicais preservam as aspirações por emancipação e cidadania, não atendidas com o fim do escravismo. A circulação e apropriação desses estilos, ideias e histórias transferem igualmente formas culturais e políticas, respaldadas em discursos de cidadania, justiça racial e igualdade. Este fluxo foi facilitado por um fundo comum de experiências e memorias de segregação racial, além das sobrevivências culturais. Desta forma, O mais duradouro de todos os africanismos não é, portanto, especificável como conteúdo das culturas do Atlântico Negro. Ele pode ser mais bem visto não só no lugar central que todas essas culturas destinam ao uso e à produção de música, mas na ubiquidade das formas sociais antifônicas, que sustentam e encerram a pluralidade de culturas negras no hemisfério ocidental. Uma relação de identidade é instituída no modo como o executante se dissolve na multidão. Juntos, colaboram em um processo criativo presidido por regras democráticas formais e informais (GILROY, 2001, p.373). Essa cultura afro-atlântica deriva de duas grandes matrizes etnolinguísticas: os bantos, oriundos da região centro-meridional, pertencentes aos grupos da região onde hoje se localiza Angola, Congo e Moçambique, e os sudaneses, vindos da África ocidental, principalmente da região da Nigéria e Benin atuais (DIAS, 2008). No Brasil, a matriz banta serviu de base para as manifestações musicais populares, enquanto a cultura sudanesa restringiu-se à religiosidade. A música dessa tradição, portanto, está ligada principalmente ao sagrado (LOPES, 2005). No centro e norte do continente Americano, no entanto, a colonização se deu prioritariamente pelos sudaneses e, por isso, sua musicalidade está relacionada às manifestações sagradas e à música popular negra nestas regiões. A musicalidade negra no Brasil No tráfico negreiro para o Brasil, os bantos foram maioria nos dois primeiros ciclos do escravismo, que se desenvolveu do século 16 até parte do 18, sendo retomado no século 19. Os sudaneses foram traficados em maior quantidade somente na segunda metade do 18, mas ainda em menor número que os bantos. Há registros sobre eventos musicais promovidos pelo grupo banto no Brasil desde o século 17. São descritas duas manifestações principais que congregam música e dança. Os batuques noturnos, principalmente aos sábados, e os cortejos das irmandades católicas (DIAS, 2008). Os batuques são vistos com repulsa e considerados manifestações primitivas, mas, ao mesmo tempo, servem como estratégia de controle das tensões entre os escravizados. As irmandades católicas por seu lado começaram a perder importância na metade do século 19, principalmente pela chegada dos sudaneses. Esses, considerados mais evoluídos no contexto escravista, são fixados nas áreas urbanas, possibilitando que circulem mais e consigam se organizar em grupos étnicos-culturais [as nações]. O processo vai dar origem às primeiras comunidades de culto às divindades africanas. Sodré (1983) defende que A forma mítica era essencial ao impulso nagô de preservação dos dispositivos culturais de origem. E como se tratava de uma cultura desterritorializada, constituíam-se associações (Ebe) que, com o pretexto religioso, se instalaram em espaços territoriais urbanos, conhecidos como roças ou terreiros (121). As principais contribuições dos sudaneses no Brasil, portanto, encontram-se nos rituais religiosos, em gêneros musicais, como o Ijexá, e atividades culturais como o Afoxé e o Maracatu. O predomínio desta cosmovisão fez com que os Candomblés passem a constituir um dos meios mais importantes de agregação social, identidade e resistência cultural da população negro-mestiça, reforçando o sentido sagrado da música. Isso porque para os sudaneses, os atabaques e o ferro são considerados seres vivos (PARÉS, 2007, p.321), cujo som produz “uma linguagem que estabelece a comunicação com um mundo invisível de divindades”. Essa reorganização a partir de Nações, em torno do Candomblé, possibilitou uma atualização de tradições musicais africanas. Segundo Moura (1995), as giras de batuqueiros se tornaram comuns nos locais onde se reuniam os integrantes das diferentes nações. Dessas reuniões, surge o partido alto, ou samba baiano, organizado a partir de cantos Essa característica de chamada e resposta está na base de toda a musicalidade afro na Diáspora. desenvolvidos por um coro de vozes e contestados pelos solistas. A música nesses encontros é produzida a partir de instrumentos profanos, como o pandeiro, o violão, o ganzá e o prato O ganzá é um idiofone, ou seja, o som é produzido pelo corpo do instrumento, executado por agitação. O prato se refere ao objeto de cozinha que é raspado no fundo por uma faca para produzir o som., e o canto baseia-se em refrãos conhecidos, respondidos em coro, e versos de improviso dos solistas. No Rio de Janeiro, o samba ganha outra dimensão e sonoridade pelo encontro com outras matrizes musicais, principalmente nas casas das tias As tias baianas eram “os grandes esteios da comunidade negra, responsáveis pela nova geração que nascia carioca, pelas frentes de trabalho comunal, pela religião, rainhas negras de um Rio de Janeiro chamado por Heitor dos Prazeres de Pequena África, que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, tendo como capital a praça Onze” (MOURA,1995, p.92). As tias mais conhecidas na virada do século 19 para o 20, na Pequena África, foram “Ciata, Perpétua, Bebina, Carmen e Amélia” (MOURA, 2004, p.61). na região conhecida como Pequena África, no centro da cidade, concentração da comunidade baiana. A casa da tia Ciata tornou-se a principal referência da região em função de sua liderança no contexto religioso. Ela era Iyá Kekerê e Achogum As funções ocupadas por Ciata correspondem aos mais influentes num terreiro de Candomblé depois do pai-de-santo. É responsável pelas “noviças, a quem prescreve os banhos rituais e dirige as iaôs, já iniciadas, nas danças dos orixás” (MOURA, 1995, p.100) no Candomblé de João Alabá “A casa de João Alabá, de Omulu, dava continuidade a um Candomblé nagô que havia sido iniciado na Saúde, talvez o primeiro do Rio de Janeiro, por Quimbambochê [...], registrado como Rodolfo Martins de Andrade, africano que chega a Salvador num negreiro na metade do século XIX” (MOURA, 1995, p.98). (MOURA, 1995). Os encontros nas casas das tias, especificamente de Ciata, buscavam reforçar valores do grupo, afirmando um passado cultural e a força criativa, recusados num contexto de marginalização e exclusão. Em decorrência da tensão entre a tradição e criação, o samba urbano carioca incrementa suas origens híbridas, mesclando os batuques com o maxixe, que seria uma tradução popular da polca “Seria exatamente dessa descida da polca dos pianos dos salões para a música dos choros, à base de flauta, violão e oficlide, que ia nascer a novidade do maxixe” (TINHORÃO, 1974, p.55). (TINHORÃO, 1974). Essas formas musicais originárias apareceriam ainda de forma distinta no início do século 20 nos batuques realizados na Pequena África. Segundo Lopes (2005), Nas festas dessa comunidade a diversão era geograficamente estratificada: na sala tocava o choro, o conjunto musical formado basicamente de flauta, cavaquinho e violão; no quintal, acontecia o samba rural batido na palma da mão, no pandeiro, no prato e faca e dançado à base de sapateados, peneiradas e umbigadas. Foi aí então, que ocorreu, entre o samba rural baiano e outras formas musicais, a mistura que veio a dar origem ao samba urbano carioca. A constituição de uma música negra brasileira desta forma surge de sobrevivências africanas que estão na base da musicalidade compartilhada pelas populações negras fora da África. O encontro com a música das culturas europeias, principalmente, e indígenas agrega novos elementos a essas produções musicais levando ao surgimento de novos gêneros. O mercado de consumo que então se organiza no Brasil vai observar as possibilidades massivas dessa música, o que desencadeia uma permanente tensão entre indústria e autenticidade. Enquanto o mercado captura e lança produtos originados nessa cultura afro, os negros buscam novos ritmos. A musicalidade negra no mercado de música gravada O mercado de música gravada no Brasil surge relacionado à cultura afro. A primeira gravação, denominada polca-lundu O encontro dos dois gêneros de matrizes euro-afro vai dar origem ao maxixe. Isto é bom, foi produto do encontro de dois baianos no Rio de Janeiro. O soteropolitano Xisto de Paula Bahia compôs a música, gravada em 1902 por Manuel Pedro dos Santos, o Bahiano, nascido em Santo Amaro da Purificação. O disco foi gravado pela Casa Edson. O encontro desses gêneros musicais com o batuque levará ao surgimento de um novo gênero para ser consumido durante todo o ano, o samba. A música Pelo telefone, considerada o primeiro samba gravado a ter sucesso comercial (TINHORÃO, 1974), surge como obra coletiva de velhos foliões baianos [tradição] e de jovens negros da baixa classe média, como os músicos profissionais Sinhô e Donga [atualidade], contando ainda com a letra do repórter branco Mauro de Almeida [hibridismo]. Tinhorão propõe que na rua Visconde de Itaúna, 117, na casa da Tia Ciata [...] um grupo de compositores semialfabetizados elaborou um arranjo musical com temas urbanos e sertanejos que, ao ser lançado para o carnaval de 1917, acabou se constituindo no grande achado musical do samba carioca (p.119). Essa música gravada em disco registra o surgimento de um gênero que se tornará símbolo da nacionalidade brasileira e dominará o mercado fonográfico praticamente até os anos 50. A gravação apresenta um andamento mais lento em relação a forma original. Isso “se explica pelas condições técnicas dos registros da época. Sendo os sulcos feitos em sistema mecânico, a extensão deles dependia diretamente da força da voz do cantor” (CALDEIRA, 2007, p.12). Por outro lado, Pelo Telefone desencadeou uma dissociação entre a música e o espaço social no qual é produzida. Registrada em dezembro de 1916, na Biblioteca Nacional, pelo compositor Ernesto Santos, o Donga, provocou uma disputa entre os sambistas que frequentavam as rodas da Pequena África, principalmente na casa da Tia Ciata, pela autoria da música. Também coloca em questão a legitimação da obra artística produzida pelos negros de classes populares e, ao mesmo tempo, a do sambista como compositor. No fundo, no entanto, estava em discussão a autenticidade da música que necessitou adequar-se as exigências da tecnologia para ser gravada. Para Moura (1995), O samba pelo telefone teria o carisma de ser uma coisa nova, criado inicialmente numa roda de partideiros sem preocupações autorais, depois recriado usando elementos musicais de diversas origens, e inserido como produto no mercado aberto pela indústria de diversões. Vinculado a mundos diversos, à casa da Tia Ciata e à Casa Edison, às rodas de partideiros e ao departamento de registros de partituras da Biblioteca Nacional. Mundos contíguos na mesma cidade, quase que totalmente separados, só transpassados em seus limites naqueles tempos de santos e heróis (p.123). O samba surge, portanto, com música síntese da hibridização cultural, remetendo à tradição e à ressignificação local. Essa iniciativa também atendia demandas de reconhecimento, pois, para se tornar urbana, segundo Martín-Barbero (2001), a música negra teve que ultrapassar duas barreiras ideológicas: a que liga o popular às origens – o indígena e o rural, neste caso, e a “intelectualidade ilustrada” que concebe cultura como arte, o caminho que leva à música, de roda de samba – e seu espaço ritual: terreiro de Candomblé – ao rádio e ao disco, passa por uma multiplicidade de avatares que podem ser organizados ao redor de dois momentos: a incorporação social do gesto produtivo negro e o da legitimação cultural do ritmo que aquele gesto continha (MARTÍN-BARBERO, 2001, p.251). A chegada do samba ao disco coincide com um ajustamento do mercado fonográfico do país, que buscava ampliar a venda de fonógrafos. A Casa Edison, que gravou Pelo Telefone, por exemplo, surgiu com esse objetivo. A empresa investiu na produção de músicas com vozes brasileiras para tornar a tecnologia mais atrativa. Num primeiro momento, portanto, não havia uma relação entre o que era gravado e o sistema de circulação das músicas. Buscava-se a valorização da tecnologia (CALDEIRA, 2007). Apesar disso, “a gravação na cera passou a fazer parte das estratégias de divulgação dos artistas. Donga foi pioneiro nessa maneira de se pensar o disco” (p.34). A consolidação dessa indústria fonográfica vai ocorrer durante os anos 30, mas rádio, feito totalmente ao vivo com músicos e orquestras contratadas, e o disco ainda competiam por audiência. A constituição de um único sistema industrial ocorreria somente depois da implantação e consolidação da televisão no país. O desenvolvimento tecnológico provocou a entrada de novos atores neste mercado musical em formação, distanciando ainda mais o samba gravado do lugar de sua produção. A substituição da gravação mecânica pela elétrica em 1927 (CALDEIRA, 2007) possibilitou que outros compositores e artistas “com vozes bem menos potentes que os cantores pioneiros da Casa Edison” (MOURA, 2004, p.45) se utilizassem da gravação para viabilizar suas carreiras. O desenvolvimento da música urbana se utiliza de procedimentos comuns [batuques] e de um nome anteriormente ligado à música, mas como dança: o samba. Isso se tornou determinante para a aceitação e circulação desse ritmo. “O samba gravado já nasceu como síntese, podia ser entendido em qualquer ponto do país” (MOURA, 2004, p.69); ou seja, um gênero fonográfico local, tornou-se nacional pelo reconhecimento de sua matriz negra nas diferentes adequações locais. Antes da gravação, a impressão das partituras e a execução por bandas militares eram as principais estratégias de circulação das músicas, principalmente as produzidas para o carnaval. A festa de Nossa Senhora da Penha também ocupou um importante espaço de legitimação na transposição do século 19 para o 20 (MOURA, 1995). A partir da gravação, o samba ganha significado não só para os que partilham da experiência da roda, mas para aqueles que ouviam vitrola ou o rádio. A gravação, segundo Caldeira (2007), forneceu ao samba a possibilidade de manter seu fator básico de diferenciação que, por sua tradição oral e de improviso, não era possível apreender na partitura. Com isso, para o samba, “a gravação se tornou uma forma de transmissão daquilo que tinha de mais rico, sua rítmica recriada a cada interpretação, que não era captada pela partitura, em que domina o compasso subdividido” (p.68). Além do reconhecimento de práticas já disseminadas, assim como a denominação ligada à música, e o fato de dominar as camadas populares da capital federal, fez com que o samba se tornasse o primeiro produto de grande circulação da indústria cultural brasileira ligada ao entretenimento. Criado como música para o carnaval, o samba foi inicialmente aprimorado pelos sambistas do Estácio “O samba vacilante de Donga, Sinhô e Caninha, da década de 20, ganhou no Estácio o ritmo batucado com a geração de compositores da camada mais baixa (Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Armando Marçal, Heitor dos Prazeres)” (TINHORÃO, 1974, p.125)., ganhando um ritmo mais batucado (TINHORÃO, 1974; MOURA, 1995; 2004). Como produto cultural, foi novamente adaptado em seu andamento por músicos profissionais “Ari Barroso, Lamartini Babo, João de Barro, Noel Rosa, Assis Valente, Haroldo Lobo, Ataulfo Alves, e outros.” (TINHORÃO, 1974, p.125). ligados às rádios e fábricas de disco para ser tocado o restante do ano. Dessa forma, passou a dominar os meios de divulgação da época: as editoras musicais, as casas de música, as gravadoras de discos, as orquestras de teatro de revista, os conjuntos de casas de chope (os “chopes berrantes”, em oposição aos cafés-concerto), as orquestras de sala de espera de cinema e, finalmente, o rádio (TINHORÃO, 1974, p.121). Como música de consumo das classes populares e da classe média, vai dominar o mercado com diferentes variações rítmicas. No entanto, o samba tradicional vai perder público junto à classe média no fim da década de 50, com o movimento denominado Bossa Nova, que se constitui numa nova forma de toca-lo. Tinhorão (1974) entende o movimento como uma reação culta, organizada por jovens da classe média branca das cidades, contra a “ditadura do ritmo tradicional” (p.221), influenciados pela descontinuidade de acentuação rítmica produzida pelos contrabaixos dos conjuntos de be bop americanos. Esse rompimento com o gênero ocorre pelo fato de o samba, ligado desde sua origem ao ritmo de percussão desenvolvido em núcleos urbanos de população predominantemente negra, não evoluíra durante quase quarenta anos, sofrendo alterações praticamente apenas na parte melódica. O ritmo – que representava a paganização das batidas de pés e mãos na marcação dos batuques e nos pontos de candomblé – conservava ainda aquele elemento primitivo (sic) fundamental da correspondência entre a percussão e uma competente resposta neuromuscular (p.221). Esse afastamento reflete também a reorganização espacial realizada no Rio de Janeiro com o processo de urbanização na década de 50, que vai provocar uma divisão de classes. Enquanto os pobres localizam-se nos morros e zona norte da cidade, a classe média e rica ocupa a região sul (TINHORÃO, 1974). O samba, desta forma, perde a hegemonia do mercado musical, mantendo-se como referência principalmente para a população negra e de baixa renda. No entanto, vai também neste grupo disputar espaço com a música negra do mundo, principalmente de matriz norte-americana. A música mantém proximidades rítmicas com o rhythm and blues por serem reorganizações de sobrevivências africanas. A sincopa é o elemento mais perceptível. Desta forma, se, por um lado, a tecnologia possibilitou a legitimação dos ritmos afro frente ao mercado de música e a inclusão de novos atores no processo de gravação, por outro questiona a autenticidade da música frente às adequações necessárias para o seu registro tecnológico. O movimento inerente às culturas negras produzirá gêneros e ritmos que tenham em si uma promessa de legitimidade. No entanto, a demanda do mercado por novidades manterá as referências dessa produção em movimento. A presentificação da musicalidade negra no Brasil A implantação da televisão e a abertura do país ao mercado internacional provocou modificações no mercado de música. A valorização dos músicos ligados à Jovem Guarda e à Bossa Nova e a aproximação de sambistas populares dos músicos deste último movimento atrasou o surgimento de novos sambistas, provocando uma estagnação do gênero. O processo levou principalmente os jovens negros a buscarem, frente ao cenário de internacionalização da cultura, uma música que atendesse as suas demandas identitárias. Os Estados Unidos haviam se tornado a principal potência econômica e referência cultural no período pós-guerra. Será deste país que surgirá um gênero, o soul, com aura de uma autêntica música para negros, por ter sido a trilha sonora dos protestos pelos diretos civis naquele país. Além disso, assim como o samba, a batida do soul mantém relações com a música sagrada afro-brasileira. A diferença entre as duas tradições musicais se dá nas origens dos ritmos. Enquanto a matriz da música popular negra do Brasil é banta, no Estados Unidos a base é sudanesa, predominantemente da cultura Mande. O soul e sua derivação com um ritmo mais marcado, o funk, chegarão ao Brasil nos anos 60, iniciando o movimento denominado Black. Para Cardoso (1987), a abertura ao mercado internacional, capitaneado pelos Estados Unidos, dinamizou o consumo de produtos culturais da diáspora. Neste processo, enquanto o rock é assimilado no meio dos filhos dos proletários brancos, o soul domina a cena dos jovens negros. A captura do soul pela indústria fonográfica no final dos anos 70 vai levar a um novo movimento de busca por autenticidade pelos jovens em busca de uma identificação negra através da música. Voltam-se para o samba denominado de raiz, movimento que adquire aura de autenticidade e tradição, mesmo que tenha passado por um processo de atualização com a inserção de novos instrumentos e desenvolvido um apuro melódico. Essa volta ao samba de raiz ocorreu principalmente pelos jovens negros que estavam ligados ao movimento social que ainda se reorganizava, em função de sua desarticulação durante o período militar, em torno da proposta política do 20 de Novembro, que propunha uma ressignificação identitária. A maioria dos jovens, no entanto, manteve-se ligado ao movimento Black, cujos bailes foram frequentados de maneira massiva até praticamente o início dos anos 90 os bailes em todo o país. Introduzido ainda nos anos 80 nos bailes pelos DJs e surgido em resposta à comercialização do soul e do funk (DAYRELL, 2005), o rap tem como principal característica a apropriação musical, inicialmente pelo uso do disco vinil como instrumento. O gênero impactou a música a partir de então, traduzido como expressão musical de negritude. Com letras e inserção social, o rap torna-se um instrumento de protesto e criatividade nas culturas negras brasileiras. A intervenção criativa dos DJs, iniciada com a Disco music e principalmente com o desenvolvimento do Rap, possibilitou uma adaptação e adequação da música aos circuito s locais. Além de ter impactado na sonoridade da Black music, o rap aprofundou a prática de apropriação musical, inicialmente pelo uso do disco vinil como instrumento. Com isso, “Como por encanto, os discos de plástico enfiados em invólucros coloridos – LP – proporcionaram vetores improváveis e inesperados para uma incansável sensibilidade viajante.” (GILROY, 2007, p.322). A autoria que havia sido imposta à musicalidade afro no processo de gravação – o improviso marca os gêneros tradicionais - volta a ser questionada pelos músicos através do uso de bases pertencentes a outras composições. Também neste período, surgirá uma versão mercadológica do movimento do samba de raiz, denominado Pagode, e do samba de roda, o Axé, além da apropriação popular da música de DJ que vai dar origem ao funk carioca, que vai ganhar uma sonoridade ligada ao Miami Bass, com a inserção do chamado tamborzão – uma batida grave no primeiro tempo, assim como o samba e o funk. Essa relação com diáspora também vai promover o encontro do reggae e principalmente do rock com gêneros regionais, produzindo diferentes estilos e musicalidades. O mangue beat é considerado o exemplo melhor acabado desses encontros. Pode-se observar, desta forma, que a música negra tem se confrontado com a dicotomia entre a busca por identidade e a captura pelo mercado fonográfico. Os gêneros surgem nas comunidades negras e tem a circulação ampliada pelo mercado, perdendo sua condição de autenticidade. Quando isso acontece, novos gêneros musicais são criados ou presentificados a fim de atenderem a essa demanda. Apesar de tratarem-se de presentificações, os gêneros buscados são tidos como elementos de tradição, mesmo que essa sejam recentes. A pretensão de tradição situa-se nas marcas e sobrevivências de ritmo, ou seja, no tempo musical, que impõem-se como permanência da musicalidade africana. Esse tempo emocional, sem relação com o cronológico, liga o presente ao passado. Esse movimento constitui identidade, pois é a principal sobrevivência dos africanismos que construíram as culturas negras na diáspora. Trata-se, conforme Gilroy (2007), do mesmo mutante, o que se mantém mesmo em transformação de África nas culturas negras fora de África, motivo pelo qual a música é tão importante nas culturas negras. Recapitulando A música negra brasileira surge de sobrevivências africanas que estão na base da musicalidade compartilhada pelas populações negras fora da África. O mercado de consumo que então se organiza no Brasil vai observar as possibilidades massivas dessa música, o que desencadeia uma permanente tensão entre indústria e identidade. Enquanto o mercado captura e lança produtos originados nessa cultura afro, os negros buscam novos ritmos. O samba surge com música síntese da hibridização cultural, remetendo à tradição e à ressignificação local. Essa iniciativa também atendia demandas de reconhecimento dessa identidade. Frente ao cenário de internacionalização da cultura, novos gêneros e estilos atendem às demandas identitárias. O soul e sua derivação com um ritmo mais marcado, o funk, chegarão ao Brasil neste período, iniciando o movimento denominado Black. Esse encontro entre gêneros da diáspora e a recombinação com tradições locais irá produzir diferentes estilos e musicalidades. O mangue beat é considerado o exemplo melhor acabado desses encontros. Esse movimento constitui identidade, pois é a principal sobrevivência dos africanismos que construíram as culturas negras na diáspora. Trata-se, conforme Gilroy (2007), do mesmo mutante, o que se mantém mesmo em transformação de África nas culturas negras fora de África, motivo pelo qual a música é tão importante nas culturas negras. Referências e Obras Consultadas CALDEIRA, Jorge. A construção do samba. São Paulo : Mameluco, 2007 CARDOSO, Hamilton R. Limites do confronto racial e aspectos da experiência negra do Brasil - reflexões. in SADER, Emir (Org.). Movimentos Sociais na transição democrática. SP: Editora Cortez, 1987. DAYRELL, Juarez. A música entra em cena. O rap e o funk na socialização da juventude. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2005. DIAS, Paulo. [2008] Diásporas musicais africanas no Brasil. Disponível em < http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.php?option=com_content&view=article&id=297:diasporasmusicaisafricanasnobrasil&catid=80:escritos&Itemid=89>. Acesso em 23 jul.2012. GILROY, Paul. Entrecampos. Nações, culturas e o fascínio da raça. São Paulo: Anablumme, 2007. _____________. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34. 2001. HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. LOPES, Nei. [2005]. A presença africana na música popular brasileira. Revista Espaço Acadêmico. Universidade Federal de Uberlândia. n°50, jul. 2005. Disponível em <http://www.espacoacademico.com.br/050/50clopes.htm>. Acessado em 08 set. 2011. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2 ed. Rio de janeiro Ed. UFRJ, 2001. MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2ªed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de cultura, 1995. MOURA, Roberto M. No princípio era a roda.Um estudo sobre samba, partido alto e outros pagodes. São Paulo: Rocco, 2004. PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé. História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Ed. Unicamp, 2007. SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Por um conceito de cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1983. TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. Da modinha à canção de protesto. Petrópolis: Vozes, 1974. Atividades 1 A música é apontada por Gilroy (2001) como o mais duradouro dos africanismos nas culturas negras da diáspora. Considerando essa afirmação, marque a alternativa incorreta. A ( ) A indeterminação linguística do período escravista tornou a música um elemento agregador. B ( ) A musicalidade negra mantém um diálogo sempre atualizado com as sobrevivências consideradas africanas. C ( ) Organizadas em processos dinâmicos, não mantém o vínculo com as culturas de origem, ao mesmo tempo que adquirem característica das culturas contemporâneas. D ( ) Os rastros de africanismos podem ser mais bem visto no lugar central que todas essas culturas destinam ao uso e à produção de música. E ( ) As formas musicais preservam as aspirações por emancipação e cidadania, não atendidas com o fim do escravismo. 2 A cultura afro-brasileira deriva de duas grandes matrizes etnolinguísticas: os bantos, oriundos da região centro-meridional, pertencentes aos grupos da região onde hoje se localiza Angola, Congo e Moçambique, e os sudaneses, vindos da África ocidental, principalmente da região da Nigéria e Benin atuais. Sobre a influência de cada uma dessas culturas na música negra brasileira é possível afirmar que: I - A matriz banta serviu de base para as manifestações musicais populares, como o samba. II – As matrizes etnolinguísticas influenciaram na forma de cantar do brasileiro, mas não tiveram influência na música. III - As culturas sudanesas originaram a musicalidade das religiões afro-brasileiras, mantendo-se ligadas ao sagrado. IV – A presentificação dessas matrizes facilitaram a circulação de músicas produzidas na diáspora negra. V – A matriz sudanesa é a principal referência da música negra brasileira, influenciando as produções populares e religiosas no Brasil. Com base na leitura acima assinale a alternativa correta. Todas as afirmações são falsas (I,II,III,IV,V). Apenas a afirmação IV está correta. As afirmações I, III e IV são corretas. As afirmações I e V estão corretas. Todas as afirmações são verdadeiras (I,II,III,IV,V). 3 O gênero musical denominado samba surge como síntese do encontro de culturas e, ao mesmo tempo, apresenta características que fizeram com que fosse reconhecido em todo país. Indique as matrizes que influenciam a criação da música Pelo Telefone e aponte pelo menos dois desdobramentos do registro da música. 4 O mercado de música gravada no Brasil surge relacionado à cultura afro. Releia o texto e aponte e comente o acontecimento que sustenta essa afirmação. 5 Os anos 60 e 70 serão marcados pela entrada de música norte-americana, principalmente o soul e o funk, no Brasil. Aponte dois desdobramentos desse encontro musical. Gabarito 1 C 2 B 3 Acontecimento: A primeira gravação de música do Brasil, Isto é bom, em 1902, foi produto do encontro de dois baianos no Rio de Janeiro. O soteropolitano Xisto de Paula Bahia compôs a música, gravada por Manuel Pedro dos Santos, o Bahiano, nascido em Santo Amaro da Purificação. O disco foi gravado pela Casa Edson. COMENTÁRIO a partir desse acontecimento. 4 As matrizes são: Velhos foliões baianos [tradição], jovens negros da baixa classe média [presentificação] e letra do repórter branco Mauro de Almeida [hibridismo]. Desdobramentos são: - surgimento de um gênero que se tornará símbolo da nacionalidade brasileira; - dissociação entre a música e o espaço social no qual é produzida; - provocou uma disputa entre os sambistas; - coloca em questão a legitimação da obra artística produzida pelos negros de classes populares; - adequar-se as exigências da tecnologia para ser gravada. 5 Desdobramentos: - surgimento do movimento Black; - bailes negros massivos até os anos 90; - espaço para a introdução do Rap; - o rap aprofundou a prática de apropriação musical; - surge o funk carioca, que vai ganhar uma sonoridade ligada ao Miami Bass.