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ESCOLÃ DE GENEBRÃ: ESPÃÇO ÃBERTO TRÃNSFORMÃDOR Carolina Rangel Silva70 RESUMO: Apesar de participar ativamente de momentos estratégicos da história do conhecimento, a crítica literária, ainda hoje, não possui um território fixo estabelecido. Longe de ser um tema que passou ao largo do debate intelectual que constituiu o cânone atual, o espaço de ação da crítica já foi compreendido de modos diversos. Quaisquer que sejam os motivos desta diversidade, a variação constante de seus limites expõe principalmente a fragilidade dos princípios que fundamentam sua demarcação. O caráter precário dessa fundação, por sua vez, não é suficiente para engendrar atuações críticas realmente conflitantes, mas configura expectativas de leitura autoritárias que apresentam o objeto literário como uma grande forma de abstração. Nossa intenção nesse artigo é evidenciar o caráter ilusório desse isolamento abstrato e resgatar a potência transformadora da criação literária tal como é admitida pela atuação original da Escola de Genebra. Pretendemos mostrar que a postura da Escola citada não se restringe ao questionamento dos limites teóricos propostos pela convenção, mas ao contrário disso, constitui um ato de resistência e libertação fundamental diante da polarização tirânica que se estende por praticamente todas as esferas da nossa existência atual. PALAVRAS-CHAVE: Teoria Literária; crítica; política; epistemologia; Escola de Genebra ABSTRACT: Even though literary critic actively participates in strategical moments of the history of knowledge, it has yet to find its stablished place. Far from being a topic which has been largely debated and which constitutes the current canon, the acting place of critics has been understood in a wide range of ways. Whichever reasons there are for such diversity, the constant range of its limits mainly exposes how weak the principles which entail its boundaries are. The precarious feature of its foundations does not suffice to engender conficting critics acts, but portraits expectations of authoritative Reading expectations which resent the literary object as a massive Chuck of abstraction. Our mais aim with thins article is to reveal the illusional aspecto f said abstract isolation and bring back the transforming power of literary creation just as it is admitted by the original principle of Geneve School. We intend to demonstrate that the policy of aforesaid school does not limit itself to questioning the theoretical boundaries porposed by the convention, on the contrary, it constitutes a resistance act and fundamental liberation towards the tirannic polarization which spreads to virtually every aspecto f our current existence. Doutoranda em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês na Universidade de São Paulo. E-mail: carol_rangel@hotmail.com 70 REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL GENEVÃ SCHOOL: TRÃNSFORMING OPEN SPÃCE 345 KEYWORDS: literary theory, critics, politics, epistemology, Geneva School 1. INTRODUÇÃO: “A ORDEM SOCIAL E HUMANA NEM SEMPRE SE ALCANÇA SEM REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL O GROTESCO E MUITAS VEZES O CRUEL”71 Um dia lhe perguntaram se, enquanto artista de esquerda, ele tinha nostalgia dos tempos brechtianos ou da literatura engajada à francesa. Pasolini respondeu nesses termos: “Ãbsolutamente. Tenho apenas nostalgia das pessoas pobres e verdadeiras que lutavam para derrubar o patrão, mas sem querer com isso tomar seu lugar.” Uma maneira anarquista, ao que tudo indica, de desconectar a resistência política de uma simples organização de partido. Uma maneira de não conceber a emancipação segundo o modelo único de uma ascensão à riqueza e ao poder. (DIDI-HUBERMAN, 2011.p 33) A citação acima nos oferece um excelente exemplo da maneira como a atividade crítica é constantemente condicionada por uma estrutura formal que limita a percepção do sujeito através deuma configuração histórica e concreta das expectativas. Como uma espécie de subterfúgio que trabalha para a manutenção do poder atual, as referências fornecidas como modelos de atuação política limitam as possibilidades de abordagem do problemaatravés doestabelecimento de um vínculo interno entre a produção literária atual e a resistência exercidapor artistas do passado. Nesse sentido, a própria pergunta coloca em andamento uma resposta metódica limitada não somente a um conteúdo previamente conhecido, mas também à noção de saber considerada como adequada para o conhecimento. O essencial, nesse caso, é compreender que a maneira como a questão é formulada não constitui uma oportunidadepara que o sujeito estabeleça livremente a atividade crítica através de uma relação 346 71O título da seção é uma referência ao conto intitulado “Pai contra mãe” de autoria de Machado de Assis. particular entre ele e o mundo, mas fixa um princípio original determinante que desempenha uma função limitadora metódica e precisa. Em vista disso, tocamos no problema central dessa comunicação, a maneira como a força persuasiva de uma organização autoritária confere uma solução falsa aos conflitos cotidianos e, consequentemente, impede a percepção o vínculo existente entre a violência política e o autoritarismo de um modelo único de conhecimento racional, traçando um percurso que parte da desumanização evidente do fascismo italiano, do controle progressivo sobre a imaginação até a eliminação do poder transformador e político do sujeito. O que oferecemos como contrapartida à esse cenário desolador, é a liberdade que a Escola de Genebra coloca em prática, ao fazer da obra literária não um lugar de fuga onde outras formas de existência são apontadas, mas um espaço de experimentação que alcança e modifica a realidade histórica onde estamos situados. Sendo assim, ao apresentar previamente os modelos de identificação do artista de esquerda, a pergunta exposta na citação inicial, estabelece um vínculo de equivalência, onde o passado se torna a fonte das representações abstratas da realidade e, consequentemente, do mundo atual. Tais representações REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL das contradições reais que se colocam na atualidade. Nossa intenção é destacar constituem o único repertório de significações possíveis que, em última instância, substitui as tensões e conflitos da atualidade por soluções ilusórias alheias ao caráter contraditório da experiência existencial. Ao fornecer uma solução ilusória para os problemas da atualidade, essa estrutura formal impede que o sujeito reconheça a própria situação e crie mecanismos de resistência que evitem à submissão à ordem instaurada. Nesse sentido, se por uma lado a pergunta feita à Pasolini limita e induz o sujeito à repetição de um modelo imaginário tornando-se, por fim, um obstáculo que o impede de lidar com o mundo real, por outro, a primeira matéria que ela oferece à atividade reflexiva 347 do sujeito é a linguagem. E é exatamente a partir dessa matéria que a Escola de Genebra vislumbra a possibilidade de insubordinação. Conforme afirma Marcel Raymond a linguagem que compõe metodologicamente a questão apresentada não é outra senão aquela trabalhada REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL pelo poeta, cujo saber, ao contrário do modelo de conhecimento institucional, não se deixa limitar por um princípio inequívoco, tampouco pela unicidade de uma representação abstrata da realidade. (RAYMOND, 1964, p.8) Desse modo, essa solidariedade material possibilita que o caráter instável da linguagem exponha a existência de um espaço de atuação comum, onde o mundo ordenado conforme o modelo da representação histórica e o saber poético intemporal coincidem, fornecendo ao sujeito ao menos a possibilidade de um contato libertador com as tensões e ambivalências da atualidade. Disto isso, diferente do caminho condicionalmentetraçado, a resposta de Pasolini à pergunta tendenciosa se desvia da previsibilidade referencial fornecida, permitindo que ele desvincule sua noção de resistênciada ideia fornecida por uma representação abstrata da realidade, enraizada nos tempos brechtinianos enaorganização formal da literatura engajada francesa. Assim como a resistência se realiza através de um percurso próprio, o modo como o cineasta, poeta e escritor italiano compreende a vitória do fascismo no interior da sociedade italiana não deriva de uma percepção unívoca da realidade; como a fornecida pela ideia de identidade cultural proclamada nos tempos de glória de Mussolini ou de união nacional garantida pelos domínios políticos e espaciais decretados pelo Estado totalitário. Longe disso, o triunfo fascista que suas palavras expressam é a dimensão mais profunda do sistema opressor e como talnão pode ser acessado através de nenhum conteúdo factual determinadopela univocidade da narrativa histórica do passado. 348 Na verdade, é o oposto disso; para a narrativa histórica o fascismo dos anos de 1930 e 1940 foi vencido. Mussolini foi morto, e seu corpo pendurado pelos pés como um costume político antigo que à sua maneira confere à esse acontecimento o valor fornecido pela representação abstrata das relações de poder características do império romano. Sem aderir à essa significação, Pasolini não vê o fim do fascismo e o fim de Mussolini como um acontecimento encerrado. Na verdade, a morte do ditador não equivale à superação da ordem representa a negação do fascismo por parte da população, revela para Pasolini sua total assimilação. De fato, à morte física do Duce, seguiu-se um acontecimento que colocou sob os holofotes a dimensão mais profunda do fascismo italiano, a retirada dos corpos da esfera do humano. Tal desumanização pode ser percebida através daquilo que está por detrás da exposição dos cadáveres de Mussolini e de sua amante numa praça de Milão.72 Se, em um primeiro momento, somos levados a considerar os gestos e as palavras que atuam violentamente durante a destruição dos corpos como o desencadeamento de afetos libertadores, é necessário perceber que os corpos estilhaçados do ditador e de Claretta são destituídos de significação, e ao contrário da violência política adotada pelo império romano, a selvageria empreendida contra o morto na modernidade não metaforiza nenhum poder ou de Mussolini e de sua amante foram pendurados pelos pés na praça de Milão em 29 de Ãbril de 1945, um dia depois de seu assassinato. Conforme narra Pierre Milza, “Os cadáveres haviam sido expostos no chão, de certa forma oferecidos à fúria vingadora de uma população que se aproximava para certificar-se da queda da ditadura, dessa vez definitiva. Não se tomara qualquer medida para conter a multidão e impedir que a exposição dos corpos se transformasse em catarse bárbara. A cada hora a massa de “curiosos” e “justiceiros” aumentava, clamando e fazendo as mais diversas sevícias nos restos mortais do Duce e de sua amante. Alguém pôs na mão do ditador a haste de uma bandeirola fascista, transformada em cetro ridículo. Alguém mais empurrou seu corpo sobre o de Claretta, por sua vez depositado nas pernas de Marcello Petacci. E mais alguém gritou para o Duce: “Faça agora seu discurso, vamos, faça!” Uma mulher deu cinco tiros no cadáver de Mussolini, “para vingar seus cinco filhos mortos”. Os espectadores das primeiras fileiras, irresistivelmente empurrados na direção dos corpos, pisoteavam-nos, esmagando os rostos com os calcanhares, cuspindo no que se transformava, com o passar dos minutos, em horríveis montes de carne cujos traços se tornavam cada vez mais difíceis de distinguir. Donas de casa atiravam neles legumes e pão integral, cardápio obrigatório dos cinco anos de guerra. Alguém urinou no corpo de Clara Petacci, gesto seguido de atos comparáveis, e mesmo ainda mais aviltantes, por parte de pessoas das quais jamais se teriam imaginado tendências sádicas.” (MILZÃ, 2013. p.227) REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL instaurada. Paradoxalmente a manifestaçãoinsana, que para os historiadores 72O cadáver 349 desejo de transformação. Isso porque a encenação moderna de uma morte infame não se funda sobre as mesmas relações de poder que fundavam Roma antiga. A falsa equivalência entre a profanação dos corpos dentro do sistema fascista moderno e a violência como expressão do poder político de Roma antiga, são como uma solução ilusória para as contradições entre a REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL representação abstrata da realidade fornecida pelo passado e a percepção do acontecimento atual. Não é sem motivo que a narrativa histórica suprime essa tensão. De fato os discursos de Mussolini, que seduziam a multidão, forjam um vínculo entre o Estado fascista e a glória do Império Romano produzindo assim um eixo de interpretação unívoco para importantes elementos que compõem o movimento italiano. Na verdade, o próprio nome que designa tal movimento deriva de uma arma romana, o fasciolittorio – um feixe no qual se encaixava uma machadinha que representava o poder do litor, alto magistrado de Roma. Imagem utilizada por vários movimentos sociais desde a Revolução Francesa, o fascio foi finalmente usurpado pelos fascistas tornando-se o símbolo oficial do partido. Com efeito, a analogia entre a encenação de uma morte humilhante e as atrações espetaculares da ideologia fascista incorpora intencionalmente muito da simbologia do Império, escamoteando sua violência através de um mito fundador que subjuga completamente a subjetividade e a vontade dos envolvidos. Nesse sentido, a herança imperial, reivindicada pelo fascismo, possui dimensões que incidem tanto na esfera pública quanto privada epode auxiliar a compreender o ato sádico da destruição dos cadáveres por pessoas que jamais demonstraram tais tendências. De modo objetivo, a selvageria da conduta adotada é justificada pelo ethos dos próprios antepassados romanos, de onde emanamas virtudes do povo italianoincorporadas pela massa. O legado 350 deixado por esses “pais da pátria” simboliza o domínio espacial e enaltece a unidade indivisa daqueles que compartilham um passado comum. Contudo, se por um lado a qualidade identitária moderna garantida pela antiguidade ancestral representa a singularidade de um círculo seleto, o sistema de crenças responsável por manter viva a condição natural que os diferencia dos demais não equivale às relações de poder que caracterizavam a hierarquia de Roma imperial. Desse modo, a afirmação de um traço genuinamente nacional uniforme e uma identidade nacional unitária que contradizem a referência antiga admitida como representação original da realidade. É exatamente a diferença de classes, fundamentada por um corpo jurídico definido conforme antigo direito romano, que tornava a violência das manifestações políticasdo Império diferente da violência fascista. As variadas e insistentes referências ao antigo império favoreceram formações imaginárias que, assimiladas pelo senso comum, ressignificaram os acontecimentos cotidianos, condicionando a percepção da realidade aos valores impostos artificialmente por um poder autoritário e usurpador. Para Pasolini essa é a manifestação de um povo que aderiu completamente ao modelo centralizador do sistema. “O verdadeiro fascismo, diz ele, é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as linguagens, os corpos do povo.” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.29). REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL é, principalmente, fruto da tentativa concomitante de forjar uma classe social 2. PALAVRAS DE ORDEM Assim como as manifestações políticas, a crítica literária pode se desenvolver em diferentes direções à medida em que alterna sua percepção da realidade; que recusa ou sustenta uma noção de poder ou coloca em prática atitudes, métodos e estilos pessoais diversificados. O que interessa a essa comunicação não é inventariar os parâmetros que conferem particularidade à cada uma das abordagens, mas compreender as exigências que o processo de sistematização do conhecimento impõe a todas elas, provocando por fim a reprodução repetitiva de um único modelo de organização. Convém dizer que, 351 usualmente tais exigências impostas ao conhecimento não são matéria de discussão quando o escopo da crítica literária é admitido como um princípio evidente. No entanto, se ao invés disso, o discurso da crítica consideraas tensões e ambivalências que se colocam no momento atual, como é o caso do tema central eleito para o presente encontro, torna-se necessário enxergar o caráter REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL arbitrário dessa determinação. É a percepção dessa arbitrariedade que permite conceber a existência de uma crítica literária que extrapola os limites dicotômicos traçados pela tradiçãoanalítica, tal como a crítica desenvolvida pela Escola de Genebra. Com efeito, para os autores da Escola, “mais que a literatura, a crítica literária não é uma instituição estável e permanente”. (STAROBINSKI, 2013, p.122) Conferir à ela uma definição unívoca não significa apenas desprezar os diferentes momentos de transformação que constituem sua história, mas principalmente negar a ambivalência do seu ponto de partida. Este é, aliás, o primeiro fundamento do método analítico; traçar a separação clara entre a crítica e a criação literária através do limite e da organização impostos pelo conhecimento racional. De acordo com esse limite e em função da finalidade assumida – sociológica, materialista, psicológica, existencialista... - a crítica é convocada a se desenvolver como um saber especializado completamente distinto da literatura. A adesão ao método é, sem dúvida nenhuma, uma condição necessáriapara assegurarà crítica literária omesmo prestígio de qualqueroutra disciplina cientifica. Afinal, como aponta Guerroult, o que permite atestar com certeza a veracidade de um conhecimento é o sistema assegurado pela ordem necessária do método cientifico, dotado de um rigor formal que a música ou a literatura não contém. (GUEROULT, 1968, p.3) 352 Isto posto, as exigências racionalistas acabam por estabelecer uma relação dicotômica entre a crítica literária e seu próprio objeto, visto que a expressão literária, enquanto criação artística, não é comprometida com o rigor formal do método como bem convém ao conhecimento verdadeiro. Nesse sentido, é importante perceber que se por um lado, esse comprometimento tenta fixar um terreno seguro para a crítica literária alicerçar e garantir solidamente seu saber, por outro lado exclui desse terreno seu próprio objeto. determina somente a perspectiva conveniente para a crítica literária, mas consolida uma espécie de convenção intelectual que pauta os modos de apreensão e expressão de todas as esferas que compõem a realidade moderna, inclusive nossa maneira de atuação política. De acordo com Franklin Leopoldo e Silva, os critérios científicos responsáveis por legitimar a verdade não se impuseram apenas sobre a esfera acadêmica, mas se afirmaram sobre todos os domínios do conhecimento. Essa ideia significa que a ciência é una apesar da diversidade de seus objetos. Significa também que desde os fundamentos até os últimos resultados que deles possam derivar, existe uma unidade que é principalmente proveniente da unidade do espírito que investiga os diversos conteúdos. Em última instância o limite se sustenta sobre o modelo de conhecimento que organiza racionalmente a estrutura formal para a validação do saber.(SILVA, 2005, p. 28) REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL Convém considerar, ainda, que esta espécie de enquadramento separatistanão Por fim, como afirma Starobinsky, a crítica literária consegue a permissão de constituir-se como matéria universitária na exata medida em que assume a estrutura formal do discurso lógico e ordenado, fundamentado de acordo com as exigências do método racionalista. (STAROBINSKI, 2013, p.122) O essencial aqui é compreender que, como dissemos acima, o cientificismo dessa crítica está longe de alcançara complexidade da própria literatura, uma vez que o conhecimento verdadeiro implica não somente uma forma precisa de apreensão, mas também uma concepção específica do próprio objeto a ser apreendido. Sob esse aspecto, a garantia da veracidade do conhecimento é dada 353 também pelo caráter inteligível do objeto, ou seja, é assegurada quando o conhecimento derivade um objeto que se dá a conhecer rigorosamente pelo intelecto, sem qualquer relação com as sensações que porventura possa causar no sujeito. Desse modo, para garantir a legitimidade do saber produzido, a crítica precisa validar a obraliterária como um objeto inteligível, isto é, excluir REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL dela tudo aquilo que não se adéqua à noção objetiva de verdade dada pelos pressupostos da ciência. Essa exclusão dá conta da dificuldade que a postura assumida pelos autores da Escola colocam àqueles que desejam compreendê-los a partir do ponto de vista cientificista. Sob o abrigo da ciência, os críticos literários, ou ainda, os teóricos da literatura costumam definir a Escola de Genebracomo um grupo de autores que se contrapõem aos espaços do conhecimento organizados pela tradição, mais especificamente, comoum grupo de oposição aos limites utilizados para demarcar tais espaços. Por esse viés, a identidade da Escola de Genebra é sintetizada através de uma noção nuclear que descreve o modus operandi do grupo. Tal noção não é outra senão a característica de divergir da abordagem instituída historicamente pela convenção.As definições fornecidas por Antoine Compagnon, em sua obra O demônio da teoria, e por Sarah Lawall, em uma produção dedicada exclusivamente à Escola de Genebra, podem ser consideradas exemplos desse tipo de sintetização. Para Compagnon a crítica da consciência, como também é conhecida a Escola de Genebra, nada mais é que a demanda por um retorno à obra literária, entendida por ele como o retorno à figura do autor enquanto projeto criador ou pensamento indeterminado. No livro citado, Compagnon atrela essa atitude à exclusão de todo e qualquer elemento extra-literário em proveito de uma leitura imanente do texto. Assim, de acordo com a definição proposta, o 354 contexto histórico ou qualquer fato objetivo é desprezado pela Escola de Genebra como critério de interpretação. Para oferecer uma demonstração objetiva dessa concepção, Compagnon se vale da polêmica travada entre Barthes e Picard nos anos sessenta. Nessa ocasião, “Barthes publicou Sur Racine (1963); Picard atacou-o em Nouvelle Critique ou Nouvelle Imposture (1965); Barthes replicou em Crítica e Verdade (1966)”. (COMPAGNON, 2010, p.65) Os detalhes deste embate não interessam diretamente à nossa comunicação, mas duas coisas merecem ser destacadas nessa polariação. A primeira diz respeito à adoção da postura Barthesiana como um modelo ilustrativo da Escola de Genebra, sem deixar de apontar sua radicalidade, bem como a falta de reconhecimento deste autor diante da sensatez de determinados argumentos positivistas apresentados por Picard. Sarah Lawall, por sua vez, também assume como base a posição convencional da crítica e atrela a abordagem empática da Escola ao "interesse puramente literário do grupo”. Segundo a autora é precisamente por não considerar a literatura como parte de um grande quadro de referência que a Escola se distingue de outras correntes críticas e assume um direcionamento próprio para sua abordagem. Se por um lado a distinsão apresantada pelos teóricos citados soa como evidente e até mesmo necessária, por outro é notório que ela não se não se origina exatamente do trabalho dos críticos, mas de uma relação comparativa entre o procedimento adotado por eles e o método avalizado pela tradição. Sob REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL própria estrutura dicotômica utilizada como forma de exposição. A segunda, à esse ponto de vista, as características da Escola são definidas não por sua produção em si e sim por aquilo que nessas produções diverge da abordagem convencional. Como consequência, a Escola de Genebra é reduzida à uma crítica de recusa, na exata medida em que sua identidade se forma através da rejeição da concepção cientificista e positivista do objeto literário, como é o modeloadmitido pela crítica consagrada.O problema é que ao assumir como referência central um modelo instituído pela convenção, a noção oferecida do objeto está, necessariamente, resignada à perspectiva engendrada por ele.Sem compreender a dimensão mais radical que a adesão a esse modelo monumental 355 traz como consequência, é impossível enxergar o sentido revolucionário que marca verdadeiramente a atuação dos críticos da Escola de Genebra. Ora, até agora, toda a possibilidade de compreensão da crítica de Genebra que vislumbramos está definitivamente subordinada ou reduzida às REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL diferenças que assume em relação à uma organização formal historicamente instituída. A fixidez desse sistema conduz, sem exceção, toda forma de percepção convencional que se tem da Escola ao conformismo repressivo de uma ordem vigente. Nesse sentido, o primeiro aspecto que cabe questionar se refere à função pragmática dessa resignação. As definições de Compagnon e Lawall parecem suficientes para evidenciar que o teor objetivo dessa obediência cega à convenção não é simplesmente uma derivação da forma cientifica do discurso, mas também da atuaçãode uma consciência assimilada ao “mundo dos fins”. Com isso queremos dizer que a “ciência tem não apenas uma finalidade contemplativa, mas se vincula ao domínio prático, aquele do mundo da vida. A prioridade do conhecimento intelectual aqui aparece não sáo para ilustrar a maior dignidade do intelecto e sua superioridade em relação à sensibilidade, mas também que tal superioridade oferece a possibilidade de ordenarmos pela razão todos os aspectos da nossa vida” (SILVA, 2005, p.81) O que parece passar desapercebido - e que consideramos essencial nesta ocasião - é que a orientação finalista assumida pela crítica literária não é uma condição inerente ao seu objeto, mas resultado da consolidação histórica de uma expectativa concreta de leitura. Uma expectativa que condiciona a percepção do sujeito em função de um único propósito: a produção de um conhecimento objetivo sobre a realidade. 356 Dessa maneira, a expectativa de leitura que assenta os pressupostos lógicos incorporados pela crítica convencional se orienta exclusivamente para compreensão intelectual do objeto investigado. Com efeito, a finalidade cientificista expressa pela crítica pode ser claramente identificada nos traços que definem as concepções convencionais da Escola de Genebra que citamos aqui. Tais concepções expressam nitidamente a finalidade cientifica da direção assumida; a defornecer uma definição unívoca do conjunto de autores que integram a Escola. Dessa maneira, por mais que essa intenção expresse consciência, a tentativa de alcançar uma determinação unívoca do objeto está longe de ser uma ação desinteressada. Na prática, está presente aí uma noção implícita de verdade que se mantém por meio da fixação de um limite conservador. Esse limite designa precisamente o contornoobjetivo que convém à representação formal da realidadee serve tanto para estabelecer seu princípio de unidade, quanto para guiar a conduta do sujeito no interior da sociedade em que está inserido. Sob esse aspecto, o sentido de contorno estabelece um vínculo evidente entre a dominação política dos corpos e a capacidade de percepção da realidade. Incicialmente o contorno tem uma dupla função para o conhecimento, atuando enquanto estrutura para a representação ou expressão regulada da realidade e também como instrumento de correção intelectual das ilusões visuais, de modo a garantir que o visível possa ser aproveitado e trabalhado pelo intelecto. REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL essencialmente um desejo de conhecer o funcionamento da crítica da Através do contorno, portanto, a percepção é purificada ao extremo submetendo-se aos desígnios das operações intelectuais, fazendo com que no fim das contas o olho se torne escravo do pensamento. (CHAUÍ, 1995, p.31) Com isso uma parte importante do corpo é separada do mundo dos sentidos, fazendo com que o sujeito moderno perca a capacidade de acessar a realidade unicamente através da visão. Por este motivo, resta a ele somente a condição de enxergar os resultados oferecidos por um sistema causal invisível. Assim como a existência dos sujeitos dentro de um Estado autoritário e dominador, toda a possibilidade de percepção da verdade se encolhe, confinada aum espaço onde 357 a existênciaé mutilada. Como descreve o poeta Paul Celan, “tu te tornas mais franzino, irreconhecível, fino!”73 (CELAN, 2016, p.133) A imagem do sujeito deformado (ou da desfiguração do cadáver do Duce), exposta pelo poeta alemão, resgata um dos sentidos originais da palavra REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL contornar. Termo de origem latina que se constitui pelo prefixo con e o verbo tornar (também do latim, torno). Coné uma partícula generalizante que contém a ideia de “fermerles nuances atendues”; no sentido de confinar em um espaço coeso a energia latente de um acontecimento em devir. Da violência que isola esse acontecimento da realidade, os romanos conservaram o sentido de enclausurar; encarcerar. Neste caso, o prefixo indica a ação de bloquear exteriormente a porta. (ERNOUT; MEILLET, 1951, p.225) O termo torno, por sua vez, possui uma dupla acepção. A primeira delas, mais moderna, tem o sentido de conferir uma forma particular à determinada matéria bruta. A segunda, remonta a um período mais antigo onde se localiza a forma primitiva do verbo: torqueo. Neste caso, o ato de conferir forma a qualquer coisa é inerente à violência infligida sobre a matéria. Ou seja, o sentido mais antigo está relacionado à uma forma de poder atuante, expressa literalmente através da seguinte definição fornecida por Ernout e Meillet: torqueō, curvar, torcer; em particular torcer os membros, torturar, atormentar - sentido físico e moral. (ERNOUT; MEILLET, 1951, p.1229) É preciso então considerar que a concepção racionalista da verdade e, consequentemente, do conhecimento não é um processo isolado e autônomo, mas mistura, de maneira inextricável, aspectos epistemológicos, políticos, estéticos e até mesmo economicos que compõem a sociedade moderna. Neste sentido é indispensável enxergar a amplitude do domínio hegemônico que o discurso metodológico estabeleceu. 358 73 “Dünnerwirstdu, unkenntlichter, feiner” 3. A POESIA É UMA MANEIRA DE VIVER E EXISTIR Através do exercício de um poder atuante, a imposição dos valores avançou sobre outras esferas peculiares à nossa civilização, assenhorando-se, inclusive, de nossa própria existência. Adorno e Horkheimer apontam o fim totalitário ao qual se destina uma sociedade que se quer fazer totalmente esclarecida. Exemplos históricos conhecidos, como aquele expresso por nós no início do texto, atestam a desumanização que provém de uma organização completamente orientada para um fim racional e mecanicista. Em última instância, o rigor deste sistema, que impõe a substituição de uma experiência vivida por uma realidade abstrada representada, nada mais é que a violencia mecânica de um poder opressor, que exerce um controle permanente e desumanizador sobre a mente e o corpo dos indivíduos. A subordinação a este modelo único de saber conflui no processo que Habermas define como a colonização do mundo e da vida,;a conquista e o domínio da imaginação por via do triunfo da racionalidade técnica.(SILVA, 2005, p.47) O REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL científicos não se restringiu aos muros das instituições universitárias, mas alcance que essa concepção de mundo possui é ilustrado claramente pela imposição de técnicas e estruturas formais tanto no campo da crítica quando da criação artística. O pintor holandês Van Gogh, descreve tal imposição como uma norma restritiva que regula a liberdade criativa do sujeito, através da prescrição de uma ordem estabelecida racionalmente. Segundo essa ordem, a atividade criativa deve partir da demarcação inicial de um espaço isolado pela racionalidade técnica. Nas palavras do pintor: 359 Estou contente por ter ido à Academia, justamente porque pude ver fartamente os resultados do que se chama começar pelo contorno. REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL Pois é isso que fazem sistematicamente e é nisso que eles sempre me contestam: “Faça primeiro um contorno, seu contorno não está correto, não corrigirei isso se você modelar antes de ter seriamente fixado seu contorno”. Como você vê tudo se resume a isto. E você precisa ver!!! Como os resultados desse sistema são chatos, mortos e aborrecidos! Ah! Eu lhe garanto, estou contente por ter visto isso de perto. David, ou pior ainda, Pieneman em plena flor. Umas vinte vezes eu quis dizer: “Vosso contorno é um truque, etc.” Mas julguei que não valeria a pena brigar. No entanto, por menos que eu diga, eu os irrito e eles me irritam. (VAN GOGH, 2017, p. 183) Eis o ponto crucial para compreender a crítica de Genebra, como citamos anteriormente; a conexão entre linguagem e existência, visto que é a partir daí que se estabelece o campo epistemológico (e ontológico) do sujeito moderno tão caro aos críticos da Escola. A exigência do método não diz respeito somente à maneira como o objeto literário será abordado, mas também é responsável por determinar o valor deste mesmo objeto a partir dos critérios de verdade consagrados pela tradição. O resultado desta engrenagem incessante de valorização afeta toda a organização da sociedade e resulta em um processo contínuo de objetivação da realidade, que se vale da ciência para se efetivar. A associação entre o progresso das ciências, o desenvolvimento institucional, decisões políticas e o ponto de vista dos interesses delineia não só o espaço de atuação da crítica, mas também um sistema de relações que, em última instância, condiciona a mente e o comportamento humano. Como afirma Maria das Graças de Souza, “desde Bacon, o avanço do saber, tal como é concebido na obra baconiana, é solidário do aperfeiçoamento de outros domínios da vida, como o institucional, o político e o domínio que anacronicamente poderíamos chamar de cultural.” (SOUZÃ, 2001, p.22) Nesse sentido, para evitar qualquer mal-entendido, é necessário observar que a assimilação de diferentes esferas da vida através do progresso das ciências, tal 360 como é formulado no séc. XVI, marca a reviravolta no percurso do pensamento europeu, mas não se guiava pela hegemonia de um único modelo de saber. Pelo contrário, o saberda época acolhia e colocava em um mesmo plano formas de compreender a realidade que hoje são consideradas incompatíveis, fazendo deste momento um espaço de conveniência onde coexistiram, mesmo que por um breve momento, diferentes formas de organizar da realidade. Bem como Assim concebida a ciência dessa época aparece dotada de uma estrutura frágil; ela não seria mais que o lugar liberal de um afrontamento entra a fidelidade aos antigos, o gosto pelo maravilhoso e uma atenção já despertada para essa soberana racionalidade na qual nos reconhecemos (...) De fato, não é de uma insuficiência de estrutura que sobre o saber do séc. XVI. Vimos, ao contrário, o quão meticulosa são as configurações que definem seu espaço. É esse rigor que impõe a relação com a magia e a erudição – não conteúdos aceitos, mas formas requeridas. (FOUCAULT, 1999, p.44) Não é por acaso, que as tentativas de compreender a Escola de Genebra empreendidas pela visão crítica convencional se mostraram incapazes de alcançar a força vital e revolucionária desta forma de interpretação. Tais expectativas de leitura fazem do conhecimento do objeto literário uma grande forma de abstração ao concebê-lo ordenadamente segundo as “leis do contorno”. Efetivamente não é outra coisa senão o próprio contorno que assegura a certeza do fundamento, afinal é pela força de suas linhas que REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL afirma Foucault, Descartes pôde traçar a forma definitiva da subjetividade e, consequentemente, fazer desta ideia o ponto fixo e seguro que sustenta toda a ciência moderna. Para a Escola de Genebra trata-se, de fato, de uma investida equivocada, que expressa a ambição de traduzir a literatura e a própria crítica, por meio de uma referência exata, uma representação que atue como um equivalente abstrato da obra. Este equívoco, por sua vez, denota quase nada acerca do próprio objeto, mas muito sobre a ânsia moderna por sistematização que ainda marca nossa situação atual. Nesse sentido, o que podemos observar é a expressão de uma busca desesperada por segrurança, que em nada contribui 361 para alcançar a camada mais profunda do conhecimento, onde é preciso chegar para acessar a realidade do texto de modo a livrar a própria crítica do estigma que lhe foi inflingido pela convenção. Neste caso, a crítica literária enquanto forma reconhecida de saber, só é possível na medida em que seu objeto respeita os limites impostos pela razão.Na realidade, como vimos, este limite é um efeito REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL assegurado pelo modelo racional, que submete a produção literária aos critérios e formulações utilizados para validar o conhecimento cientifico. Sob esse aspecto as palavras de Van Gogh podem nos auxiliar a compreender a potência transformadora da Escola de Genebra, pois elas trazem à tona um estado de espírito considerado comum ao artista, poeta e crítico; a irritação que as normas da academia causam no sujeito criador. Para a Escola de Genebra, especificamente para Marcel Raymond74, essa exaltação é compreendida como uma espécie de melancolia do sujeito que, ao ignorar a ordem precisa das razões, insiste em perceber a realidade alheia às regras instituídas por um sistema opressor. Vale lembrar que o conhecimento sistemático obedece a uma ordem incontestável, que garante a fixação e demonstração da verdade segundo princípios lógicos universais. Princípios que, para o artista, o poeta e o cineasta são critérios determinantes insuficientes para dar conta da realidade percebida. Conforme afirma Raymond: Em tudo isso que nos contorna haveria aberturas endereçadas ao infinito. Baudelaire, depois Poe, definem o instinto poético como a melancolia irritada (mélancolieirritée) da qual o desejo se apossa, aqui e agora, de um paraíso revelado. Mas eu vou supor um poeta que se recusa. Um poeta que diz não. Essa espécie não é rara. A primeira matéria que ele trabalha á a linguagem. Essa linguagem não é outra que a linguagem da instituição, da convenção composta por signos arbitrários que utiliza a ciência em um mundo que não cessa de se objetivar. (RAYMOND, 1964, p.8) 362 Por conta da amplitude da produção crítica dos autores que compõem a Escola achamos por bem limitar nossa abordagem ao fundador reconhecido da Escola de Genebra: Marcel Raymond. 74 Para Raymond, a poesia se subtrai da escala do sentido certeiro, quebra a rede do hábito e desfaz a ilusão de objetividade que o homem moderno se esforça para garantir. Esta objetividade é forjada através da linguagem da instituição, composta por signos arbitrários, cujo sentido exato se orienta pelo toma partido da poesia. Esse partido está inscrito exatamente no ato “de não se deter”, de não se deixar limitar por uma organização orientada para um fim que não é o da experiência poética, mas o do desenvolvimento da ciência. Para ele, ainda que o crítico ou o poeta se utilizem da linguagem da convenção, o simples fato de trabalhar com a linguagem é um fator que proporciona a possibilidade de vivenciar um tipo de experiência que não está inscrito nos limites da sistematização. Para compreender a relação entre essa possibilidade e a resistência ao poder político autoritário é essencial evidenciar que, antes de qualquer coisa, o fundamento da ciência é concebido metodicamente através de uma atitude específica do sujeito moderno: a dúvida. Esta formulação radical modifica completamente a relação entre o sujeito e o mundo, pois dentre outras coisas, a hesitação traça a divisão entre o homem e o animal, transforma a imaginação REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL fim determinado pela razão. Nesse sentido, Raymond declara que sua crítica em memória voluntária, a atenção espontânea em reflexo, o instinto em conhecimento racional. (FOUCAULT, 1999, p.85) Esta linha imaginária traçada artificialmente, tal como os meridianos e paralelos geográficos, decompõe a realidade sensível transformando-a em grandezas matemáticas. À maneira de uma fronteira política, que determina o espaço através do alcance das leis dos homens sobre um pedaço determinado de terra, o meridiano representa o ponto fixo de Arquimedes alcançado com sucesso por Descartes. Uma linha imaginária que posiciona numa mesma reta pontos alinhados no espaço; sob os quais se assentou a alavanca que deslocou os eixos do mundo antigo e 363 configurou a modernidade em espaços geométricos dos quais ainda não nos livramos. Para Raymond a atividade crítica é contestadora tanto como a pintura ou REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL a poesia e consiste exatamente em abalar a certeza ilusória de toda ordem opressora. Como descreve mais uma vez Van Gogh, “O que é desenhar? Como o conseguimos? É a ação de abrir-se um caminho através de um muro de ferro invisível, que parece encontrar-se entre o que sentimos e o que podemos.” (VAN GOGH, 2017, p 183) De fato, a fundação de tal Escola ocorre no exato momento em que Raymond “constata a discórdia existente entre os limites impostos pela razão e as exigências do espírito”. (RAYMOND, 1997, p.10) E é por causa desse evento fundador que a abordagem da crítica tradicional nunca vai conseguir alcançar a realidade original da Escola de Genebra. Afinal seu nascimento é acima de tudo uma perturbação da ordem instituída e o discurso hegemônico da tradição é a manutenção e imposição dessa mesma ordem. A energia revolucionária da crítica de Genebra faz parte justamente dos excluídos da noção de verdade vigente. Parece impossível não perceber aqui a força política de seu modo de atuação. Para apreender essa força revolucionária é necessário primeiramente “libertar a alma”. (RÃYMOND, 1997, p.14) É somente através dessa libertação que o sujeito será capaz de imaginar uma outra forma de conceber a atividade crítica e sua própria existência. Tal libertação é acima de tudo a recuperação da capacidade de imaginar uma outra ordem para a realidade. Uma ordem que não se adéque aos pressupostos da razão, que fuja de todo sistema opressor. Uma maneira de não conceber a emancipação (inclusive política) segundo um 364 modelo único de verdade, poder e expressão. Deste modo podemos dizer que a crítica exercida pela Escola de Genebra é acima de tudo revolucionária como a própria vocação poética e somente a partir dessa vocação é possível compreendê-la. Por fim, numa época em que se faz questão de validar uma única ordem possível, em que a liberdade de tal vocação é constantemente contrariada, a atuação crítica da Escola assume o aspecto de uma reivindicação política. embuste do governo de Vichy, nos limites da necessária prudência, não havia um instante em que a posição de Raymond denotava resignação ou submissão; “nós tomávamos essas lições como um momento de resistência fundamental”. (STAROBINSKI, 2013, p.310) Talvez algo que também possa nos auxiliar a responder aos eventos de nossa própria realidade atual. REFERÊNCIAS CELAN, P. A poesia hermética de Paul Celan. Brasília: Editora Universidade de Brasilia, 2016. 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