UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLÁSSICOS
O CLÍMAX NAS ODES DE HORÁCIO:
UMA ANÁLISE DINÂMICA
Pedro Braga Falcão
DOUTORAMENTO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
LITERATURA LATINA
2011
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLÁSSICOS
O CLÍMAX NAS ODES DE HORÁCIO:
UMA ANÁLISE DINÂMICA
Pedro Braga Falcão
Tese orientada pela Professora Doutora Maria Cristina de Castro‐Maia de Sousa Pimentel
Apoio do Programa de Bolsas de Formação Avançada da Fundação para a Ciência e Tecnologia
DOUTORAMENTO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
LITERATURA LATINA
2011
RESUMO
A presente dissertação discute o conceito de clímax nas Odes de Horácio,
definindo‐o e enquadrando‐o no âmbito de outras disciplinas, da Retórica aos Estudos
Musicais. Na Primeira Parte parte‐se de um estudo completo da palavra κλῖμαξ e do
seu equivalente latino gradatio no contexto da Retórica antiga e moderna, procurando
depois aplicar o conceito nos seus diversos sentidos (clássico, moderno e
contemporâneo) a díspares formas de expressão artística, como a tragédia grega
(Electra de Sófocles), a ópera (Elektra de Richard Strauss), o romance (Amor de
Perdição de Camilo Castelo Branco) e a música instrumental (Prélude à L’Après‐midi
d’un Faune de Claude Debussy). Feito este trabalho propedêutico, e partindo‐se de um
poema de Mallarmé (L’Après‐midi d’un Faune), faz‐se a ponte para a Segunda Parte,
sobre o fenómeno poético, centrado nas odes horacianas. São assim analisados
diversos carmina sob este prisma específico, procurando investigar qual o clímax(ces)
de uma determinada composição, e catalogando‐o(s) segundo a sua natureza. Para o
fazer, ensaia‐se uma análise dinâmica da poesia, centrada no estudo e na aplicação de
termos tais como o de crescendo e diminuendo, forte e piano, fundamentais para
entender e estudar o desenho de uma κλῖμαξ poética, explorando de igual forma
conceitos também importantes para um estudo deste carácter, tais como o de
cronologia e o de agógica. O estudo pretende suprir a falta de uma reflexão de fundo
sobre o clímax (no seu sentido contemporâneo) na poesia, apesar de muitos
comentadores e estudiosos da obra de Horácio o referirem bastantes vezes nos seus
textos. Definindo o termo e aplicando‐o sistematicamente, este tipo de análise
obriga‐nos a pensar na forma como os elementos de um poema podem ser
gradativamente dispostos até um ponto culminante, e a reflectir igualmente sobre os
recursos poéticos usados por Horácio para o lograr.
Palavras‐chave:
Horácio, Clímax, Dinâmica, Crescendo, Retórica, Música, Literatura.
ABSTRACT
This dissertation examines the concept of climax in Horace’s Odes, defining it in
the context of several disciplines, from Rhetoric to Music. The First Part begins with a
thorough study of the word κλῖμαξ, and its Latin equivalent gradatio, within the
framework of ancient and modern Rhetoric, then proceeding to apply it in its various
meanings (classical, modern and contemporary) to distinct forms of artistic creation,
such as Greek Tragedy (Sophocles’ Electra), Opera (Richard Strauss’ Elektra), Novel
(Camilo Castelo Branco’s Amor de Perdição) and Instrumental Music (Claude Debussy’s
Prélude à L’Après‐midi d’un Faune). This preliminary reading ends with the analysis of
Mallarmé’s poem L’Après‐midi d’un Faune that leads the way to the Second Part of the
thesis focused on the study of the poetical phenomenon, in particular Horace’s Odes.
From this specific view‐point various carmina are analyzed, in an effort to find and
categorize the climax or climaxes of individual compositions. This is achieved through a
dynamical analysis of the Odes, bringing musical terms such as crescendo, diminuendo,
forte and piano to the realm of poetry. This method allows not only to study the design
of a poetical κλῖμαξ but also to explore key concepts in a reading of this nature, such
as chronology and tempo variation. This study provides an in depth reflection on
“climax” (in its contemporary sense) in poetry, an examination that has been missing,
even though many scholars use the expression in their works on Horace’s Odes. This
dissertation defines and systematically applies the concept “climax” for the first time
to many of his compositions, paving the way for the study of how elements in a poem
can be gradually arranged towards a climax and for a reflection on the poetic devices
Horace uses to achieve it.
Keywords:
Horace, Climax, Dynamics, Crescendo, Rhetoric, Music, Literature.
AGRADECIMENTOS
Uma primeira palavra de gratidão sincera é devida à Professora Cristina
Pimentel, pessoa que desde os meus primeiros passos na vida académica me
acarinhou, motivou e ensinou com a paciência de uma mãe, e cujo zelo na orientação
e revisão desta tese não poderia ter sido maior. Todas as palavras de agradecimento
são poucas para alguém a quem tanto devo e que tanto admiro, pela sua inteligência,
coragem, fé, força e amor incondicional à vida. Obrigado.
Devo também agradecer a todos quantos me guiaram ao longo desta
dissertação; ao Músico, Compositor, Mestre e amigo Eurico Carrapatoso, por ter sido
meu professor e por me ter dado a inspiração para o tema desta dissertação, e
igualmente pela paciência com que reviu a parte musical nela inclusa; ao meu
Professor Rui Fabião, pelo carinho e cuidado que colocou na revisão da minha
tradução de Mallarmé; ao Professor Carlo Santini, por me ter dado a conhecer a fértil
história da palavra “clímax”, ainda no contexto da minha dissertação de mestrado; ao
professor Frederico Lourenço pela sua preciosa ajuda e iluminadoras palavras em
relação ao fenómeno poético clássico; ao Professor Pedro Serra, por me ter ensinado o
gosto por Homero e pela tragédia grega, e igualmente pela alegria com que sempre
me fala; ao Professor Peter Stilwell, Ex‐Director da Faculdade de Teologia da
Universidade Católica Portuguesa e à Capela do Centro Comercial das Amoreiras, pela
ajuda financeira que me concederam no último ano de escrita da tese.
À minha mãe Ana Bela, ao meu pai Laurénio, e ao vindouro filho do meu irmão
Saul e da sua Maria João, dedico esta tese. À Juca e ao nosso bebé que aí vem,
deixo‐vos aqui um pequeno testemunho do meu amor eterno. Amo‐vos muito.
i
Índice Geral
Nota introdutória
1
PRIMEIRA PARTE
16
CAPÍTULO I ‐ A ΚΛΙΜΑΞ. HISTÓRIA DE UM TERMO
17
I. A palavra κλῖμαξ: significados mais frequentes em grego
17
A figura retórica κλῖμαξ – ocorrências em grego
21
Pseudo‐Demétrio, De elocutione
21
Pseudo‐Longino, Περὶ ὕψους
22
Pseudo‐Herodiano, De figuris
24
Hermógenes, Περὶ Ἰδεῶν λόγου
26
Alexandre, filho de Numénio, De figuris
28
Tibério, De figuris Demosthenicis
31
Siriano, In Hermogenem Περὶ Ἰδεῶν λόγου
34
Fébamo, Περὶ τῶν Σχημάτων Ῥητορικῶν
36
João Siciliota, Commentarium in Hermogenis Περὶ Ἰδεῶν λόγου
37
Eustátio, Commentarii ad Homerum
41
Rhetorica Anonyma
48
Scholia in Homerum
54
II. A gradatio latina. Dos autores clássicos à Patrística Latina
56
Época clássica: Cícero, Retórica a Herénio, Quintiliano
56
Patrística Latina
62
III. Do entendimento clássico ao contemporâneo
67
O clímax clássico: uma sistematização
67
O clímax moderno: estudo etimológico de várias línguas europeias
71
ii
CAPÍTULO II ‐ O CLÍMAX: UMA LEITURA PLURIDISCIPLINAR
94
a) Acerca do nosso entendimento de clímax
94
b) O clímax trágico. O exemplo da Electra de Sófocles.
97
c) O clímax operático. O caso da Elektra de Richard Strauss.
115
d) O clímax no romance. O caso de Amor de Perdição de Camilo Castelo
136
Branco.
e) O clímax musical. Prélude à L’Aprè‐midi d’un Faune de Claude
155
Debussy.
f) O clímax poético. Início de um estudo a partir de L’Après‐midi d’un
172
Faune de Mallarmé.
SEGUNDA PARTE
185
CAPÍTULO III ‐ CLÍMAX DE PENSAMENTO
186
a) Clímax de pensamento
188
Ode I. 31
188
Ode II. 15
197
Ode III. 6
203
Ode III. 1
211
b) Clímax sucessivo de um mesmo pensamento resultante de um
222
crescendo
Ode II. 20
222
Ode IV. 3
232
Ode II. 16
240
c) Clímax sucessivo de pensamentos diferentes
Ode IV. 11
251
251
iii
Ode III. 3
260
Ode I. 7
274
CAPÍTULO IV ‐ CLÍMAX DE SENTIMENTO
a) Clímax de sentimento nas odes de temática amorosa
284
285
Ode I. 25
285
Ode IV. 1
291
Ode IV. 10
304
Ode IV. 13
309
Ode III.9
317
b) Clímax de sentimento em odes de temática política
323
Ode III. 5
323
Ode II. 1
334
Ode IV. 2
342
CAPÍTULO V – CLÍMAX DE IRONIA E CLÍMAX COMPOSTO
a) Clímax de Ironia
354
Ode I. 27
354
Ode I. 23
362
Ode III. 15
366
Ode II. 8
371
b) Clímax composto
380
b.1) Clímax de pensamento e clímax de sentimento
380
Ode I. 35
380
Ode I. 5
394
iv
b.2) Clímax de ironia e clímax de sentimento
400
Ode I. 22
400
Ode II. 7
408
c) Outros tipos de clímax
419
c.1.) Clímax ex abrupto
419
Ode I. 4
419
c.2) Clímax ad infinitum
428
Ode I. 8
428
A PROPÓSITO DAS ODES SEM CLÍMAX: UMA SISTEMATIZAÇÃO E UMA CONCLUSÃO
435
I ‐ Sistematização
436
a) Técnicas de criação de crescendo
436
b) Técnicas de criação de diminuendo
449
c) Técnicas de criação de um clímax
451
II – A propósito das odes sem clímax: uma conclusão
456
BIBLIOGRAFIA
487
I – Bibliografia sobre Horácio
487
II – Bibliografia Geral
496
a) Dicionários e Enciclopédias
496
b) Fontes primárias e edições de texto
498
b.1) Edições de texto e traduções de autores antigos
498
b.2) Outras fontes primárias (de autores anteriores ao século XX)
500
c) Outras obras citadas
504
d) Edições Musicais
510
e) Discografia
511
v
Índice de autores modernos
512
Índice de autores antigos e de passos citados
518
Índice de passos citados de Horácio
523
1
Nota introdutória
O que é o clímax de um poema?
Esta simples pergunta, que serviu como ponto de partida para a presente
dissertação e servirá sempre como seu fio condutor, não surgiu no contexto de uma
aula de literatura, mas há cerca de uma dezena de anos, quando cursámos a classe de
Análise e Técnicas de Composição do compositor e pedagogo português Eurico
Carrapatoso, disciplina que faz parte do currículo da Escola de Música do
Conservatório Nacional. Nas suas aulas, em particular no terceiro e último ano de
aprendizagem, como nos debruçássemos com mais atenção sobre a música
compreendida entre o final do século XIX e a idade contemporânea, um termo ia
sendo recorrentemente pronunciado na análise das obras de compositores como
Debussy, Stravinsky, Bartok, Messiaen ou Ligeti, ou sempre que o mestre nos
propunha a execução de um qualquer trabalho prático de composição: clímax. Mas
como definir esse momento culminante para onde toda uma peça conflui, como se
constrói, como se organiza uma partitura de forma a que ela tenha um claro acumular
de tensão retórica que se desvanece num ponto determinado, intelectual ou
organicamente calculado? O mestre tinha um conjunto de ferramentas analíticas,
técnicas, composicionais e até matemáticas, definidas e articuladas, que
generosamente nos ia ensinando, sob o seu olhar atento e vigilante, embora de um
ponto de vista eminentemente prático, dado o carácter da disciplina. Partitura após
partitura, exercício após exercício, cada aluno se ia apercebendo de que aquele
momento particularmente emotivo ou intenso, aquela sensação de se sentir cada vez
mais enlevado na audição, aquele ponto determinado em que sempre sentíamos
fisicamente um inefável aperto no estômago, podia ser analisado e compreendido sob
uma perspectiva técnica, que iluminava não só a intenção retórica e composicional do
criador, como também nos ensinava a compor melhor sob esta dupla perspectiva, em
termos de estrutura e de propósito comunicativo. Mas foi quando analisámos e
discutimos o Prélude à L’Après‐midi d’un Faune, de Claude Debussy, que
2
verdadeiramente começou a germinar a semente que deu origem ao presente estudo,
pois esta peça inspirava‐se assumidamente num poema de Mallarmé, precisamente
intitulado L’Après‐midi d’un Faune. A constante referência do mestre ao facto de esta
música ter partido daquele poema, juntamente com o facto de tantas vezes, ao longo
do seu curso, nos falar em História, Literatura, Arquitectura, Pintura, Escultura, e
outras formas de arte, a propósito de um compositor ou de uma obra específica,
foi‐nos levando a ter uma leitura cada vez mais ampla do fenómeno artístico, por
inerência pluridisciplinar, num diálogo constante entre géneros musicais, artísticos e
literários tão paradoxalmente próximos e distantes. Tendo pois como cicerone um tal
professor, nobilíssimo transmontano de interesses tão latos e abrangentes, seria quase
impossível que todos nós não chegássemos rapidamente à conclusão de que seria
possível ter uma leitura mais precisa e técnica do conceito em outras formas de
expressão artística que não a música, fugindo deste modo do carácter algo vago e
inconsequente com que a expressão é muitas vezes utilizada entre nós em relação, por
exemplo, a um filme ou a uma peça de teatro. Recordamo‐nos de ler, na altura, o
poema em questão de Mallarmé, uma hermética écloga de uma musicalidade
evidente, de ter sentido que determinados versos eram de facto o clímax do poema, e
que Debussy provavelmente imitou esse movimento climáctico no percurso dinâmico
do seu Prélude, cuja estrutura fora indiscutível e matematicamente calculada para
servir os momentos de clímax do texto musical. Mas como prová‐lo? Como
demonstrá‐lo? Que ferramentas técnicas haveria ao dispor de um vate para criar um
clímax num poema? A pergunta permaneceu em suspenso, pois não era o contexto
certo para a desenvolvermos; a curiosidade, no entanto, ficou‐nos sempre gravada no
espírito.
Na nossa dissertação de mestrado procurámos aplicar já o conceito a um
poema. O ponto de partida foi o Carmen Saeculare de Horácio, em que tentámos
estudar a forma como o texto se adequava a nível numerológico, semântico e retórico,
àquele momento preciso em que, de 31 de Maio a 3 de Junho de 17 a.C., se
celebraram, em Roma, os Ludi Saeculares. No decurso da nossa investigação,
decidimos igualmente examinar a forma como também a nível matemático o texto se
organizava estruturalmente em torno do número três, referindo que, provavelmente
3
de forma inconsciente, as secções do Carmen se dividiam segundo o princípio da sectio
aurea (mais uma vez inspirados pela análise que fizéramos de Debussy), e que também
o seu ponto culminante, o seu clímax, que considerámos ser os vv. 45‐48, tinham uma
posição “áurea” do ponto de vista matemático. Para justificarmos a nossa afirmação,
tivemos que reflectir, ainda de forma algo incipiente, sobre o que seria o clímax de um
poema. Foi aliás o Professor Carlo Santini, no contexto de uma conferência que
proferiu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa sensivelmente por essa
altura, e com o qual tivemos a oportunidade de discutir o tema da nossa dissertação
de mestrado, quem primeiro nos alertou para o rico passado retórico do termo,
dando‐nos a conhecer o artigo sobre o “Klimax” no Historisches Wörterbuch der
Rhetorik (Kirby e Poster 1998, 1106‐1115), que se revelou fundamental para o primeiro
capítulo desta tese. Simultaneamente, ficámos com a noção de que nem todas as
línguas europeias tinham um entendimento similar do conceito; o italiano, por
exemplo, via‐o fundamentalmente como uma figura retórica semelhante àquilo que na
música entendemos por crescendo, não tendo quase nunca o sentido de “ponto
culminante”. Isto foi cada vez mais espicaçando a nossa curiosidade, até porque,
enquanto íamos traduzindo as odes de Horácio para o português, esforço que resultou
num anexo à nossa tese de mestrado, nas leituras que fazíamos sobre cada um dos
carmina, especialmente nos comentários de Nisbet e Hubbard (1970; 1978) e de
Nisbet e Rudd (2004), íamos encontrando amiúde o termo “clímax” usado no seu
sentido contemporâneo de “ponto culminante”.
Daqui ao tema da presente dissertação foi um curto passo. À medida que cada
vez mais mergulhávamos na tradução e na interpretação das odes de Horácio, e que
íamos reflectindo e estudando as suas composições no contexto de alguns artigos que
entretanto publicámos, mais nos íamos convencendo de que havia, em grande parte
dos seus carmina, os mesmos “momentos culminantes” de que o compositor Eurico
Carrapatoso nos falara. Esbarrávamos, porém, sempre na mesma pergunta que
formuláramos em relação a Mallarmé: como demonstrá‐lo? Pensámos que seria este o
contexto ideal, uma dissertação de doutoramento, para iniciar um estudo abrangente
sobre o que é, de facto, um clímax na poesia.
4
A razão de escolhermos um autor como Horácio tem a ver com diversos
aspectos. De um ponto de vista prático, era o poeta que melhor conhecíamos, em
virtude de o termos trabalhado longamente aquando da tradução1 não só das suas
odes, entretanto publicada (2008), mas da sua restante obra, que ultimamos neste
momento. Mas esse não seria um argumento válido se, de facto, Horácio não fosse um
dos compositores mais plurifacetados da história artística ocidental. Quando dizemos
“compositor”, pensamos não só no uso que o próprio Horácio dá ao verbo componere
no contexto da sua obra2, que associa ao processo técnico e criativo da “composição”
dos versos, como também na última frase das Actas dos Ludi Saeculares, encontrada
em 1890 na margem esquerda do Tibre: carmen composuit Quintus Horatius Flaccus.
Para além da emotiva surpresa de vermos indelevelmente inscrita na pedra a evidência
histórica e ontológica de um nome que admiramos, vivo na altura em que o cinzel o
esculpiu, a expressão carmen composuit acaba por condensar toda a técnica poética
horaciana. Dada a origem genética da sua lírica, que obrigou Horácio a forjar e a
esculpir, verso após verso, uma imitação, uma emulação, e uma “romanização” do
cânone lírico grego, muitas vezes forçando com mestria o latim a um ritmo que não
era espontaneamente seu, e isto de forma continuada e persistente, ao contrário, por
exemplo, de um Catulo, o facto é que cada ode sua resulta numa obra precisa de
composição, no sentido em que cada palavra parece ter sido pensada, calculada e
pesada em todos os domínios, desde o retórico ao musical. Não poderia, pois, ser
melhor a escolha deste autor para uma tese que procura explorar um conceito
apreendido no domínio da música, ainda para mais porque há esta evidência histórica
clara: carmen composuit Quintus Horatius Flaccus.
Isto leva‐nos a uma questão que queremos deixar bem clara: não nos interessa
aqui a polémica sobre se as odes do vate romano foram ou não interpretadas
melodicamente; a questão é insolúvel, e seria o mesmo que demonstrar, daqui a dois
milénios, perdida a melodia original, que os poemas de Jacques Brel, Leonard Cohen
ou Zeca Afonso foram concebidos para ser cantados. Os argumentos que aduzíssemos
1
As interpretações que são feitas acerca de cada carmen abordado partem quase sempre desta
primeira leitura das Odes de Horácio, pelo que encaramos a tradução em questão como uma obra
complementar à dissertação.
2
Cf. S. I.4.8, II.1.3, 63; Ep. I.1.12, II.2.91, 106; Ars 35.
5
para o demonstrar estariam condenados ao fracasso, assim como os que negassem a
teoria, pelo simples facto de ainda não ser possível viajar no tempo3. A recente posição
de Stuart Lyons (2010) é sólida e consistente: as referências intertextuais de Horácio a
termos que sugerem uma prática musical, em particular ao nível da menção de
instrumentos e de termos técnicos conotados com a teoria musical, como a expressão
modi4, conjugadas com as muitas evidências de uma prática musical constante na
época de Horácio, parecem sugerir que seria até o próprio compositor a cantar os seus
poemas no contexto, por exemplo, dos diversos symposia organizados por Mecenas,
provavelmente no Auditorio di Mecenate, descoberto em 1874. Outro argumento
parece‐nos convincente: não é plausível que o músico convidado para compor o carme
com que se finalizaram os Ludi Saeculares fosse um amador inexperiente, um curioso
sem qualquer tipo de técnica musical, especialmente se pensarmos que a cerimónia
mais importante, do ponto de vista religioso e político, do principado de Augusto
foram precisamente estes jogos. Seria o mesmo do que se, em 1685, o rei inglês James
II tivesse encomendado a um poeta inexperto, que nunca tivesse composto uma peça
de música na vida, o hino que celebrou a sua coroação, ao invés de o pedir ao mais
famoso e importante músico inglês da altura: Henry Purcell5.
Aliás, para estudiosos que negam a essência musical dos carmina horacianos,
parece ser um verdadeiro contratempo para a sua teoria a tal inscrição na pedra de
que falávamos, e são rápidos em afirmar que o Carmen Saeculare é um exemplo único
a respeito de uma execução musical, usando esse facto para provar que nenhuma das
outras odes a tiveram6. Dir‐se‐ia que teriam preferido nunca ter descoberto que
Horácio foi, de facto, um músico – talvez porque há demasiado tempo que os carmina
deste autor romano estão calados, ou silentemente reproduzidos em milhões de
páginas igualmente silenciosas, ou espalhados, esquartejados, analisados, pensados e
repensados por milénios de tácitas interpretações. Obviamente, os argumentos que
sustentam a tese “não musical” são igualmente sólidos, especialmente aqueles
3
Como é aliás a única conclusão possível, segundo ressalva Nina Mindt (2010) na sua recensão à obra de
Lyons (2010).
4
Cf. Carm. II.1.40, III.9.10, III.11.7, III.30.14, IV.6.43, IV.11.34.
5
Falamos do seu hino I was glad when they said unto me.
6
Cf., aliás, a posição ambígua de Barchiesi (2007, 148 e ss.), que tanto vai negando como afirmando
uma performance musical das Odes.
6
aduzidos por Rossi (1998, 163‐181)7, que Lyons, aliás, nunca chega a citar: a referência
aos instrumentos e à linguagem musical cumpre apenas um propósito retórico, em que
Horácio se pretende colocar ao mesmo nível musical que certamente tinha Píndaro,
Alceu, Arquíloco ou Safo, juntamente com o argumento histórico, em que avulta uma
idade alexandrina na qual a poesia deixou de ter uma face musical tão evidente. Mas
uma vez que nunca poderemos saber ao certo como foram as odes interpretadas8, se
cantadas, se lidas ou recitadas, a nossa atenção, quando usamos o termo “compositor”
e “músico” para descrever Horácio, deve ser desviada noutro sentido.
Já Heinze, num dos textos mais importantes na história da crítica horaciana,
“Die Horazische Ode” (1923), e a que recentemente Santini (2001) veio dar o devido
lugar, enfatizara uma ideia de uma importância fulcral para a nossa dissertação: a
própria mise en scéne da ode horaciana exige uma performance9. Isto dada a própria
natureza dialógica dos seus carmina, por oposição, por exemplo, à tendência
monológica da lírica moderna, como sublinha o estudioso alemão: de facto,
praticamente todas as suas composições, em mais de uma centena, exigem um
destinatário formal, que pressupõe que este esteja presente, nem que seja em termos
retóricos. Aliás, não é por acaso que, numa curtíssima entrada com apenas três breves
parágrafos, no artigo do Oxford Classical Dictionary (Hornblower e Spawforth 2003,
1295‐6) sobre a recitatio, o seu autor se consegue referir a Horácio e a passos da sua
obra por quatro vezes. Se há uma reencenação a cada vocalização/recitação da ode,
isto obriga‐nos a repensar a natureza do carmen horaciano, performativa na sua mais
radical essência. Mas que tem isto a ver com o clímax e com a escolha da lírica latina
7
Especialmente consistente é o seu argumento métrico (171 e ss.), embora possa aplicar‐se aquilo que
há pouco dissemos em relação a Jacques Brel, Leonard Cohen ou Zeca Afonso. Todos os outros
argumentos que aduz, porém, são facilmente utilizáveis para provar precisamente o contrário: que as
odes eram cantadas. Por exemplo, quando diz a propósito de III.30, que “anche se per ipotesi (assurda)
un poeta greco arcaico avesse raccolto i suoi carmi destinati alle esecuzioni occasionali, non saprei
immaginarlo a fare una dichiarazione programmatica come questa, che toglie la propria poesia
dall'effimero dell'occasione e la proietta nella perennità di una acquisizione che s'identifica con il
proprio stesso corpus poetico, con il suo liber affidato alla pagina” (170), este mesmo argumento pode
servir para justificar que todas as outras odes, excepto III.30, eram cantadas. E além disso, quando fala
em “dichiarazione programmatica”, lembramo‐nos logo de um conceito caro à Musicologia, que é
precisamente o de “música programática”.
8
Como aliás resumidamente admite o artigo de Guido Milanese na Enciclopedia Oraziana (Mariotti
1996‐1998, II, 921‐925), que Lyons cita mas que erradamente atribui ao primeiro volume da
enciclopédia (quer na nota de rodapé (3, 10n), quer na bibliografia).
9
Ou como resume Barchiesi, a propósito do influente artigo de Heinze: “the poem is not imagined as
text and is consistently offered as ‘live’ and ‘musical’” (2007, 155).
7
como ponto de partida para a nossa tese? Porque, ao admitir que a poesia, e em
particular a lírica de Horácio, tem uma indelével componente performativa, mais
sentido faz aplicar um conceito como o de clímax a uma reflexão sobre a arquitectura
composicional de uma ode. O estudo de um clímax num carmen de Horácio não será
assim pois fundamentalmente diferente da leitura de uma partitura silenciosa de
Debussy, no tempo em que não havia gravações e a audição interior quer do
musicólogo, quer do compositor era quase imprescindível, numa época em que se
ouviria, ao longo de uma vida inteira, a Nona Sinfonia de Beethoven apenas duas ou
três vezes, e isto com sorte, dependendo do meio cultural e social em que o sujeito
vivesse. É essa “audição em silêncio”, essa análise do “monumento silenciado” que
verdadeiramente demandamos aqui, em especial procurando a razão por que, em
determinados versos de Horácio, podemos falar com propriedade no conceito de
clímax. Mas as consequências de admitir que a poesia é, na sua essência, uma arte
performativa leva‐nos, como dizíamos há pouco, a repensar o conceito de “música” e
de “compositor” quando falamos a propósito de Horácio.
Isto porque, como teremos oportunidade de argumentar, e na nossa
perspectiva, a questão não é saber se havia uma melodia associada às odes de Horácio
– se alguma vez existiu, estará irremediavelmente perdida; o verdadeiro objecto de
estudo é saber ao certo o que se entende por “musicalidade” em relação à poesia em
geral, e a Horácio em particular. Aqui, como veremos, todos nós tendemos a
considerar a música apenas como ritmo e melodia, deixando de parte um conceito
fundamental, que poesia e música partilham indiscutivelmente: dinâmica. Daí que o
subtítulo desta tese seja precisamente este: “uma análise dinâmica”. E em que
consiste uma análise dinâmica? Esta pergunta irá sendo respondida ao longo da nossa
dissertação. Fundamentalmente, trata‐se de encontrar os momentos de crescendo e
de diminuendo de um poema, se determinado verso é forte ou più forte, piano ou più
piano, e de que ferramentas dispõe um poeta para o lograr, porque para encontrar o
clímax de um poema será obrigatório uma análise a este nível, como aliás toda a
Primeira Parte desta tese procurará demonstrar. Mas não é só por este motivo que
decidimos atribuir este subtítulo: jogamos também com a ambiguidade que pode
existir na expressão “análise dinâmica”, que, num sentido não musical, implica que o
8
estudo, ele próprio, procurará ser dinâmico, ou seja, manter‐se em permanente
diálogo entre as diversas áreas do saber e da arte, como aliás fica patente nesta nota
introdutória. E esta é uma razão mais para escolhermos um autor como Horácio: num
estudo que procura chegar a conclusões abrangentes sobre o fenómeno artístico em
geral, e poético em particular, este autor apresenta‐nos precisamente uma variedade
impressionante, talvez como nenhum outro clássico10 ou mesmo moderno, quer em
termos formais, quer em termos temáticos. De facto, quantos poetas há que numa
mesma obra explorem mais de uma dezena de sistemas métricos diferentes, em
composições de extensão sempre distinta? Quantos poetas há que numa mesma obra
explorem temas tão diversos como a própria poesia e o poeta, o seu ofício e o seu
poder, a natureza humana, o imperativo da simplicidade, da aurea mediocritas e do
carpe diem (expressões que aliás cunhou), a morte, a fortuna, o amor, visto na
primeira e na terceira pessoas, o καιρός político, o destino da sua cidade e do seu
soberano, os deuses, o vinho, o banquete, a mitologia, os encantos do campo, a
filosofia, enfim, todos estes temas que fazem de cada ode, considerada
individualmente, um ente próprio, um monumento variado não só em si mesmo, como
no contexto dos outros carmina. Horácio é, de facto, um excelente ponto de partida
para quem procura uma leitura o mais universal possível do fenómeno poético, até
pela extraordinária fortuna que conheceu ao longos dos séculos, sendo uma presença
constante em todo o espaço literário europeu, como demonstram as mais de
seiscentas páginas que a Enciclopedia Oraziana dedica ao assunto (no seu terceiro
volume), estudando a sua fortuna desde a antiguidade até aos dias de hoje, de
Portugal11 à Rússia.
Postos estes breves parágrafos introdutórios, pois a verdadeira introdução ao
nosso estudo será, como veremos, o capítulo que se segue, devemos apenas tecer
10
Também dado ao facto de poucos terem uma obra tão bem conservada, com problemas textuais
bastante limitados quando comparados com outras obras (como, por exemplo, a questão das
interpolações); sobre o tema, cf. a secção “Tradizione manoscrita” da Enciclopedia Oraziana (Mariotti
1996‐1998, I, 319‐354).
11
É aliás uma pena que o artigo sobre Portugal, da autoria de José Pina Martins (Mariotti 1996‐1998, II,
586‐587), seja tão resumido, quando comparado com outros países, dando a impressão que a Sérvia ou
a Eslovénia têm uma tradição horaciana mais forte do que a nossa. Desconhecemos de todo a razão
para o facto, embora desconfiemos de que a justificação não deve ser imputável ao douto filólogo
português.
9
algumas considerações sobre a organização da presente dissertação, sobre o seu
método e critério bibliográficos e igualmente sobre o estado da questão.
Comecemos pela estrutura. Esta é composta por uma Primeira Parte, que se
divide em dois capítulos. No Capítulo I, procurar‐se‐á estudar a etimologia da palavra
clímax, partindo da leitura de todos os passos em que os autores gregos coligidos no
TLG utilizaram a expressão ou um dos seus compostos, para depois analisar, um a um,
os passos em que a palavra tem um sentido retórico, que é aquele que nos interessa.
De seguida, estudaremos igualmente a gradatio latina no contexto clássico e no da
patrística, uma vez que, na escola retórica, esta foi a tradução em latim para a figura
retórica conhecida como κλῖμαξ. Estudada exaustivamente a “face clássica” do
conceito, procuraremos saber, num segundo momento, porque é que a expressão tem
um significado tão distinto daquele que tinha na Antiguidade, investigando as razões
que estão por trás de, hoje em dia, em português, em espanhol, em inglês ou em
alemão, a palavra clímax ser quase exclusivamente um sinónimo de “ponto
culminante”, e de em italiano ser um sinónimo quase sempre de “crescendo”. Isto
obrigar‐nos‐á a estudar, dentro de cada uma das línguas europeias (português,
espanhol, francês, italiano, francês, inglês e alemão)12 a evolução etimológica que a
palavra sofreu ao longo dos tempos, o que nos levará a um entendimento cada vez
mais lato do conceito, ao estabelecer as suas três fases etimológicas: a de figura
retórica clássica (figura de repetição de palavras), a de figura retórica moderna
(crescendo), e a de conceito contemporâneo (ponto culminante). Será pois baseados
nestes três entendimentos, que se completam e entrecruzam, como veremos, que nos
abalançaremos ao Capítulo II, em que procuramos, depois de dar o nosso
entendimento claro do conceito e das linhas de análise possíveis, aplicá‐lo a diversas
formas de expressão artística; o critério de selecção de cada uma das obras será
discutido no momento em que as formos introduzindo. Assim, começaremos pela
análise da tragédia Electra de Sófocles (clímax trágico), e daí passaremos a uma leitura
da ópera Elektra de Richard Strauss, com libretto de Hugo von Hofmannstahl (clímax
12
O critério de selecção destas línguas passa pelo simples facto de infelizmente não estarmos
habilitados para ler outras (como o neerlandês, o russo ou o húngaro, por exemplo), embora possamos
dizer que estas são as mais importantes não só do ponto de vista europeu, como também dentro da
própria escola retórica moderna.
10
operático). Depois, será a vez de analisarmos o clímax no romance, apresentando, a
esse respeito, uma reflexão acerca de Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco.
Será então que passaremos à análise do Prélude à L’Après‐midi d’un Faune, de Claude
Debussy (clímax musical), peça que esteve, como já foi dito, na origem da presente
dissertação, assim como, numa última alínea deste capítulo, do poema L’Après‐midi
d’un Faune de Stéphane Mallarmé, que servirá de ponte para a Segunda Parte da
dissertação, em que nos abalançamos ao estudo do fenómeno poético, a partir das
odes de Horácio propriamente ditas. Naturalmente, todas as leituras feitas neste
Capítulo II serão breves, e igualmente condicionadas exclusivamente pelo tema do
clímax, sempre na perspectiva de nos munirem das ferramentas iniciais que nos
permitam já um certo desembaraço hermenêutico quando passarmos ao estudo do
poeta romano.
A Segunda Parte terá três momentos distintos, que se prendem naturalmente
com a discussão encetada na Primeira Parte. Será pois dividida de acordo com os três
tipos principais de clímax propostos: o clímax de pensamento (Capítulo III), o clímax de
sentimento (Capítulo IV) e o clímax de ironia (Capítulo V). Neste quinto capítulo
analisaremos igualmente odes compostas pelo cruzar destes três tipos distintos de
clímax, e estudaremos dois outros tipos (clímax ex abrupto e ad infinitum). Serão, no
total, quase trinta odes vistas sob a perspectiva do clímax, cuja selecção passou por um
trabalho propedêutico de escolha daquelas que, no nosso entender, eram mais
exemplificativas de um determinado processo composicional. O último capítulo
conterá naturalmente uma sistematização fundamental, estruturada em alíneas,
acerca de todas as ferramentas que Horácio utilizou para criar momentos de clímax
nas suas odes, algo que passa, como será compreensível logo a partir do primeiro
capítulo, pelo elencar dos recursos técnicos ao dispor de um poeta para organizar
gradativamente os seus carmina. Esta sistematização tem como ponto de partida, por
uma questão de método e de rigor científicos, uma tentativa de estudar o porquê de
algumas odes de Horácio não terem clímax, algo que nos dará ensejo de concluir a
nossa dissertação, reflectindo sobre qual a função do clímax, a sua identidade,
apresentando aqueles que julgamos ser os principais contributos da nossa tese, e
sublinhando aquelas que foram as linhas de força fundamentais da nossa dissertação.
11
Uma outra palavra acerca da metodologia bibliográfica do presente estudo. É já
humanamente impossível, em apenas cinco anos, e suspeitamos que nem numa vida
inteira, abarcar de modo completo a extensíssima bibliografia que tem vindo a ser
produzida sobre Horácio, e isto pensando só no século passado. A esta dificuldade,
talvez pela incauta temeridade que nos deu a juventude com que iniciámos o projecto,
temos a acrescentar ainda a extensão de áreas do saber que procurámos abarcar:
Retórica, Música (que inclui ópera e música instrumental) e Estudos Literários
(disciplina em que abordaremos a tragédia grega, a novela camiliana e a poesia
simbolista francesa). Daí que tenha necessariamente de haver um critério selectivo
que será sempre altamente discutível. Em relação a Horácio, o nosso intentou ter dois
aspectos em consideração: primeiro, o critério da actualidade, pelo que procurámos
estar particularmente alerta para as últimas duas décadas de bibliografia, em que as
monografias de Nisbet e Rudd (2004) ou Fedeli e Ciccarelli (2008) se tornaram quase
imediatamente comentários essenciais; segundo, o da importância, em que avultam
obras fundamentais no âmbito dos estudos de Horácio lírico. Nomeamos apenas
alguns dos escritores que consideramos de referência, para que se tenha uma ideia de
quem estamos a falar: reportamo‐nos, por exemplo, quer aos comentários de Kiessling
e Heinze (1958), Nisbet e Hubbard (1970; 1978) e Syndikus (2001), quer aos estudos de
Pasquali (1964), Fraenkel (1957) ou Commager (1962); falamos pois daqueles autores
que têm vindo a ser ininterruptamente citados e referidos pela comunidade científica
sempre que um determinado autor aborda a lírica horaciana, dada a qualidade e a
profundidade das suas reflexões, embora este critério “de referência” esteja sempre
também aberto a discussão. Isto quanto à Segunda Parte, em que abordamos o autor
romano; em relação à Primeira, foi‐nos ainda mais difícil e árdua a tarefa de
seleccionar o que ler a propósito de cada uma das obras estudadas; aqui, e também de
certo modo em relação a Horácio, tivemos necessariamente que concentrar a nossa
atenção nos autores que estudaram ou ensaiaram uma análise dinâmica das obras em
questão, nomeadamente usando termos como “crescendo”, “diminuendo”, ou,
obviamente, a expressão “clímax”.
É delimitando assim o escopo do nosso trabalho que podemos facilitar um
pouco a difícil empresa de ir escolhendo, ode após ode, as leituras que
12
verdadeiramente nos interessam. De facto, para uma reflexão composicional acerca de
cada carmen visto isoladamente, pouco contribui uma análise da sua posição no todo,
algo que deu azo aos mais variados (e por vezes mesmo mirabolantes) estudos sobre a
estrutura das Odes13, que se preocupam quase exclusivamente com a posição da ode
no todo do livro a que pertence, e não com a composição em si14. Por outro lado,
embora sejam importantes e claramente pertinentes as recentes posições de Davis
(1991), Oliensis (1998), Lowrie (1997), Sutherland (2002) ou Johnson (2004), autores
que, tal como nós, procuram estudar de certa forma Horácio na sua adequação
retórica àquilo que para eles, regra geral, é o “leitor” da ode e não o seu “ouvinte”, a
verdade é que nos parece que o nosso ponto de partida é radicalmente diferente dos
autores citados: interessa‐nos fundamentalmente estudar as odes do ponto de vista
musical e composicional, no sentido que agora propomos: a tal “análise dinâmica” que
iremos definir ao longo da nossa dissertação. Isto naturalmente não exclui um olhar
atento sobre outros autores com outro tipo de abordagens; referimo‐nos não só aos
citados, mas também às leituras específicas de um Lyne (1980; 1995), ou de um
Cavarzere (1996). No entanto, para o trabalho que temos entre mãos, interessam‐nos
fundamentalmente os autores que, tal como Putnam (1986; 2006), olham de perto
para o texto horaciano e o comentam com a máxima atenção ao pormenor de cada
verso e palavra.
Aliás, se nos abalançámos a um tema que envolve uma tão extensa bibliografia,
não foi totalmente inconsciente esta escolha. Isto prende‐se com o último ponto que
aqui discutiremos, que tem a ver com o estado da questão. De facto, do ponto de vista
científico, a nossa posição em relação ao tema é simultaneamente facilitada e
dificultada pelo facto de sermos, julgamos nós, os primeiros a analisar o conceito de
“clímax” de uma forma exaustiva e sistemática se não na poesia, seguramente em
relação a Horácio, e igualmente os primeiros a sugerir, de forma continuamente
focada, uma análise dinâmica da poesia do autor romano15. Sublinhamos a expressão
13
O melhor estudo a este respeito parece‐nos continuar a ser o de Santirocco (1986). Para um exemplo
de leituras um pouco mais forçadas, cf. Dettmer (1983).
14
Naturalmente com a honrosa excepção de Collinge (1961).
15
Não menosprezando, no entanto, a obra de Bundy (19872), que procura aplicar exaustivamente o
conceito de “clímax” e de “crescendo” a Píndaro, poeta por quem Horácio nutre uma confessa e enorme
admiração (cf., por exemplo, a ode IV. 2); também este estudioso, tal como nós, favorece uma leitura de
13
“de forma exaustiva e sistemática” pois, como será demonstrado variadíssimas vezes
acerca de cada uma das odes horacianas, quase todos os autores consultados, em
especial os ingleses16, mas também os alemães (com a expressão sinónima
“Höhepunkt”), e em menor grau os italianos, sentiram a necessidade de empregar
várias vezes o termo “clímax”17, ou um seu equivalente, na análise da lírica
horaciana18. A forma como o fazem é, no entanto, muitas vezes ambígua e vaga19, que
assenta precisamente no facto de nunca ter havido um esforço de sistematização do
conceito aplicado à poesia, que encetamos aqui; e isto é válido não só para os autores
que abordaram as Odes de Horácio, mas também para os que consultámos a propósito
das outras obras de criação artística que aqui analisaremos. Tomemos como exemplo a
ode II.1, que teremos a oportunidade de discutir, a propósito da qual iremos citar os
seguintes passos de conceituadíssimos estudiosos da lírica horaciana; acerca dos vv.
29‐36, D. West refere que “the next colon [sc. 33‐34], including qui and quae, demands
eight words, quod mare six, and finally quae caret ora cruore nostro has only five short
words, but yet is a resounding climax” (1998, 10); Nisbet e Hubbard defendem que
cada ode como um monumento literário per se. No entanto, Bundy não tem um entendimento
semelhante ao nosso dos termos “crescendo” e “clímax”: o que é “crescendo” para este autor, para nós
traduz‐se por “degrau de um crescendo”, como veremos no nosso estudo; por outro lado, o termo
clímax está conotado com a sua expressão “foil”, envolvido fundamentalmente na estrutura da Priamel
que o seu confesso admirador Race (1982) vai seguir.
16
Repare‐se que já numa data tão recuada como 1753, há dois séculos e meio, no Volume XXIII do
famoso The Gentleman’s Magazine (revista que aliás cunhou o termo “magazine” usado neste sentido
na Europa, e que foi editada ininterruptamente durante quase dois séculos), Paul Gemsege (anagrama
para Samuel Pegge, 1704‐1796) se refere a um passo das odes (IV.3.17‐20) nos seguintes termos: “this is
abundantly more than what he had said before, and makes a proper climax. By applying the words O
mutis quoque piscibus to the Testudo or lyre, you make a meer tautology, but by separating them, you
have a beautiful climax, and at the same time the sentiment is finely connected with what follows”
(Urban 1753, 568); ainda que se possa notar o uso retórico moderno do termo e não o contemporâneo
(embora a questão não seja de todo clara), é interessante observar que também na nossa análise a esta
ode, como teremos oportunidade de estudar, os versos em questão são os primeiros degraus para o
clímax de 22‐23.
17
Também o termo “crescendo” (que será, como veremos, usado frequentemente na nossa “análise
dinâmica”) é usado bastantes vezes na análise das odes horacianas, quer em autores anglófonos (cf., por
exemplo, Fraenkel 1957, 210n, 409; Collinge 1961, 51; Commager 1962, 185; Nisbet e Hubbard 1978,
62, 124; Davis 1991, 58; Ancona 1994, 109; D. West 2002, 56, 147; Johnson 2004, 8, 49, 77, 120, 125),
quer alemães (Pöschl 1991, 49, 141, 222, 277, 326, 330; Syndikus 2001, II, 158; Breuer 2008, 168), quer
italianos (cf., por exemplo, Pasquali 1964, 428; Cavarzere 1996, 153, 154, 195; Fedeli e Ciccarelli 2008,
196, 238, 275, 441, 474, 598), quer franceses (cf., por exemplo, Maleuvre 1997, 54, 80) ou mesmo
lusófonos (cf., por exemplo, Achcar 1994, 156).
18
E nem falamos do uso de clímax numa análise da estrutura das Odes enquanto livro, onde o termo é
várias vezes referido para especificar que determinada ode é o clímax desse livro ou de um determinado
percurso (cf., por exemplo, Santirocco 1986, 24, 41, 114, 121; Putnam 1986, 215, 292, 306).
19
Sintomático disto é, por exemplo, o comentário de Nisbet e Hubbard ao semper de I.27.16: “this may
mark a climax” (1970, 315, sublinhado nosso).
14
“after Latino and the even more emotive Daunie the climax is reached at 36 with the
emphatically placed nostro” (1978, 29); John Henderson afirma que “now the poem’s
final pivot Dionaeo, with the exotic run of sonorous vowels, cues the altered rhythm of
the second half of the stanza to redoubled, revisionary, re‐writing of the dirge’s climax:
… decolauere caedes? / quae caret ora cruore nostro?” (1998, 152); Fraenkel
argumenta que “after reaching the climax of his poem Horace breaks off (37 ff), in a
manner which may be influenced by similar turns in Pindar” (1957, 239); finalmente,
Syndikus, no seu capítulo do livro Homage to Horace afirma que “at the climax of the
agitated rhetoric Horace breaks off: this tone does not fit his type of poetry” (Syndikus
1995, 27), ideia que corrobora no seu comentário às odes por duas vezes: “allerdings
scheint die Klimax unmittelbar vor dem Abberchen (v. 37) zu liegen” (Syndikus 2001, I,
341, 23n) e “die Steigerung ist hier auf ihrem Höhepunkt angekommen; überboten
kann das nicht mehr werden!” (Syndikus 2001, I, 342). Algo avulta em todos estes
passos citados: primeiro, que o termo pode ser aplicado, e é muitas vezes, à análise de
uma ode de Horácio; segundo, os seus autores concordam que, neste caso em
particular, o carmen conhece um clímax. Mas qual o seu ponto exacto? Já é um caso
bastante raro, como veremos, o facto de o localizarem sensivelmente no mesmo sítio,
entre a oitava e a nona estrofe20:
Quis non Latino sanguine pinguior
campus sepulcris impia proelia
testatur auditumque Medis
Hesperiae sonitum ruinae?
Qui gurges aut quae flumina lugubris
ignara belli? Quod mare Dauniae
non decolorauere caedes?
20
O texto utilizado será sempre o de Wickham revisto por Garrod (1912); apesar de existirem edições
mais recentes, nomeadamente a de Schackleton Bailey (1985, rev. 2001), este continua a ser entre os
estudiosos o texto mais usado (repare‐se em David West, nos seus comentários 1995‐2002 e na
tradução de Niall Rudd em 2004), até pelo que já foi dito em relação à tradição textual horaciana. Os
passos em que fugimos ao texto original encontram‐se especificados quando transcrevemos a ode em
questão. Em relação à organização em estrofes, favorecemos a disposição em quatro versos (cf. Nisbet e
Hubbard, 1970, xlvi), não presente em Wickham, mas que é seguida, por exemplo, nos comentários de
David West ou na edição de Shakleton Bailey.
15
Quae caret ora cruore nostro? (II.1.29‐36)
Onde está, porém, verdadeiramente o clímax? Uns autores são totalmente
omissos em relação à questão, outros deixam implícito que são estas duas estrofes,
outros isolam‐no nas duas últimas perguntas, outros ainda (e em maior número)
apontam o v. 36 como o clímax do poema. Mas porquê aqui e não noutro sítio? Porquê
este verso e não outro? Porque é que os versos em questão são “o clímax” da ode?
Como veremos, o v. 36 pode ser considerado o clímax do poema. Mas, para o
demonstrar, teremos de estudar todo o percurso em termos de dinâmica, agógica e
cronologia (três conceitos que aplicaremos constantemente em toda a nossa
dissertação, e que clarificaremos na altura própria) que fazem com que o verso em
questão possa ser estudado como o clímax do poema. Isto porque não basta dizer que
determinado verso ou conjunto de versos são o seu clímax: há que argumentá‐lo e
demonstrá‐lo, como nos esforçaremos por fazer nas páginas que se seguem.
Comecemos, portanto, pela própria sinuosa e iluminadora história da palavra “clímax”.
PRIMEIRA PARTE
17
I ‐ A κλῖμαξ. História de um termo
I.
A palavra κλῖμαξ: significados mais frequentes em grego
É necessário, como exercício propedêutico à nossa dissertação, traçar
claramente a história da palavra grega κλῖμαξ que, em termos morfológicos, pouco
mudou nas línguas modernas1. Só assim poderemos ab initio procurar uma definição
do termo, a partir da qual nos seja permitido passar a utilizá‐lo na análise literária que
aqui se pretende propor. Intentamos assim, neste capítulo, estudar a palavra per se
nos vários contextos em que surge na literatura grega, recorrendo para isso ao corpus
coligido no Thesaurus Linguae Graecae. A partir deste estudo, de que resultaram
extensas listas de ocorrências analisadas uma a uma, procura‐se descortinar com
exactidão a origem desta expressão no grego, seu significado e aplicação, e, num
segundo momento, saber a forma como as diferentes acepções foram incorporadas
nas línguas europeias. Isto porque se hoje em dia o termo “clímax” está
indubitavelmente conotado com um processo de composição ou de estruturação de
uma determinada obra literária, acontecimento, realidade ou acção, a verdade é que
no corpus de escritores e escritos gregos o termo κλῖμαξ tem uma acepção bem
diferente, e bem mais prosaica. Cingindo‐nos apenas a esta forma, e excluindo todos
os lemas compostos a partir desta palavra, chegámos à conclusão de que, a partir do
corpus do TLG, em mais de um milhar de ocorrências2, temos apenas menos de trinta
exemplos que apontam para o uso técnico dado pela retórica e teoria literárias3, o que
significa que o termo, em grego, é usado muito raramente neste sentido. A etimologia
da palavra não apresenta dúvidas: vem do verbo κλίνω, “inclinar” (cf. latim clinare),
na acepção de “inclinar (“fazer pender”) algo sobre outra coisa”, ideia patente na sua
1
“Clímax” em português, “climax”, em francês, “climax” em inglês, “climax” em italiano e “Klimax” em
alemão.
2
Segundo o motor de busca do Diogenes (busca morfológica da palavra κλῖμαξ), a partir do TLG. A
busca com o TLG Workplace revelou resultados idênticos.
3
Cerca de 24; temos ainda 8 exemplos do seu sinónimo, κλιμακωτὸν (σχῆμα).
18
quase omnipresente acepção de “escada”4, já desde Homero5. Desde logo,
especialmente na Historiografia grega, responsável por grande parte das ocorrências
do termo, se associa o termo a expedições militares, em que os combatentes galgam
as muralhas dos inimigos recorrendo a escadas para tomarem de assalto a cidade
inimiga6. Provavelmente, se na Grécia antiga pronunciássemos esta palavra, a primeira
imagem que se evocaria ao falante de grego, e talvez a única, seria a de uma escada.
Outros usos do termo são residuais, mas ainda assim mais frequentes do que a
acepção retórica do termo: em especial na literatura médica, onde assistimos a
autênticas sessões de tortura do paciente sobre a κλῖμαξ, como método para reduzir
ou curar luxações7. Noutros passos, a κλῖμαξ é um instrumento de tortura8, um
truque feito pelos atletas num combate9 ou um sítio10.
Temos pois que o sentido de κλῖμαξ é, em grego clássico, mais do que tudo,
literal. Naturalmente, sempre esteve presente na literatura grega a ideia de que a
escada pode ser um objecto que eleva o homem metaforicamente acima da sua
condição11. No contexto judaico e cristão, o termo κλῖμαξ tem outra acepção, pois
4
Quer no seu sentido de “escada de mão” como de “escadaria”.
Todos exemplos da Odisseia (1.330, 10.558, 11.63, 21.5); nestes passos tem o sentido de “escadaria” e
não de “escada de mão”, significado estaticamente mais recorrente em grego.
6
Como são exemplos Tucídides (e.g. 3.20.3; 4.135.1), Diodoro Sículo (e.g., 12. 56. 13; 16.75.3), Dionísio
de Halicarnasso (e.g. 5. 49. 4; 8.17.6), Arriano (e.g. An. 2.27.5, 4.2.3), Flávio Josefo (e.g. AJ. 12.338; BJ.
6.224), Apiano (e.g. Hisp. 408; Pun. 62), citando apenas os que mais usam o termo, empregue quase
exclusivamente neste sentido, na citada situação/padrão. Aliás, sintomático desta escolha semântica é o
facto de nestes autores grande parte das ocorrências ser no plural (“escadas”). Aliás no cômputo geral,
cerca de metade das ocorrências deste termo (597) encontra‐se no plural, o que parece desde logo fugir
ao conceito “singular” de “clímax”, tal como o conhecemos (muitas vezes com o artigo definido: “o
clímax”).
7
Cf. Hipócrates, De articulis, 42‐43. Cf. práticas semelhantes nas Collectiones medicae de Oribásio
(49.9‐11) e os comentários de Galeno ao De articulis de Hipócrates.
8
Cf. Ar. Ra. 618.
9
Sófocles, Tr. 521. Este uso é, no entanto, muito pouco frequente. Deste sentido derivam os verbos
διακλιμακίζω (cf. Platão Cómico, 132) e κλιμακίζω (cf. Poll. 3. 155, Aristoph. fr. 50) e o substantivo
κλιμακισμός.
10
Cf. Políbio 5.72.4, Estrabão 14.3.9.
11
Atentar, especialmente, no passo de Aristófanes, Aves, 837‐842:
Ἄγε νυν σὺ μὲν βάδιζε πρὸς τὸν ἀέρα
καὶ τοῖσι τειχίζουσι παραδιακόνει,
χάλικας παραφόρει, πηλὸν ἀποδὺς ὄργασον,
λεκάνην ἀνένεγκε, κατάπεσʹ ἀπὸ τῆς κλίμακος,
φυλακὰς κατάστησαι, τὸ πῦρ ἔγκρυπτʹ ἀεί,
κωδωνοφορῶν περίτρεχε καὶ κάθευδʹ ἐκεῖ.
5
19
designa em contextos teológicos quase sempre um elo místico entre o homem e Deus,
e encontramos inúmeras passagens que recorrentemente vão fazer a exegese do
episódio da escada de Jacob (Génesis 28:12‐15)12, a começar por autores como Fílon de
Alexandria13 ou Flávio Josefo14, e terminando nos autores da Patrística Grega, em que
esta tradição exegética está omnipresente15. Assim, a palavra κλῖμαξ, na esmagadora
maioria
das
ocorrências
em
textos
desta
natureza,
tem
um
significado
preponderantemente místico e metafórico, aventamos nós não só por influência do
episódio do Génesis, mas também para descrever o processo humano de ascensão ao
divino e à virtude por meio de uma alegórica escada. No entanto, fora do contexto da
Teologia, temos bastantes exemplos do uso dado a esta palavra bem dentro da era
cristã no seu sentido literal de escada16, o que demonstra que κλῖμαξ, no grego
posterior à época clássica, continua a designar o objecto “escada”, seja entendido
literal seja metaforicamente. Aliás, nos léxicos antigos, não há qualquer referência a
Um fragmento de Píndaro aponta também neste sentido (Maehler 162 ‐ οἱ μὲν κατωκάρα
δεσμοῖσι δέδενται / πιτνάντες θοὰν κλίμακʹ οὐρανὸν ἐς αἰπύν) e também Luciano (Cont. 3.23).
12
καὶ ἐνυπνιάσθη καὶ ἰδοὺ κλίμαξ ἐστηριγμένη ἐν τῇ γῇ ἧς ἡ κεφαλὴ ἀφικνεῖτο εἰς τὸν
οὐρανόν καὶ οἱ ἄγγελοι τοῦ θεοῦ ἀνέβαινον καὶ κατέβαινον ἐπʹ αὐτῆς (…). Também Zósimo
Alquimista (século III‐IV) descreve um episódio de descida e subida místicos, da escuridão à luz,
mediante a metáfora da escada (cf. 2.108, ed. Berthelot).
13
De entre as várias ocorrências, temos por exemplo Som. 1. 146: ἡ μὲν οὖν ἐν κόσμῳ λεγομένη
συμβολικῶς κλῖμαξ τοιαύτη ἐστί, τὴν δ' ἐν ἀνθρώποις σκοποῦντες εὑρήσομεν τὴν ψυχήν, ἧς
βάσις μὲν τὸ ὡσανεὶ γεῶδές ἐστιν, αἴσθησις, κεφαλὴ δ' ὡς ἂν τὸ οὐράνιον, ὁ καθαρώτατος
νοῦς. O autor parece ter aliás cunhado o termo οὐρανοκλῖμαξ (cf. Som. 1. 3, com lições variantes).
14
E.g.: κλίμακα γῆθεν ἔδοξεν ἐφικνουμένην τοῦ οὐρανοῦ βλέπειν καὶ δι' αὐτῆς ὄψεις
κατιούσας σεμνότερον ἢ κατὰ ἀνθρώπου φύσιν ἐχούσας, καὶ τελευταῖον ὑπὲρ αὐτῆς τὸν
θεὸν ἐναργῶς αὐτῷ φαινόμενον ὀνομαστί τε καλέσαι καὶ ποιήσασθαι τοιούτους λόγους (AJ.
1.279).
15
Cf., e.g., Orígenes, Contra Celsum, 6.21‐22; Gregório Taumaturgo, In Origenem oratio panegyrica, 8.
26); Justino, Dialogus cum Tryphone, 58.11; Gregório de Nissa, Orationes VIII de beatitudinibus,
44.1248‐9; Eusébio de Cesareia, Generalis elementaria introductio, 19.5, 19.27, 46.9; Gregório de
Nazianzo, Funebris oratio in laudem Basilii Magni Caesareae, 71.3, De theologia, 18; Atanásio,
Expositiones in Psalmos, 27.233; Basílio, Epistulae, 42. 5, Homiliae super Psalmos, 29.217; João
Crisóstomo, Expositiones in Psalmos, 55.339, In Epistulam ad Colossenses, 62.336, In Sanctum Pascha,
51.8‐9; João de Damasco, Sacra Parallela, 96.177. Salvo indicação em contrário, as edições usadas e
lições seguidas, assim como a denominação dos passos, seguem a versão apresentada no TLG.
16
Basta‐nos mudar o contexto para a Historiografia, onde autores como Procópio (séc. VI.) ou João de
Caminiates (séc. IX‐X) continuam o usar o termo predominantemente neste sentido, assim como
autores como Miguel Pselo (séc. XI), ou João Zonaras (séc. XI‐XII).
20
um sentido mais “metafórico” ou “retórico” do termo; grande parte das vezes na
definição da palavra vem apenas o seu sinónimo σκάλα17.
No decorrer da nossa investigação sobre a palavra nos seus diversos contextos,
chegámos aos lemas compostos a partir desta, procurando saber se, de alguma forma,
havia uma palavra composta a partir de κλῖμαξ que pudesse ter influenciado a leitura
posterior dos autores modernos. O termo claramente mais utilizado é κλιμακτήρ18,
“lanço de escada”19, palavra cuja fortuna se deveu, em grande parte, à sua
especialização no contexto da Astrologia, onde a expressão designa o período crítico
vivido pelo homem de degrau em degrau a partir dos múltiplos de 720. Apesar de esta
acepção estar presente nas línguas modernas21, a verdade é que o papel deste
composto de κλῖμαξ para a fortuna do termo não nos parece óbvia, embora nele
avulte a ideia de algo que vai crescendo tendo em conta um determinado momento
“crítico” (o “ano climactérico”), imagem que não deixa de estar próxima do “clímax
moderno”.
Outro composto desta palavra bastante frequente é o seu diminutivo,
κλιμάκιον, mas como seria de esperar o termo nunca surge com a especialização que
sofreu na retórica, assim como κλιμακίς, “pequena escada”. O mesmo se passa com
κλιμακόεις, κλιμακώδης e κλιμακοειδής “semelhante a escada”, o advérbio
κλιμακηδόν22, “em forma de escada” e o substantivo κλιμακοφόρος, “aquele que
17
Assim na Suda (“κλῖμαξ”, kappa, 1806), no Etymologicum Gudianum (“κλῖμαξ”, kappa, 328, ἡ
σκάλα διὰ τὸ καλεῖν εἰς μῆκος· ἢ ἀπὸ τοῦ κλίνω γίνεται κλίναξ καὶ κλίμα), no Etymologicun
Magnum (κλῖμαξ, kappa, 519, ἡ σκάλα. Ἀπὸ τοῦ κλίνω κλίναξ καὶ κλίμαξ), no Lexicon de
Ps.‐Zonaras (kappa, 1219, ἡ σκάλα. παρὰ τὸ κλίνω).
18
Com os seus compostos κλιμακτηρίζω, κλιμακτηρικός e κλιμακτηριωδής.
19
Cf. exemplos dados pelo dicionário de Montanari e os de Liddell and Scott: Eur. Hel. 1570, Hp. Art.
5.78, Vt. Iez. 40.37, 43.17 Poll. 10.171, Ar.Fr.277, Hp. Art.78, IG22.244.80, 11(2).203A43 (Delos, iii B.C.).
20
Termo especialmente usado nesse sentido por Vétio Valente e Heféstion.
21
O dicionário Houaiss regista as formas “climactérico” e “climactério” neste sentido, além do
antepositivo “climacter‐” (define o latim climacter como “estádio ou estágio da vida (difícil de superar),
ano climactérico, que é tido como decisivo para a vida dos homens e mulheres, ano crítico para a vida
de cada um (havia‐os na base do multiplicador sete)”. Interessante é observar que a datação de
“climactérico” ‐ 1670 (cf. Pe. Fr. Antonio Teixeira. Epítome das notícias astrológicas para a medicina.
Lisboa, 1670) é claramente anterior à datação do termo “clímax”, 1836 segundo o Houaiss (cf. Francisco
Solano Constâncio, Novo diccionario critico e etymologico da lingua portugueza. Paris, 1836).
22
Existe uma ocorrência num comentário antigo a um passo da Ilíada que nos parece sugerir uma
utilização literária do termo (in Iliadem 3.182a). Este será analisado na alínea sobre os Scholia ad
Homerum.
21
transporta uma escada”. A única excepção à regra é o adjectivo κλιμακωτός, que se
especializou mercê da expressão κλιμακωτὸν (σχῆμα)23.
Mas então de onde derivou o sentido moderno de “clímax”? A resposta não é
simples. De facto, na Retórica, o termo é usado num sentido técnico e preciso24.
Torna‐se pois fundamental estudar com precisão este significado, e para o fazer
propomos analisar praticamente todas as ocorrências do termo κλῖμαξ neste sentido,
por ordem tanto quanto possível cronológica.
A figura retórica κλῖμαξ – ocorrências em grego
Pseudo‐Demétrio, De elocutione (? III a.C.).
Λαμβάνοιτ΄ ἂν καὶ ἡ κλῖμαξ καλουμένη, ὥς περ Δημοσθένει τὸ «οὐκ
εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ ἔγραψα δέ· οὐδ΄ ἔγραψα μέν, οὐκ ἐπρέσβευσα δέ· οὐδ΄
ἐπρέσβευσα μέν, οὐκ ἔπεισα δὲ Θηβαίους» (Demosth., De corona, 179) · σχεδὸν
γὰρ ἐπαναβαίνοντι ὁ λόγος ἔοικεν ἐπὶ μειζόνων μείζονα· εἰ δὲ οὕτως εἴποι
τις ταῦτα, εἰπὼν ἐγὼ καὶ γράψας ἐπρέσβευσά τε καὶ ἔπεισα Θηβαίους,
διήγημα ἐρεῖ μόνον, δεινὸν δὲ οὐδέν (270)25.
A primeira ocorrência da palavra κλῖμαξ num contexto retórico surge logo no
século III a.C.26, no De elocutione (Περὶ ἑρμηνείας) de Pseudo‐Demétrio, podendo
23
Só duas ocorrências (Políbio 5.59.9 e Estrabão 16.1.5) na sua primeira acepção de “feito em forma de
escada”; depois de Hermógenes, o termo passou somente a designar o κλιμακωτὸν (σχῆμα),
sinónimo da figura retórica κλῖμαξ.
24
Mesmo assim, os autores ligados à Retórica utilizam o termo bastante vezes no seu sentido literal (cf.,
e.g., Górgias, fr. 11a Diels, Aftónio, Progymnasmata, 10.39, Libânio, Or. 1.191, 2.22).
25
A edição usada é a de Radermarcher (1967).
26
A datação do De elocutione é problemática; Reed (2005, 124‐125) oferece‐nos um bom resumo do
mais recente estado da questão; existem fundamentalmente duas escolas, uma que defende a data
aproximada de 270 a.C. como a mais provável, outra que aponta para o século I a.C.. Na opinião deste
estudioso, os argumentos apresentados por Grube (1961), e mais recentemente por Walker (2000), são
os que mais consenso reúnem: Grube faz um estudo a partir das referências históricas e literárias do
texto e coloca‐as no contexto da expansão helenística no Mediterrâneo e Ásia Menor, antes de Cícero e
Quintiliano. Como conclui Reed (2005, 125) “the treatise’s focus on style over virtue and its references
to Aristotle and the tradition of the Peripatetic school have led Walker and a majority of modern
22
com segurança afirmar‐se que o termo não tinha uma acepção técnica no período
clássico grego, datando esta sim do período helenístico, provavelmente por influência
da escola peripatética, em particular Teofrasto, uma vez que a Retórica de Aristóteles,
tida como a grande fonte do De elocutione, não apresenta o termo κλῖμαξ.
A presente citação enquadra‐se no capítulo do tratado dedicado à δεινότης, a
força ou veemência do discurso. É interessante observar que nesta primeira ocorrência
do termo, para todos os efeitos ainda não uma definição, avulta a ideia de um λόγος
que sobe, usando‐se para exprimir tal ideia o verbo ἐπαναβαίνω, e igualmente a
ideia de um progresso qualitativo, usando‐se para tal a expressão ἐπὶ μειζόνων
μείζονα, sintagma que utiliza o comparativo de μέγας para descrever o processo ‐
“de maior em maior”. As definições posteriores de clímax vão procurar ser mais
específicas do que esta, intentando descrever a técnica ou o modo como este
“progresso” vai sendo construído. O exemplo citado de Demóstenes vai ser repetido
abundantemente pelos autores posteriores, sugerindo uma fonte comum de onde os
retóricos retiravam exemplos de figuras. Sublinhemos que na primeira ocorrência do
vocábulo não surge qualquer explicitação técnica do termo: faz‐se sim uma descrição
ao nível do objectivo da κλῖμαξ, dando‐se um exemplo de Demóstenes, deixando ao
leitor a sua análise estilística. Não podemos no entanto, ao ler o exemplo, deixar de
pensar que estamos perante uma figura que utiliza a repetição de palavras como um
meio fundamental para criar esta “subida” descrita pelo verbo ἐπαναβαίνω.
Pseudo‐Longino, Περὶ ὕψους (? I.‐III a.C.)
Τά γε μὴν πολύπτωτα λεγόμενα, ἀθροισμοὶ καὶ μεταβολαὶ καὶ κλίμακες,
πάνυ ἀγωνιστικά, ὡς οἶσθα, κόσμου τε καὶ παντὸς ὕψους καὶ πάθους
συνεργά. τί δέ; αἱ τῶν πτώσεων χρόνων προσώπων ἀριθμῶν γενῶν
ἐναλλάξεις, πῶς ποτε καταποικίλλουσι καὶ ἐπεγείρουσι τὰ ἑρμηνευτικά; (…)
scholars to conclude that the date of 270 BCE is “hard to refute”“ (o autor cita aqui Conley (1990,
48n3)).
23
οὐ μέντοι δεῖ ποιεῖν αὐτὸ ἐπ΄ ἄλλων, εἰ μὴ ἐφ΄ ὧν δέχεται τὰ ὑποκείμενα
αὔξησιν ἢ πληθὺν ἢ ὑπερ βολὴν ἢ πάθος, ἕν τι τούτων ἢ [τὰ] πλείονα, ἐπεί
τοι τὸ πανταχοῦ κώδωνας ἐξῆφθαι λίαν σοφιστικόν (23‐24)27.
No tratado Sobre o Sublime, também de datação duvidosa (Kellner 2005, 245)28,
ouvimos falar de novo nesta “misteriosa” figura chamada κλῖμαξ, abordada de
passagem no tratado anteriormente citado. No entanto, estamos ainda longe de uma
definição. Em Pseudo‐Longino apenas se refere paralelamente a figura (no plural,
κλίμακες), como exemplo de poliptotos29. Daqui se subentende que, enquanto em
Pseudo‐Demétrio a κλῖμαξ é classificada tendo em vista o seu efeito no ouvinte
(como figura que transmite δεινότης), em Pseudo‐Longino a κλῖμαξ é
fundamentalmente uma figura de repetição de palavras, tal como o ἀθροισμός
(congeries) e a μεταβολή. Este autor considera‐as assim armas poderosas
(ἀγωνιστικά), contribuindo para criar sublime e o πάθος. Este excerto aduz ainda
um juízo de valor em relação à utilização do termo – o seu autor adverte para o seu
uso, que, se não servir um propósito definido, como por exemplo de aumentar ou
engrandecer o assunto (τὰ ὑποκείμενα αὔξησιν), assim o contexto admita, pode
redundar num uso excessivamente sofístico30. No entanto, nenhuma definição é dada
da figura, não se sabendo a forma como é construída nem os meios que emprega. Na
primeira citação (Pseudo‐Demétrio) explica‐se a sua finalidade, na segunda
(Pseudo‐Longino) enquadra‐se tecnicamente no capítulo dos poliptotos. E assim,
chegamos ao final do século I a.C. sem qualquer definição do termo, que até esta
altura só foi usado duas vezes com esta acepção retórica no corpus remanescente de
textos gregos, num contexto curto, e igualmente sem grande precisão, o que leva os
autores do artigo sobre o clímax do Historisches Wörterbuch der Rhetorik (Kirby e
27
A edição é a de Russell (1964).
Cf. igualmente Heath (1999, 43‐73). Interessantemente, as datas que suscitam discussão são
idênticas; ambos os tratados foram provavelmente escritos no mesmo período (séc. III‐I a.C.).
29
Não no sentido costumeiro de variação do caso da palavra (πτῶσις), mas de qualquer forma de
variação de palavra (tempo, pessoa, género, etc.), assim ressalva a nota da edição da Loeb
(Rhys‐Roberts e Fyfe 1927, 196n) à tradução deste tratado.
30
A metáfora que usa aliás é sugestiva; o grego fala em “agarrar‐se ao trompete” (τὸ κώδωνας
ἐξῆφθαι) para descrever a solenidade balofa deste recurso quando usado sem uma intenção retórica
clara e adequada.
28
24
Poster 1998, 1106)31 a considerar que se trata de um indício de que estes textos
pressupõem a familiaridade do leitor com o termo. Sendo esta uma afirmação lógica,
não é menos certo considerar igualmente que a figura é marginal no contexto da
retórica até à altura em questão, sendo por isso referida apenas de passagem32.
Pseudo‐Herodiano, De figuris (? I‐II d.C.)
1) Σχῆμά ἐστι λόγου ἢ λέξεως οἰκονομία μετ΄ εὐκοσμίας ἐκπεφευγυῖα
τὴν
ἰδιωτικὴν
ἁπλότητα
τῆς
ἀπαγγελίας.
ἔστι
δὲ
τὰ
τῷ
λόγῳ
παρακολουθοῦντα σχήματα τάδε· ἀπὸ κοινοῦ, μερισμός, ἀπολελυμένον,
παρονομασία,
ἀποσιώπησις,
διὰ
μέσου,
διόρθωσις,
προδιόρθωσις,
ἐπιδιόρθωσις, ἀποστροφή, (…) κλῖμαξ, σύλληψις (25).33
2)
Κλῖμαξ
δὲ
ὅταν
ἕκαστον
τῶν
ἐν
τοῖς
κώλοις
ὀνομάτων
ἀναλαμβάνοντες διατιθώμεθα τὸν λόγον, ὡς «οὐκ εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ
ἔγραψα δέ, οὐδ΄ ἔγραψα μέν, οὐκ ἐπρέσβευσα δέ, οὐδ΄ ἐπρέσβευσα μέν, οὐκ
ἔπεισα δὲ Θηβαίους» (Demosth., De corona, 179). καὶ τὸ παρ΄ Ὁμήρῳ δέ τινες
τούτῳ τῷ σχήματι συναριθμοῦσιν,
«῞Ηφαιστος μὲν δῶκε Διῒ Κρονίωνι ἄνακτι·
αὐτὰρ ἄρα Ζεὺς δῶκε διακτόρῳ ἀργειφόντῃ
Ἑρμείας δὲ ἄναξ δῶκεν Πέλοπι πληξίππῳ·
αὐτὰρ ὁ αὖτε Πέλοψ δῶκ΄ Ἀτρέϊ, ποιμένι λαῶν·
Ἀτρεὺς δὲ θνήσκων ἔλιπε πολύαρνι Θυέστῃ·
αὐτὰρ ὁ αὖτε Θύεστ΄ Ἀγαμέμνονι λεῖπε φορῆναι» (Il. II.104‐109) (49).
31
Este parece‐nos o mais profundo estudo feito até ao momento sobre a acepção retórica deste termo,
pelo que se revelou uma referência fundamental para o presente capítulo.
32
Compare‐se, a este respeito, no corpus dos retores gregos até este século, a fértil ocorrência de
termos como ἀναφορά e ἐπιστροφή, igualmente figuras de repetição.
33
Seguimos a numeração seguida pela edição mais recente deste tratado (Hajdú 1998).
25
Embora a datação do tratado seja de novo problemática34, temos
provavelmente a primeira definição em grego da figura retórica κλῖμαξ35. A citação 1)
começa por enquadrar a κλῖμαξ nos σχήματα λέξεως, definidos como formas de
fugir à comum simplicidade da enunciação (τὴν ἰδιωτικὴν ἁπλότητα τῆς
ἀπαγγελίας)36, e fazendo‐os indissociáveis do λόγος. O autor cita a este respeito um
elenco vasto de figuras desta natureza, e continua o seu texto definindo‐as. É neste
contexto que surge a citação 2), em que assoma a definição de clímax: “clímax é
quando compomos uma frase (λόγος) tomando de novo cada uma das palavras
(ὀνόματα) nos membros [da frase]”37. Esta definição acaba por suscitar algumas
questões, nomeadamente em relação à tradução da expressão ἕκαστον τῶν
ὀνομάτων; o grego fala no tomar de novo (ἀναλαμβάνω) de cada uma das
palavras, e não é pois claro se para haver clímax basta repetir uma palavra, ou todas.
Pelos exemplos citados, subentende‐se que basta repetir uma; utiliza‐se o mesmo
excerto de Demóstenes já citado em Pseudo‐Demétrio, e outro passo da Ilíada. No
exemplo do orador grego, “não falei desta forma sem que propusesse isto por escrito,
não propus isto por escrito sem que realizasse uma missão, e não realizei uma missão
sem convencer os Tebanos”, nota‐se que o exemplo não vai totalmente ao encontro
da definição, pois a palavra ἔγραψα de facto é retomada no membro seguinte, assim
como ἐπρέσβευσα, mas o verbo εἶπον não se repete, assim como ἔπεισα (de
πείθω). Surge neste tratado a primeira referência a um passo de Homero que a
tradição retórica vai eleger, a par com o de Demóstenes, como paradigmático. No
entanto, neste contexto o exemplo parece vir mais ao encontro da definição dada; de
facto, a forma Διΐ retoma‐se no verso seguinte (Ζεύς), e assim sucessivamente com
34
Para uma discussão completa da datação seguida, cf. Hajdú (1998, 19‐23); o autor, além de resumir de
forma sistemática o estado da questão, apresenta os argumentos que sustentam a tese de que se trata
de um tratado formado por duas partes distintas e compostas por autores diferentes (“der Traktat
besteht aus zwei heterogenen Teilen, die nach allem, was wie über die antike Rhetorik wissen, nicht
zusammengehören”, 22).
35
O artigo do Wörterbuch der Rhetorik (Kirby e Poster 1998), no entanto, não faz referência a esta
fonte. Só por este aspecto se prova a utilidade da busca extensiva do termo que se fez no corpus do TLG.
36
Aproximando‐o aliás do próprio conceito de ὕψος de Pseudo‐Longino, “elevação” de discurso que a
tradição latina traduziu por sublimitas, o que contribuiu para o equívoco comum de tomar o termo
numa perspectiva “romântica” que é de todo alheia ao tratado.
37
Ὄνομα tem um sentido técnico (cf., e.g., Arist., Rh.1404b5).
26
Διακτόρῳ Ἀργειφόντῃ38 que é retomado por Ἑρμείας no verso seguinte, Πέλοπι
(Πέλοψ no verso seguinte), Ἀτρέϊ (Ἀτρεὺς no verso seguinte) e Θυέστῃ (Θύεστης
no verso seguinte). Dos exemplos podemos já retirar mais ilações do que
propriamente da definição, que nos parece um pouco vaga: trata‐se de uma figura que
a escola retórica associa à repetição – seja por repetição literal de palavras (como é o
caso de Demóstenes), seja por repetição de palavras em poliptoto (desta feita no seu
sentido próprio, e não no sentido de Pseudo‐Longino, i.e., com a mesma palavra
flexionada
em
casos
diferentes
‐
Πέλοπι/Πέλοψ;
Ἀτρέϊ/Ἀτρεὺς;
Θυέστῃ/Θύεστης), seja por repetição de uma ideia (no caso do exemplo da Ilíada, o
epíteto Διακτόρῳ Ἀργειφόντῃ é retomado por Ἑρμείας). Continuemos, porém, o
nosso estudo.
Hermógenes, Περὶ Ἰδεῶν λόγου (II d.C.)
Ἔτι τῶν ἐπιφανῶς καλλωπιζόντων ἐστὶ μετὰ ἐναργείας καὶ τὸ
κλιμακωτὸν καλούμενον σχῆμα, ὃ δὴ σπάνιον παρὰ τῷ ῥήτορι, μᾶλλον δὲ
οὐδὲ σπάνιον, ἀλλ'ἅπαξ ἢ δὶς εἰρημένον· ἔστι δὲ οὐδὲν ἄλλο ἢ πλεονάζουσα
ἀναστροφή, οἷον «οὐκ εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ ἔγραψα δέ, οὐδ' ἔγραψα μέν, οὐκ
ἐπρέσβευσα δέ, οὐδ'ἐπρέσβευσα μέν, οὐκ ἔπεισα δέ» (Demosth., De corona,
179). εἰ δ' αἱ ταχεῖαι τῶν μερισμῶν ἀποδόσεις καὶ αἱ βραχυκωλίαι
πεποιήκασιν εἶναι καὶ γοργὸν τὸν λόγον ἢ εἰ διὰ τὰς πολλὰς ἀναιρέσεις
γέγονέ πως καὶ εὐειδής, ἑτέρου λόγου. καίτοιπως καὶ τὸ εὐειδές ἐστι τοῦ
κάλλους ἴδιον καὶ αἱ ἀναιρέσεις γε αἱ αὐταί. ἀλλ' εἰ καὶ μὴ ἦν ἴδιον, πολλάκις
ἐμαρτυράμην, ὡς τῶν χαλεπωτάτων ἐστὶν εὑρεῖν ὁτιοῦν παρὰ τῷ ῥήτορι
τοιοῦτον, οἷον ἐπὶ πολὺ μιᾶς ἰδέας εἶναι (1. 12. 304‐305)39.
Das ocorrências analisadas, esta é a primeira cuja autoria e datação não são
problemáticas. Hermógenes de Tarso (160‐ ca. 225 a.C.) é seguramente o autor deste
38
39
“O Matador de Argos”, epíteto de Hermes.
A edição é a de Rabe (1969).
27
manual de retórica, composto provavelmente na juventude40, e que teve grande
fortuna na escola retórica posterior41. Neste influente texto, Hermógenes enquadra a
κλῖμαξ no seu capítulo sobre o “Estilo Cuidado e a Beleza” (Περὶ ἐπιμελείας καὶ
κάλλους), e faz desta figura uma forma de lograr o belo, como se percebe pela forma
como a introduz no seu tratado: o termo ἐπιφανῶς (com distinção, com notabilidade)
associado ao conjunto de figuras que criam o κάλλος (τῶν καλλωπιζόντων), e
igualmente a expressão μετὰ ἐναργείας (com energia, vivacidade) permite de
imediato colocar a figura estudada num lugar especial em relação às outras figuras
tratadas neste capítulo, embora de imediato o seu autor assevere que esta é rara
παρὰ τῷ ῥήτορι, isto é, em Demóstenes, autor que a utiliza, na opinião de
Hermógenes, apenas “uma ou duas vezes”. A definição que o autor dá desta figura
suscita algumas questões: ἔστι δὲ οὐδὲν ἄλλο ἢ πλεονάζουσα ἀναστροφή – “não
é mais do que uma anástrofe levada ao exagero”. A tradução de Wooten (1987, 60) de
πλεονάζουσα por extended, embora capte na essência o termo e resolva um
evidente problema de tradução, não faz justiça (seria difícil aliás fazê‐lo) ao verbo
πλεονάζω, que tem tão diferentes acepções42 como “ser mais”, “ser mais do que
suficiente”, “estar em excesso”, “usado para criar excesso”, “ser redundante”,
“exceder”, “passar as fronteiras, tomar ou reclamar demasiado”, “feito para
engrandecer”, “usar em adição, em redundância”, para citar apenas as que mais
sentido fazem para o presente contexto. O clímax será pois “nada mais” (οὐδὲν ἄλλο)
do que uma anástrofe, ou seja, uma palavra que está no final de um membro e se
repete no princípio do outro43 literalmente “levada ao exagero”, ou, se interpretarmos
mais metaforicamente, “usada para constante engrandecimento”, ou como traduz C.
W. Wooten, uma “anástrofe estendida”. Mas o processo técnico de construção da
κλῖμαξ, que Hermógenes assim define, parece fugir à apreciação que dela faz o seu
autor no período seguinte, como ele próprio admite quando afirma “mas isso é outra
40
Pelo menos é esta a ideia do tradutor C. W. Wooten (1987, xviii); daí datarmos o presente excerto de
II. a.C..
41
“Hermogenes’ Art of Rhetoric is important because it is the text that connects us most securely to the
Greco‐Roman tradition of technical, rule‐based rhetoric” (J. B. Davis 2005, 198).
42
Seguimos as entradas de Liddel & Scott, cotejando igualmente o dicionário de Montanari.
43
Ou mais especificamente “Wiederholung der letzten Wörter bzw. des letzten Wortes des
vorhergehenden Satzes bzw. Satzteiles am Beginn des folgenden” (Kirby e Poster 1998, 1109).
28
questão” (ἑτέρου λόγου). Isto porque, para o retor, não é o facto de o clímax ser
“nada mais, nada menos” de que uma anástrofe reiterada que faz dele um veículo do
κάλλος; é precisamente a sua capacidade de criar rapidez e fluência (αἱ ταχεῖαι τῶν
μερισμῶν ἀποδόσεις), aliada ao ritmo das negações (διὰ τὰς πολλὰς ἀναιρέσεις)
e à brevidade dos membros (βραχυκωλίαι) que faz da citação de Demóstenes um
exemplo de εὐειδής, de Belo. Hermógenes, confrontando‐se a si mesmo com esta
aparente dissociação entre processo técnico (uma simples repetição, οὐδὲν ἄλλο) e
efeito produzido (uma repetição levada ao exagero, veículo da Beleza), chega à
conclusão de que, tal como em outros tantos casos em Demóstenes, é virtualmente
impossível encontrar um exemplo claro de uma só figura, estando todas interligadas. O
autor continua elogiando o orador ateniense, algo que já não nos interessa para o
presente contexto.
É importante reter, a partir do excerto transcrito, que a figura da κλῖμαξ neste
autor está indissociavelmente ligada à criação de beleza e de fluência de discurso, e
que os meios de que dispõe, nomeadamente a repetição de palavras, parecem não
traduzir por completo esta ideia de crescimento, de exagero, no sentido etimológico
latino (exaggerare ‐ “acumular, amontoar”), como implicitamente observa
Hermógenes. É também relevante observar que o termo κλῖμαξ não surge na citação
anterior, sendo antes utilizado o adjectivo κλιμακωτός ‐ τὸ κλιμακωτὸν σχῆμα –
“a figura em forma de escada” ‐ termo que vai sobreviver posteriormente, tudo indica
por influência deste autor, na escola retórica grega.
Alexandre, filho de Numénio, De figuris (II d.C.)
ΠΕΡΙ ΚΛΙΜΑΚΟΣ.
Κλῖμαξ δὲ γίνεται, ὅταν ἐπὶ πλεῖον μηκύνοντες τὸ προκείμενον
κεφάλαιον καθ΄ ἕκαστον κόμμα τὴν αὐτὴν λέξιν τελευτήν τε καὶ ἀρχὴν
ποιήσωμεν, ὡς ἔχει τὸ Δημοσθενικόν, καὶ «οὐκ εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ ἔγραψα
δέ· οὐδὲ ἔγραψα μέν, οὐκ ἐπρέσβευσα δέ· οὐκ ἐπρέσβευσα μέν, οὐκ ἔπεισα δὲ
29
Θηβαίους» (Demosth., De corona, 179). γίνεται δὲ καὶ κατὰ συνωνυμίαν
κλῖμαξ, ὡς ἔχει τὸ Ὁμηρικόν,
«῞Ηφαιστος μὲν δῶκε Διῒ Κρονίωνι ἄνακτι·
αὐτὰρ ἄρα Ζεὺς δῶκε διακτόρῳ Ἀργειφόντῃ·
Ἑρμείας δὲ ἄναξ δῶκε Πέλοπι πληξίππῳ·
αὐτὰρ ὁ αὖτε Πέλοψ δῶκ΄ Ἀτρέϊ ποιμένι λαῶν·» (Il. II.104‐107)
καὶ γὰρ Κρονίων καὶ Ζεὺς συνώνυμά πώς ἐστι, καὶ τὸ Ἀργειφόντης καὶ
Ἑρμῆς· εἴληφε δὲ τὸ σχῆμα τὸ ὄνομα ἀπὸ τῆς κλίμακος· καὶ γὰρ ἐν ταύτῃ,
ἐφ΄ ὃν λήγομεν βαθμόν, ἀπ΄ ἐκείνου πάλιν ἀρχόμεθα (II. 8). 44
Esta é uma definição bastante específica45 daquilo que é o clímax na opinião
deste retórico do século II d.C., sobre o qual pouco se conhece (cf. Ballaira 1978,
190‐198; Russell 1981, 176), mas que parece ter sido um influente autor (“Alexander
12”, OCD, Hornblower e Spawforth 2003, 60). O entendimento que este faz da figura é
bastante preciso, centrando‐se fundamentalmente nos processos técnicos de
construção. “O clímax surge quando, prolongando em toda a sua extensão o que de
mais importante vem antes, fazemos, para cada membro (κόμμα46), da palavra
(λέξις) final o princípio da seguinte”. Como se observa, esta definição limita o
entendimento de clímax bastante mais do que as anteriores, confinando‐o aos
estreitos limites de uma figura de repetição de palavras, repetição essa organizada de
forma bastante prescritiva: o fim de um membro deve ser o início de outro47. Para não
44
Vol. 3, p. 31 na edição de Spengel dos Rhetores Graeci (Spengel 1856).
Esta definição parece ser credora de Cecílio de Calacte, retórico influente do séc. I a.C.; assim consta,
pelo menos, na edição de Ofenloch dos fragmentos deste autor (cf. Ofenloch 1907, 44‐45, frag. 62‐62b),
que se apoia nos estudos de Morawski, Martens e Barczat (Barczat 1904, 39; Martens 1877, 17, 1;
Morawski 1874, 54). Assim, as definições dadas por Tibério (De figuris Demosthenicis, 28), Quintiliano
(IX. 3, 54) e Alexandre, filho de Numénio (De figuris, II. 8), teriam este ancestral comum.
46
Cf. Demétrio, Eloc. 9.
47
Este é aliás, sensu stricto, o único entendimento que Lausberg, com o seu influente tratado Handbuch
der Literarischen Rhetorik (1960, 315), faz desta figura: “eine fortshcreitende Anadiplose: /…x/x…y/y…z.
Die fortschreitende Weiterführung der Anadiplose bringt variierende Lockerungen in der Realisierung
mit sich, so besonders hinsichtlich der Unmittelbarkeit des Kontakts und hinsichtlich der
Flexionsformen, da das wierderholte Wort häufig die syntaktische Funktion wechselt”. Este único
entendimento de clímax mesmo dentro da retórica clássica é aliás subliminarmente rebatido pelo
Wörterbuch der Rhetorik (Kirby e Poster 1998). Não por acaso, o primeiro autor clássico que Lausberg
cita é precisamente Alexandre.
45
30
variar, o autor cita o exemplo de Demóstenes, que cabe perfeitamente na definição,
de tal forma que esta parece ter sido feita para o exemplo, e não o contrário. O
próprio autor acaba por implicitamente o admitir, pois ao debruçar‐se sobre a tradição
retórica anterior, verifica que, além deste passo do De corona, a escola retórica
costuma citar também o já comentado passo de Homero, presente em
Pseudo‐Herodiano; como facilmente Alexandre atenta em que a definição já não
“cabe” no exemplo, recorre a um expediente, dizendo que esta repetição também
pode ser feita por sinonímia (κατὰ συνωνυμίαν). E para tal, deliberadamente faz de
Κρονίων sinónimo de Ζεύς, quando nos parece evidente, como já referimos antes a
propósito deste mesmo passo citado por Pseudo‐Herodiano, que Ζεύς não está aqui
em relação “de clímax” com Κρονίων, mas sim com Διΐ, o dativo desta palavra, sendo
que afinal a sinonímia48 só serve para explicar a relação “de clímax” do epíteto
Ἀργειφόντῃ com Ἑρμείας, continuando o retórico grego sem explicar como
Πέλοπι, por exemplo, não é a última palavra de nenhum cólon, nem inicia outro, ao
arrepio da sua própria definição. Temos assim uma definição que à partida parece ser
bastante completa49, mas que parece “esbarrar” com os exemplos que apresenta, não
os explicando na sua totalidade.
O que nos parece mais interessante, no entanto, neste excerto, é a forma como
o seu autor conclui a definição, ao falar do porquê do termo κλῖμαξ, e da sua relação
com a prosaica “escada”: “a figura tomou este nome a partir da palavra “escada”
(κλῖμαξ): nela, de facto, iniciamos [o movimento] a partir do degrau em que
terminamos [o último]”). Dá‐se assim a ideia de um movimento gradual (gradus) e de
uma conexão causal de um elemento para outro. Este pormenor etimológico não é
despiciendo, e julgamos que terá contribuído em muito para a fortuna posterior do
termo na modernidade, como veremos. Aliás, se tentássemos descrever graficamente,
a partir do exemplo de Demóstenes, o que se passa na κλῖμαξ retórica, chegaríamos
ao seguinte esquema, que descreve a silhueta de uma escada:
48
Só assim se entende porque não estende Alexandre o excerto até ao verso 109, como faz
Pseudo‐Herodiano, quando estes versos que faltam são um exemplo claro de clímax literal, e não por
sinonímia.
49
“Eine der ausführlichsten antiken Definitionen der Klimax” (Kirby e Poster 1998, 1109).
31
5. (οὐκ ἔπεισα δὲ Θηβαίους)
4. οὐκ ἐπρέσβευσα μέν,
3. οὐκ ἐπρέσβευσα δέ·
2. οὐδὲ ἔγραψα μέν,
1. οὐκ ἔγραψα δέ·
Tibério, De figuris Demosthenicis (? III‐IV d.C.)
1) Τοσαῦτα μὲν τὰ τῆς διανοίας σχήματα παρὰ Δημοσθένει
κατενοήσαμεν, τὰ δὲ τῆς λέξεως ἐκ παραλλήλου καὶ ταῦτα κατα μάθωμεν,
προειπόντες ᾗ διαφέρουσιν ἀλλήλων. Τούτῳ δὴ μάλιστα φαίη τις ἂν αὐτὰ
διενηνοχέναι, τῷ τὰ μὲν τῆς διανοίας σχήματα, κἂν ὑπαλλάξῃ τις αὐτὰ τοῖς
ῥήμασιν, ὁμοίως μένειν, τὰ δὲ τῆς λέξεως σχήματα οὐχ οἷόν τε εἶναι
φυλάττεσθαι ὑπαλλαττομένης τῆς λέξεως. Ἔστι δὲ ταῦτα· ἀλληγορία,
μετάθεσις, ἀναστροφή, μετάληψις, παρονομασία, κλῖμαξ, ἐπαναφορά
ἀντιστροφή, ἐπιμονή, ὑπερβατόν, ἀπίσωσις, πλεονασμός, περίφρασις,
συζυγία, ἀπὸ κοινοῦ, μεταβολή, ὑποφορά, ἀντίθετον, ἀπόλυτον, ἀσύνδετον,
ἔλλειψις (23)50.
2) Κλῖμαξ δέ ἐστιν ὅταν, εἰς πολλὰ κῶλα ἑνὸς ἐνθυμήματος
διαιρουμένου, ἕκαστον κῶλον ἄρχηται ἀπὸ τοῦ ἐν τῷ προηγουμένῳ κώλῳ
τελευταίου. μετενήνεκται δὲ τὸ ὄνομα ἀπὸ τῶν ἀναβαινόντων τὰς
κλίμακας· ὥσπερ γὰρ ἐκείνοις τὰ τελευταῖα πρῶτα γίνεται κατὰ τὴν τῶν
ποδῶν μετάθεσιν, οὕτω καὶ ἐν τῷ σχήματι τούτῳ τὰ τῶν πρώτων κώλων
τελευταῖα τῶν ἐπιφερομένων ἀρχὴ γίνεται. σαφέστερον δ΄ ἔσται τοῖς
50
A edição usada é a de Ballaira (1968).
32
παραδείγμασιν· «οὐκ εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ ἔγραψα δέ· ἢ ἔγραψα μέν, οὐκ
ἐπρέσβευσα δέ· οὐκ ἐπρέσβευσα μέν, οὐκ ἔπεισα δὲ Θηβαίους» (Demosth., De
corona, 179). καὶ τό·
«῞Ηφαιστος μὲν δῶκε Διὶ Κρονίωνι ἄνακτι,
αὐτὰρ ἄρα Ζεὺς δῶκε διάκτορι Ἀργεϊφόντῃ·
Ἑρμείας δὲ ἄναξ δῶκε Πέλοπι πληξίππῳ,
αὐτὰρ ὁ αὖτε Πέλοψ δῶκ΄ Ἀτρέι, ποιμένι λαῶν·
Ἀτρεὺς δὲ θνήσκων ἔλιπεν πολύαρνι Θυέστῃ,
αὐτὰρ ὁ αὖτε Θυέστ΄ Ἀγαμέμνονι λεῖπε φορῆναι.» (Il. II.104‐109)
Τινὲς δὲ νομίζουσι τοῦτο τὸ σχῆμα τὸ αὐτὸ εἶναι τῇ ἐπαναδιπλώσει,
ἠγνοήκασι δὲ ὅτι ἡ μὲν ἀναδίπλωσις ἐν δύο κώλοις γίνεται, ἡ δὲ κλῖμαξ ἐν
πολλοῖς, καὶ ὅτι πλήθους ἔμφασιν ἐργάζεται (28).
Tibério foi um retor menor da Segunda Sofística, não particularmente influente
nem original51, que floresceu por meados do século III. O único tratado que sobreviveu
foi o presente, dedicado às figuras existentes em Demóstenes e por ele utilizadas. A
citação 1) surge quando, no contexto da obra, o autor prossegue para as figuras de
palavra (τῆς λέξεως σχήματα), depois de ter analisado as figuras de pensamento
(τῆς διανοίας σχήματα). No elenco que se segue, depois de uma curtíssima
discussão sobre as principais diferenças entre elas, é referida a κλῖμαξ. Mais à frente,
na citação 2), é definido o que se entende por esta figura: “O clímax surge quando,
dividindo‐se um pensamento em diversos membros, um membro se inicia
exactamente com aquilo que veio no fim do membro antecedente”52. Ao contrário de
Alexandre, Tibério não vai usar o termo λέξις para classificar este tipo de repetição,
antes opta por um prudente neutro ‐ ἀπὸ τοῦ τελευταίου, “a partir daquilo que veio
no fim”. Esta prudência advém do facto de o autor definir clímax como um λέξεως
σχῆμα e não como διανοίας – e o que distingue precisamente as figuras de
51
Para uma discussão profusa sobre a vida e obra deste autor, cf. a completa introdução à edição de
Ballaira (1968, i‐xlvii).
52
Sobre a filiação desta definição em Cecílio de Calacte, cf. supra nota 45.
33
pensamento das de palavra, segundo ele próprio, é que, enquanto nas primeiras
podemos alterar as palavras, e o sentido eventualmente se poderá manter, com as de
repetição isso não é possível – ideia exposta na citação 1). No entanto, ao arrepio da
sua própria definição e entendimento de κλῖμαξ enquanto λέξεως σχῆμα, no
exemplo de Homero, lido provavelmente na colecção de citações comummente usadas
pelos retóricos53, classificado na escola retórica como um exemplo claro de clímax,
surgem não só repetições literais de palavras, embora em poliptoto, mas também de
ideias ou associações de palavras (Διακτόρῳ Ἀργειφόντῃ /Ἑρμείας). Daí que, mais
uma vez, a definição vá mais ao encontro do exemplo, e não o contrário, e não se opte
por falar com à‐vontade de uma repetição de λέξις, uma vez que claramente o
exemplo contradiria a definição. Quanto à expressão ἄρχηται presente na definição,
tem de ser lida mais uma vez não literal, mas aproximadamente; o que termina o
membro anterior pode não iniciar imediatamente o membro seguinte, como aliás se lê
claramente no exemplo de Homero, em que αὐτάρ inicia, numa anástrofe
independente do clímax analisado, os entimemas.
Tal como Alexandre, Tibério tenta igualmente explicar a relação entre esta
figura retórica e a “escada” com que etimologicamente se relaciona: “o nome deriva
metaforicamente daqueles que sobem as escadas: assim como o primeiro
[movimento] se torna o último mercê de uma mudança dos pés, assim também nesta
figura o fim do membro antecedente torna‐se o princípio do seguinte”. Kirby e Poster
(1998, 1107‐8) fazem deste comentário etimológico a premissa para concluírem que,
segundo o entendimento que designam por “clássico” do termo, a metáfora da escada
não assenta primeiramente num crescendo semântico, pois é indiferente se o
movimento se faz de forma ascendente ou descendente, classificando esta ideia como
um equívoco comum, “ein verbreitetes Mißverständnis”. Pensamos, embora
entendendo a ideia dos autores54, que é uma conclusão precipitada dizer que ao
clímax, no entendimento dos retores antigos, era completamente alheia a ideia de um
53
Como enfatiza Ballaira (1968, xv‐xvi), os retóricos retiravam as suas citações de colecções reunidas por
retóricos anteriores, o que aliás levava em grande medida a citações inadequadas ou incorrectas.
54
“Beim Ersteigen einer Leiter wird die eben erklommene Sprosse durch Nachsetzen des Fußes zur Basis
des nächsten Schrittes (während auf einer Treppe der ausschreitende Fuß das Standbein jeweils
überholt). Ob die Bewegung aufwärts oder abwärts strebt, spielt also für die Leitermetapher keine
Rolle” (p. 1107).
34
crescendo, partindo somente deste comentário paralelo de Tibério55, em que de facto
não refere se o movimento na escada é de subida ou de descida – embora a sua
definição acabe com uma expressão que parece contrariar a opinião dos autores
alemães: πλήθους ἔμφασιν ἐργάζεται, segmento frásico que indubitavelmente faz
do clímax uma figura que produz um processo gradativo ascendente. Por outro lado,
podemos rebater esta ideia simplesmente citando o já anteriormente comentado
passo de Pseudo‐Demétrio, a primeira ocorrência da palavra em grego neste sentido,
que utiliza termos como ἐπαναβαίνω e ἐπὶ μειζόνων μείζονα para descrever o
efeito produzido por esta figura, o que, como já se disse, representa um progresso
qualitativo, e não somente uma não hierárquica conexão formal, ao estilo de uma
corrente ou de um círculo, figura conhecida pelo seu nome latino, sorites.
Ainda a propósito deste excerto, repare‐se na preocupação do retórico grego
em criticar, no fim da sua definição, aqueles que defendem que este esquema é igual à
epanadiplose (anadiplose), figura de estilo que faz da última palavra de um verso ou
membro o início do seguinte. Talvez o autor reprove aqui a definição dada por
Hermógenes de clímax, que considera a figura πλεονάζουσα ἀναστροφή, expressão
de que já nos ocupámos; mesmo assim, note‐se que este autor não faz de κλῖμαξ
sinónimo de ἀναδίπλωσις56, considerando‐o sim uma “anástrofe levada ao exagero”.
Precisamente o que Tibério diz, mutatis mutandis, quando fala da diferença entre as
duas figuras: “a anadiplose surge em dois membros, enquanto o clímax em vários, o
que produz uma maior ênfase”.
Siriano, In Hermogenem Περὶ Ἰδεῶν λόγου (séc. IV‐V)
«τὸ σχῆμα δὲ τρίτον λέγω τὸ τῆς λέξεως» ἕως τοῦ «τέταρτον λέγω κατὰ
δύναμιν» μέθοδος μὲν οὖν ἐστι λόγος τὴν οἰκείαν τῆς ἰδέας ἔννοιαν κατὰ τὸ
55
E utilizando também para este efeito, em menor medida, as definições retiradas da Retórica a Herénio
(IV. 25. 34) e de Quintiliano (IX. 3. 55), que analisaremos mais à frente.
56
Segundo o próprio Tibério, epanadiplose é sinónimo de anástrofe (cf. definição em 25: ἀναστροφὴ
δέ ἐστι (τὸ αὐτὸ καὶ ἐπαναδίπλωσις) ὅταν, ἔνθα πέπαυται τὸ πρῶτον κῶλον, ἐκεῖθεν
ἄρχηται τὸ δεύτερον).
35
προσῆκον ἑρμηνεύων, ὡς εἰρωνεία καὶ διαπόρησις, σχῆμα δέ ἐστι λόγος τὴν
οἰκείαν τῆς ἰδέας λέξιν κατὰ τὸ προσῆκον διαπλέκων ἢ ὡς ἕτεροι λόγος μὴ
κατὰ φύσιν τὸν νοῦν ἐκφέρων μηδὲ ἐπ΄ εὐθείας, ἀλλ΄ ἐκτρέπων καὶ
ἐξαλλάττων τὴν διάνοιαν τῇ φράσει κόσμου τινὸς ἢ χρείας ἕνεκα, ὡς
ἐπανάληψις καὶ κλῖμαξ. τὸ οὖν σχῆμα καὶ ἡ μέθοδος κοινωνοῦντα ἀλλήλοις
κατὰ τὸ ἐναλλάττειν τὸ σύνηθες διαφέρουσι ταύτῃ, ὅτι ἡ μὲν μέθοδος
ἐννοίας ἐστὶν ἐναλλαγή, τὸ δὲ σχῆμα τῆς λέξεως, καὶ ὅτι τὰ μὲν τῆς διανοίας
σχήματα κἂν ὑπαλλάξῃ τις αὐτὰ τοῖς ῥήμασιν ὁμοίως μένει δυνατὸν γὰρ τὸ
κατὰ εἰρωνείαν εἰ· τύχοι καὶ διαπόρησιν, αἵπερ εἰσὶν περὶ ἔννοιαν μέθοδοι,
πολυτρόπως μεταφράσαι, τὰ δὲ τῆς λέξεως σχήματα οἷον ἡ ἐπανάληψις καὶ
ἡ κλῖμαξ μετα πιπτούσης τῆς λέξεως οὐχ οἷά τέ ἐστι φυλάττεσθαι (Rabe
20‐2157).
Neste comentário à obra de Hermógenes, Siriano58 não dá uma definição de
clímax, mas refere a figura quando discute um parágrafo do Περὶ Ἰδεῶν (in Hermog. I.
1. 1. 223) que classifica por grau de importância o que é mais importante para o estilo:
o pensamento (ἔννοια), a dicção (λέξις), as figuras de palavra (τὸ σχῆμα τῆς
λέξεως) e as figuras de pensamento (τὸ σχῆμα τῆς ἐννοίας), que estão em pé de
igualdade com a abordagem (μέθοδος). Discute‐se assim a relação que se tece entre
estes conceitos, procurando fundamentar o porquê de Hermógenes referir que a
abordagem tem elementos em comum e se posiciona no mesmo plano das figuras;
pois se a abordagem interpreta a relação do pensamento (ἔννοια) do estilo com o que
lhe é próprio, como quando um orador exprime dissimulação ou perplexidade, a figura
faz algo semelhante, interpretando a relação da dicção (λέξις) do estilo com o que
também lhe é próprio ‐ enquanto nas figuras de pensamento tal se opera não de
forma natural ou directa, pois o pensamento do ouvinte é desviado da frase
57
In Hermog. I. 1. 1. 223. Esta citação é repetida ipsis uerbis num passo de um comentário anónimo ao
Περὶ Ἰδεῶν de Hermógenes (Walz 7.901).
58
Pelas referências e citações de filósofos ao longo do seu tratado, parece que não há muita dúvida
acerca da identificação deste autor com o neoplatónico Siriano, autor do conhecido comentário à
Metafísica de Aristóteles. Este tratado terá sido escrito para o seu filho Alexandre, que provavelmente
estava destinado a tornar‐se orador (Wildberg, 2009, § 3.2, "Commentary on Hermogenes"). Cf.
igualmente Praechter (1932, 1732‐33).
36
“naturalmente ordenada” (τῇ φράσει κόσμου τινὸς), nas figuras de palavra isto
decorre naturalmente do seu uso ou aplicação (χρείας ἕνεκα). Hermógenes refere
ainda o que julga serem dois claros exemplos desta característica das figuras de
palavra: a epanalepse e o clímax. Mais à frente surge uma ideia que já foi comentada a
propósito de Tibério, e que se prende com a principal diferença entre as figuras de
pensamento e as de palavra; enquanto nas primeiras, se alguém mudar as palavras, a
figura permanece igual, nas de palavra tal não é claramente possível. Para o estudo em
questão, no entanto, nenhuma informação nova se aduz; reitera‐se, quando muito, a
ideia de clímax enquanto figura de palavra, e ao ser associado à epanalepse,
sublinha‐se de novo o facto de ser uma figura de repetição. De notar igualmente que
este autor vai usar o termo κλῖμαξ para se referir à figura que na obra de
Hermógenes é referida apenas como κλιμακωτὸν σχῆμα, o que parece demonstrar
que os termos são de facto perfeitamente equivalentes na escola retórica.
Fébamo, Περὶ τῶν Σχημάτων Ῥητορικῶν (? V d.C.)
Ἐν δὲ τῇ κλίμακι κατὰ τὴν ἐπανάληψιν τὸ τέλος τοῦ πρώτου κώλου
εὑρίσκομεν ἐν τῇ ἀρχῇ τοῦ δευτέρου, ὡς τὸ «οὐκ εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ
ἔγραψα δέ· καὶ οὐκ ἔγραψα μέν, οὐκ ἐπρέσβευσα δέ, οὐδὲ ἐπρέσβευσα μέν,
οὐκ ἔπεισα δὲ Θηβαίους (Demosth., De corona, 179) (2. 4).59
Sobre esta definição, dada por um autor de quem quase nada se conhece60,
pouco há a dizer; de referir apenas que de novo surge o exemplo de Demóstenes, e a
definição, mais curta e simplificada do que outras, vai ao encontro da tradição retórica
até agora estudada, embora com algumas imprecisões. De notar uma aproximação da
59
Pág. 55 da edição de Spengel (1856). Esta fonte não é referida por Kirby e Poster (1998).
Na nossa pesquisa cronológica, revelou‐se progressivamente mais difícil encontrar informação sobre
os autores citados; neste caso, por ser um autor claramente menor e que pouco ou nenhum interesse
suscitou na modernidade, a melhor informação continua a ser, parece‐nos, a que é dada por Walz na
sua edição dos Rhetorici Graeci (1835), na introdução a este tratado (487‐491).
60
37
figura à epanalepse, vincando a ideia de que se trata de uma figura de repetição61, e a
ideia de que existe algo62 no fim de um membro que se repete no princípio do
segundo. Ao usar as expressões τοῦ πρώτου e τοῦ δευτέρου, o autor desta definição
não distingue entre clímax e anadiplose, erro criticado por Tibério, uma vez que clímax
só pode ser considerada uma anadiplose se existir uma repetição continuada
(πλεονάζουσα ἀναστροφή).
João Siciliota, Commentarium in Hermogenis librum Περὶ Ἰδεῶν λόγου (?XI d.C.)
1) καὶ οὐ μόνον ἐπαναφορὰν ἔχει, ἀλλὰ καὶ ἀντιστροφὴν, ὡς γίνεσθαι
καὶ κλίμακα, ἀντιστροφὴ δὲ γίνεται, ὅταν τὸ τέλος τοῦ κώλου τέλος ἑτέρου
κώλου τεθῇ καὶ αὐτίκα δειχθήσεται (Walz 6.333) 63.
2) «Ἔστι δὲ οὐδὲν ἄλλο ἢ πλεονάζουσα ἐπαναστροφή»· τὴν
ἐπαναστροφὴν λέγει ἀναστροφήν· εἰ μὴ σφάλμα γραφικόν ἐστι, δεόμενον
εἶναι ἐπαναστροφή· ἐπαναστρέφει γὰρ καὶ τὸ τέλος τῶν προτέρων κώλων
ἀρχὴν ποιεῖται τῶν δευτέρων· εἴρηται δὲ οὕτως ἀπὸ μεταφορᾶς τῶν
κλιμάκων, ὅτι καὶ ἐπὶ τούτων τὸ τέλος τῆς προτέρας ἀναβαθμίδος ἀρχὴ
γίνεται τῆς δευτέρας· οἷον «ἵνα τῷ ληπτῷ μὲν ἕλκῃ πρὸς ἑαυτὸν, (…) τῷ δ'
ἀλήπτῳ θαυμάζηται, θαυμαζόμενον δὲ ποθῆται πλέον, ποθούμενον δὲ
καθαίρῃ, καθαῖρον δὲ θεοειδεῖς ἀπεργάζηται»64· τοῦτο τὸ κλιμακωτὸν
θαυμάσιόν τι ἔχει καὶ παρὰ τὰ ἄλλα ἐξαίρετον· οὐ γὰρ κατ' ἐπιτήδευσιν
γέγονεν, ἀλλ' ὡς αὐτὴ τοῦ πράγματος ἡ φύσις ἀπῄτει· ἀπὸ γὰρ τῶν
πρακτικῶν ἡ πρὸς θεωρίαν ἐπίδοσις καὶ ἡ θέωσις· καὶ πάλιν· «ἆρ' οὖν
προεθυμήθημεν οὕτως, ἠγώνισται δὲ τῆς προθυμίας ἔλαττον· ἢ ἠγώνισται
61
Aliás, pouco atrás neste tratado (2. 4) a κλῖμαξ é inserida no grupo dos σχήματα λέξεως e
aproximada κατὰ δὲ πλεονασμὸν.
62
Note‐se que o autor usa a prudente expressão τὸ τέλος, evitando assim dizer, por exemplo,
τελευταῖα λέξις, com as implicações já estudadas.
63
In Hermog. I. 12. 302.
64
Gregório de Nazianzo, In Theophania (Oração 38), 1. 7, MPG 36.317. Nas presentes citações das obras
de Spengel e de Walz, a identificação das fontes citadas (fundamentalmente da Patrística Grega) foi de
nossa responsabilidade, uma vez que estas edições não o fazem.
38
μὲν, οὐκ ἀνδρικῶς δὲ, ἢ ἀνδρικῶς μέν»65· εἰλήφθω δὲ καὶ τὰ ἑξῆς (Walz 6. 340) 66.
3) «Ἐπὶ μιᾶς ἰδέας εἶναι»· οὐ κατὰ τὸ ἓν καὶ τὸ αὐτό εἰσι μιᾶς ἰδέας·
ἀλλὰ κατ' ἄλλο καὶ ἄλλο, ὡς ἐδείξαμεν· καὶ μὴν καὶ ἡ λέξις αὐτὴ καθ'
ἑαυτὴν ἁπλῆ χωρὶς τῆς ἐπιμονῆς, τοῦ μὲν προτέρου κλιμακωτοῦ κατὰ
θέσιν ὄντος σεμνότητός ἐστι, μεγαλοπρεπὴς γάρ· τοῦ δὲ δευτέρου
καθαρότητος, σαφὴς γάρ· καὶ οἱ ῥυθμοὶ μεγέθους, καὶ τὸ σχῆμα κατὰ ἄρσιν
γοργότητος ὄν (Walz 6. 341) 67.
4) Σχήματα αἱ παρισώσεις καὶ αἱ κατὰ κῶλον ἐπαναφοραὶ, ἀλλὰ μὴν
καὶ κατὰ κόμμα ἡ ἀντιστροφή· εἰ μὴ κατὰ λόγον λέγοιτο ἡ ἐπαναστροφὴ, ἡ
κλῖμαξ, αἱ ἀναιρέσεις, οἱ κατὰ συζυγίαν μερισμοὶ, τὸ καθ' ὑπέρθεσιν
ὑπερβατὸν, τὰ καινοπρεπῆ, ἡ διὰ δύο προφάσεων κατάφασις καὶ τὸ
πολύπτωτον (Walz 6. 354)68.
É já num documento relativamente tardio (c. séc. XI) que vamos encontrar o
texto que mais usa o termo κλῖμαξ na sua acepção retórica69. Este obscuro autor João
Siciliota, sobre o qual pouco mais se sabe do que o que se diz na edição dos Rhetores
Graeci de Walz (1834, v‐xvi)70, é autor de um comentário à obra de Hermógenes Περὶ
Ἰδεῶν λόγου. A citação 1) refere‐se ao parágrafo em que o retórico do século II
65
Citação bastante truncada de Gregório de Nazianzo, Funebris oratio in laudem Basilii Magni Caesareae
(Oração 43), 32; este passo vai ser citado integralmente num excerto da Rhetorica Anonyma que
analisaremos aqui (pág. 53).
66
In Hermog. I. 12. 304.
67
In Hermog. I. 12. 305.
68
A presente citação é repetida ipsis uerbis no tratado anónimo Εἰς τὸ Περὶ Ἰδεῶν (Walz 7. 85).
69
Ainda assim utiliza o termo uma vez na sua acepção literal de “escada” (εἰ δὲ καὶ ἀπονοίας
κρίνεται καὶ μείζονος ἐπιθυμίας θρόνου, κλίμακα κατασκευάζει, καὶ εἰς τὸν οὐρανὸν
ἀναβιβάζει τοῖς θεωρήμασιν καὶ τῷ θεῷ παραστήσει καὶ δείξει, τί ποτέ ἐστιν ἱερωσύνη, καὶ
τί προσήκει τὸ ταύτης ἀμπέχεσθαι πῦρ, Walz 6. 464).
70
Discute‐se nestas páginas a não identificação deste autor com João Doxopatres (Ioannes Doxopater ab
Ioanne Siceliota diversus est, p. vi), mas não se aduz grande informação sobre ele; sabemos que era um
monge, mas nem acerca da época em que viveu há segurança completa. De resto, nem este autor nem o
seu tratado parecem ter suscitado interesse algum na literatura moderna (não há nenhuma referência a
este comentário no L’Année Philologique), com excepção de algumas referências esparsas e
extremamente sucintas (cf., e.g., Jeffreys, 2007, 171; Lindberg, 1997, 1987); sintomático do
“desinteresse” por esta ainda extensa obra é o facto de Wooten (1987) nem sequer referir o autor na
sua tradução do tratado.
39
aborda os paralelismos (παρισώσεις), em particular as “repetições no princípio da
frase” (processo conhecido por “epanáfora”); João Siciliota aduz alguns passos da
Patrística e finaliza comentando que esses exemplos têm algo não só de epanáfora,
mas também de antístrofe e de clímax, pois em todas estas figuras existem repetições,
embora em posições diferentes.
A
citação
2)
comenta
a
expressão
hermogeneana
πλεονάζουσα
ἐπαναστροφή, de que também já nos ocupámos. Depois de referir que epanástrofe é
o mesmo do que anástrofe, o autor explica o porquê de o clímax ser considerado uma
anástrofe, de forma assaz simplista: “o final da frase antecedente inicia o seguinte”,
não explicitando a razão pela qual Hermógenes usa a expressão πλεονάζουσα. Na
senda dos retóricos que se dedicaram a esta figura, também João Siciliota vai tentar
explicar o porquê de esta se chamar “escada”: “pois em cima destas [das escadas] o
fim do degrau antecedente torna‐se o princípio do seguinte”. Mas o mais interessante
deste comentário ao κλιμακωτὸν σχῆμα de Hermógenes é o facto de só no século
XII se dar outro exemplo que não seja o de Demóstenes e o de Homero, já
sobejamente citados e referidos, e para tal vai usar o corpus da Patrística Grega. O
exemplo de Gregório de Nazianzo é sugestivo: “para que a partir do compreensível
sejamos levados a Ele, e a partir do incompreensível nos possamos admirar, e
admirando mais desejemos, e desejando nos purifiquemos, e purificando‐nos nos
tornemos semelhante a Ele”. Embora o retórico bizantino tenha propositadamente
retirado um parêntese desta citação71, que de certa forma comprometeria a sua
simetria, estamos perante um exemplo moldado, sem dúvida, em forma de escada,
como graficamente se pode entender no seguinte esquema:
71
τὸ γὰρ τελέως ἄληπτον, ἀνέλπιστον, καὶ ἀνεπιχείρητον surgiria na citação onde, por decisão
nossa de edição, se lê uma quebra de texto.
40
5. καθαῖρον δὲ θεοειδεῖς περγάζηται
4. ποθούμενον δὲ καθαίρῃ,
3. θαυμαζόμενον δὲ ποθῆται πλέον,
2. τῷ δʹ ἀλήπτῳ θαυμάζηται,
1. ἵνα τῷ ληπτῷ μὲν ἕλκῃ πρὸς ἑαυτὸν,
De um certo ponto de vista, comparando o esquema anterior com o esquema
semelhante que fizemos a propósito de Demóstenes, vemos que o presente exemplo é
mais bem conseguido, pela forma perfeita como, mercê do poliptoto (θαυμάζηται –
θαυμαζόμενον; ποθῆται – ποθούμενον; καθαίρῃ ‐ καθαῖρον), consegue fazer
com que as palavras se repitam de membro para membro, sem excepção alguma. No
exemplo do orador ateniense tal não acontece: ἔγραψα é repetido no membro
seguinte, mas não é retomado outra vez – o clímax estende‐se apenas na repetição da
forma ἐπρέσβευσα. O próprio comentador da obra de Hermógenes observa a
simetria do passo, ao considerar o presente exemplo como admirável (θαυμάσιον) na
forma como eleva (ἐξαίρω) o seu ouvinte: não se trata de apenas um refinamento
(ἐπιτήδευσις), mas uma forma efectiva de fazer o espírito subir até à contemplação
de Deus. No comentário deste excerto o autor utiliza palavras como ἐξαίρετον e
ἐπίδοσις, expressões que traduzem a ideia de um processo de elevação. O
comentário a este passo do Περὶ Ἰδεῶν finaliza com outra citação de Gregório de
Nazianzo, embora João Siciliota o altere significativamente de forma a ser um exemplo
mais claro de clímax, e de forma a aproximá‐lo mais do anterior. O passo não é porém
comentado e não merece especial atenção, uma vez que este é citado na Rhetorica
Anonyma, e neste contexto e é neste contexto que o analisaremos (pág. 53).
A citação 3) é um comentário ao passo imediatamente seguinte à
caracterização hermogeneana de clímax, em que o retórico grego se refere à
dificuldade em encontrar um exemplo de uma figura, em Demóstenes, que não esteja
interligada com outra. João Siciliota acaba por não comentar especificamente estas
41
palavras, preferindo tecer uma série de elogios e juízos de valor ao exemplo citado. De
sublinhar, no entanto, que o comentador divide o passo do orador ateniense em duas
partes: um primeiro clímax (τοῦ μὲν προτέρου κλιμακωτοῦ) e um segundo (τοῦ δὲ
δευτέρου), não especificando o que entende por isto; julgamos que o autor se refere
à estrutura claramente bipartida do exemplo: 1) οὐκ εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ ἔγραψα
δέ· ἢ ἔγραψα μέν, 2) οὐκ ἐπρέσβευσα δέ· οὐκ ἐπρέσβευσα μέν, οὐκ ἔπεισα δὲ
Θηβαίους, considerando assim o exemplo uma anadiplose dupla, algo que no entanto
não é visível no exemplo dado de Gregório de Nazianzo. A citação 4) surge no contexto
de uma sinopse sobre o capítulo περὶ κάλλους, associando mais uma vez o clímax e a
anástrofe num mesmo grupo de figuras.
Eustátio, Commentarii ad Homerum (XII d.C.)
1) τὸ δὲ σχῆμα τοῦ ῥηθέντος χωρίου κλίμακα καὶ κλιμακωτὸν
λέγουσιν οἱ παλαιοί, ἕτεροι δὲ ἐποικοδόμησιν. γίνεται δὲ σχῆμα
κλιμακωτόν, ὅταν τὸ λῆγον τῆς φθασάσης ἐννοίας ἀρχὴ γένηται τῆς
ἐφεξῆς, οἷον ὡς εἴ τις εἴπῃ· ὁ βασιλεὺς ἀγαθός· ὁ ἀγαθὸς ἀγαθὰ ποιεῖ· ὁ
ἀγαθὰ ποιῶν εὐεργετεῖ· ὁ εὐεργετῶν θεὸν μιμεῖται. τοιοῦτόν τι κἀνταῦθα τὸ
σχῆμα· Ἥφαιστος μὲν ἔδωκε Διΐ, Ζεὺς δὲ τῷ Ἑρμῇ, Ἑρμῆς δὲ Πέλοπι καὶ
καθεξῆς. κάλλους δὲ σχῆμα κατὰ τοὺς παλαιοὺς τὸ κλιμακωτὸν οἰκεῖον ὂν
πανηγυρικαῖς ἐννοίαις, ὁποία τις ἐνταῦθα καὶ ἡ κατὰ τὸ βασιλικὸν
σκῆπτρον γενεαλογία. τῆς δ' αὐτῆς ἰδέας καὶ τὸ αὐτάρ τρὶς κείμενον
ἐνταῦθα ἐπαναφορικῶς ἐν καταρχῇ στίχων ἕνα παρ' ἕνα, καὶ ἡ ῥηθεῖσα
ἐπιμονὴ καὶ τὰ ποιητικὰ πάρισα, τὸ «πολλῇσι νήσοισιν ἀνάσσειν» καὶ τὸ
«αὐτὰρ ὁ αὖτε» δὶς τεθὲν κατ' ἐπαναφορὰν ἐν δυσὶ στίχων ἀρχαῖς, εἰ καὶ
ποιητικῶς πέφρασται. παρίσωται δὲ καλῶς καὶ τὸ «Διῒ Κρονίωνι ἄνακτι» (In
Iliadem II. 101‐8, Valk, 1.278).
42
2) ἔχει δέ τι κλιμακωτοῦ σχήματος τὸ «ἔδδεισεν Ἀϊδωνεύς, δείσας δ'
ἐκ θρόνου ἆλτο». οὗ διασαφητικὸν τὸ ὑπέρθορεν (In Iliadem XX. 61‐2, Valk
4.367).
3) Ὡς δὲ καὶ τὸ «Δάρδανον τέκετο Ζεύς, Δάρδανος δὲ Ἐριχθόνιον,
Τρῶα δ' Ἐριχθόνιος» καὶ οἱ ἑξῆς τοὺς ἑξῆς, ἐποικοδόμησίς ἐστιν ἤγουν
σχῆμα κλιμακωτόν, οἴδασιν οἱ περὶ λόγους (In Iliadem XX. 237, Valk 4.397).
4) Σαφηνίζεται δὲ δι' αὐτοῦ κλιμακωτῶς εὐθὺς τεθὲν τὸ «χεύαντες δὲ
τὸ σῆμα πάλιν κίον», ὅ ἐστιν ὑπεχώρησαν, ὃ καὶ ἐπὶ Ἕκτορος ῥηθήσεται.
ἔστι γὰρ ἑρμηνεία τοῦ «χεύαντες τὸ σῆμα» τὸ «χυτὴν ἐπὶ γαῖαν ἔχευαν»,
ὅπερ σῆμά ἐστι τεθνεῶτός τινος, ὡς καὶ ἀλλαχοῦ εἴρηται (In Iliadem XXIII. 257,
Valk 4. 720).
5) οἱ δὲ ῥήτορες παράγωγον ἐξ αὐτῆς ἔχουσι σχῆμα τὸ κλιμακωτόν
(In Odysseam X. 560, Stallbaum, 1.394).
Nos conhecidos comentários à obra de Homero, Eustátio de Tessalonica
refere‐se algumas vezes à figura retórica conhecida como clímax, embora na maior
parte (cerca de três quartos) das ocorrências de κλῖμαξ neste autor não exista este
sentido técnico. A mais interessante citação é a 1), que serve de comentário ao passo
de Homero (Il. II. 104‐109) que a escola retórica decidiu eleger como paradigmático do
clímax, e que apresenta uma definição precisa: “o clímax surge quando aquilo que é
deixado (τὸ λῆγον) do pensamento (ἔννοια) anterior se torna o princípio do
seguinte”. Tal como Tibério, Eustátio vai apresentar um neutro (τὸ λῆγον) para se
referir àquilo que é objecto de repetição, não mencionando o tipo de repetição (literal,
em poliptoto, ou de ideia), classificando‐a apenas como ἔννοια, expressão que
confere de certa forma liberdade ao processo estilístico. No entanto, não há qualquer
distinção entre clímax e anadiplose, pois não existe qualquer referência ao facto de,
para haver clímax, a repetição ter de ser contínua. O comentador, porém, é o primeiro
autor a dar um exemplo de clímax que nos parece, após busca no TLG por contexto, de
43
sua lavra: “o rei é bom; o bom faz o bem, o que faz o bem é benfeitor. O benfeitor
imita deus”. O exemplo, que pretende ilustrar a forma como a figura é construída,
aproxima‐se assaz do exemplo já analisado de Gregório de Nazianzo, especialmente na
forma como a “escada” culmina na μίμησις de Deus. Parece‐nos, como é
graficamente evidente, que estamos mais uma vez perante um exemplo de processo
gradativo ascendente, que desenha o movimento de ascensão do humano a Deus:
4. ὁ εὐεργετῶν θεὸν μιμεῖται.
3. ὁ ἀγαθὰ ποιῶν εὐεργετεῖ·
2. ὁ ἀγαθὸς ἀγαθὰ ποιεῖ·
1. ὁ βασιλεὺς ἀγαθός·
Procurando aproximar o exemplo dado do passo homérico que comenta,
Eustátio tenta “moldar” o texto homérico de forma a caber no seu próprio
entendimento de clímax, resumindo desta forma os versos originais: Ἥφαιστος μὲν
ἔδωκε Διΐ, Ζεὺς δὲ τῷ Ἑρμῇ, Ἑρμῆς δὲ Πέλοπι καὶ καθεξῆς. É este, no entender
do estudioso, o “esqueleto” do clímax nesta passagem ‐ uma figura que se aproxima
do “pensamento solene” (πανηγυρικαῖς ἐννοίαις). De facto, colocado desta forma,
o paradigma homérico de clímax finalmente parece “caber” nas anteriores definições,
pois aqui o fim de um membro inicia o segundo. O comentador, porém, sabe que para
o clímax presente também concorrem outros aspectos, como a repetição de αὐτάρ
por três vezes, em forma de anáfora, a elaboração (ἐπιμονή) e a estrutura paralela
(τὰ ποιητικὰ πάρισα) dos versos, a repetição por três vezes “de αὐτὰρ ὁ αὖτε” em
epanáfora e igualmente a repetição das formas verbais δῶκε(ν) e ἔλιπεν (λεῖπε).
Esta estrutura de um paralelismo de grande efeito é aliás perfeitamente visível numa
tradução portuguesa, especialmente se colocarmos em negrito as palavras em relação
de clímax e se sublinharmos as palavras que se repetem de verso para verso:
44
“(…) Levantou‐se o poderoso Agamémnon,
Segurando o ceptro que com seu esforço fabricara Hefesto.
Hefesto deu‐o depois a Zeus Crónida soberano,
E por sua vez o deu Zeus ao forte Matador de Argos,
Hermes soberano, que o deu a Pélops, condutor de cavalos;
Por sua vez de novo o deu Pélops a Atreu, pastor do povo;
E Atreu ao morrer deixou‐o a Tiestes dos muitos rebanhos;
Por sua vez o deixou Tiestes a Agamémnon para que o detivesse,
Assim regendo muitas ilhas e toda a região de Argos.”72
Assim Eustátio, melhor do que qualquer outro autor, consegue no exemplo de
Homero identificar aquilo que é próprio do clímax retórico, ao mesmo tempo que
explica a forma como as anáforas e outros paralelismos síncronos contribuem para a
fluidez retórica do passo. Outro aspecto a observar neste comentário é o facto de o
seu autor fazer equivaler (ἕτεροι δὲ…), logo nas suas palavras iniciais, o clímax ao
processo estilístico conhecido como ἐποικοδόμησις, cuja fonte exclusiva na
antiguidade parece ser Aristóteles, que se refere ao termo em dois passos, na Retórica
e na Geração dos Animais. Vale a pena determo‐nos um pouco neste assunto. O passo
aristotélico da Retórica (I. 7. 1365a16) fala‐nos mais especificamente do verbo
ἐποικοδομεῖν, que significa, à letra, “construir casa sobre casa” (ἐπί + οἶκος +
δέμω), e que a versão portuguesa de Alexandre Júnior (Alexandre Júnior, Alberto, e
Pena 1998) traduz por “acumulação”. No contexto propriamente dito, inserido no
capítulo sobre “graus do bom e do conveniente”, não se acrescenta muito sobre a
forma como tecnicamente ele se constitui; o filósofo refere‐se apenas ao facto de, tal
como a combinação e a divisão, este processo engrandecer o assunto, à semelhança
do processo retórico conhecido pelo seu nome latino, accumulatio. Aduz, a este
respeito, Epicarmo, autor que volta a citar nas Geração dos Animais (I. 18, 724a29),
quando precisamente fala outra vez da ἐποικοδόμησις – ἔτι δὲ παρὰ ταῦτα ὡς
Ἐπίχαρμος ποιεῖ τὴν ἐποικοδόμησιν, ἐκ τῆς διαβολῆς ἡ λοιδορία, ἐκ δὲ
ταύτης ἡ μάχη. O texto parafraseado, “da calúnia segue‐se o abuso, e deste a luta”,
72
Il. II. 100‐8. Tradução de Frederico Lourenço (2005).
45
está provavelmente73 relacionado com o fragmento 148 Kaibel (= Ateneu II. 36 c, d) de
Epicarmo:
A. ἐκ μὲν θυσίας θοῖνα,
ἐκ δὲ θοίνας πόσις ἐγένετο. B. χαρίεν, ὥς γʹ ἐμὶν <δοκεῖ>.
A. ἐκ δὲ πόσιος μῶκος, ἐκ μώκου δʹ ἐγένεθʹ ὑανία,
ἐκ δʹ ὑανίας <δίκα .., ἐκ δίκας δὲ κατα>δίκα,
ἐκ δὲ καταδίκας πέδαι τε καὶ σφαλὸς καὶ ζαμία.
O fragmento tem claramente características que nos permitem aproximá‐lo do
clímax: em termos técnicos, existe uma repetição da palavra (que salientámos a
negrito) do fim do membro para o início do seguinte, num movimento semelhante ao
clímax retórico posterior. No entanto, temos necessariamente que pensar no contexto
em que a referência surge em Aristóteles, antes de fazermos uma completa
assimilação da ἐποικοδόμησις à κλῖμαξ. O exemplo serve a Aristóteles para ilustrar
um dos tipos de elo causal que existe na natureza, num parágrafo em que tece
considerações acerca do sémen e da forma como a partir deste se engendra um ser.
Esta explicação para a origem do movimento (ἡ ἀρχὴ τῆς κινήσεως), para esta
“causa eficiente” traduz‐se pela ἐποικοδόμησις, e não é portanto claro que afinidade
existe entre esta e a κλῖμαξ74. Aliás, é significativo que um autor como
Pseudo‐Longino, um dos primeiros a referir a figura κλῖμαξ, fale também na
ἐποικοδόμησις sem relacionar os dois termos; o sugestivo contexto (τῇ τε τῶν
λέξεων ἐποικοδομήσει τὰ μεγέθη συναρμόζουσαν, 39) diz‐nos que para o
sublime em muito contribuiu a composição (σύνθεσις), o “construir frase sobre frase”
de forma a criar um “todo majestoso”. Sendo assim, em todo o TLG, Eustátio é o único
autor a aproximar ἐποικοδόμησις de κλῖμαξ: parece‐nos que a intenção do autor ao
73
Cf. Peck (1942, p. 73 n. c). Parece‐nos haver poucas dúvidas de que é este o passo a que Aristóteles se
refere.
74
Pelo menos de forma tão peremptória como o fazem Kirby e Poscher (1998, 1108): “man geht davon
aus, daß mit dem Phänomen des ἐποικομεῖν, d.h. des «Übereinander‐Bauens», von dem Aristoteles in
seiner <Rhetorik> spricht, das gemeint ist, was später K. genannt wurde”.
46
fazê‐lo é sublinhar o clímax como uma figura que subentende uma conexão formal e
causal entre os elementos que o constituem – e não tanto sublinhar a técnica com que
essa conexão se opera. Esta ideia será, como veremos, importante para
compreendermos o termo e a sua fortuna na modernidade.
As restantes citações de Eustátio são, de certa forma, subsidiárias da primeira,
e revelam um zelo inaudito em encontrar passos de Homero que exemplifiquem τὸ
κλιμακωτὸν σχῆμα. A citação 2) comenta os seguintes versos da Ilíada: ἔδεισεν δ'
ὑπένερθεν ἄναξ ἐνέρων Ἀϊδωνεύς, /
δείσας δ' ἐκ θρόνου ἆλτο καὶ ἴαχε, μή
οἱ ὕπερθε (XX. 61‐2). Como claramente se pode verificar, não estamos perante um
clímax; Eustátio acaba por confirmar isso mesmo, ao dizer que os versos apenas “têm
algo de clímax” (τι κλιμακωτοῦ σχήματος). Na verdade, estamos perante uma
forma verbal (ἔδεισεν) que se repete em poliptoto no início do verso seguinte
(δείσας), processo conhecido como anadiplose; é evidente o erro já criticado por
Tibério de confundir anadiplose com clímax.
A citação 3) surge em comentário aos versos XX. 215‐240 da Ilíada, passo em
que, na primeira pessoa, Eneias, em diálogo com Aquiles, traça a sua linhagem divina a
partir de Zeus. Eustátio classifica o exemplo como clímax, fazendo‐o corresponder
(ἐστιν ἤγουν) mais uma vez esta figura à aristotélica ἐποικοδόμησις. Como se pode
observar, existe uma forte proximidade entre este exemplo e o passo paradigmático
de Homero usado para exemplificar o clímax. Para começar, trata‐se de uma
genealogia; se o paradigma traça a origem e os diversos donos do ceptro de Hefesto, o
presente passo fala sobre a linhagem divina de Eneias (Zeus – Dárdano – Erictónio –
Trós – Assáraco – Cápis – Anquises – Eneias). No entanto, como facilmente se pode ler
ao passar os olhos sobre os versos em questão, o entendimento de clímax que o seu
autor faz é assaz lato e abrangente. Seguramente o comentador homérico estaria a
pensar em II. 100‐8 quando classificou inequivocamente estes versos como um clímax.
Esta leitura aparentemente “forçada”, disfarça‐a aliás o incansável erudito pela forma
como introduz o seu comentário: «Δάρδανον τέκετο Ζεύς, Δάρδανος δὲ
Ἐριχθόνιον, Τρῶα δ' Ἐριχθόνιος» καὶ οἱ ἑξῆς τοὺς ἑξῆς, esquematizando desta
forma o “esqueleto” do clímax em questão, que se estende por 25 versos. Abreviando
47
e eliminando os versos que não parecem directamente implicados neste clímax,
ficaríamos com o seguinte esquema:
Δάρδανον αὖ πρῶτον τέκετο νεφεληγερέτα Ζεύς,
κτίσσε δὲ Δαρδανίην, ἐπεὶ οὔ πω Ἴλιος ἱρὴ (Il. XX.215‐216)
(…)
Δάρδανος αὖ τέκεθʹ υἱὸν Ἐριχθόνιον βασιλῆα (219)
(…)
Τρῶα δʹ Ἐριχθόνιος τέκετο Τρώεσσιν ἄνακτα·
Τρωὸς δʹ αὖ τρεῖς παῖδες ἀμύμονες ἐξεγένοντο
Ἶλός τʹ Ἀσσάρακός τε καὶ ἀντίθεος Γανυμήδης (230‐232)
(…)
Ἀσσάρακος δὲ Κάπυν, ὃ δʹ ἄρʹ Ἀγχίσην τέκε παῖδα·
αὐτὰρ ἔμʹ Ἀγχίσης, Πρίαμος δʹ ἔτεχʹ Ἕκτορα δῖον. (239‐240)
Mesmo desta forma o esquema de Lausberg (1960, 315) “/…x/x…y/y…z.”, já
referido neste estudo, não se pode aplicar. Daqui podemos pressupor que o
comentador de Constantinopla entende o clímax mais como um processo de
construção, de ἐποικοδόμησις, de causa/efeito, num sentido bem mais amplo do
que simplesmente uma figura de repetição de palavras. Sublinha‐se pois a conexão
formal ao nível de sentido que surge na κλῖμαξ.
A citação 4) vai procurar definir como clímax uma série de dois versos (Il. XXIII.
256‐7):
(…) εἶθαρ δὲ χυτὴν ἐπὶ γαῖαν ἔχευαν,
χεύαντες δὲ τὸ σῆμα πάλιν κίον. (…)
Depois de definir como figura etimológica a repetição de formas relacionadas
com a raiz do verbo χέω (χυτὴν ‐ ἔχευαν, χεύαντες), Eustátio fala com prudência
“em algo em forma de clímax” usando para tal o advérbio κλιμακωτῶς. Como se
48
pode entender pelo exemplo, à semelhança do que foi comentado a propósito da
citação 2), trata‐se de apenas uma repetição (ἔχευαν – χεύαντες) em forma de
clímax, o que resulta, se seguirmos as palavras de Tibério, numa anadiplose, e não
num clímax. A última citação, 5), é o único passo nos comentários à Odisseia em que
Eustátio se refere à figura de que nos ocupamos. A propósito do verso X.558, em que o
jovem Elpenor perde a sua vida ao cair de cabeça de um telhado, pois perturbado pelo
tumulto se esqueceu de descer pela escada, Eustátio disserta longamente sobre o
significado metafórico de escada, que para o autor simboliza a fortuna75.
Paralelamente, comenta que foi a partir desta κλῖμαξ, no sentido de “escada”, que os
retores chegaram por derivação (παράγωγον) à expressão τὸ κλιμακωτὸν σχῆμα,
sendo pois claro que o estudioso tinha consciência da inequívoca relação entre o
clímax retórico e a prosaica κλῖμαξ.
Rhetorica Anonyma76
1) ΠΕΡΙ ΚΛΙΜΑΚΩΤΟΥ ΣΧΗΜΑΤΟΣ.
Κλιμακωτόν ἐστι σχῆμα, ὅταν ἡ ἐπαναστροφὴ πολλάκις γένηται τῷ
λόγῳ. «οὐκ εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ ἔγραψα δέ, οὐδὲ ἔγραψα μέν, οὐκ
ἐπρέσβευσα δέ.»77 τὸ γὰρ «ἔγραψα» ἔστι τέλος τοῦ πρώτου κώλου, ἀρχὴ δὲ
τοῦ δευτέρου· εἶτα «ἐπρέσβευσα μέν, οὐκ ἔπεισα δέ.» ὡραῖον κλιμακωτὸν
παρ' Ὁμήρῳ, ∙«(…) τὸ μὲν Ἥφαιστος κάμε τεύχων, / Ἥφαιστος δὲ δῶκε Διῒ
Κρονίωνι ἄνακτι·» ἀλλάξας τὴν λέξιν εἶπεν ἑτέραν τὸ αὐτὸ σημαίνουσαν,
«αὐτὰρ ἄρα Ζεὺς δῶκε διάκτορι Ἀργειφόντῃ·» ὁ γὰρ Κρονίων Ζεύς ἐστιν·
«Ἑρμείας δὲ ἄναξ δῶκεν Πέλοπι πληξίππῳ· / αὐτὰρ ὁ αὖτε Πέλοψ δῶκ'
75
Refere a este propósito o hábito de algumas mulheres fazerem de escada para que as pessoas,
subindo pelas suas costas, pudessem aceder à carruagem (as chamadas κλιμακίδες ‐ cf. Plu. 2.50d).
76
Não contemplamos aqui dois passos, Walz 7.85 e Walz 7.901, de comentários anónimos ao Περὶ
Ἰδεῶν de Hermógenes, onde de facto surge o termo clímax no seu sentido retórico, pois estes são,
como já referimos em nota de rodapé (cf. supra nota 57 e 68), citações ipsis uerbis respectivamente de
João Siciliota (Commentarium in Hermogenis librum Περὶ Ἰδεῶν λόγου, Walz 6.354) e de Siriano
(Siriano, In Hermogenem Περὶ Ἰδεῶν λόγου, Rabe 20‐21) e estes textos já foram analisados.
77
Demóstenes, De corona, 179.
49
Ἀτρεΐ ποιμένι λαῶν· / Ἀτρεὺς δὲ θνήσκων ἔλιπεν πολύαρνι Θυέστῃ·» ὧδε
γὰρ τὸ αὖ τέθεικεν ἀντὶ τοῦ· «ὁ αὖτε Θυέστ' Ἀγαμέμνονι λεῖπε φωρῆναι·»78
Λέγεται δὲ τοῦτο ἀντονομασία. (…) ὅμοιον τούτῳ καὶ ὁ θεολόγος ἐχρήσατο
εἰς τὸν ἐπιτάφιον τοῦ ἁγίου Βασιλείου· κατὰ παραλλαγὴν γὰρ λέξεως
πεποίηκε τὸ κλιμακωτόν, ὡς ἂν μὴ σαφὴς ἡ πρὸς κάλλος ἐπιβουλὴ γένοιτο,
μιμούμενος τὸν Δημοσθένην ἐν ταῖς παρισώσεσιν. ἐκεῖνος μὲν γὰρ τοὺς
τόπους ἀλλάσσει, ὁ δὲ θεολόγος τὰς λέξεις ἄλλας ἀντ'ἄλλων τιθεὶς τὰ αὐτὰ
σημαινούσας, ὡς ἂν λάθοι καλλωπίζων. «ἆρ' οὖν προτεθύμηται μὲν οὕτως,
ἠγώνισται δὲ τῆς προθυμίας ἔλαττον, ἢ διαγωνίζεται μὲν ἀνδρικῶς,
ἀσυνέτως δέ, πεπαιδευμένως» (ἀντὶ τοῦ συνετῶς, ἀλλ' ἐξέφυγε τὸ φανερὸν
τῆς ταυτολεξίας) «ἀκινδύνως δέ, ἢ πάντα μὲν ταῦτα τελείως καὶ ὑπὲρ λόγον,
ὑπελείπετο δέ τι τῆς μικροψυχίας ἐν ἑαυτῷ λείψανον;»79 κλιμακωτὸν
φανερὸν ἐν τῇ πρὸς Κληδόνιον, «ὃ γὰρ τὴν ἐντολὴν ἐδέξατο, τοῦτο καὶ τὴν
ἐντολὴν οὐκ ἐφύλαξεν· ὃ δὲ οὐκ ἐφύλαξε, τοῦτο καὶ τὴν παράβασιν
ἐτόλμησεν· ὃ δὲ παρέβη, καὶ σωτηρίας ἐδεῖτο μάλιστα· ὃ δὲ σωτηρίας ἐδεῖτο,
τοῦτο καὶ προσελήφθη.»80 καὶ ἐν τῷ εἰς τὰ φῶτα λόγῳ, «οὗ δὲ φόβος,
ἐντολῶν τήρησις, οὗ δὲ ἐντολῶν τήρησις, σαρκὸς κάθαρσις»81, καὶ ἑξῆς. καὶ
πάλιν, «ὅσον ἂν καθαιρώμεθα, φανταζόμενον, καὶ ὅσον ἂν φανταζώμεθα,
ἀγαπώμενον,
καὶ
ὅσον
ἂν
ἀγαπήσωμεν,
αὖθις
νοούμενον.»82
τοῦ
Χρυσοστόμου ἐκ τοῦ εἰς τὰς πράξεις, «μαθόντες γὰρ ἂν αὐτὴν [sic]
ἀπεστράφησαν, ἀποστραφέντες δὲ οὐκ ἂν ἤκουσαν, μὴ ἀκούσαντες δὲ
ἔμειναν ἐπὶ τῆς πλάνης τῆς προτέρας.»83 τοῦ αὐτοῦ, «ὁρᾷς πῶς πρόεισι τὸ
κακόν, ἡ πικρία τὸν θυμὸν ἔτικτεν, ὁ θυμὸς τὴν ὀργήν, ἡ ὀργὴ τὴν κραυγήν,
ἡ κραυγὴ τὴν βλασφημίαν, ἡ βλασφημία τὰς πληγάς, αἱ πληγαὶ τὰ
78
Ilíada, II. 101‐7.
Gregório de Nazianzo, Funebris oratio in laudem Basilii Magni Caesareae (Oração 43), 32.
80
Gregório de Nazianzo, Epistulae theologicae (Τοῦ αὐτοῦ πρὸς Κληδόνιον πρεσβύτερον
ἐπιστολὴ πρώτη) 101.51.
81
Gregório de Nazianzo, In sancta lumina (Oração 39), 8.
82
Gregório de Nazianzo, In sanctum baptisma (Oração 40), 5.
83
João Crisóstomo, In epistulam ad Galatas commentarius, MPG 61.636.
79
50
τραύματα, τὰ δὲ τραύματα θάνατον.»84 τοῦ αὐτοῦ, «ἵνα αἰδέσιμοι ὄντες
μᾶλλον αὐτοῖς ὦσι περισπούδαστοι, περισπούδαστοι δὲ ὄντες αὐτοὺς
ἐφέλκωνται, ἐφελκόμενοι δὲ προσηλῶσι τῇ λατρείᾳ, προσηλοῦντες δὲ τῇ
λατρείᾳ εἰς μείζονα ἄγωσιν ἀρετήν, δι' ἣν πάντα γίνονται.»85 τοῦ ἁγίου
Πέτρου, «ἐπιχορηγήσατε ἐπὶ τῇ πίστει ὑμῶν τὴν ἀρετήν, ἐν δὲ τῇ ἀρετῇ τὴν
γνῶσιν, ἐν δὲ τῇ γνώσει τὴν ἐγκράτειαν,»86 καὶ τὰ ἑξῆς (Anónimo, Περὶ τῶν
τοῦ λόγου σχημάτων, Spengel 3.133‐136).
2) ΚΛΙΜΑΚΩΤΟΝ.
Κλιμακωτὸν
δέ
ἐστιν
ἄριστον
καὶ
πρόξενον
κόσμου
τοῖς
συγγράμμασι, χρώμεθα δὲ ἅπαξ πρεπόντως· σπανίως γὰρ χρῆσθαι
προσήκει τοῖς ξενοπρεπέσιν, ἵνα μὴ τῇ καταχρήσει γίνωνται ὑπερκορῆ.
γίνεται δὲ τὸ κλιμακωτόν, ὅταν ἐπὶ τὸ πλέον μηκύνοντες τὸ προκείμενον
κεφάλαιον ἕκαστον κόμμα τὸ αὐτὸ τελευτὴν καὶ ἀρχὴν ποιώμεθα.
κατάληξιν μὲν πρότερον, ἀρχὴν δὲ τοῦ ἑπομένου, οἷον τὸ «ἄληπτον οὖν τὸ
θεῖον, ἵνα θαυμάζηται, θαυμαζόμενον δὲ ποθῆται, ποθούμενον δὲ καθαίρῃ,
καθαῖρον δὲ θεοειδεῖς ἀπεργάζηται»87. (Anónimo, Περὶ τῶν σχημάτων τοῦ
λόγου, Spengel 3. 183)
3) φράσεως δὲ καὶ λέξεως σχήματα πάλιν ἄλλα·
παροίχησις καὶ πάρισον, κλιμακωτὸν, διπλώσεις,
ἐπιμοναὶ καὶ κύκλοι τε καὶ ἀντιστροφαὶ δέ.
(Anónimo, Ἐπιτομὴ ῥητορικῆς, Walz 3. 642)
84
João Crisóstomo, In Epistulam ad Ephesios (Homilia 15), MPG 62.110 .
João Crisóstomo, Expositiones in Psalmos (In Psalmum CXXXV), MPG 55. 399.
86
2 Pe 1, 5.
87
Gregório de Nazianzo, In Theophania (Oração 38), 1. 7.
85
51
Nos tratados anónimos de Retórica que foram sendo produzidos na antiguidade
tardia, coligidos por Spengel e Walz, encontramos algumas referências à figura clímax.
A mais interessante é sem dúvida a citação 1), que resulta numa profusa compilação
de exemplos da Patrística Grega, além do tradicional exemplo de Demóstenes e de
Homero. A definição de clímax é precisa: “o clímax é uma figura que surge quando se
gera várias vezes uma epanástrofe numa frase”. A ideia de uma epanástrofe repetida
(πολλάκις) enquadra‐se no entendimento que de clímax fazem Hermógenes e
Tibério. No comentário ao exemplo de Demóstenes, o autor limita‐se a descrever o
processo de construção, “O ἔγραψα é o fim do membro anterior, e o princípio do
segundo”, enquanto no exemplo de Homero relaciona o clímax com a antonomásia,
como forma de explicar que a repetição de palavra pode não ser literal, como acontece
entre o epíteto “O Matador de Argos” e Hermes. O primeiro exemplo de Gregório de
Nazianzo vem ao encontro desta concepção menos restritiva de clímax; se atentarmos
bem no passo deste Padre da Igreja, já citado por João Siciliota, é difícil interpretarmos
que palavras estarão em relação de clímax; provavelmente estaremos perante um
conjunto de seis membros, em que apenas os três iniciais exemplificam a figura:
1. ἆρ' οὖν προτεθύμηται μὲν οὕτως, ἠγώνισται δὲ τῆς προθυμίας ἔλαττον,
2. ἢ διαγωνίζεται μὲν ἀνδρικῶς, ἀσυνέτως88 δέ,
3. [ἢ]89 πεπαιδευμένως, ἀκινδύνως δέ,
4. ἢ πάντα μὲν ταῦτα τελείως καὶ ὑπὲρ λόγον,
5. ὑπελείπετο δέ τι τῆς μικροψυχίας ἐν ἑαυτῷ λείψανον;
88
Para compreender a relação de ἀσυνέτως com πεπαιδευμένως, é preciso ter em conta que no
original de Gregório de Nazianzo, na edição de Boulenger (1908), não se lê ἀσυνέτως mas οὐ
συνετῶς. Na realidade, só assim se explica a relação de clímax entre πεπαιδευμένως (de modo
ensinado) com συνετῶς (de modo inteligente). Como explica o próprio autor: “usou ἀσυνέτως pelo
oposto de συνετῶς, e assim fugiu a uma óbvia tautologia”.
89
Este ἢ surge aliás no original de Gregório de Nazianzo, na edição de Boulenger (1908).
52
Embora se verifique que, em bom rigor e segundo a definição do próprio autor,
apenas temos duas epanástrofes seguidas (o que de facto corresponde a um clímax), e
ainda assim por antonomásia, para o paralelismo do excerto contribui o facto de haver
duas figuras etimológicas (sublinhadas no excerto) no início e no fim do período, e
igualmente a insistência nos advérbios em –ως, e igualmente a anáfora de ἢ no 2º, 3º
e 4º membros. Aliás, o exemplo é tão discutivelmente um clímax que João Siciliota o
citou de forma bastante truncada e imprecisa, de forma a caber na sua definição da
figura.
Já os outros exemplos dados por este tratado são bem mais felizes. O cânone
dos exemplos reduz‐se a Gregório de Nazianzo e a João Crisóstomo, e isto aplica‐se
não só a este tratado, mas a todos os autores da Patrística citados a respeito do clímax.
Na segunda citação de Gregório de Nazianzo90, retirada da sua primeira epístola ao
bispo Cledónio, é bem visível um clímax perfeito do ponto de vista retórico, com o final
dos membros a iniciarem o próximo, como é observável também no português:
8. foi aquele que Ele também tomou a si
7. E aquele que precisa de salvação
6. foi aquele que precisa mais que todos de salvação.
5. E aquele que desobedeceu,
4. foi aquele que na transgressão se aventurou.
3. E aquele que a não cumpriu,
2. foi aquele que a ordem não cumpriu.
1. aquele que recebeu a ordem,
90
As citações traduzidas encontram‐se elencadas no texto.
53
Mais uma vez, o presente exemplo traça um movimento ascendente em
direcção a Deus, tal como os já anteriormente analisados91. Neste passo temos a
vantagem de poder ver como o clímax retórico se pode estender por vários membros,
e igualmente verificar os elos de conexão formal que entre eles se estabelecem. Os
outros exemplos da Patrística são evidência igualmente disto, e tecnicamente todos se
caracterizam pela mesma repetição de palavras, literal ou por antonomásia. Temos
mais dois exemplos de Gregório de Nazianzo: “onde há medo, há o cumprimento dos
mandamentos, onde há o cumprimento dos mandamentos, há purificação da carne” e
“na mesma medida em que somos purificados, Ele apresenta‐se perante nós, e na
mesma medida em que nós somos apresentados perante Ele, somos amados, e na
mesma medida em que somos amados, Ele é conhecido”. Este último exemplo traça de
novo um movimento ascendente, desta feita em direcção ao conhecimento de Deus.
Os exemplos de João Crisóstomo são semelhantes: “sabendo isto, eles ter‐lhe‐iam
virado as costas, e virando‐lhe as costas, não o ouviriam, e não o ouvindo, teriam
continuado no mesmo erro anterior”. Aqui o aspecto de conexão formal é mais
evidente, não havendo lugar para um crescendo de expressão. Já no segundo exemplo,
é patente mais uma vez um indubitável crescendo que desenha uma escada, cujo
primeiro degrau é a amargura e o último a morte: “observa como o mal avança: a
amargura produz a ira, a ira a raiva, a raiva o grito, o grito a blasfémia, da blasfémia os
golpes, dos golpes as feridas, e das feridas a morte”. No último exemplo de João
Crisóstomo, “para que sendo respeitados sejamos mais procurados por eles, e sendo
procurados atraiam outros, e os que foram atraídos fiquem presos ao culto, e os que
ficam presos ao culto procurem cada vez mais a virtude, a partir da qual tudo surge”, é
igualmente manifesto um caminho gradativo em direcção à virtude. O texto finaliza
com um exemplo do Novo Testamento (2 Pe 1, 5): “acrescentai à vossa fé a virtude, à
virtude o conhecimento, e ao conhecimento o domínio próprio”. De todos estes
numerosos exemplos citados não se retiram conclusões novas, servindo o presente
texto como o maior manancial de exemplos da escola retórica sobre a figura que
estudamos.
91
Para uma análise semelhante de um período de Tertuliano que traça um movimento ascendente até
Deus, cf. Sciuto (1966, 40‐43).
54
A definição de clímax dada pela citação 2) de outro tratado anónimo de
retórica, desta feita o Περὶ τῶν σχημάτων τοῦ λόγου, é basicamente a mesma
dada por Alexandre, e que portanto já foi comentada. Tal como Hermógenes, o
presente autor classifica superlativamente a figura (ἄριστον), ao mesmo tempo que
refere a sua raridade (σπανίως); o exemplo dado de Gregório de Nazianzo é
exactamente o mesmo que João Siciliota aduziu, pelo que já foi analisado. Original é a
forma enfática como se conclui que a figura promove a ordem nas composições
escritas (πρόξενον κόσμου τοῖς συγγράμμασι), acentuado o clímax como uma
estrutura organizacional do discurso, embora tendo sempre em conta que se trata da
disposição formal de um período retórico, e não de um discurso ou texto visto como
um todo. A citação 3) parte de uma citação de um tratado de retórica escrito em verso
(nos chamados uersi populares), e limita‐se a enquadrar o clímax como uma figura de
palavra, φράσεως δὲ καὶ λέξεως σχήματα, não definindo o termo nem retornando
a ele no tratado.
Scholia in Homerum
1) ὁ τρόπος κλῖμαξ· τὸ λῆγον γὰρ τῆς διανοίας ἀρχὴ γίνεται τῶν ἑξῆς
(in Iliadem 2.101‐7a)92.
2) ἄχρι δὲ τοῦ «αὐτὰρ ὁ αὖτε Θυέστ' Ἀγαμέμνονι λεῖπε φορῆναι»
καλεῖται κλῖμαξ (in Iliadem 2.101‐7b).
3) ἱκανὸς πρὸς πίστιν ὁ παρὰ τῶν ἐχθρῶν οὐ κατὰ πρόσωπον
γινόμενος ἔπαινος. Σημειώσαιο δ' ἂν ὡς κατὰ πρόοδον συλλαβῇ ηὔξηται
μετ' ἐκπλήξεως ὁ ἔπαινος κλιμακηδόν (in Iliadem 3.182a).
92
Utilizámos a edição de Erbse (1969).
55
As presentes citações de comentários à Ilíada servem, à excepção da alínea 3),
para confirmar algo que já temos verificado desde o início deste estudo: os versos II.
100‐8 desta epopeia eram de tal forma homogeneamente aceites como
paradigmáticos de clímax, que as únicas referências a esta figura em toda a tradição
exegética homérica inserem‐se precisamente nos comentários a estes versos. No
entanto, pouco se desenvolve acerca da figura; parece mesmo que a única intenção do
comentador era deixar visível que estava consciente de que este é o exemplo
comummente dado para o clímax. Dado o facto de estes comentários terem sido
escritos ao longo de vários séculos e portanto serem de autoria diversa (Dickey 2007,
18‐28), não é possível determinar em que altura estas referências à κλῖμαξ foram
escritas; diríamos que um bom terminus a quo seria a data da primeira vez em que
alguém se referiu aos supracitados versos homéricos como exemplo de clímax, e este
seria Pseudo‐Herodiano (c. I‐II d.C.). Para o presente caso, no entanto, convém
salientar a citação 1), que ensaia uma definição: “o final do pensamento torna‐se o
princípio dos seguintes”, definição que nada acrescenta ao que já foi estudado, sendo
aliás uma versão quase literal da definição dada por Eustátio (In Iliadem II. 101‐8, Valk
1.278), passo que já foi analisado; a citação 2) é uma referência muito sumária ao facto
de os versos em questão serem um exemplo de clímax, não se referindo a nenhum
outro aspecto. A alínea 3) pode representar a única ocorrência do advérbio
κλιμακηδόν no sentido retórico do termo. É um passo em que Príamo comenta o
número de Aqueus sob o controlo de Agamémnon, vendo‐os da muralha: ao descrever
as suas próprias viagens, vai enumerando os diversos povos que já conheceu, mas
nunca em tão grande número como os inimigos à sua porta. De facto, a enumeratio
tem uma forma de “escada” (κλιμακηδόν ) que conduz ao elogio crescente (κατὰ
πρόοδον) do Atrida. Não é certo, porém, que o comentador neste passo se esteja a
referir à κλῖμαξ retórica, pois pode tratar‐se simplesmente de uma alusão metafórica
a um elogio que sobe em forma de escada.
56
II.
A gradatio latina. Dos autores clássicos à Patrística Latina
Nos textos contemporâneos de retórica93, o termo κλῖμαξ é considerado um
sinónimo da figura latina conhecida por gradatio, assimilação feita literalmente pelo
próprio Quintiliano94. Em latim, no entanto, no período clássico poucas são as
ocorrências do termo. Em bom rigor, o termo é mais usado por Vitrúvio para se referir
ao processo de construção de degraus (V.3.4, 8; V.6.4; V.7.2) do que por qualquer
outro autor. Cícero e Quintiliano são os únicos autores a quem o termo parece ter
despertado algum interesse, além do autor da Rhetorica ad Herennium. Vale a pena
analisarmos cada um desses passos.
Época clássica: Cícero, Retórica a Herénio, Quintiliano
Em relação a Cícero, há dois passos em que o autor parece referir‐se à κλῖμαξ
retórica, sem nunca no entanto precisar o conceito ou defini‐lo. Num parágrafo em
que se dedica aos orationis lumina, as figuras “ornamentais”, Cícero, no seu Orator
(135), descreve o tipo de recursos de que um orador dispõe, sem apresentar o
conceito ou o nome da figura de estilo em questão. A certa altura, escreve aut cum
gradatim sursum uersus reditur. Não é taxativo, no passo em questão, que estejamos
perante uma definição de gradatio ou de κλῖμαξ95; quando muito estaremos perante
uma alusão indirecta a esta figura, que se descreve em termos de modus operandi:
“quando gradualmente uma linha (uma frase, uersus) volta para trás”. Reditur sursum
93
Muito significativo disto mesmo é o facto de o influentíssimo texto de Lausberg (1960, 315‐317) tratar
κλῖμαξ e gradatio sob um mesmo capítulo, não fazendo qualquer distinção entre as duas figuras.
94
Gradatio, quae dicitur κλῖμαξ (9. 3. 54).
95
Parece‐nos pois precipitada a forma como Kirby e Poster (1998, 1109) abordam este passo: “er
definiert die Klimax als”. Aliás, poderíamos também aduzir alguns passos de Cícero em que se aborda
transversalmente a ideia de uma repetição de palavras feita gradatim; o melhor exemplo não seria este,
mas um excerto do De partitione oratoria em que se fala sobre amplificatio: augent etiam relata uerba,
iterata, duplicata, et ea quae ascendunt gradatim ab humilioribus ad superiora; omninoque semper
quasi naturalis et non explanata oratio, sed grauibus referta uerbis, ad augendum accommodatior (54);
aqui podemos ler a ideia de um processo crescente na disposição das palavras, que se assemelha a um
entendimento lato de clímax, e que terá contribuído para a confusão posterior entre clímax e αὔξησις.
A ideia de gradação está também presente na figura sorites, que explora um polissilogismo de intenção
crescente (cf. Cícero, Luc. 49, et primum quidem hoc reprehendendum, quod captiosissimo genere
interrogationis utuntur, quod genus minime in philosophia probari solet, quom aliquid minutatim et
gradatim additur aut demitur: soritas hoc uocant, qui aceruum efficiunt uno addito grano, uitiosum sane
et captiosum genus).
57
descreve não uma regressão das partes da frase96, mas sim o movimento da frase que
caminha gradativamente a partir da frase que a antecede (reditur). Seja como for, o
autor romano considera os processos que descreve como inferiores, quando
comparados com as figuras de pensamento97. Noutro passo de Cícero (De oratore, III.
207), existe igualmente uma fugitiva alusão à gradatio (est enim gradatio quaedam et
conuersio et uerborum concinna transgressio)98, sem, porém, se definir o que se
entende por este termo. Pelo contexto nada se depreende, apenas que o retórico
romano considera a figura, tal como todas as outras que enuncia, como uma arma
usada para atacar ou defender, ou simplesmente pela sua beleza (III. 206), e que
relaciona a gradatio com as figuras de palavras.
Mais importante é a definição dada na Retórica a Herénio: gradatio est, in qua
non ante ad consequens uerbum descenditur, quam ad superius ascensum est (4.34)99.
Esta definição é de difícil interpretação, e devemos ter cuidado na forma como a
lemos. Kirby e Poster (1998, 1107), no nosso entender, citam e traduzem com pouca
precisão o passo; primeiro, omitem na citação um importante non, gradatio est in qua
non100, e deduzem, a partir deste, que o seu autor não considera que exista um
movimento obrigatório101 de ascensão na figura; a sua tradução deste passo é algo
como “a gradação é uma figura em que primeiro se desce para a palavra seguinte o
quanto se subiu na palavra anterior”. O latim parece‐nos, no entanto, querer dizer algo
diferente: a gradação é uma figura “na qual se desce para a palavra seguinte, não
antes (non ante quam) de se subir para a mais elevada”, ou seja, o movimento de
ascensão é indubitável (ad superius102, ascensum est), no entanto, tratando‐se de uma
figura de repetição, o seu autor considera que o momento mais alto da repetição, o
momento em que se sobe, está não na segunda palavra repetida, mas na primeira que
se diz, como se a δεινότης criada pela figura, o ponto principal de energia por ela
96
“Eine Rückbindung der Satzteile” (Kirby e Poster 1998, 1109).
Sed sententiarum ornamenta maiora sunt (136).
98
Todo este passo vai ser citado integralmente por Quintiliano (IX. 1. 34).
99
A edição seguida é a de Achard (1989).
100
Esta lição não é seguida nem referida no completo aparato crítico de Achard (1989), nem é a leitura
de Marx (1923).
101
“Die Beschreibung des Vorgangs als eines stufenweisen Abstiegs zeigt, daß sich der Auctor die Klimax
nicht notwendig mit einer Steigerung des Ausdrucks verbunden denkt” (1107).
102
O sentido de superius temporal como “anterior, que vem atrás” é possível, embora no contexto não
nos pareça o mais adequado.
97
58
conseguida emanasse da primeira palavra, e não da segunda, descrevendo‐se um
caminho que implica uma gestão cuidadosa da disposição do discurso (repare‐se no
“non ante quam”). Esta interpretação de gradatio parece‐nos sem dúvida subtil; o que
nos interessa, porém, salientar é que podemos ler, na definição, a ideia de uma
gradação ascendente. De observar também os quatro exemplos dados, os primeiros
que chegaram até nós em língua latina; todos eles, à excepção do segundo, parecem
ser da lavra do autor anónimo deste tratado:
1) nam quae reliqua spes manet libertatis, si illis et quod libet licet, et quod licet
possunt, et quod possunt audent, et quod audent faciunt, et quod faciunt uobis
molestum non est?103
2) Non sensi hoc, et non suasi; neque suasi et non ipse facere statim coepi;
neque facere coepi et non perfeci; neque perfeci et non probaui.104
3) Africano uirtutem industria, uirtus gloriam, gloria aemulos conparauit.
4) Imperium Graeciae fuit penes Atheniensis; Atheniensium potiti sunt
Spartiatae; Spartiatas superauere Thebani; Thebanos Macedones uicerunt qui ad
imperium Graeciae breui tempore adiunxerunt Asiam bello subactam.
No primeiro exemplo dado há claramente um movimento ascendente que se
desenha do desejo à possibilidade, da possibilidade à ousadia, e da ousadia à prática,
algo que culmina na indiferença e apatia dos cidadãos. Do ponto de vista técnico,
estamos perante o recurso à repetição de palavras feita literalmente, e não por
sinonímia. No entanto, há um percurso gradativo semelhante a outros exemplos aqui
comentados, como se pode ler no esquema gráfico seguinte:
103
104
Cf. passos semelhantes em Cícero, Pro Quinctio, 30.94 e Calpúrnio Flaco, 16.
Tradução de Demosth., De corona, 179.
59
5. et quod faciunt uobis molestum non est?
4. et quod audent faciunt,
3. et quod possunt audent,
2. et quod licet possunt,
1. si illis et quod libet licet,
O segundo exemplo é uma tradução bastante livre do paradigmático passo de
Demóstenes, que acrescenta um membro que não estava presente no original grego105,
o que acaba por provar, se ainda fosse preciso, que este período do De corona gozou
igualmente, na escola retórica latina, de uma felicidade ímpar, pois também
Quintiliano o vai traduzir para o latim. No terceiro exemplo há um movimento
ascendente do trabalho à virtude, da virtude à glória, caminho esse aparentemente
interrompido pelo culminar da frase na inveja. No último exemplo existe um progresso
que culmina num ponto determinado, pois o período parte da Grécia e acaba no
império de Alexandre Magno. Este exemplo, no entanto, parece servir mais ao autor
para ilustrar o processo técnico de construção da gradatio baseado na repetição de
palavras, neste caso por poliptoto. Pelos exemplos dados, compreende‐se que o autor
da Retórica a Herénio tem um entendimento mais restritivo do que alguns autores
gregos já analisados acerca da forma como se deve operar a repetição de palavras: em
nenhum dos exemplos parece haver repetição por sinonímia106.
No seguimento desta definição temos a que é dada por Quintiliano, que
transcrevemos integralmente:
Gradatio, quae dicitur κλῖμαξ, apertiorem habet artem et magis adfectatam,
ideoque esse rarior debet. Est autem ipsa quoque adiectionis: repetit enim quae dicta
sunt, et priusquam ad aliud descendat in prioribus resistit. Cuius exemplum ex Graeco
105
1. Non sensi hoc, et non suasi (1. οὐκ εἶπον μὲν ταῦτα, οὐκ ἔγραψα δέ); 2. neque suasi, et non
ipse facere statim coepi (2. οὐδ΄ ἔγραψα μέν, οὐκ ἐπρέσβευσα δέ); 3. neque facere coepi, et non
perfeci (3. οὐδ΄ ἐπρέσβευσα μέν, οὐκ ἔπεισα δὲ Θηβαίους); 4. neque perfeci, et non probaui (4. ‐‐‐)
106
Embora possamos entender uma relação de clímax entre libertas e libet.
60
notissimo transferatur: «non enim dixi quidem haec, sed non scripsi, nec scripsi quidem,
sed non obii legationem, nec obii quidem legationem, sed non persuasi Thebanis.»107
Sunt tamen tradita et Latina: «Africano uirtutem industria, uirtus gloriam, gloria
aemulos comparauit.» Et Calui: «non ergo magis pecuniarum repetundarum quam
maiestatis, neque maiestatis magis quam Plautiae legis, neque Plautiae legis magis
quam ambitus, neque ambitus magis quam omnium legum.» Est inuenitur apud
poetas quoque, ut apud Homerum de sceptro, quod a Ioue ad Agamemnonem usque
deducit, et apud nostrum etiam tragicum:
«Ioue propagatus est, ut perhibent, Tantalus,
ex Tantalo ortus Pelops, ex Pelope autem satus
Atreus, qui nostrum porro propagat genus» (9. 3. 54‐57)108
Esta definição de Quintiliano é de certa forma subsidiária não só da retórica
grega, mas também da Retórica a Herénio109. Da escola retórica grega temos a
advertência para o facto de esta figura poder redundar num uso exagerado e sofístico,
dado o carácter óbvio da sua construção (ideia retirada de Pseudo‐Longino) e daí a sua
raridade (algo já referido por Hermógenes). Da Retórica a Herénio temos não só um
dos exemplos dados (Africano uirtutem industria…), que o autor considera de um autor
latino, mas também a própria definição em si, que utiliza o verbo descendere mais uma
vez: repetit enim quae dicta sunt, et priusquam ad aliud descendat in prioribus resistit.
O uso deste verbo parece contrariar a ideia de que num clímax retórico existe uma
clara ideia de ascensão de um ponto a outro. No passo em questão, no entanto, temos
de ter em linha de conta que o seu autor está a seguir de perto a definição da Retórica
a Herénio (gradatio est, in qua non ante ad consequens uerbum descenditur, quam ad
superius ascensum est), algo visível não só pelo uso do verbo descendere, mas também
na utilização de expressões como priusquam (≈ ante quam), e in prioribus (≈ ad
superius); como já analisámos, descendat tem um sentido específico na frase da
107
Tradução de Demosth., De corona, 179.
A edição usada é a de Winterbottom (1970).
109
Sobre a filiação desta definição em Cecílio de Calacte, cf. supra nota 45.
108
61
Retórica a Herénio, e é provável que Quintiliano não tivesse sido sensível a este110. Por
outro lado, como admitem Kirby e Poster (1998, 1107), o uso deste verbo terá algo a
ver com o literal movimento descendente dos olhos ao ler uma página. Não admiti‐lo
seria talvez considerar que, para Quintiliano, esta figura tem mais de conexão formal,
elo necessário, de necessidade lógica e formal do que propriamente de movimento
ascendente111. Mas mesmo assim, neste entendimento de clímax, Quintiliano vai dar
exemplos em que há claramente um movimento de progresso qualitativo; vai traduzir
o paradigmático passo de Demóstenes e refere‐se igualmente ao passo homérico já
tantas vezes referido (ut apud Homerum de sceptro, quod a Ioue ad Agamemnonem
usque deducit, referência a Il. II.104‐109). Além do exemplo retirado da Retórica a
Herénio, cita um texto desconhecido de Calvo (fr. 25 Malcovatti), em que existe a ideia
de uma “subida da escada” do crime de extorsão à traição, da traição às ofensas
contra a lex Plautia, destas ofensas à corrupção, culminando este percurso catastrófico
num ponto último, a revogação omnium legum. O último exemplo citado, de um
tragediógrafo latino desconhecido, acaba por se assemelhar ao passo da Ilíada que
Quintiliano citara: há um claro percurso genealógico de Júpiter a Tântalo, de Tântalo a
Pélops, de Pelóps até ao nostrum genus.
É de observar igualmente uma passagem de Sérvio (ad Aen. 9.573), em que,
aparentemente, se regista a única latinização no contexto clássico do termo κλῖμαξ; o
comentador, ao ler os versos vergilianos Ortygium Caeneus, uictorem Caenea Turnus, /
Turnus Ityn, diz assim: ut ait Lucilius «bonum schema est, quotiens sensus uariatur in
iteratione verborum, et in fine positus sequentis sit exordium, qui appellatur climax».
Apesar de os versos em questão não serem, no sentido rigoroso do termo retórico, um
exemplo claro de clímax (uma vez que só há repetição por uma vez, o que resulta
numa simples anadiplose), fica a ideia de uma iteração de palavras, e algo semelhante
a uma definição de clímax. Fica também registada a interessante ideia de uma
“variação de sentido” (sensus uariatur) dada a partir da colocação das palavras: o
sensus que vem no fim torna‐se o princípio do seguinte.
110
De notar, no entanto, que a edição de Rahn (1972) apresenta a emenda escendat em vez de
descendat.
111
“Diese sollte ursprünglich wohl vielmehr das sich in dieser Figur vollziehende sichere, behutsame
Fortschreiten der Gedanken zum Ausddruck bringen, durch das der Eindruck einer logischen oder
kausalen Notwendigkeit erweckt wird” (Kirby e Poster 1998, 1107).
62
E estas são, na literatura latina clássica, as referências que existem sobre o
termo gradatio112. O que podemos concluir daqui? Primeiro, que o termo não tem
especial fortuna neste particular contexto retórico; segundo, que existe uma relação
inequívoca entre κλῖμαξ e gradatio, e que em última análise nada as diferencia. Em
termos técnicos, nada de novo se aduz; as definições dadas são pouco claras quando
as comparamos com as que já analisámos.
Patrística Latina
Avançando no tempo, e debruçando‐nos sobre a Patrística Latina, observarmos
que o termo gradatio vai conhecer melhor fortuna neste contexto113. Agostinho, em
particular, usa o termo com alguma frequência (oito ocorrências), embora por vezes o
utilize num sentido não técnico; é o caso de um passo do De moribus Manichaeorum
(II. 64), em que o autor utiliza o termo gradatio para descrever o absurdo de se matar
um animal só por ser pequeno: huc accedit illa gradatio, quae cum uos audirem, nos
saepe turbauit ‐ se se mata uma pulga, mata‐se uma mosca, que não é muito maior, se
se mata a mosca, mata‐se a abelha, e assim por diante até ser legítimo matar um
animal tão grande como o elefante. O autor, ao referir‐se à nítida gradatio que
desenha entre a pulga e o elefante, acaba por literalmente construir uma gradatio
composta por degraus (nonne uidetis his gradibus ad elephantum perueniri), sem que
utilize os recursos técnicos postulados pela tradição retórica grega, apenas fazendo
uso de uma interpretação lata do termo gradatio – a ideia de algo que sobe até um
determinado ponto. No entanto, a Agostinho não falta o entendimento técnico da
κλῖμαξ grega, como se atesta no seguinte passo do De doctrina christiana (IV. 11): et
tamen agnoscitur hic figura, quae κλῖμαξ graece, latine uero a quibusdam est appellata
gradatio, quoniam scalam dicere noluerunt, cum uerba uel sensa connectuntur alterum
ex altero; sicut hic, ex tribulatione patientiam, ex patientia probationem, ex probatione
spem connexam uidemus. O autor comenta neste passo uma citação bíblica (Rm 5,
3‐5); além de estabelecer uma clara relação da figura retórica com a sua etimologia
mais óbvia (escada, scala), e com a tradição retórica latina que optou pelo termo
112
Conclusão retirada após pesquisa por ocorrência no corpus reunido pelo PHI.
Utilizámos nestas pesquisas a base de dados online da Patrologia Latina (http://pld.chadwyck.co.uk/),
que segue a edição de Migne, pelo que todas as citações transcritas seguem esta edição.
113
63
gradatio (quoniam scalam dicere noluerunt), sublinha fundamentalmente o elo de
conexão formal do processo (cum uerba uel sensa connectuntur alterum ex altero), não
lhe interessando o aspecto de repetição ou de gradação nele presente114. O facto de
referir disjuntivamente uerba uel sensa demonstra que Agostinho assume que o clímax
se dá não só ao nível das palavras como dos sentidos, algo que se aproxima de algumas
definições já abordadas, afastando‐se de outras mais restritivas. Na expressão alterum
ex altero está igualmente presente a ideia dos degraus, visível também na etimologia
latina de gradatio, e verificável na interpretação que Agostinho faz do versículo em
questão, traçando um claro movimento da tribulação à paciência, da paciência à
provação, da provação à esperança115, embora não se referindo à qualidade desse
movimento, nomeadamente, se é ascendente ou descendente, ou sequer se tal
questão lhe suscita interesse. Noutros passos, no entanto, é notório que o autor
entende a gradatio como um movimento ascendente, como atesta um passo do De
vera religione116, em que se descreve o movimento do tempo a partir de um dia até ao
uniuersum tempus, algo classificado como uma successio ou uma quaedam gradatio;
mais uma vez o termo não apresenta aqui um sentido técnico, algo inusitado no
contexto latino até agora analisado, antes vincando um determinado processo
gradativo117.
Outro autor importante para o presente contexto, ainda de certo modo
próximo da mundividência retórica clássica, é Cassiodoro (séc. V‐VI). Na sua In
114
Noutro passo do mesmo tratado (IV. 44), acaba por admitir que não é preciso nenhuma destas
figuras ornamentais para que o período (neste caso, Gl 5, 10‐20) tenha força, et tamen non ideo tepuit
grandis affectus, quo eloquium feruere sentimus.
115
Noutro texto, o autor comenta I Co 11, 3, e refere‐se à gradatio utilizada nesse contexto pelo
Apóstolo: nam et uirum dixit caput mulieris, et caput uiri Christum, et caput Christi Deum (De genesi ad
litteram imperfectus liber, 6). Tal como já em alguns exemplos aqui analisados da Patrística Grega,
note‐se como o último “degrau” da escada é Deus, o que demonstra um certo processo ascendente
nesta gradatio.
116
Sic mora unius horae ad diem, et diei ad mensem, et mensis ad annum, et anni ad lustrum, et lustri ad
maiores circuitus, et ipsi ad uniuersum tempus relati breues sunt; cum illa ipsa numerosa successio, et
quaedam gradatio, siue localium, siue temporalium spatiorum, non tumore uel mora, sed ordinata
conuenientia pulchra iudicetur (43). Cf. igualmente 30.
117
Algo extremamente notório em alguns passos de Agostinho em que não há lugar à utilização
“técnica” do termo: transitorium Domini, Virginis partus, Verbi incarnatio, aetatum gradatio,
miraculorum exhibitio (Enarrationes in Psalmos, in Psalmum CIX, 5), ou nunc uero ideo sunt omnia bona,
quia sunt aliis alia meliora, et bonitas inferiorum addit laudibus meliorum: et in rerum bonarum
inaequalitate ipsa est iucunda gradatio, ubi minorum comparatio ampliorum est commendatio (Contra
aduersarium legis et prophetarum, I. 6); neste último caso, é indubitável que a gradatio pressupõe um
movimento do menor para o maior.
64
Psalterium Expositio, o autor vai usar amiúde o termo retórico no seu sentido clássico,
sentindo‐se igualmente na obrigação de definir o conceito. No seu comentário ao
Salmo III (PL 70, 44D), o autor analisa um passo de S. Paulo (Rm 8, 35), afirmando que
este constitui um exemplo de auxesis: huic uicina est figura quae dicitur climax, Latine
gradatio, quando positis quibusdam gradibus, siue in laude, siue in uituperatione
semper accrescit. Sed inter utraque schemata hoc interest, quod auxesis sine ulla
iteratione nominis, rerum procurat augmenta, in climace uero necesse est ut
postremum uerbum, quod est in primo commate positum, in sequenti membro modis
omnibus iteretur118. Nesta tentativa de definição, em que se exploram as semelhanças
(uicina est figura) e diferenças (sed inter utraque schemata) entre αὔξησις119 e
κλῖμαξ, resulta que ao seu autor é indissociável do clímax a ideia de um crescendo da
enunciação (semper accrescit), disposto em degraus; de tal forma que a única
diferença entre αὔξησις e κλῖμαξ é que, enquanto na primeira figura este crescendo
se faz sem nenhuma repetição das palavras, no clímax esta é necessária, classificando
de forma prescritiva a forma como esta deve ocorrer120. Segue pois de perto a
definição retórica grega, especificando o clímax como um processo em que usa a
repetição literal de palavras (uerbum … positum … iteretur)121. De notar, no entanto, o
à‐vontade com que se latiniza a expressão grega κλῖμαξ, acabando por a flexionar no
ablativo (in climace), algo que pode indicar que o seu autor utiliza o termo como parte
integrante do seu vocabulário latino. O autor acaba por citar como exemplo acabado
de clímax um passo bíblico já aduzido por Agostinho como paradigmático desta figura
de estilo (Rm 5, 4‐5). Noutro passo, comentando o Salmo 93(94) o autor diz diligenter
118
Esta definição foi repetida no tratado anónimo De schematibus et tropis necnon et quibusdam locis
rhetoricis S. Scripturae quae passim in commentario Cassiodori in Psalmos reperiuntur (PL 70. 1273); a
fortuna desta definição na PL é também observável na repetição literal desta definição nos Libri Carolini
(Contra Synodum quae in partibus Graeciae pro adorandis imaginibus, PL 98. 1108).
119
Segundo a definição de Lausberg, “die amplificatio (exaggeratio; αὔξησις) ist eine (…)
vorgenommene gradmäßige Steigerung des von Natur aus Gegebenen durch die Mittel der Kunst”
(1976, 35 = §71), ou na tradução de Rosado Fernandes, “a amplificatio (exaggeratio; αὔξησις; [port.
amplificação]) é um aumento gradual, por meios artísticos, do que é dado, por natureza (…)” (Lausberg
1993, 106 = §71). Como se verá, o clímax no seu sentido retórico moderno é um desenvolvimento desta
ideia de proximidade entre as duas figuras.
120
Embora menos restritiva do que definições anteriores (modis omnibus).
121
Este entendimento mais “clássico” do termo está igualmente presente nas suas Complexiones in
Epistolis Apostolorum (PL 70. 1326): et ne in tanta spe titubarent hominum corda fragilia, praedestinatos
dicit vocatos, vocatos autem asserit justificatos, justificatos vero magnificatos esse confirmat. Hoc
argumentum dicitur climax, id est gradatio, quod etiam in subsequentibus frequenter assumit.
65
autem intende quemadmodum usque ad finem diuisionis huius augmenta semper
scelerum facit. Quod schema dicitur climax, id est gradatio. Exaggerantibus enim ad
superiora crescere decorus ascensus est (PL 70. 666). Ao interpretar este salmo, em
que se sobe nitidamente uma “escada da iniquidade”, Cassiodoro reitera a sua ideia de
que o clímax, id est gradatio, constitui um processo de construção ad superiora; no
entanto, nos versos que comenta, não há lugar a um clímax técnico de repetição de
palavras, tal como o autor o tinha anteriormente classificado; estamos antes perante
um clímax “metafórico”122, em que se sobe (ascensus est) mercê do incremento
(exaggerantibus). Este entendimento lato que o autor tem de clímax é reiterado no
seu comentário ao Salmo 105 (PL 70. 764)123, em que torna a classificar como gradatio
um passo em que há um nítido crescendo (αὔξησις), mas não nos moldes prescritivos
da retórica clássica, ideia sumariada na feliz expressão sensus noster ascendit: noção
que se aproxima daquilo a que chamaremos um entendimento mais “moderno” do
termo124.
122
Muitos são os exemplos deste tipo de uso mais abrangente na Patrologia Latina mais tardia. Cf.
Gilberto de Nogent (PL 156. 526, nulla in his nominandis gradatione sermonis egebimus), Herveu de
Bourg‐Dieu (PL 181. 594, ideo quemdam gradationis ascensum in his notare possumus), Orderico Vital
(PL 188. 322, nefanda gradatione ambitionis et supplantationis ascenderat).
123
Adhuc in ipsa auxesi in his duobus uersibus perseuerat; quod schema Graece dicitur climax, Latine
gradatio, quia per gradus quosdam, siue in laude, siue in uituperatione sensus noster ascendit (a
definição vai ao encontro quase literalmente da primeira ocorrência neste autor aqui analisada).
124
Cf. igualmente o seu comentário ao Salmo 134 (PL 70. 966) Sic enim et alibi de ipsis dicitur: Qui credit
in me non iudicabitur, sed transiet de morte ad uitam; qui autem non credit, iam iudicatus est (Matth. V,
5; Ioan. III, 18). Vides quid profecerit gradatio illa quam diximus; ut enumeratis magnalibus Domini,
usque ad eius uenerit sanctum tremendumque iudicium. Outro autor, já no século XI‐XII, parece ter um
entendimento semelhante de clímax; trata‐se de Ruperto de Deutz, que não só encara a figura na sua
face mais “técnica” de repetição de palavras no fim do membro e no início do seguinte, como é
observável pelos exemplos que aduz (cf. PL 167. 253, Quod propositum, quia nequaquam malis
intercurrentibus auerti potuit, pulchra deinde gradatione prouentus ordinem ita subter annectit: «Nam
quos praesciuit et praedestinauit conformes fieri imaginis Filii sui, ut sit ipse primogenitus in multis
fratribus; quos autem praedestinauit, hos et uocauit, et quos uocauit, hos et iustificauit, quos autem
iustificauit, illos et magnificauit» (Rm 8, 29‐30) ou ainda PL 168. 56, Dominus exaudit coelos, et coeli
exaudiunt terram, et terra exaudit triticum, et uinum, et oleum, et haec exaudiunt Israel. Nimirum
quatuor exauditiones sunt et occulta gradatio sed eam Apostolus planiorem atque clariorem facit, dum
ad Romanos scribens, praemisso: «Omnis quicunque inuocauerit nomen Domini saluus erit (…):
Quomodo ergo inuocabunt in quem non crediderunt? Aut quomodo credent ei, quem non audierunt?
Quomodo autem audient sine praedicante? Quomodo uero praedicabunt, nisi mittantur?» (Rm 10,
13‐15), como também tem um entendimento mais lato do termo em outros passos (cf. PL 169. 975, Illuc
usque pulchra gradatione huiuscemodi fumus ascendit. De orationibus sanctorum ad manum angeli, de
manu angeli, coram Deo ascendit, ou também PL. 170. 377, Si rite considerasti gradationem hanc,
primum reatum, quo reus quis est iudicio; deinde reatum, quo reus est concilio; tertio quoque reatum,
quo reus est gehennae ignis).
66
Também Isidoro de Sevilha, nas suas Etimologias (II. 21. 4), aborda o tema e
procura uma definição do termo: climax est gradatio, cum ab eo, quo sensus superior
terminatur, inferior incipit, ac dehinc quasi per gradus dicendi ordo seruatur, ut est illud
Africani: «ex innocentia nascitur dignitas, ex dignitate honor, ex honore imperium, ex
imperio libertas». Hanc figuram nonnulli catenam appellant, propter quod aliud in alio
quasi nectitur nomine, atque ita res plures in geminatione uerborum trahuntur. Fit
autem hoc schema non solum in singulis uerbis, sed etiam in contexione uerborum, ut
apud Gracchum: «pueritia tua adulescentiae tuae inhonestamentum fuit, adulescentia
senectuti dedecoramentum, senectus reipublicae flagitium» (Gracchus, fr. 43). Sic et
apud Scipionem: «ui atque ingratis coactus cum illo sponsionem feci, facta sponsione
ad iudicem adduxi, adductum primo coetu damnaui, damnatum ex uoluntate dimisi»
(Africanus Minor, fr. 33). Não por acaso, Isidoro de Sevilha não volta a usar este termo
na sua obra, o que justifica o entendimento restritivo que dele tem, ao contrário de
Cassiodoro, por exemplo, e de outros autores da Patrística Grega aqui estudados; na
definição avulta a relação íntima do clímax com a anadiplose, e igualmente o carácter
de elo formal que estabelece, à semelhança da catena. Quer pelos exemplos dados,
quer pela definição, entende‐se que Isidoro125 considera o esquema como uma
repetição de palavras, simples ou complexa (in contexione uerborum), disposta em
degraus (quasi per gradus), sem que no entanto saliente o seu carácter de
“crescendo”.
125
Entendimento esse que persiste em autores posteriores da PL, como Beda (PL 93. 70, De qua etiam in
libro Sapientiae per figuram locutionis quae Graece κλῖμαξ, Latine gradatio uocatur, pulcherrime
refertur: Initium (inquit) sapientiae, uerissima est disciplinae concupiscentia (Sap. VI). Cura ergo
disciplinae dilectio est, et dilectio custodia legum illius est. Custoditio autem legum consummatio
incorruptionis est. Incorruptio autem facit esse proximum Deo. Concupiscentia itaque sapientiae deducit
ad regnum perpetuum.), Walafrido Estrabão (PL 113. 1055, Ecce gradatio laudis ad iudicium perducta
est), Radulfus Ardens (Raoul Ardent) (PL 155. 1304, Quomodo ergo inuocabunt, in quem non
crediderunt? Et quomodo credent ei quem non audierunt? Et quomodo audient sine praedicante? Et
quomodo praedicabunt nisi mittantur? Ostendens per hanc gradationem quod…) Edmero de Cantuária
(PL 159. 584, Non potuit aliter quia non uoluit; noluit, quia ratio non fuit. Et quia ratio non fuit, non
debuit. Quam gradationem si quis reciproce conuertat, non irrita erit hoc modo: Non debuit aliter saluare
genus humanum, quia ratio non fuit; et quia ratio non fuit, noluit; et quia noluit, non potuit, quia contra
rationem facere nec potuit, nec uoluit). Cf. ainda o interessante exemplo dado em verso por Marbodo de
Rennes que, partindo da definição da Retórica a Herénio, constrói os seguintes versos: Hic quaecunque
uidet cupit, et quaecunque cupiuit / Allicit. Allectam uitiat, prodit uitiatam. / Ni uirtus laudem, laus
inuidiam peperisset / Androgeo, sospes ad Gnossia regna redisset. / Sed uirtus laudem, laus inuidiam
generauit; / Inuidiae telis pars haec superata necauit (De ornamentis uerborum, PL 171. 1690).
67
III. Do entendimento clássico ao contemporâneo
O clímax clássico: uma sistematização
Recuperemos, como forma de sistematização, todas as definições dadas pelos
autores estudados, e façamos o resumo das principais ideias até aqui exploradas.
1) Κλῖμαξ δὲ ὅταν ἕκαστον τῶν ἐν τοῖς κώλοις ὀνομάτων
ἀναλαμβάνοντες διατιθώμεθα τὸν λόγον (“o clímax é quando compomos uma
frase tomando de novo cada uma das palavras nos membros [da frase]”),
Pseudo‐Herodiano, De figuris, 49.
2) τὸ κλιμακωτὸν καλούμενον σχῆμα (…) ἔστι δὲ οὐδὲν ἄλλο ἢ
πλεονάζουσα ἀναστροφή (“o clímax não é nada mais do que uma anástrofe
repetida”), Hermógenes, I. 1. 12. 304.
3) Κλῖμαξ δὲ γίνεται, ὅταν ἐπὶ πλεῖον μηκύνοντες τὸ προκείμενον
κεφάλαιον καθ΄ ἕκαστον κόμμα τὴν αὐτὴν λέξιν τελευτήν τε καὶ ἀρχὴν
ποιήσωμεν (“o clímax surge quando, prolongando em toda a sua extensão o que de
mais importante vem antes, fazemos, para cada membro, da palavra final o princípio
da seguinte”), Alexandre filho de Numénio, De figuris II. 8.
4) Κλῖμαξ δέ ἐστιν ὅταν, εἰς πολλὰ κῶλα ἑνὸς ἐνθυμήματος
διαιρουμένου, ἕκαστον κῶλον ἄρχηται ἀπὸ τοῦ ἐν τῷ προηγουμένῳ κώλῳ
τελευταίου (“o clímax surge quando, dividindo‐se um pensamento em diversos
membros, um membro se inicia exactamente com aquilo que veio no fim do membro
antecedente”), Tibério, De figuris Demosthenicis, 28.
5) Ἐν δὲ τῇ κλίμακι κατὰ τὴν ἐπανάληψιν τὸ τέλος τοῦ πρώτου κώλου
εὑρίσκομεν ἐν τῇ ἀρχῇ τοῦ δευτέρου (“no clímax, em relação com a epanalepse,
encontramos o fim do primeiro membro no início do segundo”), Fébamo, Περὶ τῶν
Σχημάτων Ῥητορικῶν, 2. 4.
68
6) γίνεται δὲ σχῆμα κλιμακωτόν, ὅταν τὸ λῆγον τῆς φθασάσης
ἐννοίας ἀρχὴ γένηται τῆς ἐφεξῆς (“o clímax surge quando aquilo que é deixado do
pensamento anterior se torna o princípio do seguinte”), Eustátio, In Iliadem II. 101‐8,
Valk 1.278.
7) Κλιμακωτόν ἐστι σχῆμα, ὅταν ἡ ἐπαναστροφὴ πολλάκις γένηται τῷ
λόγῳ (“o clímax é uma figura que surge quando se gera várias vezes uma epanástrofe
numa frase”), Anónimo, Περὶ τῶν τοῦ λόγου σχημάτων, Spengel 3.133‐136.
8) gradatio est, in qua non ante ad consequens uerbum descenditur, quam ad
superius ascensum est (“a gradação é uma figura na qual se desce para a palavra
seguinte, não antes de se subir para a mais elevada”), Retórica a Herénio, 4.34.
9) gradatio (…) repetit enim quae dicta sunt, et priusquam ad aliud descendat in
prioribus resistit (“a gradação repete aquilo que foi dito, e antes que desça para outra
coisa, permanece no que vem anteriormente”), Quintiliano 9. 3. 54.
10) huic uicina est figura quae dicitur climax, Latine gradatio, quando positis
quibusdam gradibus, siue in laude, siue in uituperatione semper accrescit. Sed inter
utraque schemata hoc interest, quod auxesis sine ulla iteratione nominis, rerum
procurat augmenta, in climace uero necesse est ut postremum uerbum, quod est in
primo commate positum, in sequenti membro modis omnibus iteretur (“esta figura
(auxesis) está relacionada com aquela a que se chama clímax, em latim gradatio, que
surge quando se dispõe algo em forma de degraus, crescendo sempre no louvor ou no
insulto. Mas entre ambas as figuras, o que interessa é que na auxesis se procura o
aumento sem qualquer repetição de palavra, enquanto no clímax é necessário que a
última palavra, colocada no primeiro cólon, se repita de todos os modos no membro
seguinte”), Cassiodoro, In Ps. III (PL 70, 44D).
11) climax est gradatio, cum ab eo, quo sensus superior terminatur, inferior
incipit, ac dehinc quasi per gradus dicendi ordo seruatur. (…) Fit autem hoc schema non
solum in singulis uerbis, sed etiam in contexione uerborum (“o clímax é uma gradatio,
que ocorre quando o que vem depois se inicia com o sentido que termina o que vem
antes, desta forma conservando uma ordem obtida como que por degraus de
69
enunciação. (…) Esta figura ocorre não só em palavras isoladas, mas também na
interconexão de palavras”), Isidoro de Sevilha, Ethym. II. 21. 4.
É facilmente verificável, a partir das definições transcritas, que os retóricos
consideravam a figura clímax, do ponto de vista teórico, como uma figura de repetição
de uma determinada ideia ou palavra, prescritivamente colocada no final de um
membro, repetindo‐se esta no início do membro seguinte. Se esta repetição deve ser
continuada, ou se basta uma só para que exista um clímax, não nos parece claro;
alguns autores afirmam‐no, outros não o especificam.
Mas este é um frio processo técnico de uma figura, como vimos, algo marginal
no contexto retórico. Não foi seguramente por aqui que o termo logrou tanto sucesso
no contexto moderno. Para o presente estudo interessa‐nos mais o propósito desta
figura, a forma como os autores familiarizados com o termo o abordam, e igualmente
os exemplos de clímax que os diversos escritores abordados nos trouxeram.
Em relação ao propósito desta figura, devemos repetir o que já dissemos no
início: κλῖμαξ, em grego, tem o sentido literal de “escada”, quase inteiramente
omnipresente em todos os contextos analisados em que surge a palavra. Este facto
não é um simples fait divers, tem implicações imediatas: sempre que um autor retórico
utilizava este termo num sentido técnico (e poucos foram os que o fizeram), existia
uma implícita e inequívoca relação com o prosaico objecto usado para subir e para
descer de um ponto para outro126. Nesse sentido, esta “escada” foi vista com duas
finalidades, não antagónicas, mas concorrentes: 1) colocando a tónica sobre a forma
como uma escada é construída, alguns autores consideram‐na uma sucessão funcional
de degraus, de elos inextricáveis; estuda‐se fundamentalmente a colocação e a
disposição dos degraus; 2) dando ênfase ao tipo de movimento que o sujeito faz sobre
a escada, é inegável que quase todos os autores antigos consideram que esta “escada”
leva um sujeito de um ponto mais baixo a um ponto mais elevado (e quase nunca ao
contrário).
126
Algo semelhante em latim, na relação de gradatio com gradus.
70
Reflexo desta “dupla face” do clímax é a forma diferente como os autores que
se sentem familiarizados com este termo abordam o tema. Podemos dizer que os
autores que olham para o termo na sua face mais “técnica”, como Alexandre,
Tibério127, Eustátio, Quintiliano e Isidoro, vêem o clímax como um recurso de que o
orador dispõe para estruturar correctamente um período, de forma a que cada
degrau, cada membro, se una ao outro de forma indestrinçável, formando uma cadeia
lógica de pensamento. Por outro lado, dos autores que se referem ao processo
qualitativo do clímax, presente logo no primeiro uso do termo em Pseudo‐Demétrio,
como João Siciliota, Agostinho ou Cassiodoro, existe sempre a ideia de algo “que
sobe”, utilizando‐se para descrever este processo termos que fazem referência a este
movimento (ἐπὶ μειζόνων μείζονα, ἐξαίρετον, ἐπίδοσις, ascensum est, accrescit,
ad superiora).
Ao nível dos exemplos dados, avultam igualmente estas duas faces do clímax.
Nos exemplos “clássicos”, o de Homero é o que desenha de forma mais clara a “escada
como objecto”. Neste, de facto, estabelece‐se um nexo causal em relação ao ceptro de
Zeus. Não há crescendo do ponto de vista da direcção; quando muito, se víssemos sob
esse prisma, haveria uma certa ideia de decrescendo – Zeus – Hermes – Pélops – Atreu
– Tiestes – Agamémnon. Já no exemplo de Demóstenes, é notório um clímax de elos
causais – a escrita levou à missão, a missão levou à persuasão – mas também um
clímax “qualitativo” – o projecto escrito “cresce” até ao convencimento total dos
Tebanos. E quase todos os outros exemplos dados, fundamentalmente no contexto da
Patrologia, são igualmente paradigmáticos desta dupla face: em grande parte deles se
traça um caminho ordenado (clímax “estrutural”) de algo mais pequeno a algo maior
(clímax “qualitativo”). Normalmente esse movimento dá‐se do homem em direcção ao
divino, mas também da tribulação à esperança, do entendimento à imitação de Deus,
da amargura à morte, do desejo à prática, do crime à revogação de todas as leis, ou
mesmo da pulga ao elefante.
127
Não nos esqueçamos das suas palavras “o nome deriva metaforicamente daqueles que sobem as
escadas: assim como o primeiro [movimento] se torna o último mercê de uma mudança dos pés, assim
também nesta figura o fim do membro antecedente torna‐se o princípio do seguinte”.
71
No presente estudo, interessam‐nos de forma semelhante estas duas faces do
clímax. Ambas as abordagens nos levarão, esperemo‐lo, a uma nova leitura sobre os
processos de construção e de estruturação da obra artística, em particular e com
especial ênfase na poesia latina de Horácio. Estudemos, porém, neste momento o
entendimento que as línguas modernas fazem do termo, e vejamos que relação tem
com o clímax clássico.
O clímax moderno: estudo etimológico de várias línguas europeias
Não foi, pelo menos em português, o entendimento clássico que prevaleceu até
aos dias de hoje, tendo‐se o termo especializado noutro tipo de contextos. Em toda a
literatura crítica moderna, seja sobre história, literatura, música, ou qualquer outra
área de saber, são residuais os contextos em que o termo surge como uma figura de
estilo retórica. Nos estudos literários, em particular, o termo assume‐se em muitos
contextos como um sinónimo da expressão “ponto mais alto”.
Como evolui pois o termo, desde a sua primeira acepção clássica, até este
significado? Como método de estudo, partamos da definição dada por dicionários de
referência das principais línguas europeias (português, espanhol, francês, italiano,
inglês e alemão); escolhemos apenas um ou dois dicionários para cada língua,
precisamente aqueles que, segundo a nossa busca128, apresentaram a definição mais
abrangente do termo. Julgamos apropriado transcrever as entradas129.
1) Português
a) Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (“clímax”, Houaiss 2001, 960, vol. I)
1 ponto mais alto 2 Rubrica: ecologia. comunidade estável que se estrutura
ao final de uma sucessão ecológica, adaptada às condições ambientais
específicas da região, e na qual a biomassa e a biodiversidade permanecem
constantes Obs.: cf. disclímax 3 Rubrica: fisiologia. m.q. orgasmo 4
128
Esta não foi uma busca bibliográfica completa; partiu‐se apenas de um corpus de dicionários ditos
“de referência”, ou seja, passíveis de ser encontrados numa biblioteca de dimensões razoáveis. Não
seria pois aqui possível analisar todos os dicionários algumas vez produzidos em cada uma destas
línguas.
129
Transcrevemos apenas a entrada, sem pormenores de pronúncia ou etimologia.
72
Rubrica: cinema, literatura, teatro, televisão. parte do enredo (de um livro,
filme, novela etc.) em que os acontecimentos centrais ganham o máximo
de tensão para os personagens envolvidos, prenunciando o desfecho; ápice
Ex.: o c. de uma peça teatral, de uma narrativa 5 Rubrica: estilística,
retórica. figura de linguagem em que uma série de frases ou orações é
disposta em ordem ascendente de vigor retórico 6 Rubrica: retórica.
concatenação dos elementos de um período de modo a fazer com que
cada um comece com a última palavra do anterior; gradação Obs.: p.opos.
a anticlímax.
b) Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa (“clímax”,
Ferreira 1999, 486‐487)
1. O ponto culminante. 2. Grau máximo ou óptimo de desenvolvimento de
um fenómeno biológico ou social. 3. Fase de estabilidade de uma
associação ou comunidade biológica, de acordo com condições ambientes
prevalentes e estáveis. 4. E. Ling. Apresentação de uma sequência de ideias
em andamento crescente ou decrescente. Ex.”Tão dura, tão áspera, tão
injuriosa é a palavra não (P.e António Vieira, Sermões, II, p. 88), “entrava a
girar em volta de mim, à espreita de um juízo, de uma palavra, de um
gesto, que lhe aprovasse a recente produção (Machado de Assis, Memórias
Póstumas de Brás Cubas, p. 138). [Sin.: gradação (ascendente no primeiro
caso e descendente no segundo).] 5. E. Ling. Concatenação dos membros
de um período de maneira que cada um comece pela última palavra do
anterior; gradação. Ex.: O convívio gerou a amizade, a amizade
intensificou‐se em amor, o amor exaltou‐se em loucura. [Opõe‐se a
anticlímax] 6. Teatr. O instante decisivo da acção e da intensidade
emocional de uma peça, no qual o suspense e a expectativa desfecham no
esclarecimento ou definição dos factos dramáticos que o antecederam ou
sucederão.
2) Espanhol
Diccionario de la Lengua Española da Real Academia Española (“climax”, 2001,
570, vol. I)
Punto más alto o culminación de un proceso. 2. Gradación retórica
ascendente. 3. Término más alto de esta gradación. 4. Momento
culminante de un poema o de una acción dramática 5. Ecol. Estado óptimo
de una comunidad biológica, dadas las condiciones del ambiente.
73
3) Francês
O termo “clímax” não se encontra costumeiramente nos dicionários de
francês consultados130. Temos uma pequena referência no dicionário de
1877 de E. Littré (“climax”, 1970, 394): “terme de rhétorique. Synonyme
inusité de gradation”. O Dictionnaire Quillet de la Langue Française
(“climax”, 1975, sem pp., vol. I) apresenta uma definição do termo
somente na sua acepção científica131, ressalvando o facto de este não
constar no Dictionnaire de l’Académie. O Lexis Dictionnaire de la Langue
Française (“climax”, 1975b, 341) regista o termo somente neste contexto
científico132.
4) Italiano
Lo Zingarelli: vocabolario della lingua italiana (“climax”, Zingarelli 1999, 384)133
1 (ling.) Figura retórica che consiste nella gradazione ascendente per
intensità e forza di una serie di concetti e di vocaboli: per sdegno, per
orgoglio, o per dispetto (BOIARDO). CFR. Anticlimax. 2 (biol) Stato di equilibrio
di una comunità di organismi vegetali o animali che resta stabile finché non
si alterino in modo notevole le condizioni ambientali | (est.) La comunità
stessa. 3 (med.) Acme 4 (biol.) Orgasmo.
5) Inglês
Oxford English Dictionary (“climax”, 2009)
I Properly. 1 Rhet. A figure in which a number of propositions or ideas are
set forth so as to form a series in which each rises above the preceding in
force or effectiveness of expression; gradation. 2 gen. An ascending series
or scale. Obs. II Popularly. 3 The last or highest term of a rhetorical climax.
4.a. gen. The highest point of anything reached by gradual ascent; the
culmination, height, acme, apex. b. Ecology. The point in the ecological
succession at which a plant‐community reaches a state of equilibrium with
130
A entrada não consta por exemplo no Le Petit Robert nem no Le Grand Larousse de la Langue
Française.
131
“Suite d’associations d’êtres vivants se suivant naturellement en un lieu donné. Plus précisément, la
dernière association, stable”.
132
“Terme final évolutif d’une série progressive de formations végétales non troublée par l’intervention
humaine”.
133
Nem todos os dicionários consultados atestam a forma.
74
its environment, able to reproduce itself indefinitely under existing
conditions. Also attrib. c. Physiol. = orgasm n. 2. 134
6) Alemão
a) Wahrig Detusches Wörterbuch (“Klimax”, 1997, 737)135
Steigerung, Höhepunkt; Stilmittel der Steigerung. Übergang vom
schwächeren zum stärkeren Ausdruck; Ggs. Antiklimax; das Endstadium
einer durch Boden‐ u. Klimaverhältnisse bedingten Entwicklung der
Planzenwelt; a. = Klimakterium
b) Duden: Das grosse Wörterbuch der deutschen Sprache (“Klimax”, Drosdowski
1978, 1488)
1a.) Höhepunkt: unter Orgasmus versteht man die K. der sexuellen Lust; b)
(Stilk.) Übergang vom schwächeren zum stärkeren Ausdruck, vom weniger
zum Wichtigeren (Ggs.: Antiklimax). 2. (Med.) so viel wie Klimakterium
Algo avulta de imediato numa primeira leitura dos excertos transcritos, e
igualmente após a consulta de vários dicionários: o passado retórico da palavra não é
sempre registado, e, quando o é, é‐o de uma forma aparentemente equívoca para
quem estudou o termo na época clássica. Retirando talvez a entrada de Aurélio e de
Houaiss transcrita, que apresenta uma definição “clássica” do termo, refere‐se quase
sempre que “clímax”, na retórica, se reporta à disposição de ideias de uma forma
ascendente. Como já estudámos, o entendimento clássico e retórico do termo não
classifica o clímax como uma figura de pensamento, mas como uma figura de
“repetição de palavras”. Já quanto ao facto de o clímax ser obrigatoriamente
ascendente, como os dicionários sugerem, tal também não pode ser lido em nenhum
dos excertos transcritos neste capítulo. Há, quando muito, uma “sugestão de
crescendo”, mas de forma nenhuma os autores clássicos consideravam obrigatório
134
135
Transcrevemos a entrada sem as citações do original.
O conhecido dicionário de 1873 de Jacob e Wilhelm Grimm (Grimm 1991) não atesta a forma.
75
haver um aumento de intensidade para que existisse um clímax. Então porque
registam maioritariamente os dicionários modernos esta acepção no domínio da
“Retórica”? Porque se especializaram no “clímax qualitativo”, tal como definido há
pouco?
Para respondermos a esta pergunta, propomos estudar a datação e a definição
do termo em diversos dicionários etimológicos das línguas citadas, procurando saber
que espaço linguístico é responsável pela disseminação e pela evolução do termo. Este
estudo é importante para a presente dissertação, pois só assim poderemos precisar
que tipo de evolução etimológica a palavra κλῖμαξ teve, para chegarmos a uma
definição com que possamos trabalhar a obra lírica de Horácio sob este prisma.
Começando pelo francês, já vimos que o termo se encontra raramente atestado
nos léxicos consultados, e em quase nenhum dos dicionários etimológicos franceses
compulsados (Clédat 1912; Dubois, Mitterand, e Dauzat 1993; Picoche 1992; cf. Rey et
al. 2006)136. O termo parece ter uma importância marginal no espaço gaulês; o artigo
da Encyclopédie de Diderot de facto faz referência ao termo, mas regista
exclusivamente o seu sentido retórico “moderno”137. Não nos parece pois que a origem
e a razão para o sucesso do “clímax” enquanto ferramenta de análise esteja nos
autores ou na literatura crítica francesa.
Em relação ao italiano, o termo surge com bastante mais frequência, embora
quase somente na sua acepção retórica de estruturação em crescendo, tal como o
define o dicionário etimológico de Cortelazzo e Zolli: “crescendo graduale degli effetti
stilistici o retorici in un discorso o in un componimento” (“climax”, Cortelazzo e Zolli
1979, 246, vol. I). Quanto à datação do termo, 1892 segundo o mesmo dicionário138,
esta é bastante mais recente do que a do inglês ou mesmo do português, o que parece
136
A única fonte por nós consultada que refere o termo em francês é o dicionário online Le Trésor de la
Langue Française Informatisé que refere o seguinte: “1753 rhét. (Encyclop. t. 3); 1946 biogéographie
(Forest.). Empr. au gr.κλι̃μαξ « échelle; p. anal., terme de rhét. : gradation ». Au sens biogéographique,
empr. à l'angl. climax « id. » (entre 1895 et 1910, F.E. Clements, savant amér. ds Encyclop. brit., s.v.
biology t. 3, p. 649c)” (“climax” in http://atilf.atilf.fr/). Note‐se que a primeira datação encontrada
corresponde precisamente à Encyclopédie.
137
“figure de Rhétorique par laquelle le discours s’elève ou descend comme par degrés” (Diderot 1753,
536, vol. 3).
138
Corroborado pelo Garzanti etimologico (“climax”, De Mauro e Mancini 2000, 414). O dicionário de
Battisti refere que o termo surge já no século XX (“climax”, Battisti 1965, vol. II, 982).
76
indicar que o termo foi importado já na sua acepção “moderna”, e que portanto a
evolução etimológica não ocorreu neste espaço linguístico. Nesta língua, segundo os
dicionários consultados, o termo não evoluiu para o sinónimo de “ponto culminante”,
o que parece testemunhar, em comparação com outras línguas, que o termo é pouco
usado139.
Passando à nossa língua, a datação proposta pelo dicionário Houaiss é a de
1836140 (“clímax”, Houaiss 2001, 960, vol. I), data em que o termo surge pela primeira
vez, não numa fonte textual comum, mas num léxico, nomeadamente no Novo
diccionario critico e etymologico da lingua portugueza de Francisco Solano Constâncio
(“climax”, Constâncio 1836). Vale a pena transcrever o que é dito neste dicionário:
“CLIMAX, s. m. (Gr. κλῖμαξ klimax, degrao de escada), fig. de rhet., gradação de
discurso ascendente, quando elle se eleva; descendente, quando baixa” (Constâncio
1836, 266). Esta entrada de dicionário parece indiciar que quando o termo surge em
português, no século XIX, já tem a acepção retórica “moderna”, ou seja, não faz
referência ao clássico uso retórico do termo, transpondo a figura para o domínio lato
do “discurso” e não da organização prescritiva do período, tal como entendido pelos
autores clássicos e cristãos aqui estudados. A expressão de um discurso “ascendente”
e “descendente” indica igualmente que o primeiro entendimento dado ao termo em
português vai buscar a κλῖμαξ fundamentalmente na matiz estudada de “clímax
qualitativo”, sendo de todo omisso a noção de clímax enquanto “elo causal”. Não se
partindo pois, em português, da noção clássica de “clímax”, e dado o facto de o termo
ter entrado na língua numa fase posterior em relação ao inglês, por exemplo, torna‐se
forçoso admitir que a “fortuna moderna” do termo não teve origem na nossa língua.
139
Repare‐se que na bibliografia italiana consultada acerca de Horácio, o termo é invariavelmente
apresentado em itálico, o que parece indiciar que os autores o vêem como um vocábulo estranho à sua
língua. Muitos desses passos serão aliás discutidos na nossa análise às odes.
140
O Dicionário Etimológico Nova Fronteira (“clímax”, Cunha 1986, 189) sugere, sem precisar a fonte, a
data de 1844. Já quanto à datação de José Pedro Machado (“clímax”, Machado 1967, 639, vol. I), este
sugere 1873, baseando‐se na entrada lexical do Grande Dicionário Português ou Tesouro da Língua
Portuguesa do Frei Domingos Vieira; no entanto, este é bastante mais recente (1873) do que o de
Francisco Solano Constâncio (1836). Machado refere também que o vocábulo entrou no português por
via do francês, afirmação que, no entanto, não é justificada, nem provavelmente justificável, se tivermos
em conta o que dissemos acerca deste termo em francês.
77
Quanto ao espanhol, algo semelhante pode ser dito. Nem o Tesoro de la lengua
castellana o española (1639) de Covarrubias refere o termo (Covarrubias Horozco
2006, ed. facsímile), nem o Diccionario de autoridades de 1726‐37 (Real Academia
Española 1990, ed. fácsimile); o Diccionario crítico etimológico castellano e hispânico
de Corominas (“clímax”, Corominas 1980, 101, vol. II) refere como primeira fonte
textual os escritos de Gomez Hermosilla (1771‐1837), helenista e crítico literário
espanhol, sem no entanto precisar em qual deles ocorre o termo pela primeira vez.
Após alguma investigação sobre o assunto, acabámos por encontrar uma extensa
definição e estudo sobre o termo na Arte de hablar en prosa y verso de 1826 (Gomez
Hermosilla 1826, I:100‐102), cujo autor será, segundo Corominas, o responsável pela
introdução do termo na língua castelhana. Hermosilla começa por definir “gradacion ó
clímax” da seguinte forma: “consiste en presentar una série de ideas en una
progresion tan constante de mas á menos ó de menos á mas, que cada una de ellas
diga siempre algo mas ó algo menos que la precedente, segun sea la gradation” (p.
100). Neste entendimento de clímax, mais uma vez, não está presente o sentido
original clássico; interessantemente, o primeiro exemplo que Hermosilla cita, nihil agis,
nihil moliris, nihil cogitas, quod non ego non modo audiam, sed etiam uideam planeque
sentiam (Cícero, In Catilinam, I. 8), é o mesmo dado pela Encyclopédie, de que já
falámos. Este exemplo, segundo a retórica clássica, não seria classificado como um
clímax, mas sim como anáfora, pelo que o uso que Hermosilla lhe dá sugere que o
autor já não está familiarizado com a sua acepção primeva, sendo pois fruto de uma
tradição textual de que, seguramente, e até pelos argumentos que apresentaremos de
seguida, o autor castelhano não é o fundador. Aliás, Hermosilla é claro em considerar
que para existir um clímax é obrigatório haver um crescendo ou decrescendo,
rejeitando mesmo o lado causa‐efeito que a figura comporta na antiguidade,
relacionado com a chamada concatenação141.
Em relação ao alemão, os dicionários consultados (Drosdowski 2001; Kluge
1989; Pfeifer 1993) apontam para uma mesma conclusão: não foi este o espaço
141
“Tambien debe adverstise que no se ha de confundir la gradacion en los pensamientos com la
concatenacion de las frases, de que se hablará en outro lugar, y que algunos llaman tambien, aunque
impropriamente, gradacion ó climax. Siempre que hay concatenation en las palabras, hay tambien
gradacion en las ideas, pero no al contrario” (p. 102).
78
linguístico em que ocorreu a evolução etimológica estudada. A prová‐lo temos o facto
de o termo ter entrado na língua no princípio do século XVIII142 (“klimax”, Pfeifer 1993,
669), e já com a exclusiva acepção de crescendo na expressão (“Steigerung im
Ausdruck,
Aufeinanderfolge
sinnverwandter
Ausdrücke
mit
zunehmendem
Nachdruck”). Tal como no português e castelhano, o termo também tem a acepção de
“ponto culminante” (Höhepunkt), que o dicionário de Pfeifer data já do século XX.
Para descobrirmos a verdadeira origem deste significado retórico moderno,
teremos de partir de uma pista que o dicionário etimológico de António Cunha
(“clímax”, Cunha 1986, 189) nos oferece, quando diz que a acepção de “ponto
culminante” ou “grau máximo ou óptimo” se deve à influência do inglês climax143. De
facto, analisando vários dicionários etimológicos ingleses (Barnhart 1988; Klein 1966;
Macdonald 1972; Onions 1966; The Oxford English Dictionary 2009), chegamos
facilmente à conclusão de que no inglês o termo clímax surge bem primeiro do que em
qualquer outra língua europeia, o que parece indiciar que esteve nesta língua a origem
da evolução etimológica da palavra: quer o Oxford English Dictionary quer o The
Barnhart Concise Dictionary of Etymology apontam para o ano de 1589 como a data do
primeiro uso do termo em inglês, na obra The Arte of English Poesie de G. Puttenham,
um tratado bastante influente na história da literatura crítica inglesa. Neste tratado, a
definição dada por Puttenham é bastante próxima do entendimento clássico, como se
pode ler: “Clymax, or the marching figure: Ye have a figure which as well by his Greeke
and Latine originals, and also by allusion to the maner of a mans gate or going may be
called the marching figure, for after the first steppe all the rest proceede by double the
space, and so in our speach one word proceedes double to the first that was spoken,
and goeth as it were by strides or paces, it may aswell be called the clyming figure, for
142
Bem mais cedo do que em português, castelhano ou italiano; isto deve estar relacionado com a maior
proximidade com a cultura anglística, que, como veremos de seguida, poderá estar na origem desta
evolução. No entanto, o dicionário de Pfeifer, o único a apresentar uma datação, não especifica a fonte
documental consultada, pelo que é difícil entender ao certo em que contexto o termo surgiu em
alemão; deve ter sido provavelmente no domínio da literatura retórica, muita dela escrita em latim, do
Norte da Europa, analisada de seguida.
143
Ponto de vista corroborado pelo Lexique de La Terminologie Linguistique de J. Marouzeau: “climax:
terme emprunté aux grammairiens grecs, (…) employé particulièrement par les grammairiens anglais,
pour désigner la gradacion ascendante” (“climax”, Marouzeau 1969, 50). Cf. igualmente Morier
(“climax”, 1981, 196).
79
Clymax is as much to say as a ladder ” (ed. de Willcock e Walker 1936, 207 e ss.), e
ainda mais nos exemplos propostos, como o de Jean de Meung:
“Peace makes plenty, plenty makes pride,
Pride breeds quarrel, and quarrel brings war,
War brings spoil, and spoil poverty,
Poverty patience, and patience peace:
So peace brings war, and war brings peace.”
Este é um exemplo em tudo semelhante aos apresentados pelos autores
clássicos, o que revela, da parte de Puttenham, um conhecimento e uma transposição
avaliada do termo retórico latino e grego. No Renascimento aliás, tal como ressalvam
Kirby e Poster (1998, 1111‐3), as inúmeras definições dadas, fundamentalmente
britânicas, não se afastam demasiado da sua matriz clássica144, atestando esta dupla
face do clímax, como processo de concatenação ou de crescendo. No entanto, há que
admitir, nas definições dadas por grande parte destes autores, que a ênfase é muitas
144
Além de Puttenham; cf. Thomas Wilson, The Art of Rhetoric (1553): “Gradation, is when we rehearse
the word that goeth next before, and bring an other word thereupon that encreaseth the matter, as
though one should go up a paire of stayres and not leaue till he come at the top. Or thus. Gradation is
when a sentence is disseuered by degrees, so that the word which endeth the sentence going before
doeth begin the next” (ed. Mair 2008, 168); A. Fraunce, Arcandian Rhetorike (1588) “reduplication conti‐
nued by diuers degrees and steps, as it were, of the same word or sound, for these two be of one kind”
(Fraunce 1950, 38); H. Peacham, The Garden of Eloquence (1577): “climax is a figure which so
distinguisheth the oration by degrees, that the word which endeth the clause going before, beginneth
ye next following […] This exornation hath much pleasantnesse, and is chiefly applied for the
augmenation of matters, it consisteth often times of fower [i.e. four] degrees, but commonly of three
[...] In using this figure we ought to observe a meane, that there be not too many degrees and also to
foresee that the degrees following, may rather increase then [sic] diminish in signification and lastly,
that they so ascend that they may end with a clause of importance” (ed. Crane 1954, q.iii ed. facsímile);
A. Day, The English Secretary (1599) “when each member in a sentence ariseth from the afore going,
beginning with that which endeth the former” (ed. Evans 1967, sem n.); J. Susenbrotus, Epitome
troporum ac schematum (1541) κλῖμαξ, est quum consequentia membra, ab iisdem ordiriuntur uerbis,
casu plerunque mutatis, quibus antecedentia clauduntur. Vel est, quoties ita per gradus oratio
distinguitur, ut dictio finiens particulam pracedente, inchoet frequentem (…) Habet hoc schema multu
leporis, uenustatis ac iucunditatis: facit ad acrimonia quoque, si per correctionem aut amplificationem
fit. Per correctionem illud est Ciceronis: Hic tamen uiuit, uiuit? imo etiam in Senatum uenit. Per
amplificationem sic: occidisti amicum, amicum, inquam, occidisti, et occidisti non ferro, sed ueneno,
ueneno autem omnium praesentissimo linguae, linguae tartareo ueneno intinctae. Vsus illius etiam est
haud inuenustus, quando res gradus habet, uelut in genealogiis recensendis, aut in ferie magistratum
sibi succendentium. Exemplum est apud Homerum non inelegans de Sceptro, quod a Ioue ad
Agamemnonem usque deducit (Susenbrotus 1551, 83‐84 ed. Lyon). Temos ainda a definição de P.
Melanchthon, Institutiones Rhetorices (1523): cum per gradus itur ab aliis ad alia, ita ut semper
proximum uerbum repetatur (ed. Wels 2001, 264), à qual podemos acrescentar (cf. “Silva Rhetoricae”,
Burton 2010), R. Sherry, A Treatise of Schemes and Tropes (1550), “gradacio, in, when we rehearse again
the word that goth next before, and descend to other things by degrees” (Sherry 1961, 58, ed.
facsímile).
80
vezes posta na qualidade do clímax, i.e., no facto de este ascender de um ponto a
outro, algo notório no uso de verbos e de substantivos ligados à área semântica de
“crescer” ou “crescendo” (encreaseth, clyming figure, augmenation, increase, ascend,
ariseth), ideia que tem, como já estudámos, igualmente uma matriz clássica.
A partir do século XVI, e até ao séc. XVIII, o termo na sua acepção retórica vai
progressivamente evoluir para uma figura em que claramente existe um abandono do
clímax visto como repetição de palavras, em prol de uma visão do clímax como um
meio de descrever uma figura de pensamento em que as frases se vão organizando de
forma crescente. Será provavelmente a literatura crítica inglesa a responsável por esta
evolução, à qual não foram contudo alheios tratados como os do holandês Gerardus
Vossius (Gerrit Janszoon Vos, 1577‐1649), Commentariorum Rhetoricorum siue
oratoriarum institutionum (Vossius 1606, V. 38 = Τ. II, p. 294‐298)145 e o do alemão
Bartholomäus Keckermann (1572‐1609), Systema rhetoricae146 (Keckermann 1608, II.
14 = pp. 209‐213), que se dedicaram ao estudo da figura “clímax”, e que no fundo
acabam por levar mais longe uma tendência já estudada nos autores da Patrística que
se debruçaram sobre o tema.
As páginas que Vossius dedica ao tema são, como observam Kirby e Poster,
uma das mais profusas discussões acerca do clímax, com exemplos vários de autores
clássicos e cristãos. Se atentarmos nestas, facilmente observamos que o primeiro
entendimento que Vossius faz de “clímax” é o clássico, ou seja, um período em que o
fim de um membro inicia o seguinte: κλῖμαξ uerbo eodem inferiora connectit
superioribus: unde definitur ἐπαναφορὰ πλεονάζουσα; além dos exemplos que a
tradição já consagrara, cuja fonte parece ser Quintiliano e a Retórica a Herénio (o autor
145
Para uma datação das edições cf. Rademaker (1999, 273).
Para a importância destes dois autores no espaço retórico britânico setecentista, cf. Conley, “in terms
of their popularity and importance, two figures stand out, Bartholomeus Keckermann and Gerhard
Johann Vossius. Keckermann was very influential in nothern Europe and in England. Bacon was familiar
with his De rhetorica ecclesiastica and probably also with his Systema rhetoricae. The latter (…) was used
in Dissenting English schools until the end of the century. Daniel Defoe studied it as a boy at Dr.
Morton’s Academy, for instance. Vossius’ work on rhetoric, too, was important, not only in the Low
Countries but also in Scotland, Germany, and Sweden long after his death” (1990, 157). Kirby e Poster
(1998) citam somente a definição de Vossius no seu artigo, mas parece‐nos que Keckermann também
terá tido influência na evolução do termo, pelo que se diz de seguida.
146
81
cita Epicarmo147, fr. 148 Kaibel, Demóstenes, De Corona 179, Calvo, fr. 25 Malcovatti), o
autor vai acrescentar vários passos de autores clássicos e cristãos que o ilustram148.
Depois de apresentar uma noção “mais clássica”, Vossius reflecte sobre o uso da
figura, começando por referir que neque necesse est iterum, ac tertio fieri
repetitionem. Est enim κλῖμαξ in simplici repetitione. Abordando um tema que de
facto não é claro nos excertos dos retóricos latinos e gregos aqui já comentados, o
autor é da opinião de que não é preciso ter várias repetições para ter um clímax e
aduz, a este propósito, cinco novos exemplos149. Ao contrário de Trapezuntius, autor
dos Rhetoricorum libri V (1433‐4), primeiro manual de Retórica do período humanista
(cf. Monfasani 1976, 261 e ss.), que define gradatio como cum consequentia membra
ab iisdem uerbis casu mutantis oriuntur, quibus antecedentia clauduntur (1433, 572 na
ed. de 1808), o autor não considera que a repetição da palavra se dê obrigatoriamente
por poliptoto, propondo como exemplo um τεχνοπαίγνιον de Décimo Ausónio,
Idílios, 12, uma composição em que o poeta demonstra a sua habilidade, no caso em
fazer terminar um verso num monossílabo e iniciar o seguinte com o mesmo150; a
147
Lembrando‐se das palavras de Eustátio já comentadas a propósito da ἐποικοδόμησις (In Iliadem II.
101‐8, Valk, 1.278).
148
Heródoto, III. 82, αὐτὸς γὰρ ἕκαστος βουλόμενος κορυφαῖος εἶναι γνώμῃσί τε νικᾶν ἐς
ἔχθεα μεγάλα ἀλλήλοισι ἀπικνέονται, ἐξ ὧν στάσιες ἐγγίνονται, ἐκ δὲ τῶν στασίων φόνος,
ἐκ δὲ τοῦ φόνου ἀπέβη ἐς μουναρχίην·, vários exemplos de Cícero, Ad Atticum, II. 23. 3, si stas
ingredere, si ingrederis curre, si curris aduola, Pro Roscio Amerino, 75, In urbe luxuries creatur, ex luxuria
exsistat auaritia necesse est, ex auaritia erumpat audacia, inde omnia scelera ac maleficia gignuntur, Pro
Flacco, 44, si praetor dedit, ut est scriptum, a quaestore numerauit, quaestor a mensa publica, mensa
aut ex uectigali aut ex tributo, Philipp. 12. 7, Quid enim potest, per deos immortalis! rei publicae
prodesse nostra legatio? Prodesse dico? quid si etiam obfutura est? Obfutura? quid si iam nocuit atque
obfuit?, mas também de Terêncio Varrão (fr. 52 Cardauns), cum aut humus semina recipere non possit
aut recepta non reddat aut edita grandire nequeat, ou mesmo de Ovídio, Fasti 3. 21‐2, Mars uidet hanc
uisamque cupit potiturque cupita, e de Claudiano, De Consulatu Stilichonis, III. 172‐176, sic Medus
ademit / Assyrio Medoque tulit moderamina Perses;/ subiecit Persen macedo, cessurus et ipse /
Romanis. A identificação dos passos em questão foi nossa.
149
Cícero, Pro Archia, 4, famam ingeni exspectatio hominis, exspectationem ipsius aduentus
admiratioque superaret (exemplo citado por Trapezuntius, autor que Vossius refere de seguida), Pro
Lege Manilia, 8, ab eo bello Sullam in Italiam res publica, Murenam Sulla reuocauit, Vergílio, Aen. 9. 571
e 573, Emathiona Liger, Corynaeum sternit Asilas, (…) Ortygium Caeneus, uictorem Caenea Turnus
(Vossius omite o verso 572), Aen. 10. 753, Atronium Salius Saliumque Nealces, Cipriano, Epist. LXXIII, ad
hoc veniunt, ut discant. Mais à frente cita igualmente Cícero, Pro Milone, 61, Neque uero se populo
solum sed etiam senatui commisit, neque senatui modo sed etiam publicis praesidiis et armis, neque his
tantum uerum etiam eius potestati cui senatus totam rem publicam, omnem Italiae pubem, cuncta
populi Romani arma commiserat.
150
Res hominum fragiles alit, et regit, et perimit fors
Fors dubia, aeternumque labans, quam blanda fouet spes
Spes nullo finita aeuo, cui terminus est mors
mors auida, inferna mergit caligine quam nox (…), etc.
82
citação deste poema, sem um crescendo evidente, ilustra como o autor considera
igualmente o clímax como sorites, isto é, uma cadeia inextrincável e lógica de elos
causais. Mas mais importante para o presente capítulo, são as palavras seguintes de
Vossius, que podem contribuir para explicar a evolução etimológica que a κλῖμαξ
sofreu: ubi uidemus, non uerborum solum, sed sententiarum esse ascensum. Atque
idem fit in aliquot aliis exemplis, antea adductis. Vt fatis liqueat, gradationem non
totam huc pertinere; uerum schema quidem λέξεως esse, quatenus in ea est uerborum
esse repetio: at figuram esse διανοίας, quatenus in eadem est sententiarum
incrementum. Embora subentendida em grande parte dos autores retóricos, a ideia de
que um clímax pode ocorrer ao nível de uma gradação crescente de pensamento, de
διάνοια, é aqui taxativamente expressa, o que representa uma novidade no contexto
do presente estudo. Repare‐se que está igual e indubitavelmente registada a noção de
um crescendo (ascensum), não só de palavras, mas de frases. De facto, a junção destas
duas ideias, de que o clímax assenta numa noção de crescendo, com o facto de este
crescendo assentar não necessariamente ao nível da λέξις, mas também da διάνοια,
terá contribuído para a evolução e fortuna do termo. O autor finaliza o seu estudo
sublinhando o facto de esta figura ser raramente usada pelo orador, uma vez que
serve fundamentalmente para ornamentar num intuito mais lúdico do que
propriamente sério (frequentes in argumento ludicro et ad delectandum instituo),
embora conclua o seu texto com a citação de diversos passos em que a figura foi usada
com um propósito “grave”151.
151
Torua leaena lupum sequitur, lupus ipse capellam, / florentem cytisum sequitur lasciua capella (Verg.,
Ecl. 2. 63‐4), ὕλης μὲν γὰρ τὸ λεπτομερέστερον ἀήρ, ἀέρος δὲ ψυχή, ψυχῆς δὲ νοῦς, νοῦ δὲ ὁ
θεός (Corpus Hermeticum V. 11 = vol. 1, p. 64 Nock), ubi enim uoluptas, ibi et studium, per quod scilicet
uoluptas sapit; ubi studium, ibi et aemulatio, per quam studium sapit. Porro et ubi aemulatio, ibi et furor
et bilis et ira et dolor (Tertuliano, De spectaculis, 15. 3‐4), porro ubi gloria, illic sollicitatio, ubi sollicitatio,
illic coactio, ubi coactio, illic necessitas, ubi necessitas, illic infirmitas (Tertuliano, De virginibus velandis
14. 2), sperando enim timebimus, timendo cauebimus, cauendo salui erimus (Tertuliano, De cultu
feminarum, II. 2. 2), Cui enim ueritas comperta sine deo? Cui deus cognitus sine Christo? Cui Christus
exploratus sine spiritu sancto? Cui spiritus sanctus accommodatus sine fidei sacramento? (Tertuliano, De
anima, 1. 4), idcirco mundus factus est, ut nascamur: ideo nascimur, ut agnoscamus factorem mundi ac
nostri Deum: ideo agnoscimus, ut colamus: ideo colimus, ut immortalitatem pro mercede laborum
capiamus, quoniam maximis laboribus cultus Dei constat: ideo praemio immortalitatis afficimur, ut
similes angelis effecti, summo patri ac Domino in perpetuum seruiamus, et simus aeternum Deo regnum
(Lactâncio, Divinae institutiones, VII. 6. 1.), Annuas atque menstruas de Deo fides decernimus, decretis
poenitemus, poenitentes defendimus, defensos anathematizamus (Hilário, Ad Constantium Augustum, II.
5. (PL 10. 567B)). O autor acaba o seu texto com a citação de passos bíblicos (tribulatio patientiam
83
Será Vossius isoladamente o responsável por esta evolução do termo na
retórica moderna, e daí para outros contextos? Parece‐nos mais prudente referir que
este autor representa uma escola retórica, fundamentalmente do Norte da Europa152,
em que o termo paulatinamente evolui de uma simples figura de estilo, para uma
ferramenta hermenêutica de um todo textual, e não só de um período ou parágrafo,
seguindo aliás a tendência dos autores mais recentes da Patrística aqui estudados. A
prová‐lo temos as páginas que o já citado Keckermann153 dedica ao assunto, no mesmo
período temporal (cerca de dois anos depois, se bem que a composição e reflexão que
presidiram ao tratado data seguramente de antes), extremamente pertinentes para a
presente reflexão. O autor parte de uma definição que indicia já que, para ele, a figura
comporta inquestionavelmente um carácter de crescendo, não dando lugar a outro
tipo de entendimento: Climax seu gradatio est figura, qua gradus rerum
exaggerandarum plures congeruntur, et instar scalae ab imis ad summa peruenitur.
Climax idem est Graecis quod Latinis scalae: quia in hac figura quasi per scalam
ascendit Orator a rebus paruis ad maiores (1608, II. 14 = p. 209). Insurge‐se assim
contra definições mais restritivas do termo, como a de Melanchthon154, que fazem da
figura uma simples figura uerborum; esta visão não interessa a Keckermann, nem
operatur, patientia autem probationem probatio uero spem, spes autem non confundit, Rm 5, 3‐5; quos
autem prædestinauit hos et uocauit et quos uocauit hos et iustificauit quos autem iustificauit illos et
glorificauit, Rm 8, 30; quomodo ergo inuocabunt in quem non crediderunt aut quomodo credent ei quem
non audierunt quomodo autem audient sine prædicante quomodo uero prædicabunt nisi mittantur sicut
scriptum est quam speciosi pedes euangelizantium pacem euangelizantium bona, Rm 10, 14‐15). A
identificação dos passos é de nossa lavra. Ao todo, Vossius cita 29 passos de 16 autores, fazendo deste
estudo o mais rico, neste sentido, de todos os tratados estudados.
152
Embora a escola jesuíta seja de longe a mais influente na tradição retórica da Europa setecentista (cf.
Conley 1990, 152‐155), temos argumentos contra uma influência da Companhia de Jesus sobre a
evolução do termo clímax, pois nos inumeráveis manuais de Retórica dos Jesuítas, o termo gradatio ou
climax continua a ser usado na sua acepção “clássica”; isto pode servir para explicar porque o termo
evolui precisamente na Inglaterra, onde a influência retórica jesuíta é menor (Conley 1990, 157). A
ilustrar isto que dizemos temos as definições dadas de clímax ou gradatio em dois dos mais influentes e
reeditados manuais da Companhia de Jesus, o De arte rhetorica de Cipriano Soares (1562), e o De
eloquentia sacra et humana de Nicolau Caussin (1619), este último posterior aos tratados de
Keckermann e Vossius. Soares define gradatio (III. 26 = p. 79) segundo o cânone de Quintiliano (gradatio
repetit quae dicta sunt, et priusquam ad aliud descendat in pluribus resistit), não acrescentando nada de
novo à tradição clássica, assim como Caussin, para quem o ascensum, que atesta como sinónimo de
gradatio ou climax é uma figura (…) in qua prostremum quodque uerbum in priore membro, aut parte
aliqua elocutionis positu, in inferiorem rursus assumptum iniicitur: atque ita, uelut gradibus quibusdam,
connectitur oratio (p. 386, ed. de 1630), dando para o efeito os exemplos costumeiros, como o de
Demóstenes.
153
Para uma visão da vida e obra de Keckermann e a sua influência na Retórica e Filosofia, cf. o
completo estudo de Freedman (1997, 305‐364).
154
Cum per gradus itur ab aliis ad alia, ita ut semper proximum uerbum repetatur (Institutiones
Rhetorices, 1523, p. 488 (cf. ed. Wels 2001, p. 264)).
84
igualmente o carácter lógico e formal da figura, relacionável com o sorites, que vê
como despiciendo quando comparado com a sua força ornamentativa (uis pingendi et
ornandi orationem, p. 210). O autor aborda seguidamente de forma original o tema,
procurando uma distinção do conceito em três subalíneas: a) climax magis proprie
dictus, b) climax minus proprie dictus e c) infinita gradatio, naquela que nos parece ser
a primeira vez em que alguém se refere à necessidade de catalogar os diversos tipos
de clímax que existem. O filósofo considera um climax minus proprie dictus quando o
orador afirma que já disse algo de grande valor, mas que se reserva algo ainda maior
(magna audiuistis, auditores, sed audietis maiora, p. 212), costumeiro também na
linguagem quotidiana, quando dizemos algo como “se pensas que já disse algo
importante, espera até ouvires isto…”. Quanto à infinita gradatio, surge quando o
orador confessa que já não tem melhores palavras para afirmar aquilo que já disse,
tendo chegado o discurso a um ponto em que já não pode crescer mais155. Por climax
magis proprie dictus, Keckermann, reflectindo sobre um entendimento “clássico” do
termo, subdivide a gradatio em dois grupos: 1) quando as palavras não são repetidas
literalmente, mas também ao nível do sentido (non pure), 2) quando as palavras se
repetem (pure)156. O autor finaliza esta sua definição com um exemplo de Cícero157,
comentando que os Retores costumam classificá‐lo como incrementum. De grande
importância para nós, é o facto de, ao polemizar sobre a distinção entre climax e
incrementum, que considera inútil, o filósofo reiterar de forma peremptória que a
gradatio comporta em si, em larga e quase exclusiva medida, a ideia de algo que sobe,
tendo bem presente a ideia da escada (imo, saepe magis gradatio hic quam ibi; quia
scala proprie non tam paria spectat, quam ima et summa, p. 212).
Estes dois tratados, produzidos no início do século XVII, são representativos de
que, na altura, o “clímax” começou a ser visto na literatura retórica do Norte da
155
Cita, a este propósito, um passo de Cícero (In Verrem, II. 4. 2): Magnum uideor dicere: attendite etiam
quem ad modum dicam. Non enim uerbi neque criminis augendi causa complector omnia: cum dico nihil
istum eius modi rerum in tota prouincia reliquisse, Latine me scitote, non accusatorie loqui.
156
Nestes parágrafos Keckermann utiliza exemplos semelhantes aos de Vossius, ou comuns aos diversos
autores aqui estudados (Africano uirtutem industria…, Retórica a Herénio; Ovídio, Fasti 3. 21‐2; Cícero,
Pro Milone, 61, Pro Roscio Amerino, 75; Verg., Ecl. 2. 63‐4;); Rm 5, 3‐5; 2 Pe 1, 5‐7).
157
Facinus est uincire ciuem Romanum, scelus uerberare, prope parricidium necare: quid dicam in
crucem tollere? (In Verrem 2.5.170).
85
Europa, em particular no espaço anglófono158, larga e quase exclusivamente como 1)
uma figura de sentido; 2) uma figura onde existe inquestionavelmente uma ideia de
crescendo. A atestá‐lo temos diversos exemplos de literatura britânica que utilizam o
termo exclusivamente neste sentido159, olvidando de todo o passado do termo160,
segundo a sua definição clássica161. Isto é bem visível no pensamento crítico de autores
158
Apesar de as nossas pesquisas se basearem fundamentalmente no corpus coligido pelo Google Books
(http://books.google.com/), onde se encontra fundamentalmente material escrito em inglês, o facto de
as buscas feitas em alemão para as mesmas datas, e com os mesmo parâmetros (segunda metade do
séc. XVII, início séc. XVIII, procura pelo termo‐chave “Klimax”) terem resultado infrutíferas, assim como a
datação da palavra (séc. XVIII) proposta pelos dicionários etimológicos alemães (e também holandeses),
julgamos que é seguro apontar o Reino Unido como o espaço linguístico em que o termo evoluiu para o
seu significado comum hodierno. De qualquer das formas, a origem geográfica da evolução não é tão
importante quando comparada com a natureza desta, algo que pode ser, neste momento, muito bem
estudado no espaço anglófono.
159
Embora existam evidências desta acepção em outros espaços linguísticos: por exemplo, temos o
autor holandês Joahnnes Cocceius, comparatio Christi cum angelis in his continuator. Climax est.
Ascendit ad maiora. quod post omnes locos examinatos clare patebit (Coccejus 1659, 74), ou o tratado
de retórica francês de Lamy, “Lorsque ce que l’on ajoûte dit plus, & qu’on monte comme par degrez,
cela fait une figure que tantôt on apelle Climax, tantôt Auxese, qui sont des mots Grecs. Le premier
signifie gradation, élevation qui se fait de degré en degré. Le second augmentation” (Lamy 1701, 151, 1a
ed. 1675); ou o tratado do francófono Gabriel François Le Jay, [Climax] est Figura, in qua Oratio per
certos Gradus ad aliquid summum & ultimum ueluti ascendit, aut ad aliquid infimum descendit. (Le Jay
1725, 54).
160
Seria mais fácil considerar que a evolução se deu apenas dentro da escola retórica, e por confusão de
termos. Assim pelo menos afirma Francesco Sciuto: “tra i moderni, dunque, o meglio, tra i
contemporanei nostri la climax e la gradatio hanno perduto il significato univoco che avevano per gli
antichi, sicché queste due parole sono, di solito, passate a significare altre figure letterarie diverse. La
causa deve essere ricercata nell’indebolimento subìto dall’insegnamento della retorica secondo i
principî antichi e nel fatto che della gradatio, figura troppo appariscente e scoperta, si fa poco o nessun
uso nella letteratura moderna, specialmente dopo il rinnovamento romantico. Le due parole sono
passate a significare, solitamente, un’altra figura che gli antichi già conobbero e di cui Quintiliano
teorizza le varie forme sotto la denominazione di amplificatio. Ma è veramente deplorevole che spesso
perfino filologi, nel commentare gli antichi testi greco‐romani, usino i termini climax e gradatio in senso
errato, o attribuiscano a climax il genere maschile” (Sciuto 1966, 28); no entanto, a este autor é
totalmente alheia a evolução do termo na própria escola retórica do Norte da Europa e na sua evolução
na comunidade linguística deste espaço, como prova o facto de, na sua longa nota de rodapé (n. 17, pp.
28‐31), fazer exclusivamente referência a autores italianos e franceses, algo que, por tudo o que foi dito,
resulta numa metodologia errónea. Não nos parece haver uma confusão entre climax e amplificatio; o
termo climax é que foi evoluindo na própria escola retórica, fora do contexto clássico, para uma figura
de estilo que partilha alguns dos processos da amplificatio. Assim sendo, podemos com liberdade falar
num sentido clássico e moderno, sem que se anulem reciprocamente, antes enriquecendo‐se: a nossa
análise da poesia horaciana terá sempre em conta este património riquíssimo que encerra o termo
retórico.
161
Podemos aduzir bastantes exemplos que sustentam esta afirmação, organizados de forma
cronológica, desde a segunda metade do século XVII até ao princípio do século XVIII: “This is laid down
in a threefold Rhetorical Climax, or elegant climbing form of speech, rising higher and higher” (Roberts
1675, 138, 1ª ed. 1648); “Well but mark further a notable climax or gradation in their sin. (…) See here
Sin's usual way of motion how it moves progressively and creeps on by little and little and improves by
degrees and one Sin is a step to another and every lesser Sin the disposition and in let into a greater”
(Barker 1660, 10); “Whilest Perjury, Sacriledge and Hypocrisie is the only Climax by which they ascend to
greatnesse, of which at this day we need no to go farre for examples” (Foulis 1662, 172); “A General
Demonstration that the Holiness Described is the Design of Christianity, by a Climax of Seven
86
anglófonos posteriores como Lord Kames (1696‐1782), Hugh Blair (1718‐1800) ou do
influente Joseph Priestley (1733‐1804). A estes três autores, que dedicaram parte das
suas obras à teorização literária, e à organização composicional do discurso, é comum
uma ideia de clímax que passa por ser, fundamentalmente, uma ferramenta ao dispor
do orador ou do escritor para organizar de forma exclusivamente ascendente a sua
composição escrita, quer de um período, quer de um discurso. No seu Elements of
Criticism, publicado em Edimburgo em 1762162, o filósofo escocês Henry Home Kames
utiliza a expressão “clímax” com familiaridade, dividindo o conceito em “climax in
sound” e “climax in sense”. Por “climax in sound” (ed. Jones 2005, 239) o estudioso
entende a conjugação harmoniosa de sons em sentido ascendente, usando, para o
propósito, passos de Cícero163 em que o autor, mercê fundamentalmente da disposição
de palavras e do jogo dos seus sons, cria um período em crescendo. Já o “climax in
sense” tem mais a ver com a forma como se podem organizar por ordem de grandeza
os vários elementos de um discurso, que o autor considera mais belo se forem
dispostos por ordem crescente164. A conjugação destes dois tipos de clímax é, no
particulars”, título de um capítulo (Fowler 1676, 8); “In this Text is a Climax, it riseth as the Waters of the
Sanctuary, higher” (Annesley 1683, 63); “The fourth Part I have wholly added; as a Climax which sums
up all the praise, advantage, and happiness of Dulness in a few words, and strengthens them all by the
opposition of the disgrace, disadvantage, and unhappiness of Wit, with which it concludes” (Pope 1735,
1:31‐32, carta dirigida a Mr. Wycherley em Nov. 20. 1707); “that admirable Beauty Order and Connexion
which so evidently appears between all the constituent Parts of Creation and Providence would
necessarily direct them ascend, as by a sure Climax, to an aweful Acknowledgment of the Supreme”
(AA.VV 1708, X:290); “Confidence, Ambition, and Covetousness, are the Climax by which he ascends to
Grandeur” (Britaine 1717, 213, 1a ed. 1680); “Upon a Climax, or a Gradation; where the Discourse
climbs up by several clauses of a Sentence to a Period of Full Point; ‘tis manifest that the Voice must be
rais’d accordingly by the same degrees of elevation to answer every step of the Figure, till it is at the
utmost height of it” (Anón. 1727, 142); “To finish the Climax, he concludes with a prolix Encomium on a
certain Gentleman, who hath been in some considerable Employment, for above twenty Years together
(…)” (D’Anvers 1731, 6:70); “This, my dear sir, crowns the climax. A man may proclaim Jesus, and give
reasons why he believes on him, but unless he is learned he must not expound texts, or explain
scripture” (Campbell 1731, 195, letter from R. B. Semple, No. III). Temos igualmente a definição dada
por John Kersey no seu Dictionarium anglo‐britannicum: “a Ladder, the Step of a Ladder, a Stile: In
Rhetorick, a Figure that proceeds by degrees from one Thing to another” (“climax”, Kersey 1708).
162
Cuja influência se nota logo em tratados subsequentes como o The elements of dramatic criticism de
Cook (1775, 58 e ss.), que aplica o conceito neste sentido.
163
Quicum quaestor fueram, quicum me sors consuetudoque maiorum, quicum me deorum hominumque
iudicium coniunxerat (Diuinatio in Q. Caecilium, 65), Habet honorem quem petimus, habet spem quam
propositam nobis habemus, habet existimationem multo sudore labore uigiliisque collectam (ibidem, 72),
eripite nos ex miseriis, eripite ex faucibus eorum, quorum crudelitas nisi nostro sanguine non potest
expleri (De oratore, I. 225).
164
“But the numeration of many particulars in the same periods if often necessary, and the question is,
In what order they should be placed? (…) If a number of objects of the same kind, differing only in size,
are to be ranged along a straight line, the most agreable order to the eye is that of an increasing series.
In surveying a number of such objects, beginning at the least, and proceeding to greater and greater, the
87
entender de Lord Kames, um dos efeitos mais belos na organização de um período165.
Outro exemplo disto é Hugh Blair, considerado um dos primeiros grandes teorizadores
do discurso escrito, e cujo tratado Lectures on Rhetoric and Belles Lettres, publicado
em 1783 em Londres, conheceu particular fortuna e influência no mundo ocidental166,
resultando de uma compilação feita pelo autor das suas palestras dadas no âmbito da
“Chair of Rhetoric and Belles Lettres” na Universidade de Edimburgo. Neste tratado,
Hugh Blair utiliza sempre o termo num sentido não‐clássico, recuperando a distinção
de Lord Kames entre “clímax de som” e “clímax de sentido”. Ao falar sobre a
amplificatio, Blair torna dependente desta figura um processo a que chama clímax, e
que associa exclusivamente à disposição crescente de ideias: “but the principal
instrument by which it [Amplification] works, is by a Climax, or a gradual rise of one
circumstance above another, till our idea be raised to the utmost” (ed.
Ferreira‐Buckley e Halloran 2005, 193), advertindo, de seguida, para o facto de, sendo
um tipo de organização artificial, dever ser usado com parcimónia e com extremo
cuidado, algo aliás que a retórica clássica já referia. No entanto, ao longo do todo o seu
tratado, vai referir por diversas vezes a figura, que encara somente como um modo de
organizar ascendentemente as ideias do orador167. Outro exemplo paradigmático deste
uso hegemónico é o de Joseph Priestley168, também ele um influente autor do séc.
XVIII, que dedica um capítulo inteiro ao tema (ed. Bevilacqua e Murphy 1965, 275‐280)
no seu livro A Course of Lectures on Oratory and Criticism, cuja primeira edição data de
1777, capítulo sugestivamente intitulado “Of Climax, and the Order of Words in a
Sentence” (Lecture XXXI). Tal como os dois últimos teorizadores, Priestley concorda
igualmente com a ideia de que, quando uma série de termos cresce, é necessário
mind swells gradually with the successive objects, and in its progress has a very sensible pleasure. (…)
The beauty of this figure, which may be termed a climax in sense, has escaped Lord Bolingbroke (…)”
(ed. Jones 2005, 262‐263).
165
“It belongs to the present subject to observe, that when these coincide in the same passage, the
concordance of sound and sense is delightful: the reader is conscious not only of pleasure from the two
climaxes separately, but of an additional pleasure from their concordance, and from finding the sense so
justly imitated by the sound” (ed. Jones 2005, 270).
166
Sobre o assunto, cf. a introdução da edição de Ferreira‐Buckley e Halloran (Ferreira‐Buckley e
Halloran 2005, xv‐liv).
167
“This sort of arrangement is called a Climax, and is always considered as a beauty in composition.
From what cause it pleases, is abundantly evident. In all things, we naturally love to ascend to what is
more and more beautiful, rather than to follow the retrograde order” (ed. Ferreira‐Buckley e Halloran
2005, 127).
168
Este autor, ao contrário dos outros dois aqui citados, é referido por Kirby e Poster (1998, 1113).
88
organizar os seus elementos por ordem de grandeza (de acordo com natureza e
tempo) de maneira a que possam ser comparados e postos em contraste. Que, neste
autor, é aparentemente esquecido o passado clássico do termo, é bem visível na forma
como o autor comenta o passo de Cícero169 que já Vossius citara: diz, a respeito deste,
que “in this passage the terms luxury, avarice, impudence and licentiousness rise
regularly above one another, both with regard to their heinousness as vices, and their
pernicious effects in the state; and they likewise succeed one another in the order of
time and of cause and effect, the precending article being always the cause of the
following” (ed. Bevilacqua e Murphy 1965, 276). Não havendo qualquer referência ao
clímax como figura de repetição de palavras, que é aliás evidente no exemplo, Priestley
centra‐se somente no aspecto organizacional e de crescendo da figura170. De grande
importância para o presente estudo é a citação, por parte de Priestley, da Ode for
Musick, on St. Cecilia’s Day (escrita em c. 1708), de Alexander Pope (ed. Butt 1963,
139‐142), da qual cita os vv. 38‐48:
So, when the first bold Vessel dar’d the seas,
High on the stern the Thracian rais’d his Strain,
While Argo saw her kindred trees
Descend from Pelion to the Main.
Transported Demi‐Gods stood round,
And Men grew Heroes at the Sound,
Enflam’d with Glory's Charms:
Each Chief his sevenfold Shield display'd,
And half‐unsheath’d the shining Blade;
And Seas, and Rocks, and Skies rebound,
To arms, to arms, to arms.
O facto de o autor aqui analisar uma ode, escrita por Pope, um dos grandes
classicistas do seu tempo, conhecido por uma tradução da Odisseia, não deixa de ser
feliz no contexto do presente estudo. Priestley comenta o v. 47, em que se traça um
percurso crescente dos Rochedos, ao Mar, e aos Céus171, considerando este um
exemplo de clímax, exclusivamente baseado na ordem crescente com que os
169
Pro Roscio Amerino, 75, In urbe luxuries creatur, ex luxuria exsistat auaritia necesse est, ex auaritia
erumpat audacia, inde omnia scelera ac maleficia gignuntur.
170
“Priestley ist vor allem an der Klimax als Sinnfigur interessiert, die durch eine natürliche Hierarchie
bzw. hinsichtlich Zeit, Natur, sozialem Status oder Kausalität von Satzteil zu Satzteil ansteigt, und
weniger an den grammatikalischen Mitteln, durch die ein solches schrittweises Fortschreiten erzielt
wird” (Kirby e Poster 1998, 1113).
171
Convenientemente, Priestley inverte a ordem na sua citação, escrevendo “And Rocks, and Seas, and
Skies rebound” (ed. Bevilacqua e Murphy 1965, 176).
89
elementos são dispostos. É aliás preocupação do autor sublinhar o facto de o clímax
ser uma ferramenta indispensável para a organização de um todo: “As all things that
can be exhibited in the same view, so as to be named together in a sentence, must be
related to one another, (because in that situation they must have a like dependence
upon something going before, or coming after) and since it is impossible that things
which are really different should have the same relations, there must always be a
reason for naming some first and others last, and the disposition of them cannot be
quite arbitrary. The order of cause and effect, of time or place, and of worth, dignity,
and importance, are of principal influence in this affair” (ed. Bevilacqua e Murphy
1965, 277). Isto leva‐nos à conclusão de que, para estudar um clímax, qualquer que
seja a forma sob a qual se manifeste, há que atentar no seu carácter
predominantemente organizativo; ou seja, para haver uma ordem crescente, tem de
haver necessariamente ordem – seja de causa‐efeito, tempo, lugar ou importância. O
facto de esta ordem ser exclusivamente crescente, sendo o seu contrário descrito
como anticlímax172, é uma opinião partilhada e reiterada por estes autores britânicos
do século XVIII que estudámos.
Vemos pois como, paulatinamente, e por influência da escola inglesa, o clímax
começou a ser quase exclusivamente considerado uma figura de sentido, ainda assim
172
O termo está presente na literatura crítica inglesa desde muito cedo, logo no início do séc. XVII. O
primeiro exemplo que encontrámos data de 1701, numa edição das obras de Francis Beaumont e John
Fletcher, numa nota ao texto: “here we have a strange Anticlimax, she is in Labour with Anger, and yet
only big with Child of Rage. The Editor possibly might be the Author of this Inconsistency” (Beaumont e
Fletcher 1701, 7:433); temos vários exemplos do uso desta expressão nesta altura; citamos apenas
alguns: “They had better have left out that, for humbly submit, is not to so strong as render infinite
Thanks, and the Merchants have been guilty of an Anticlimax” (Oldmixon 1709, 91‐92); o autor John
Dennis utiliza a expressão no seu ensaio The Ground of Criticism in Poetry, datado de 1704: “But in the
the two last Verses, Tasso has injudiciously been guilty of an Anticlimax” (Dennis 1718, 2:437); no seu
Prefácio dirigido a Pope, Hill escreve “It is from the same unweigh’s Redundancy, and Misapplication of
Words, that we have so often find this excellent Writer falling into the Anticlimax” (Hill 1720, xi).
Particularmente interessante é um passo de Arthur Maynwaring (1668‐1712) que refere o termo como
um figura desconhecida dos antigos: “but will conclude this Head with taking Notice of a certain Figure
which was unknown to the Ancients, and in which this Letter writer very much excels. This is call’d by
some an Anticlimax, an Instance of which we have in the Tenth page; where he tells us, that Britain may
expect to have this only Glory left her, that she has prov’d a Farm to the Bank, a Province to Holland,
and a Jest to the whole World” (Maynwaring 1715, 162). Dos exemplos se nota que: 1) muitas vezes o
termo comporta um sentido pejorativo, denotando‐se que para estes críticos a figura é usada em
grande parte por desleixo por parte do seu autor, cuja intenção verdadeira era criar um clímax
ascendente, tendo claramente falhado na sua execução; 2) se o clímax é considerado inequivocamente
ascendente, anticlímax será pura e simplesmente o seu reverso. A distinção entre clímax e anticlímax
não vai ser explorada na nossa dissertação, dado o entendimento que temos do conceito, como será
brevemente exposto.
90
no contexto microestrutural de uma frase ou de um período. Nota‐se, no entanto, em
autores como Hugh Blair ou Priestley, que o clímax já quase não é uma figura de estilo
propriamente dita, mas sim um processo fundamental para descrever a forma como
um escritor ou um orador compõe desde um período a um discurso. Esta passagem
anunciada da mircroestrutura de um período para a macroestrutura de uma obra é
difícil de precisar em termos de autoria, uma vez que foi provavelmente um processo
contínuo de uma pluralidade de autores e usos. Para a fortuna do termo “clímax”
usado neste sentido, no entanto, não deve ter sido alheio o trabalho de Gustav Freytag
(1816‐1895), escritor, dramaturgo e teorizador literário alemão, cuja obra Die Technik
des Dramas, primeiro publicada em 1863, em Leipzig, teve grande influência na análise
do drama grego e shakespeariano, e grande fortuna nos meios literários alemães, e
posteriormente ingleses173. É fundamentalmente conhecido este autor, neste âmbito,
pela sua teoria do “triângulo dramático”, conhecido como “o triângulo de Freytag”,
exposto no capítulo intitulado “Fünf Teile und drei Stellen des Dramas” (Freytag 1863,
100‐120), com cinco vértices assim denominados: “a) Einleitung, b) Steigerung, c)
Höhenpunkt [sic], d) Fall oder Umkehr, e) Katastrophe” ou seja, “a) introdução, b)
subida, c) ponto culminante, d) queda ou regresso, e) catástrofe”, graficamente
exposto no tratado deste modo:
O facto de o autor referir o termo “Höhenpunkt” e não “Klimax” é mais um
argumento para a defesa da tese de que foi a literatura crítica inglesa ultimamente a
responsável pelo sucesso do termo nos meios críticos literários e não só, uma vez que
a tradução inglesa que