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DOI: https//doi.org/10.13037/reae.vol6n11.

7783

Recebido em: 29/03/2021 | Aceito em: 25/05/2021

A educação humanista em Paulo Freire: apontamentos para uma


alfabetização libertadora

Elisabete Ferreira Esteves Campos 1


Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2023-0714

Resumo

Partindo de estudos sobre educação humanista, o objetivo deste ensaio é apresentar os


pressupostos político-pedagógicos para uma alfabetização libertadora na infância, com base
no pensamento de Paulo Freire. O caráter humanizador, emancipatório e democrático da
pedagogia freireana, fundamenta uma concepção de alfabetização, na qual o
desenvolvimento cognitivo, cultural, emocional, ético e político não se dissocia. Nesse grave
momento em que o mundo é atingido por uma pandemia de proporções inimagináveis, as
crianças, mais do que nunca, precisam ser ouvidas, acolhidas e respeitadas em suas
fragilidades, potencialidades e formas peculiares de viver esse momento inusitado. A
alfabetização libertadora promove sua intensa participação como sujeitos na produção
criativa do conhecimento. A leitura de mundo que, na perspectiva de Freire antecede a leitura
da palavra, amplia-se nos processos de leitura e escrita e vai se tornando mais curiosa,
promovendo formas variadas de ler, dizer e escrever o mundo em um processo de
alfabetização libertadora.
Palavras-chave: Alfabetização libertadora. Educação humanista. Paulo Freire.

Abstract

This essay deals with studies on humanist education, with the objective of presenting political-
pedagogical foundations for a liberating literacy, based on Paulo Freire's theory. The
humanizing, emancipatory and democratic character of Freire's pedagogy, underlies a
conception of literacy, in which the cognitive, cultural, emotional, ethical, and political
development is not dissociated. In this serious moment when the world is hit by a pandemic of
unimaginable proportions, children, more than ever, need to be heard, welcomed, and respected
in their fragilities, potentialities, and peculiar ways of living this unusual moment. Liberating
literacy promotes their intense participation as subjects in the creative production of
knowledge. The reading of the world that, in Freire's perspective precedes the reading of the
word, expands in the processes of reading and writing and becomes more curious, promoting
different ways of reading, saying, and writing the world in a liberating literacy process.
Keywords: Liberating literacy. Humanistic education. Paulo Freire.

1
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Metodista de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa “Políticas de gestão
educacional e de formação dos profissionais da educação” e do Grupo de Estudos Paulo Freire.
E-mail: betecampos@terra.com.br.

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Revista Estudos Aplicados em Educação | São Caetano do Sul, SP | v. 6 | n. 11 | p. 83-96 | 2021 | ISSN 2525-703X
Elisabete Ferreira Esteves Campos

1 Introdução

Este ensaio decorre de estudos sobre políticas, processos e práticas de educação


humanista, e tem como objetivo apresentar pressupostos político-pedagógicos para uma
alfabetização libertadora na infância, com base no pensamento de Paulo Freire.
Compreendemos o conceito de alfabetização em sentido amplo, que não se limita à
aprendizagem do sistema de escrita alfabética, propondo o trabalho pedagógico com leitura e
escrita de textos de diversos gêneros, abarcando seus aspectos culturais, sociais, históricos,
éticos, estéticos e políticos. Refuta-se o estreitamento de métodos que se limitam a alfabetizar
por meio de decodificação de letras, palavras e sílabas memorizadas mecanicamente, como
também do método fônico ou instrução fônica presente na atual política de alfabetização
(BRASIL, 2019).
Nossa oposição a uma alfabetização memorística, encontra suas bases teóricas na obra
de Paulo Freire, cujos fundamentos foram sistematizados a partir de suas experiências com
educação de adultos, antes do golpe de Estado de 1964, quando esteve à frente da criação e
coordenação do movimento de educação popular (FREIRE, 2014). Reconhecendo a necessária
democratização da cultura, da educação e a emergência política das classes populares, Freire
se propôs a atacar os elevados índices de analfabetismo no País, que atingiam cerca de 16
milhões de jovens e adultos (FREIRE, 2014, p. 133), correspondendo a 39,6% da população
com catorze anos ou mais. As práticas de alfabetização propostas por Freire (2005, 2014)
tinham como propósito a reflexão crítica dessa população marginalizada, conscientizando sobre
as contradições da sociedade opressora, o que provocou sua prisão e exílio.
As publicações de Freire decorrentes de seu trabalho prático com alfabetização de
adultos, que posteriormente denominou de educação popular (FREIRE, 2001), associou o autor
a esse segmento, levando ao entendimento de que sua teoria não é referência para a educação
escolar de crianças. Essa crença foi sendo superada, a exemplo do grupo de pesquisadores que,
em suas investigações, tiveram como “finalidade estudar a compreensão de Freire sobre a
infância e as crianças”, o que contribuiu para que formulassem “uma Pedagogia da Infância
Oprimida” (SANTOS NETO, ALVES, SILVA, 2011, p. 37).
Para esses pesquisadores, a exemplo dos adultos das camadas populares, as crianças
também ficam submetidas a práticas de dominação autoritária por parte das pessoas que não
reconhecem, quer as situações de opressão da infância nas crianças, ou a opressão da infância
nos próprios adultos. Concluíram que a educação na infância requer uma “pedagogia que
possibilite abertura suficiente para ter com as crianças um olhar de respeito às suas
singularidades, necessidades e direitos” (SANTOS NETO, ALVES, SILVA, 2011, p. 37).
Essa e outras pesquisas sobre os fundamentos teóricos de Paulo Freire para a educação
na infância, nos levaram a analisar e ampliar as possibilidades pedagógicas na alfabetização
das crianças, com base na abordagem antropológica, política e filosofia da educação formulada
por esse educador. Trata-se de uma pedagogia que analisa criticamente o lugar que tem sido
ocupado pelas crianças na sociedade e nas escolas de educação formal para, com elas,
conquistar outros lugares, considerando suas vozes, suas formas de experenciar e compreender
a realidade.
Nesse grave momento em que o mundo é atingido por uma pandemia de proporções
inimagináveis, as crianças, mais do que nunca, precisam ser ouvidas, acolhidas e respeitadas
em suas fragilidades, em seus medos, em suas potencialidades e formas peculiares de viver esse
momento inusitado. O ensino e aprendizagem da leitura e da escrita não estão dissociados dos
sentimentos e emoções vividas por aqueles e aquelas que aprendem, e pelos/as que ensinam.
Os docentes, para além de sua vida pessoal absolutamente alterada na pandemia, também estão
se sentido atingidos pelas contradições que emergem de uma sociedade que ora reconhece seus
méritos por não pouparem esforços na continuidade do ensino durante a pandemia, ora os ataca,

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seja porque estão reivindicando condições adequadas de trabalho com o advento da COVID-
19, ou porque promovem uma educação que não atende aos valores requeridos por uma parcela
das famílias. A volta às aulas presenciais sem que todos os profissionais da educação tenham
sido priorizados no programa de vacinação, é um exemplo do descaso com a educação no País
e, especialmente, com os grupos populares que frequentam as escolas públicas.
É um cenário dramático, complexo, mas oportuno para os debates em torno do papel da
educação e dos pressupostos para uma alfabetização libertadora, com base no pensamento de
Freire, fundamentada em princípios éticos, em contextos escolares que sejam permeados por
relações dialógicas entre educadores e educandos inquietos, curiosos e questionadores.
Nesse ensaio, problematizaremos o ensino cartilhesco, mecanicista para, em seguida,
tratar dos sentidos e significados de uma alfabetização libertadora. Destacamos o necessário
acolhimento das crianças na pandemia, reafirmando processos e práticas de alfabetização
concebida como exercício de cidadania. Encerramos apontando que os programas de
alfabetização em disputa evidenciam contradições, tornando ainda mais necessários os debates
acerca da educação para o fortalecimento de um projeto de sociedade democrática.

2 Problematizando o ensino cartilhesco

O percurso da educação brasileira sempre foi marcado por diferentes concepções


pedagógicas e, em muitos períodos, predominou uma metodologia pautada na transmissão e
memorização mecânica de conteúdos.

A memorização mecânica da descrição do objeto não se constitui em conhecimento


do objeto. Por isso é que a leitura de um texto, tomado como pura descrição de um
objeto é feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura, nem dela portanto resulta
o conhecimento do objeto de que o texto fala. [...] A insistência na quantidade de
leituras sem o devido adentramento nos textos a serem compreendidos, e não
mecanicamente memorizados, revela uma visão mágica da palavra escrita (FREIRE,
2008, p. 17-18).

Nessa metodologia memorística prevalece a transferência de conhecimentos por meio


da narração da realidade como “algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado”, e
a tarefa do professor e da professora, é “encher os educandos” com sua narração de conteúdos
“que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja
visão ganhariam significação” (FREIRE, 2005, p. 65). A realidade estática narrada pelos
educadores e memorizada mecanicamente pelos educandos, transforma a palavra em “palavra
oca, em verbosidade alienada e alienante” (FREIRE, 2005, p. 66). É uma “visão bancária da
educação”, na qual o “saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber”
(FREIRE, 2005, p. 67).
Nos anos de 1960, lutando contra essa “concepção bancária da educação”, Freire criou
o movimento de alfabetização popular, reconhecendo a relevância dos “saberes de experiência
feito” (FREIRE, 2001, p. 49) dessa população, como ponto de partida para alcançar o
conhecimento científico, rigoroso, valorizando sua cultura, suas crenças, criatividade e
possibilidade de construir o pensamento crítico.
Os fundamentos didático-pedagógicos de uma “concepção problematizadora e
libertadora da educação” (FREIRE, 2005, p. 71) concebem as relações entre educandos e
educadores mediatizadas por conteúdos que fazem parte da vida em sociedade, promovendo a
gradativa construção da consciência crítica por meio do diálogo problematizador. A educação
“não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas
relações com o mundo” (FREIRE, 2005, p. 77). Um mundo cuja leitura “precede a leitura da

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palavra” e a leitura da palavra promove a continuidade da leitura do mundo, em um movimento


dialético no qual “linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (FREIRE, 2008, p.11).
A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção do
contexto para uma “compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura
da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do
mundo” (FREIRE, 2008, p. 11), tornando-se, assim, “palavramundo” (FREIRE, 2008).
Texto e contexto, leitura do mundo e da palavra, não se dissociam e contribuem para a
compreensão das contradições nessa sociedade que é desigual e excludente, sendo que uma das
“tarefas da escola” e seus “professores e professoras progressistas” é “desopacizar a realidade
enevoada pela ideologia dominante” (FREIRE, 2001, p. 28), que mantém os estudantes como
meros receptores de conteúdos e distantes de uma participação social, política.
As práticas de alfabetização formuladas pelo autor partem de conteúdos relacionados
com as experiências cotidianas dos educandos, seus saberes, sua cultura, problematizando seu
mundo para melhor compreenderem a realidade opressora à que estão submetidos. No
movimento de educação popular, Freire (2014, p. 136) propunha uma “alfabetização direta e
realmente ligada à democratização da cultura”, ainda que fosse uma “introdução a essa
democratização”
Nunca, porém, abandonamos a convicção que sempre tivemos, de que só nas bases
populares, e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico. Daí jamais
admitirmos que a democratização da cultura fosse a sua vulgarização, ou, por outro
lado, a doação ao povo do que formulássemos nós mesmos, em nossa biblioteca, e que
a ele entregássemos como prescrições a serem seguidas (FREIRE, 2014, p. 134).

Freire, de forma inquieta, opunha-se à alfabetização cartilhesca para ensinar que “Eva
viu a uva” ou “a asa é da ave” a adultos que haviam enfrentado “as durezas de um dia de
trabalho ou de um dia sem ‘trabalho’” (FREIRE, 2014, p. 136-137) ou a trabalhadores
envolvidos com reivindicações para melhorar suas condições de trabalho e de vida. Tais
práticas mantinham os adultos como receptores alienados de um conhecimento sem significado.
Convencido de uma necessária alfabetização conscientizadora, Freire criou nos
“Círculos de Cultura”, um “método ativo, dialogal, crítico e criticizador” (FREIRE, 2014, p.
141). O conteúdo programático partia do levantamento vocabular e compreensão dos sentidos
e significados da diversidade de palavras que faziam parte da forma de expressão dos grupos
populares. A investigação também identificava temas significativos de sua vida cotidiana.
Nesse processo investigativo, palavras e temas geradores emergiam do diálogo entre a equipe
envolvida com a educação popular e os adultos interessados em participar do programa de
alfabetização.
Palavras como trabalho, terra, enxada, tijolo, moradia, favela, dentre outras e temas
como arte popular, reforma agrária, profissão, nacionalismo, são alguns exemplos que surgiram
nos diferentes grupos de alfabetizandos (FREIRE, 2008, 2014). Palavras e temas eram
organizados em fichas com imagens que compunham o material usado nos “Círculos de
Cultura”, que substituíam os espaços escolares tradicionais.
Por estarem em diferentes localidades, com diferenças culturais, regionais e distintos
interesses, as palavras e temas não eram iguais em todos os Círculos. Mas os mesmos princípios
e fundamentos didático-pedagógicos constituíam os trabalhos grupais, uma vez que o diálogo
problematizador acerca das palavras e temas mediavam as relações democráticas.
A organização em círculos viabilizava a proximidade e participação ativa de todo o
grupo, proporcionando a aprendizagem coletiva das palavras geradoras. Desdobradas em
sílabas, formavam-se outras palavras, ampliando a compreensão do sistema de escrita ao
mesmo tempo em que se dialogava sobre seus sentidos e significados. Com a palavra favela,
por exemplo, propunha-se analisar

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[...] a situação existencial que representa em fotografia o aspecto de uma favela e em


que se debate o problema da habitação, da alimentação, do vestuário, da saúde e da
educação numa favela, e, mais ainda, em que se descobre a favela como situação
problemática, se passa à visualização da palavra, com sua vinculação semântica
(FREIRE, 2014a, p. 183, grifos do autor).

Com essa metodologia “dialética-dialógica” (FREIRE, 2005), a cultura popular era


valorizada nas práticas de alfabetização por meio de outras palavras como jarro, batuque, arado,
conscientizando de que não são apenas as elites colonialistas que têm cultura.

Todos os povos têm cultura, porque trabalham, porque transformam o mundo e, ao


transformá-lo, se transformam. A dança do Povo é cultura. A música do Povo é
cultura, como cultura é também a forma como o Povo cultiva a terra. Cultura é
também a maneira que o Povo tem de andar, de sorrir, de falar, de cantar, enquanto
trabalha [...] Cultura são os instrumentos que o Povo usa para produzir. Cultura é a
forma como o Povo entende e expressa seu mundo e como o Povo se compreende nas
suas relações com o seu mundo (FREIRE, 2008, p. 75-76).

Da mesma forma que os adultos, as crianças participam de um universo infantil em


diferentes realidades culturais, sociais e econômicas que precisam ser investigadas, analisadas,
compreendidas e consideradas pelos educadores.

É preciso que ela [a professora] saiba que a sintaxe de seus alunos, sua prosódia, seus
gostos, sua forma de dirigir-se a ela e a seus colegas, as regras com que brincam ou
brigam entre si, tudo isso faz parte de sua identidade cultural a que jamais falta um
corte de classe. E tudo isso tem de ser acatado para que o próprio educando,
reconhecendo-se democraticamente respeitado no direito de dizer “menas gente”, possa
aprender a razão gramatical dominante por que deve dizer “menos gente” (FREIRE,
2007, p. 68, destaques do autor).

Ao não identificar e compreender a identidade cultural das crianças no contexto de sua


classe social, as práticas escolares tornam-se autoritárias e burocráticas, impondo o
conhecimento formal das classes dominantes sem considerar, como ponto de partida, a leitura
de mundo das crianças.
Lições cartilhescas podem não fazer sentido, mas ainda são encontradas em livros e
apostilas que circulam em algumas escolas, como identificaram as pesquisadoras Glach e Klein
(2015) e Vieira (2017).

[...] o que se verifica na análise dessas cartilhas, tomadas como exemplares ilustrativos
dos séculos XVI até o século XX e início do século XXI, é que por mais que se tenham
(re)elaborado os métodos, os livros usados como propagadores de “novas” propostas
não conseguiram se desvencilhar de um “modelo”, ou seja, de uma estrutura que, aqui
defendo, ficou viva na memória daqueles que se constituíram como autores desses
“novos” livros. Na essência, o que vemos é que cada nova cartilha traz sempre ecos de
uma tradição que ficou marcada na memória de quem um dia utilizou-se desse
referencial na sua construção de leitor-autor (VIEIRA, 2017, p. 188).

As marcas de uma tradição cartilhesca também se revelam em atividades propostas para


as crianças com frases bastante comuns, tais como: no aniversário de Bianca tinha bolo,
brigadeiro e beijinho. A leitura e escrita dessa frase não faz sentido algum para crianças que
nunca tiveram uma festa de aniversário e nunca comeram um doce chamado beijinho.
Para além de analisar se tais frases contribuem ou não com a alfabetização, é preciso
reconhecer que há um processo de exclusão, de discriminação e desrespeito aos estudantes,

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sejam adultos ou crianças, em um modelo de educação autoritária de ensino mecânico e acrítico


de conteúdos.
Manter o ensino cartilhesco significa distanciar-se da realidade das crianças e de suas
necessidades, padronizando culturas e ritmos, recusando conhecimentos prévios,
discriminando e contribuindo com o fracasso escolar.
Em uma prática democrática, inclusiva, o ensino de conteúdos “não pode prescindir do
crítico conhecimento das condições sociais, culturais, econômicas do contexto dos educandos”
(FREIRE, 2007, p. 69). Ao respeitar a cultura e o mundo dos estudantes, estabelece-se um
vínculo afetivo de amorosidade que, longe de significar um amor piegas, é um ato de amor à
humanidade. “É preciso não ter medo do carinho, não fechar-se à carência afetiva dos seres
interditados de estar sendo” (FREIRE, 2007, p. 69). Nessa relação dialógica-amorosa, o
conhecimento se constrói a partir de conteúdos que se tornam significativos promovendo a
reflexão das crianças acerca de temas instigantes e desafiadores.

3 Sentidos e significados da alfabetização libertadora

O conceito antropológico de ser humano inacabado, nas formulações teóricas de Freire,


leva à compreensão da educação como processo permanente (FREIRE, 2001). Homens e
mulheres “descobrem que pouco sabem sobre si, de seu ‘posto no cosmos’, e se inquietam por
saber mais” (FREIRE, 2005, p. 31). Essa necessidade de “saber mais” no âmbito da escola, está
controlada por grupos que detêm o poder determinando, em seus programas e políticas
educacionais, o que se aprende, como se aprende, quem deve aprender e como se deve ensinar.
Alinhados à tese neoliberal, com uma suposta neutralidade da educação, grupos dominantes
propõem a padronização de currículos e avaliações refutando o debate, o pensamento crítico,
mantendo relações verticalizadas, como se constata no Projeto Escola sem Partido (CAMARA
DOS DEPUTADOS, 2015) que, obviamente, toma partido.
A politicidade da educação não pode ser “teimosamente” negada, insistindo na sua
neutralidade (FREIRE, 2001). O reconhecimento de sua politicidade requer o engajamento na
luta pela humanização, pela desalienação, pela postura ético-democrática que se afirma em uma
educação para a liberdade. Uma educação que não dissocia os saberes científicos de seus
aspectos culturais, históricos, sociais e éticos. Rompe com a negação dos direitos humanos,
com os preconceitos, racismo e naturalização das desigualdades. Em um currículo de educação
libertadora, a escola deixa de ser segregadora, organizando tempos e espaços que promovam
relações mais dignas e respeitosas, ensinando os valores da cidadania democrática que também
é vivenciada em seus lugares sociais e seus territórios.
Nesse contexto, a alfabetização libertadora, da forma como a compreendemos, propõe
que os estudantes aprendam a linguagem formal sem sofrerem discriminação por sua condição
social, sua cultura e sua forma de expressão. As variações linguísticas oriundas das diferenças
regionais e culturais que dão origem a gírias, jargões e dialetos, fazem parte do processo de
ensino e aprendizagem, bem como as diferenças entre linguagem escrita e falada, que também
precisam ser objeto de ensino.
A alfabetização libertadora não valoriza apenas a língua dominante que considera
incorretas outras formas de expressão. Tradicionalmente, a linguagem formal é concebida como
única válida, sem lugar para as variantes que estão presentes na linguagem popular e que são
corrigidas pelos docentes dizendo à criança que ela fala errado (LAPERUTA-MARTINS,
2017). Com sua identidade destruída, a criança, tímida e envergonhada, aceita a correção e o
rótulo de não saber falar direito. Pode tornar-se vítima de chacotas, sofrendo com o bullying.
Opondo-se à essa prática discriminatória e reacionária, a alfabetização libertadora
acolhe, respeita, dialoga e ensina com amorosidade. É o reconhecimento da diversidade

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linguística do povo brasileiro, que poderá dar suporte para os docentes e para as crianças
entenderem os elementos que constituem tal diversidade. E respeitá-las para aprender outras
formas de comunicação.
Assim como há diversidade na linguagem falada, a escrita também é diversa e, como
explica Ferreiro (2013), as culturas escritas são históricas e sociais. Há aspectos léxicos,
sintáticos, semânticos, ortográficos, marcas de fala, que fazem parte desse processo histórico
de construção linguística, com peculiaridades em diferentes tempos e lugares. A escrita, com
suas marcas e complexidades, precisa ser compreendida em contextos de usos sociais e com
suas referências linguísticas.
Os programas oficiais de alfabetização, no entanto, deixam as escolas à mercê das
intencionalidades políticas e ideológicas dos diferentes governos. A cada mudança de governo,
muda-se a política e o programa. A exclusão dos docentes dessas deliberações, leva à
retrocessos uma vez que os grupos políticos desconsideram o percurso das diferentes redes de
ensino do País e as peculiaridades de cada escola e respectivos projetos político-pedagógicos.
As políticas que não partem de uma avaliação da realidade “não levam em conta em um mínimo
instante, os homens em situação” (FREIRE, 2005, p. 98). Ou seja, desconsideram as
especificidades das comunidades escolares tão diversas em nosso País.
O tema da alfabetização transforma-se em “slogans” e “mensagens salvadoras”
(FREIRE, 2005) nos discursos políticos, depositando os conteúdos dos planos de governos nos
educadores e educandos, que permanecem na condição de implementadores de tais políticas.
Cabe destacar que no atual momento de recrudescimento de pautas autoritárias e
ultraconservadoras, ataques ao posicionamento crítico e à educação emancipadora se tornam
cada vez mais exacerbados. A necessária conscientização dessa realidade é fundamental nos
processos de ensino e aprendizagem, para que a escola cumpra seu papel de contribuir com a
construção e fortalecimento de uma sociedade democrática, propondo que as crianças, desde
cedo, vivenciem ambientes e relações solidárias e éticas, fundadas no “sonho por um mundo
menos malvado, menos feio, menos autoritário, mais democrático, mais humano” (FREIRE,
2001, p. 17).

4 Acolhendo as crianças no contexto da pandemia

Esse momento crucial que estamos vivendo, exige de nós outro olhar para a educação e
para as crianças. Sem compreender de forma clara o que acontece, as crianças sentem os
impactos da pandemia, vivendo um período de incertezas, de privações, impedidas de
frequentar a escola, afastadas de seu convívio social com outras crianças e com outros membros
da família.
É preciso acolhê-las e dialogar com elas sobre como têm vivido esse cotidiano, o que
fazem e o que sentem. “As educadoras precisam saber o que se passa no mundo das crianças
com quem trabalham” (FREIRE, 2007, p. 98), respeitando seu “direito de falar a que
corresponde o nosso dever de escutá-las” (p. 26).
Ainda que as interações ocorram de forma remota, é preciso acolhê-las em suas
angústias e seus medos, incentivando que expressem seus sentimentos nesse momento de tantas
restrições e perdas. Aproveitar o pouco tempo de contato virtual com colegas, é uma rica
oportunidade de interação que precisa ser alegre, prazerosa e respeitosa. Certamente nem todos
os estudantes terão essa oportunidade pela falta de recursos e, nesse caso, construir outras
formas de contato é também um compromisso com todas as crianças do País.
Divergindo de uma prática educativa para o desenvolvimento de “competências e
habilidades socioemocionais” que se alinha aos pressupostos individualistas da teoria
neoliberal, a alfabetização libertadora ao respeitar a individualidade das crianças, não

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desconsidera os contextos históricos, sociais e os diversos fatores que estão envolvidos no


ensino e aprendizagem.
O propósito da escola não é desenvolver habilidades ou competência para que os
estudantes, individualmente, possam alcançar o sucesso profissional em um futuro incerto. A
escola democrática compromete-se com a formação integral de todos os estudantes por meio
da construção de saberes no campo das artes, da filosofia, da tecnologia, matemática, letras,
ciências, em uma abordagem problematizadora e reflexão crítica, que não dissocia o
desenvolvimento cognitivo, físico, social, ético e emocional.
A construção de conhecimentos não ocorre fora da pessoa humana com suas crenças e
idiossincrasias. Mas não se trata de mobilizar e articular conhecimentos, valores e atitudes para
resolver problemas de forma individual, mas valer-se do diálogo coletivo para conhecer-se,
refletindo acerca de atitudes e valores assumidos e as necessárias mudanças pessoais e sociais.
Provocar a reflexão sobre a realidade social mobiliza não apenas conhecimentos cognitivos,
mas também emocionais.
Há crianças que vivem e sofrem discriminações em função de sua condição social, da
cor de sua pele, da sua cultura e crença religiosa, e essa realidade não pode ser negligenciada
pela escola. Essas crianças precisam ser acolhidas e os temas debatidos.
Racismo, trabalho infantil, desigualdade de gênero, saúde, desemprego, dentre tantos
outros, podem ser abordados e discutidos por meio da leitura de textos, tendo o professor e a
professora como condutores do processo. Os textos, nessa abordagem pedagógica, despertam
a sensibilidade e a inserção na vida com um olhar mais fraterno e ético. Texto e contexto,
sistema de escrita e características linguísticas, não se dissociam e se imbricam com os valores
e sentimentos presentes nas pessoas.
As crianças podem ser instigadas a falar e registrar o que pensam, o que observam, o
que ouvem na mídia e nas conversas com adultos sobre a pandemia, as vacinas, os cuidados
com a higiene. Partem do senso comum transitando para a construção do conhecimento
científico de forma gradativa, pesquisando, lendo e dialogando. A leitura ganha significado,
superando uma atividade burocrática e escolarizada com o propósito de conseguir nota.

Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda
autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a forma
crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do
processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar ou buscar criar a compreensão do
lido; daí, entre outros pontos fundamentais, a importância do ensino correto da leitura
e da escrita. É que ensinar a ler é engajar-se numa experiência criativa em torno da
compreensão. Da compreensão e da comunicação (FREIRE, 2007, p. 29).

A leitura da palavra não se dissocia da leitura de mundo que a precede e se amplia com
os conhecimentos formais (FREIRE, 2008). E por isso se torna uma leitura curiosa, sendo que
“a experiência da compreensão será tão mais profunda quanto sejamos nela capazes de associar,
jamais dicotomizar, os conceitos emergentes da experiência escolar aos que resultam do mundo
da cotidianidade” (FREIRE, 2007, p. 30).
A compreensão da realidade, que parte das experiências cotidianas e do pensamento
infantil se amplia com a compreensão de conceitos, levando a um processo de alfabetização
significativo.
Refuta-se, dessa forma, currículos padronizados, livros com conteúdos cartilhescos,
memorizações, relações autoritárias e formação alienada, quando os docentes sabem “da
impossibilidade de desunir o ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos” (FREIRE,
2014, p. 93).

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A educação humanista em Paulo Freire: apontamentos para uma alfabetização libertadora

5 Processos e práticas de alfabetização libertadora

A alfabetização libertadora, fundamentada na pedagogia humanista de Paulo Freire, é


um ato político e ato de conhecimento que não se dissocia do caráter social dos conteúdos.
A diversidade de textos que circulam socialmente é produto histórico e cultural,
implicando em uma seleção criteriosa para que façam parte do currículo escolar, de forma que
os estudantes “se entreguem à curiosidade crítica”, para que os textos não “sejam lidos
mecanicamente” (FREIRE, 2008, p. 39).
Livros infantis, contos e ditados populares, crônicas, textos literários, jornalísticos,
instrucionais, propagandas, publicações em blogs e sites, dentre outros, precisam ser
selecionados levando em conta os interesses dos estudantes, as especificidades do universo
infantil e da faixa etária.
Os estudantes podem aprender sobre as características linguísticas dos textos, o gênero
e tipo textual, a autoria, o contexto de produção, os propósitos e intenções das mensagens nem
sempre explícitas, configurando uma pedagogia participativa, na qual os estudantes
compartilham suas compreensões, interpretações e expressam suas ideias. É uma prática
pedagógica que tem no alfabetizando o sujeito que constrói conhecimentos por meio do
diálogo, evidenciando a politicidade da educação.

É que, na verdade, o contrário da manipulação nem é a neutralidade impossível nem o


espontaneísmo. O contrário da manipulação, como do espontaneísmo, é a participação
crítica e democrática dos educandos no ato de conhecimento de que são também
sujeitos (FREIRE, 2008, p. 39).

Quando as crianças ainda não se apropriaram do sistema de escrita alfabética, podem


partir de palavras que são significativas, como seu nome, por exemplo, para associar a
sonoridade das letras a outras palavras que encontram nos títulos das histórias ou nomes de
personagens. É um exemplo possível de um ensino com palavras que tem sentido para as
crianças. Não há, portanto, um conjunto de palavras a serem ensinadas de forma padronizada,
uma vez que estas emergem dos diálogos com os diferentes grupos de crianças, o que não
significa negligenciar o planejamento intencional dos docentes para o ensino de conteúdos.
Trechos de histórias podem ser destacados para que se discuta o sentido das palavras na
construção das frases, como nesses dois exemplos de uma história infantil:

Parecia estar ali há muito tempo. O outro, que tinha acabado de chegar, apesar de não
ser tão velho, também não era novo. Ao longo da prateleira, outros livros pareciam
cochilar, alheios à conversa. (GOMES, 2017, p. 5, destaque nosso)
[...]
Os olhos da bibliotecária se iluminaram por detrás das finas lentes dos óculos de aro
azuis, e um sorriso nasceu em seu rosto (GOMES, 2017, p. 16, destaque nosso).

Livro que cochila, sorriso que nasce, não fazem parte do linguajar cotidiano, mas são
exemplos de uma necessária prática pedagógica intencional, que permite focalizar a leitura para
a compreensão do sentido figurado das palavras e perceber o estilo linguístico do autor,
desafiando as crianças para que elas próprias construam linguagens figuradas.
Cabe à escola instrumentalizar os educandos no campo da língua e da linguagem, por
meio do ensino dinâmico e significativo. Ainda que certa forma de expressão não faça parte do
universo dos educandos, é necessário que aprendam o sistema formal da língua “que revela
outra estrutura de pensar que não a sua” (FREIRE, 2008, p. 79).
As crianças, na medida em que avançam na compreensão do sistema de escrita
alfabética, aprendem, ao mesmo tempo, a estrutura da linguagem formal, e assim vão também
avançando na leitura e na produção de seus próprios textos. Com a prática de leitura rodiziada

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de livros, pode-se propor que os estudantes elaborem sinopses sobre o que leram, apresentando
aos colegas seus argumentos para indicar ou não determinado livro. A escrita de sinopses
implica em aprender seus elementos característicos e requer empenho dos estudantes, uma vez
que irão compartilhar com os colegas. Escrita, leitura e oralidade, prenhe de significados, são
indissociáveis na alfabetização libertadora.
Os estudantes de anos posteriores, podem escrever textos mais elaborados,
considerando as características do gênero, a construção gramatical, concordância verbal,
ortografia e demais elementos que compõem a escrita formal. Podem divulgar suas produções
em murais, criando um jornal ou um blog da escola. A escrita tem objetivos comunicativos
reais e requer criatividade e responsabilidade na sua elaboração.
Com tais argumentos, defendemos que a alfabetização não se inicia nem se encerra nos
primeiros anos de escolaridade e não significa apenas aprender o sistema alfabético. A
apropriação da linguagem é um processo contínuo, por meio de interações dialógicas entre
educadores e educandos, mediada pela diversidade textual, com diferentes temas, promovendo
a reflexão acerca de seus sentidos e significados, da análise dos recursos linguísticos, da
organização gramatical, dentre outros aspectos.
Essa aprendizagem não ocorre por meio de discursos vazios, posto que se trata de uma
vivência diária de participação coletiva. É preciso que as crianças aprendam, logo cedo, que
“fazer história é estar presente nela e não simplesmente nela representado” (FREIRE, 2008, p.
40) e é na escola que estudantes vivenciam a cidadania como conceito imbuído de valores
humanistas, em defesa do bem-estar coletivo.
O compromisso com a educação cidadã, requer a abordagem de temas sensíveis a toda
a humanidade como direitos humanos, preservação ambiental, saneamento básico, saúde,
trabalho, racismo, preconceito, dentre outros. Ao discutir tais temas, desde a infância, a
educação escolar contribui com a construção de uma sociedade mais solidária, que respeita toda
a forma de vida no planeta.
Textos informativos, jornalísticos, artigos de opinião, contribuem para problematizar o
descaso com as cidades, com as comunidades das periferias, com a destruição ambiental que
desencadeia a propagação de doenças e epidemias. É preciso dialogar com os estudantes, ao
longo da educação básica, sobre o desequilíbrio ambiental que, somado à negligência das
políticas públicas, repercute na devastação e destruição do planeta, não garantindo condições
dignas de vida a todas as pessoas. A educação alienante, que dissocia conteúdos escolares das
questões sociais, é caminho para o abismo. Como seres de opção, podemos formular uma
resposta mais contundente para transformar essa realidade.
Temos hoje uma geração de adultos que vivenciou uma escola autoritária, em que a
leitura e escrita eram atividades burocráticas, desvinculadas da realidade e do pensamento
crítico. A destruição ambiental não parecia um problema, nem as desigualdades, tidas como
fatalismos. Essa educação bancária afastou gerações da leitura crítica do mundo como também
da leitura de textos que poderiam contribuir com a conscientização dos dramas sociais vividos
por milhões de pessoas. Afastou gerações da análise criteriosa sobre os problemas sociais.
Em nosso país se perde, a cada ano, milhões de leitores, como mostra a pesquisa
“Retratos da Leitura no Brasil” (PRO-LIVRO, 2020) e curiosamente, a queda ocorre entre os
mais ricos. É árdua a tarefa da educação em recuperar leitores e uma formação crítica roubada
de muitas gerações. As crianças de hoje podem vivenciar a cidadania crítica para que não se
transformem nos adultos alienados de amanhã.

6 Programas de alfabetização em disputa

Ainda que se tenha avançado nos debates sobre alfabetização, as políticas educacionais
são elaboradas por técnicos que participam da equipe de governo e não partem da realidade das

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escolas. Por outro lado, tais políticas não são simplesmente implementadas (BALL,
MAGUIRE; BRAUN, 2016), uma vez que passam pela visão de mundo dos educadores e
educandos, pelas condições estruturais e pela forma como são compreendidas e consideradas
nas práticas pedagógicas.
No entanto, a histórica relação de mando e subordinação que ainda predomina na
sociedade brasileira, vale-se de sua força impositiva para coagir docentes a colocarem em
prática políticas e programas de governo. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo” é uma
expressão comum em contextos autoritários e foi recentemente reforçada pelo Ministro da
Saúde, ao afirmar que “é simples assim: um manda e o outro obedece” (MAZUI, 2020).
Mesmo sob pressão, educadores adeptos às pautas democráticas, ao assumirem o
compromisso com uma educação integral, ética, humanizadora e libertadora, ao se manterem
firmes em seus propósitos não são levados pelas políticas de forma acrítica e podem reafirmar
a “luta incansável pela escola pública, de um lado, e de outro, o esforço para ocupar o seu
espaço no sentido de fazê-la melhor” (FREIRE, 2001, p. 28).
Apesar dos condicionamentos impostos pela política, pela economia, ideologia ou
cultura dos grupos dominantes, os educadores e educadoras não estão determinados à
submissão da ideologia reacionária.
Conscientes dos limites de sua prática, a professora progressista sabe que a
questão que se coloca a ela não é a de esperar que as transformações radicais
se realizem para que possa atuar. Sabe, pelo contrário, ter muito o que fazer
para ajudar a própria transformação radical (FREIRE, 2001, p. 28).

Para Freire (2001, p. 28), a professora progressista não está “condenada ao imobilismo
fatalista, imobilismo que não é capaz de compreender a dialeticidade entre infra e supra
estrutura”. E é por isso que, “recusando a visão ingênua da educação como alavanca da
transformação, recusa, igualmente, o desprezo por ela”.
Nesse sentido, “a claridade política é indispensável, necessária, mas não suficiente”,
(FREIRE, 2001, p. 28). A escola é local de debate, de diálogo, de crítica, de trabalho coletivo
para o fortalecimento de um projeto político-pedagógico que recusa a simples imposição de
programas e políticas que mudam a cada mudança de governo.
A educação como prática da liberdade proposta por Freire (2014) compreende o
compromisso coletivo com a escola pública que em sua essência é inclusiva, humanizadora e
democrática, promovendo a educação crítica de educadores e educandos, consolidando sua
intencionalidade político-pedagógica.
É nessa matriz crítica que o diálogo se torna o “indispensável caminho” (FREIRE, 2014,
p. 141) para a elaboração de um projeto político-pedagógico, em cada escola, com a
participação de toda comunidade escolar, para romper com as amarras de um projeto de
destruição da democracia que vem se desenhando com sua ideologia manipuladora para
controle de corpos e mentes promovendo uma leitura distorcida da realidade.
Os pressupostos de uma alfabetização libertadora “enquanto ato político e ato de
conhecimento” implicam em um processo de aprendizagem da escrita e da leitura da palavra,
simultaneamente com a ‘leitura’ e a ‘reescrita’ da realidade” (FREIRE, 2008, p. 41).
Com o apoio teórico de Freire, apresentamos, nesse ensaio teórico, argumentos que nos
permitem indicar os fundamentos para uma alfabetização libertadora, como instrumento
poderoso para o enfrentamento da atual investida repressora sobre a educação, que vem
ocorrendo de forma sistemática. A luta contra a opressão, é um compromisso ético de todo
docente que assume a educação como “ato de amor”, que é em si “um ato de coragem”
(FREIRE, 2014, p. 127).

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Considerações

Este texto, de abordagem teórica, destaca fundamentos político-pedagógicos na


alfabetização de crianças, na perspectiva freireana de uma educação libertadora, crítica e ética.
Não reduz a alfabetização à compreensão do sistema de escrita alfabética, mas a compreende
como processo mais amplo, que requer investimentos nos processos da leitura compreensiva e
da produção escrita, que acontece desde a educação infantil até anos posteriores de
escolarização, ou seja, durante a educação básica.
Os aspectos que destacamos sobre alfabetização, com a base teórica de Freire, indicam
possibilidades aos docentes que, a despeito de políticas de padronizações, podem assumir sua
própria construção prático-teórica, tendo em vista a formação humanista e emancipatória dos
estudantes.
Nesse cenário de grande instabilidade econômica e política, com a gravidade da situação
sanitária do País, as crianças procuram compreender e lidar com essa realidade acionando
recursos intelectuais, psicológicos e emocionais. O afastamento da rotina escolar e da interação
com colegas e docentes, levou a um isolamento, cujas consequências são difíceis de avaliar.
É nessa situação desconfortável e inusitada, que poderá emergir um novo olhar para as
crianças e para o currículo escolar. Não mais atividades padronizadas e memorísticas, posto
que uma relação acolhedora, fraterna e dialógica se impõe.
Infelizmente, nem todas as crianças têm acesso à internet e não podem acompanhar
aulas remotas. Muitas ainda estão fora da escola. A desigualdade em nosso País, acentuada pela
austeridade fiscal e recuo das políticas sociais, impede que muitas crianças tenham, em casa,
contato com livros, jogos e brinquedos. Há as que nem casa têm. A falta de outros recursos
como cadernos, papéis, lápis coloridos, tintas, limitam as formas de expressão. As famílias,
sofrendo também as consequências da pandemia, enfrentam obstáculos para acompanhar as
crianças em seu desenvolvimento, em suas aprendizagens e necessidades.
Em função desse cenário desolador, com a disseminação do vírus e suas consequências
devastadoras, as crianças precisam ser acolhidas. Seja nas interações à distância ou no momento
do retorno às aulas presenciais, o diálogo amoroso é um ato de esperança. Acolher os relatos
das crianças, carregados de saberes, sentimentos, dúvidas, curiosidades têm lugar primordial
em um projeto freireano de educação libertadora. O que as crianças ouvem na mídia e nas
conversas dos adultos, são conteúdos relevantes para serem discutidos e estudados na escola.
O que significa o vírus? A vacina? Os procedimentos de cuidado com a saúde? A destruição
ambiental? O isolamento? E tantas dificuldades que estamos enfrentando.
Os conhecimentos iniciais sobre os temas que estão presentes na atualidade, podem ser
analisados a partir de diferentes olhares e se tornando, de forma gradativa, em conhecimento
crítico, tanto quanto possível. Contos, lendas, crônicas, textos informativos abordam temas
diversos ao mesmo tempo que podem ser divertidos, instigando a criatividade e imaginação.
Aprender a analisar e refletir sobre as questões sociais, sobre temas relacionados à vida
no planeta, vivenciando relações éticas, de respeito e solidariedade faz parte da formação
humanista para uma sociedade que zele pela democracia participativa.
A leitura de mundo que, na perspectiva de Freire antecede a leitura da palavra, amplia-
se nos processos de leitura e escrita e vai se tornando mais curiosa, promovendo formas variadas
de ler, dizer e escrever o mundo em um processo de alfabetização libertadora.
A alfabetização, torna-se, assim, significativa, conscientizadora, emancipadora e
humanizadora, fortalecendo um projeto de nação democrática.

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